Entre museus e ciência: o desenvolvimento da ciência viajante no Brasil do século XIX

July 4, 2017 | Autor: Anderson Antunes | Categoria: Brasil, Museologia, Museus, Viajantes Naturalistas, Século XIX
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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Centro de Ciências Humanas e Sociais (CCH) Escola de Museologia

ENTRE MUSEUS E CIÊNCIA: O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA VIAJANTE NO BRASIL DO SÉCULO XIX

Anderson Pereira Antunes

Orientadora: Profª Drª Valéria Cristina Lopes Wilke

Rio de Janeiro 2011

Anderson Pereira Antunes

ENTRE MUSEUS E CIÊNCIA: O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA VIAJANTE NO BRASIL DO SÉCULO XIX

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Museologia.

Orientadora: Profª Drª Valéria Cristina Lopes Wilke

Rio de Janeiro 2011

Anderson Pereira Antunes

ENTRE MUSEUS E CIÊNCIA: O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA VIAJANTE NO BRASIL DO SÉCULO XIX

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Museologia.

Data de Aprovação: _____ de ____________ de 2011

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________ Profª. Drª. Avelina Addor Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

__________________________________________________ Prof. Dr. José Mauro Matheus Loureiro Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

__________________________________________________ Profª. Drª. Valéria Cristina Lopes Wilke Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Rio de Janeiro 2011

AGRADECIMENTO

Aos mestres que me acompanharam durante minha jornada acadêmica pela graduação, especialmente à profª drª Valéria Cristina Lopes Wilke, que me orientou desde o segundo ano de faculdade, primeiro como bolsista monitor, depois como bolsista de iniciação científica e, finalmente, nesta monografia. À família, que durante os quatro anos de faculdade teve que compreender a minha falta de tempo devido a imersão nos estudos. Aos amigos, que tornaram os anos de faculdade mais descontraídos e agradáveis. E, especialmente, à Ana Paula Oliveira Sene, por ser a namorada mais amorosa, compreensiva e carinhosa do mundo. Je t’aime.

“Cada século tem a sua missão a cumprir como cada indivíduo o seu papel a representar no theatro da vida ou na comunhão social, a do século atual é universalizar a sciencia e confraternizar os povos.” – João Batista de Lacerda (diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro entre 1895 e 1915), 1876.

RESUMO A ciência foi um dos temas em voga durante todo o século XIX. O mundo inteiro viu surgir homens de ciência, homens letrados interessados pelas questões e descobertas científicas. Juntos, eles formavam as sociedades científicas e partiam em expedições para desbravar territórios inexplorados, como muitas regiões do interior do Brasil. Estas expedições muitas vezes eram subvencionadas pelo Estado, tenha sido ele brasileiro – imperial ou republicano – ou estrangeiro. Durante estas expedições foram formadas grandes coleções de fauna, flora, mineralogia e etnografia, que foram levadas para os museus de história natural do mundo todo, onde foram estudadas e colocadas em exposição. Neste trabalho, pretendo explorar as relações de mutualismo entre a atividade científica e a atividade museológica no século XIX, descobrindo paralelos e verificando a presença dos museus de história natural no desenvolvimento da ciência no século XIX. Também discuto a importância das coleções formadas pelos cientistas viajantes do Oitocentos, a necessidade de sua preservação em tempos atuais e as possibilidades de uso destas coleções para uma aproximação entre a ciência e a sociedade, dentro dos museus. Palavras-chave: museus, ciência, Brasil, século XIX ABSTRACT Science was a common theme during the XIXth century. The whole world saw the rise of men of science, educated men interested in scientific matters and discoveries. Together, they formed scientific societies and went on expeditions to discover uncharted territories, like many regions in the interior of Brazil. These expeditions often had the subvention of the State, had it been Brazilian – imperial or republican or foreign. During these expeditions were formed great collections of fauna, flora, mineralogy and ethnography, that were taken to natural history museums around the world, where they were studied and exhibited. In this work I intend to explore the relationship of mutualism between the scientific and the museological activity during the XIXth century, discovering parallels and verifying the presence of natural history museums in the development of science during the XIXth century. I also discuss the importance of the collections formed by the traveler scientists of the Ottocento, the need for preservation in modern times and the possibilities of use of these collections to bring closer science and society, inside the museums. Keywords: museums, science, Brazil, XIXth century

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

C&T – ciência e tecnologia CT&I – ciência, tecnologia e inovação IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional MAST – Museu de Astronomia e Ciências Afins MCT – Ministério da Ciência e Tecnologia MinC – Ministério da Cultura MN – Museu Nacional MP – Museu Paulista SAIN – Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional SMRJ – Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro Unirio – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro USP – Universidade de São Paulo

SUMÁRIO Introdução.......................................................................................................... pág. 08 Capítulo 1: Relações entre ciência e museus no Oitocentos............................ pág. 21 Capítulo 2: A ciência viajante............................................................................ pág. 41 Considerações

finais:

Valorização

do

patrimônio

científico

brasileiro............................................................................................................ pág. 55 Anexo 1: Itinerários Aproximados das Excursões da Comissão Científica do Império............................................................................................................... pág. 65 Anexo

2:

Quadro:

Rede

de

relações

entre

museus,

ciência

e

Estado............................................................................................................... pág. 67 Referências....................................................................................................... pág. 69

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INTRODUÇÃO Estado, ciência e museus no Brasil Oitocentista

“Na paisagem cultural do século XVIII, a difusão de um saber já sistematizado por meio da escolarização vai se afirmando como responsabilidade pública. Nesse período, aparecem inúmeras instituições nas quais se tornam importantes a discussão e a divulgação das descobertas da ciência. Partindo dessa nova funcionalidade, o museu, por sua vez, desponta enquanto veículo da nova estrutura hegemônica do Estado laico.” – Piedade Filho, 2009.

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A interdisciplinaridade é uma das características intrínsecas à Museologia e uma das que contribuem para torná-la uma ciência singular no hall das ciências sociais aplicadas. Através de relações com outras ciências humanas e sociais, a Museologia constrói amplas e ricas redes de conhecimento, o que torna possível a criação de uma pluralidade de perspectivas sobre os temas e objetos os quais se propõe a estudar. Dentre as disciplinas com as quais a Museologia se relaciona a História sempre se mostrou muito próxima, compartilhando de questões e unindo-se para refletir acerca de temas como memória e identidade. A fertilidade desta união incentivou incontáveis pesquisadores a adentrarem em questões históricomuseológicas e levou, em 1994, o historiador e museólogo mexicano Morales Moreno a cunhar o termo museohistória. Para Moreno, a museohistória trata-se de uma historiografia aplicada à Museologia, um esforço para compreender o museu “junto à historiografia da cultura, à etno-história, à sociologia do conhecimento e à antropologia social” (LOPES; MURRIELLO, 2005, p. 14). Nos últimos anos é possível notar um crescente interesse acerca de uma historiografia dos museus, tema que vem sendo estudado em âmbito internacional e que, no Brasil, já possui alguns trabalhos referenciais. Dentro deste tema, o século XIX mostra-se como o período de maior interesse não só para os pesquisadores nacionais, mas para aqueles envolvidos com a temática dos museus por toda a América Latina, Europa e Estados Unidos. O século XIX mostrou-se um século de grandes acontecimentos em todos os quatro cantos do Globo. Foram cem anos marcados por transições, por reformas, por revoluções, pelo apogeu e declínio de grandes impérios. Inúmeras expedições exploratórias lançadas pelas grandes potências européias ampliaram o planisfério com a descoberta de novos territórios. Com isto, descobriam-se novos grupos humanos, novas culturas, novos espécimes de fauna e flora. O mundo tornava-se maior e mais complexo. Foi também durante este século que a humanidade viu o surgimento dos modernos Estados-nação, com a conseqüente criação de identidades nacionais locais e o sentimento de pertencimento a um todo: a nação. Surgiam novas formas de governo e se pensavam novas formas de organização social. Idéias revolucionárias como o liberalismo e a abolição da escravidão começavam a se espalhar. Novas idéias promoviam reformas políticas por todos os lados. E estas reformas não ficavam confinadas aos seus locais de origem. O que acontecia no Velho Continente gerava reflexos também no Novo Mundo. O colapso

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dos impérios espanhol e português contribuiu para o surgimento de diversos novos países na América do Sul, região anteriormente dividida pelo domínio ibérico. E estas novas nações lutavam interna e externamente pela consolidação de seus territórios e por sua representatividade política. Em outras palavras, lutavam por seu lugar neste novo mundo. Mas o turbilhão de novas idéias não se restringia somente ao campo da política. Surgiam também novas descobertas técnicas, que possibilitaram a invenção de novas tecnologias. Com a Revolução Industrial, a vida foi transformada num ritmo acelerado antes inimaginável, acarretando em inúmeras mudanças socioeconômicas e culturais. A vida tornava-se mais rápida e, o mundo, ainda mais complexo. Neste cenário, a ciência mostrou-se como uma das grandes beneficiadas pelas novidades que surgiam a todo o momento. As novidades técnicas possibilitadas pela Revolução Industrial permitiram a criação de uma vasta gama de novos equipamentos, permitindo aos cientistas realizarem pesquisas mais profundas sobre seus objetos de estudo. Em troca, as novas descobertas científicas permitiam uma melhor compreensão do mundo, o que, por sua vez, possibilitava a realização de ainda mais descobertas. A ciência estava na ordem do dia e através dela o homem Oitocentista tentava compreender e dominar um mundo em constante transformação. A importância do papel da ciência no século XIX foi explorada por BRAGA, GUERRA e REIS1, que afirmam que “para o homem do século XIX, a ciência podia tudo, seria a ferramenta de redenção” (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 14). Em seu livro intitulado A belle-époque da ciência, os pesquisadores abordam o século XIX de maneira abrangente, analisando as características socioculturais do mundo Oitocentista e a influência do positivismo de Comte para o pensamento de uma nova ciência. “O pensamento de Comte fazia uma análise da evolução da humanidade a partir de um estado primitivo de desenvolvimento até o atual. Numa época em que as classificações estavam na moda, o filósofo procurou ordenar o progresso da humanidade em três estados: teológico, metafísico e positivo” (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 28). 1

Os pesquisadores Marco Braga, Andréia Guerra e José Claudio Reis formam o grupo conhecido por Teknê. Formado por professores de física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desde 2003 o grupo publica a série Breve história da ciência moderna. Com esta série, pretendem difundir, de forma didática, a história e a filosofia das ciências como ferramenta de reflexão sobre o papel da ciência no mundo moderno.

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Para atingir este estado positivo, as ciências e as pesquisas ganhavam grande ênfase, numa jornada incansável em busca de mais conhecimento. Por todo o século XIX, ciência e positivismo andaram juntos. Para chegar ao ideal positivista de “ordem e progresso”, a industrialização e o desenvolvimento científico tornaramse metas a serem alcançadas. E, para alcançar estas metas era preciso abandonar as concepções teológicas e metafísicas e acreditar na ciência e no método científico como únicas maneiras de se compreender o Universo. Ainda nas palavras do Grupo Teknê: “Esse tempo de prosperidade, felicidade e fé nas conquistas do conhecimento humano – e de suas aplicações ao cotidiano por meio da tecnologia – bem poderia ser chamado de belle-époque da ciência” (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 14). Havia um entendimento, à época, de que a ciência era algo útil, de aplicação, e que estimular a prática científica poderia trazer retorno em forma de desenvolvimento econômico e de benefícios para a sociedade. E este clima de prosperidade científica não se manteve restrito somente às metrópoles européias. Através da ocupação com a colonização, as idéias que circulavam pelo solo europeu pouco a pouco chegavam também nas colônias, mesmo que contrabandeadas por debaixo dos panos da censura, como foi o caso da chegada das idéias iluministas francesas em solo brasileiro no século anterior. Mas, não era somente através de meios escusos que as idéias progressistas chegavam ao Brasil. Os trabalhos de Figueirôa e de Lopes, por exemplo, mostraram como, nos estertores do antigo sistema colonial, as reformas sócio-econômicas modernizadoras empreendidas por Portugal, fundamentadas nos ideais da Ilustração, adotaram o fomentismo estatal, e a valorização das ciências naturais – sobretudo a Botânica, intimamente ligada à agricultura, a Medicina e a Química, mas também a Mineralogia e a Metalurgia – se tornou preocupação explícita do governo português. (FIGUREIRÔA, 1998, p. 112)

Desde o início, portanto, a ciência sempre esteve atrelada aos interesses do Estado. Maria Amélia Dantes argumenta que “os interesses metropolitanos de manutenção e exploração mais racional da Colônia, incentivaram, no final do século XVIII, variadas práticas científicas” (DANTES, 2005, p. 3). Por ser entendida como uma ferramenta que auxiliava no caminho para o desenvolvimento, a ciência era financiada pelo Estado, que objetivava a modernização e o progresso da Nação, através da ciência. O fomentismo estatal tornou-se, portanto, parte inerente ao modus faciendi da prática científica brasileira até, pelo menos, o início do século XX.

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A chegada da Família Real ao Brasil em muito contribuiu para o desenvolvimento da prática científica na Colônia e para o aumento do financiamento de pesquisas e instituições. Dentre as primeiras instituições científicas criadas pelo governo português, podemos citar: o Colégio Médico da Bahia (criado em 1808 e transformado na Faculdade de Medicina da Bahia em 1832), a Escola Médica do Rio de Janeiro (criada em 1808 e também transformada em Faculdade de Medicina em 1832), o Horto Real (de 1808, atual Jardim Botânico), a Tipografia Régia (criada em 1808 e atual Imprensa Nacional), a Biblioteca Nacional (criada em 1810), a Academia Militar do Rio de Janeiro (criada em 1810, deu origem à Escola Central, em 1855, sendo transformada em Escola Politécnica em 1874), o Museu Real (criado em 1818, atual Museu Nacional), o Observatório Nacional (criado em 1827), o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB, criado em 1838), dentre outras. Notamos, portanto, que a primeira metade do século XIX foi um período de rápido desenvolvimento. Para adequar a Colônia às necessidades da Família Real que agora abrigava e para levantá-la ao status de Reino Unido, muitos foram os investimentos do governo português em solo brasileiro. Lilia Moritz Schwarcz, uma das maiores pesquisadoras do século XIX no Brasil, afirma que a chegada da Família Real, em 1808, constituiu “um momento singular da história nacional e um processo singular de emancipação” (SCHWARCZ, 1998, p. 35). Estudando a história da ciência brasileira, Carlos Figueiras interpreta o impacto da chegada dos Bragança à colônia com a seguinte afirmação: A nova ordem das coisas alterou quase da noite para o dia a situação do país, ao qual tinha sido negada até então a existência de universidade, ou escolas superiores, de quase todas as manufaturas, de escolas profissionais, até mesmo de tipografias. Na breve escala de D. João em Salvador, além de fundar o que veio a ser a primeira escola de medicina do país, o príncipe regente também assinou o decreto de abertura dos portos brasileiros, encerrando de vez o isolacionismo do Brasil. (FIGUEIRAS, 1990, p. 227)

Atestando a existência da ciência brasileira no século XIX, a revista americana Science publicou, em 1883, um artigo intitulado The present state of science in Brazil. Neste artigo, lia-se que os últimos dez ou quinze anos testemunharam um acentuado despertar no Brasil para a importância da pesquisa científica [...] os próprios brasileiros estão talvez, em sua maioria, inconscientes da importância e do potencial da atividade científica desenvolvida em seu meio por um grupo modesto de aplicados pesquisadores [...] já se fez bastante para marcar a aurora de

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uma nova era repleta de promessas para o futuro (FIGUEIRAS, 1990, p. 222).

E, em meio a esta aurora científica, estavam os museus, como precursores da atividade científica brasileira. A ciência brasileira encontrou neles um refúgio para seu desenvolvimento. No Brasil, as instituições museológicas antecedem as universidades. Logo, através de suas coleções, os museus foram de imensa importância para os estudos das Ciências Naturais, onde exerceram um papel pioneiro na institucionalização de certas áreas do conhecimento no país, como a Paleontologia, Antropologia e Fisiologia Experimental. No caso específico da Paleontologia, Rudwick (1987 apud Lopes, 2001) relacionou sua construção ao estabelecimento da tradição de preservação dos museus, pois o estudo dessa área, o estudo dos fósseis, está interligado às atividades dos museus em virtude da natureza inerente do material (MACHADO et all, 2007, p. 159).

Ao estudar a atuação do Museu Nacional do Rio de Janeiro no século XIX, a pesquisadora Maria Margaret Lopes aponta que “nesses contextos, marcados pela expansão das diferentes áreas disciplinas e instituições científicas e pelo incremento da especialização e profissionalização dos técnicos e cientistas, os museus brasileiros estiveram de sobremodo atuantes.” (LOPES, 1993, p. 168). Dessa forma, com a pesquisa científica ligada aos institutos científicos e não às universidades, o Brasil aproximava-se mais da realidade francesa. Fortemente ligadas ao clero, as universidades francesas não tiveram um papel de grande incentivadoras da prática científica, ficando esta tarefa relegada a outros espaços institucionais, como as escolas técnicas e os institutos de pesquisa. Na França, nem a indústria nem as universidades tiveram papel preponderante na produção científica ao longo do século, ficando essa tarefa a critério de institutos independentes financiados pelo estado. Ao contrário do projeto universitário alemão, no qual ensino e pesquisa se encontravam entrelaçados, as universidades francesas constituíam um espaço voltado apenas ao ensino. Essa era uma herança do período revolucionário, em que as universidades ainda sofriam grande influência eclesiástica, acarretando a fundação de escolas científicas e institutos independentes a quem cabia desenvolver a pesquisa e a produção de conhecimentos técnico-científicos. O Brasil, que não possuía universidades, inspirou-se no modelo científico francês ao longo de seu primeiro século como nação independente (BRAGA; GUERRA; REIS, 2008, p. 167).

Os museus tornaram-se, portanto, redutos da ciência e, de certa forma, estavam associados à toda a prática científica. A começar pelos seus diretores e técnicos, homens letrados, engajados nas práticas científicas, envolvidos com as expedições que adentravam o território brasileiro a procura de novos espécimes

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minerais, de fauna e de flora. Uma vez coletados, estes espécimes eram enviados para serem estudados e conservados. Fósseis, amostras mineralógicas, espécimes botânicos, animais empalhados. Todo este material era processado e preservado nas reservas dos museus, que também os expunham. Através das exposições, os museus levavam a ciência para um público mais abrangente, difundindo as novas pesquisas e descobertas, e educando os leigos sobre a prática científica. Podemos afirmar que museus e ciência estavam intimamente ligados durante o século XIX. A forte presença destas instituições, nesta época, é um tema bem conhecido e já pesquisado no Brasil e no mundo. Os museus públicos são, aliás, uma invenção do Oitocentos. De acordo com a museóloga portuguesa Alice Semedo, “a fundação do museu público tem sido compreendida como parte da emergência das idéias modernas relacionadas com a Ordem e o Progresso e com as experiências que se lhe relacionam de tempo e espaço, associadas aos processos de industrialização e urbanização que o ocidente viveu no século XIX” (2004, p. 130). O desenvolvimento dos museus neste período parece ter sido um fenômeno global, levando os pesquisadores da área a cunharem a expressão “movimento de museus” para designar o crescimento do campo museológico, especialmente a partir da segunda metade do século. Na realidade, o primeiro artigo formalmente publicado sobre historiografia de museus de que se tem conhecimento data de 1888 e foi apresentado no 3rd Annual Meeting da American Historical Association, por seu autor George Brown Goode. O artigo abria o caminho para que se pensasse sobre a história dos museus e, logo, “seus seguidores se multiplicaram pelos museus de todo o mundo e não faltaram ecos de concepções semelhantes na América Latina, onde as últimas décadas do século XIX também assistiram a uma revitalização das instituições museológicas” (LOPES; MURRIELLO, 2005, p. 15). As autoras supracitadas explicam a sincronia deste movimento global de museus devido à existência de um “conjunto de proprietários e diretores de museus [que] já tinha estabelecido sólidas redes de comunicação entre si, ‘simultaneamente influenciados pelos mesmos fatores culturais e resultava que estavam fazendo as mesmas coisas, no mesmo momento, pelos mesmos motivos’ (OROZ, 1990, p. 3)” (idem, p. 15). Juntos, estes proprietários e diretores de museus discutiam o papel dos museus na construção da nação e “a importância que essas instituições tiveram na educação do público e na investigação científica, diante da consolidação das classes médias urbanas e da emergência da profissionalização” (idem, p. 15).

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Algumas décadas mais tarde, em 1939, Laurence Vail Coleman, diretor da American Association of Museums, descreveu “a expansão sem precedentes dos museus de todos os tipos, por todos os continentes, como um verdadeiro movimento social, marcado pelo estabelecimento de amplas redes de intercâmbios, que puseram em contato, de diferentes modos e em diferentes circunstâncias, os museus de todo o mundo” (idem, p. 17), demarcando, assim, este período de apogeu classificado como “movimento de museus” “entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX” (idem, p. 17). É interessante notar a confluência do apogeu dos museus com o apogeu da ciência, percebendo a relação estreita entre ambos neste período, fazendo com que Maria Margaret Lopes tenha afirmado que este foi o “período de apogeu dos museus enquanto instituições privilegiadas de pesquisa em ciências naturais.” (LOPES, 2000, p. 228). A autora vai além, dizendo que onde conjunturas sociais favoráveis permitiram, governos empenhados em processos modernizadores de suas economias incentivaram investigações e ensino de ciências naturais, contratando naturalistas estrangeiros, organizando expedições científicas escrutinizadoras dos territórios, construindo museus, comprando coleções (LOPES, 2000, p. 229).

O “movimento de museus” “expandiu redes de intercâmbio, ampliou coleções, criou catálogos, difundiu mais rapidamente conceitos e informações, e ajudou a fortalecer ainda mais essas instituições” (LOPES apud CID; WAIZBORT, 2006, p. 216). Não só a ciência, mas também o museu, era visto como ferramenta de modernização e desenvolvimento para a nação e, portanto, figuravam nas políticas progressistas dos governos de diversos países. No Brasil, sem universidades com laboratórios para produzirem pesquisas de ponta, o papel dos museus – em particular, dos museus de ciências naturais – como produtores de conhecimento científico foi ainda mais marcante. A ênfase na prática científica levou a diversas mudanças paradigmáticas nas áreas da ciência e a múltiplos desenvolvimentos técnicos. Datam dos Oitocentos invenções como a locomotiva a vapor, o telégrafo, o motor de combustão, a vacina contra a raiva, e a lâmpada. Todas estas novidades tecnológicas transformaram a sociedade, mas não devemos relevar o impacto das grandes teorizações que, embora não tenham tido um impacto no dia-a-dia do homem, certamente fizeram nascer novos modos de pensar e entender o Universo. Dentre as teorias científicas

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que surgiram no século XIX, nenhuma é mais célebre do que a teoria da seleção natural de Charles Darwin. Sobre o impacto do darwinismo nas ciências e, conseqüentemente, nos museus, Lopes e Murriello afirmam que “de fato, o darwinismo não só revigorou os museus da época como levou à criação de muitos outros [...] a história natural, de disciplina abrangente que era, passou a ser, no fim do século, apenas uma das várias orientações que um biólogo poderia seguir. Na verdade, exatamente quando a historiografia considerou que a biologia saía do museu, afastando-se da sistemática e da história natural, voltando-se para pesquisas de laboratório, os museus experimentaram um crescimento explosivo por todo o mundo.” (LOPES; MURRIELO, 2005, p. 23). Ademais, o século XIX é também reconhecido por ser o século da especialização do conhecimento e da profissionalização. No campo das ciências, é um período de institucionalização da prática científica e de reconhecimento da existência de uma comunidade científica, isto é, de um grupo de profissionais dedicados à ciência que assim são reconhecidos por outros grupos intelectuais e profissionais. “A institucionalização da ciência se desenrolou ao longo do século XIX e visava a profissionalização dos cientistas e a garantia de sua autonomia e autoregulamentação, frente ao Estado e à sociedade [...] Outra característica desse processo foi a distinção entre as disciplinas acadêmicas, e, não por acaso, este é o momento em que a palavra ‘cientista’ é cunhada por William Whewell, em 1834.” (VERGARA, 2008, p. 142). Anterior a este período, o cientista era conhecido pelo epíteto de “filósofo natural”, pois o que existia era “algo chamado ‘filosofia natural’, que pretendia descrever e explicar o sistema do mundo em sua totalidade” (HENRY, 1998, p. 16). Analisando o caso brasileiro, percebemos como este processo aconteceu dentro dos museus e de outros espaços institucionais ligados à políticas governamentais. Enquanto em países como a Alemanha a institucionalização da ciência aconteceu dentro das universidades, no Brasil, este processo ocorreu dentro de espaços como o Observatório Nacional, o Museu Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Comissão Geológica do Império, e o Jardim Botânico. Nestas instituições, podemos notar não apenas a presença da ciência, mas também a presença forte do Estado. E o papel do Estado não se limitava apenas ao financiamento destas instituições e das atividades científicas que propunham, pois

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os interesses da máquina estatal também se relacionavam, diretamente, com a temática das pesquisas realizadas. E muito desta forte presença estatal relaciona-se ao surgimento da idéia moderna de Estado-nação e do conseqüente nacionalismo que esta suscitou. “No entender de Stuart Hall este Estado-nação não é simplesmente uma entidade política, mas é igualmente uma concepção simbólica – um sistema de representação que produziu uma ‘idéia’ de nação como ‘comunidade imaginada’ (re)produzindo significados em relação aos quais os seus membros se podiam identificar e através dos quais (através da identificação imaginada) constituía os seus cidadãos como ‘sujeitos’ (em ambos os sentidos de sujeição utilizados por Foucault: sujeitos de e sujeito à nação)” (SEMEDO, 2004, p. 132). Neste contexto, buscava-se definir o que era particularmente nacional e o que caracterizava a Nação e os seus habitantes. E a ciência foi parte fundamental desta tarefa. Nas ciências naturais, procurava-se entender a origem do Homem e determinar elementos comuns que permitiriam a classificação de um homem como europeu ou como brasileiro, por exemplo. Foi o auge do que conhecemos como craniometria ou craniologia, isto é, o estudo das medidas do crânio para classificação dos seres humanos. Por outro lado, a cultura também era um elemento a ser estudado, a fim de definir o que caracterizaria a cultura de cada país e o que constituiria o patrimônio de cada país a ser resguardado para gerações futuras. Na virada do século XIX para o XX, a noção de progresso alimentava a perspectiva de que o futuro da humanidade se daria de forma promissora e com sentido de evolução para um mundo melhor. Essa perspectiva era marcada pelo sentimento nacional: nações emergiam e ao mesmo tempo concorriam em exibições universais [...]. Construíam-se histórias nacionais que se materializavam em ‘patrimônios nacionais’ a serem protegidos da destruição, como legado de um outro tempo – passado – às gerações futuras (CHUVA, 2009, p. 43).

Nas colônias, as lutas por independência também contribuíram para a história dos museus, como afirma Lopes: “dirigidos por naturalistas estrangeiros ou nacionais, sempre subvencionados pelos governos locais, com decretos de criação precedendo em anos sua efetiva abertura ao público, esses museus sobreviveram ou não, foram incentivados ou não, muito em função dos processos prolongados de lutas pela independência, em cada um desses países” (2000, p. 228). Na busca pelo nacional e pela excelência da Nação, as ciências eram utilizadas como ferramentas que trariam o progresso. As expedições científicas

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tinham por fim a exploração dos territórios e a descoberta de riquezas naturais. O estudo das tribos indígenas permitiria uma maior compreensão da origem do homem americano. Na busca pelo progresso, a ciência era a ferramenta do Estado e, os museus, locais de ciência. A ciência, na transição do século XIX para o XX, ajudaria a inventar nações, seja pelas pesquisas de raça que interessa aos cientistas da época, seja pelas pesquisas sobre o passado geológico e cultural dos territórios. A este movimento, os museus participaram contribuindo com o aval científico e a “atribuição de valores de raros, ‘únicos’ que os esqueletos, crânios e objetos comuns da vida cotidiana das nações indígenas ganharam ao serem transformados, como em um ritual, pelas mãos dos colecionistas, nos objetos científicos das mais preciosas coleções arqueológicas e etnográficas. (LOPES, 2001, p. 68).

Neste cenário, os cientistas procuravam apontar a relevância de estudos sobre a natureza e a potencialidades das terras americanas, numa manifestação do nativismo que se manifestou nesta época em diversos campos da atividade humana, como as artes e a literatura. Muito se falava em forjar uma “ciência nacional”, que era entendida como a ciência realizada por brasileiros, sobre temas brasileiros. “A utilização dos conhecimentos produzidos aqui por cientistas preocupados com os problemas nacionais seria uma forma criteriosa de atingir a civilização e a modernidade desejada por nossos indivíduos educados e homens de ciência” (CID; WAIZBORT, 2006, p. 225). Podemos argumentar que a ciência fazia parte de um projeto de Nação, dentro do Estado-Nação brasileiro. Esta idéia toma força ao analisarmos o período do Segundo Reinado. A atuação do imperador D. Pedro II como principal financiador da atividade científica foi estudada pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz em As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. Nesta publicação, afirma que: seguindo o exemplo passado de Luís XIV, o monarca formava a sua corte ao mesmo tempo que elegia historiadores para cuidar da memória, pintores para guardar e enaltecer a nacionalidade, literatos para imprimir tipos que a simbolizasse. Era uma situação de consolidação do projeto monárquico, a criação de uma determinada memória passa a ser uma questão quase estratégica. [...] Era d. Pedro II quem patrocinava, particularmente, projetos de pesquisa de documentos relevantes à história do Brasil, no país e no estrangeiro. Ele também se interessou pelas pesquisas de etnografia e lingüística americana. Ajudou, de diferentes maneiras, o trabalho de cientistas como Martius, as pesquisas de Lund, de Gorceix, dos naturalistas Couty, Goeldi e Agassiz, dos geólogos O. Derby, Charles Frederick Hartt, do botânico Glaziou, do cartógrafo Seybold, além de vários outros naturalistas que estiveram no país. D. Pedro financiou ainda profissionais de

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áreas diversas, como advogados, agrônomos, arquitetos, um aviador, professores de escolas primárias e secundárias, engenheiros, farmacêuticos, médicos, militares, músicos, padres e muitos pintores. Não é à toa que nessa época tenha ficado famosa a frase proferida pelo jovem monarca brasileiro nos recintos do IHGB: ‘A ciência sou eu’. Sem dúvida, uma clara alusão ao dito de Luís XIV; uma referência ao momento em que d. Pedro passa a ser artífice de um projeto que visava, por meio da cultura, alcançar todo o Império (SCHWARCZ, 1998, p. 128-131).

Logo, podemos perceber como, no século XIX, se entrelaçavam Estado, ciência e museus. Com este trabalho pretendi, portanto, problematizar o papel dos museus de história natural, na condição de ferramentas do Estado na construção e consolidação de narrativas de um Brasil “moderno”. Este tema vem sendo estudado de forma ampla nos últimos anos, já existindo uma rica bibliografia especializada, sobre a qual me baseei para esta análise. A coleta desta bibliografia foi feita entre agosto de 2010 e julho de 2011, período no qual fui bolsista de iniciação científica com apoio da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Com o projeto Instituições científicas e museus no Brasil: história e memória da ciência brasileira, sob orientação da professora doutora Valéria Cristina Lopes Wilke, me propus a discutir a importância das instituições científicas e dos museus de história natural como elementos contribuintes para a formação para a ciência no EstadoNação brasileiro durante o século XIX, enfocando: a) a conexão entre instituições científicas e museus de história natural e a história da ciência no Brasil; b) a ciência como um elemento participativo do projeto de nação (monárquico e republicano) e suas conseqüências. Durante o período de pesquisa, levantei vasta bibliografia que versava sobre os temas interessantes ao projeto, tendo realizado uma leitura crítica e uma série de fichamentos sobre cada texto lido, utilizando-os para formar uma base de dados que serviu de suporte para a redação do atual trabalho. A presente monografia pretende dar continuidade à pesquisa da iniciação científica e nela procurei analisar, através de fontes históricas, o papel dos museus de história natural brasileiros para o desenvolvimento da ciência no Brasil do século XIX, focando tanto no aspecto científico da própria instituição museológica, como também no seu papel de divulgadora e educadora para a ciência. Assim, a principal pergunta feita para as fontes investigadas foi: até que ponto os museus de história natural estiveram envolvidos com o desenvolvimento das ciências no Brasil Oitocentista? Para tentar responder esta pergunta, dividi minhas considerações em três capítulos. No capítulo 1, Relações entre ciência e museus no Oitocentos, analisei a

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influência do Estado na criação das primeiras instituições científicas brasileiras, dentre as quais nossos primeiros museus. Para analisar a criação dos museus foi preciso, também, avaliar o surgimento das primeiras sociedades científicas brasileiras, entendidas aqui como um primeiro sinal da formação de uma comunidade científica brasileira, que se mostrava intimamente ligada à atividade dos museus. Para estas análises foi necessário apresentar alguns personagens de destaque, como o imperador D. Pedro II, cientistas de renome como Charles Frederick Hartt, Orville Derby e Francisco Freire Alemão de Cisneiros, assim como nossos principais diretores de museus, como Ladislau Netto, Emílio Goeldi e Hermann Von Ihering. Estes personagens estiveram diretamente ligados à atividade científica, à atividade museológica e às comissões de exploração. No segundo capítulo, A ciência viajante, analisei o papel das comissões científicas de exploração para a formação de coleções, citando alguns exemplos, como a Comissão Científica do Império, a primeira comissão exploratória brasileira, financiada pelo Estado e da qual participaram muitos funcionários de nossos museus. O modo de se fazer ciência de uma comissão científica de exploração, de uma “ciência viajante”, é apresentado, enfocando o papel do Estado e dos museus nestas iniciativas. Estas comissões foram responsáveis pela formação de grandes coleções científicas, as quais foram levadas para os museus e onde, até hoje, se encontram. Também é problematizada a quantidade de coleções que foram levadas para fora do Brasil por cientistas viajantes europeus e o atual estado destas coleções nos nossos próprios museus. Por fim, o capítulo Valorização das coleções científicas brasileiras, aprofunda sobre a importância das coleções formadas pelas expedições científicas e o papel dos museus e seus técnicos para a preservação das mesmas. Uma preservação que não tem apenas um propósito científico, mas também busca preservar os objetos como elementos constituintes de uma memória da ciência brasileira e de um fazer científico do passado. São estes os motivos que me levaram a concluir, ao fim deste trabalho, que há a necessidade de uma maior valorização do patrimônio técnico-científico brasileiro.

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CAPÍTULO 1 Relações entre ciência e museus no Oitocentos

“É preciso que o museu cesse de ser uma repartição pública e se torne uma officina scientífica.” – Emílio Augusto Goeldi (diretor do Museu Paraense entre 1894 e 1914), no Boletim do Museu Paraense, em 1894.

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No período anterior à excepcional data de 22 de janeiro de 1808, o Brasil – até então mera colônia portuguesa no continente americano – não teve papel diferente de suas irmãs latino-americanas e de muitas outras terras espalhadas pelo planisfério, também colonizadas pelas grandes potências européias dos séculos XVI e XVII, como o eram os reinos de Portugal e Espanha. Embora já reconhecido por suas riquezas naturais, as terras brasileiras eram vistas apenas como um depósito de bens de exploração, não havendo considerações sobre uma especulação mais criteriosa do território. “Só no século dezenove, depois da transferência da corte portuguesa, começaram a surgir alguns institutos técnicos e certas atividades de pesquisa mais sistemáticas” (SCHWARTZMAN, 2001, p. 54). Com rédeas curtas, a metrópole portuguesa dominava a colônia através de diversas proibições. Proibia-se, por exemplo, o comércio com outras nações, o que trazia a impossibilidade de intercâmbio – econômico ou cultural – com qualquer outra região do Globo. Também se proibia a maioria das manufaturas, o que tornava a colônia dependente dos manufaturados portugueses. Este conjunto de leis, conhecidas por Pacto Colonial, garantiam o exclusivismo econômico das metrópoles sobre suas colônias. As proibições, no entanto, se estendiam para além do campo econômico. Para garantir seu domínio, a metrópole portuguesa também não permitia a criação de escolas de ensino superior e de tipografias em terras brasileiras. Estas medidas pretendiam garantir a hegemonia portuguesa, evitando a competição com a própria colônia e mantendo seus colonos em posição desfavorecida, facilitando assim a sua subjugação. Assim se traçava o cenário comum à época das Grandes Navegações, onde colonizar era o modus operandi das metrópoles frente às terras recém descobertas. A relação entre metrópole e colônia só se alteraria, de forma excepcional, a partir de 1808. Embora o motivo da vinda da Família Real portuguesa para a colônia brasileira seja tema de discussão, ora se argumentando em favor de um golpe político, ora sendo entendida como motivada pela presença das tropas do general francês Junot, um aspecto é inquestionável: o papel sem precedentes na mudança de relações entre uma metrópole e sua colônia. Este momento foi singular não apenas na história de Portugal e do Brasil, mas na história mundial, por seu ineditismo. A transferência da corte portuguesa trouxe consigo o fim de uma série de proibições e o início de um período transformador na

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história do Brasil, que deixava seu posto de colônia de exploração e transformavase, agora, em lar da Família Real portuguesa. As conseqüências acarretadas por esta mudança de status foram sentidas imediatamente. Aportando em Salvador, na Bahia, e lá ficando por um breve período, antes da viagem para o Rio de Janeiro, o príncipe regente Dom João de Bragança – D. João VI de Portugal – logo assinou o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas. Com o fim do isolacionismo, as influências – econômicas e culturais – de diversas nações européias puderam começar a ser sentidas na colônia. Dentre as outras iniciativas do príncipe regente estiveram inclusas a criação de diversas instituições que visavam tornar a colônia apta a servir de lar à Família Real e sua corte, medidas que visavam a sua modernização e capacitavam-na à sua própria proteção e desenvolvimento. Já é possível notar, portanto, a presença do Estado – ainda português – na criação e financiamento de instituições de diversas naturezas, como o Banco do Brasil (1808), a Tipografia Régia (1808), a Biblioteca Nacional (1810), o Museu Real (1818) e o Observatório Nacional (1827). As novas instituições trouxeram a demanda por profissionais especializados e as recém fundadas escolas começaram a formar alguns destes profissionais no próprio Brasil, eliminando a necessidade de se viajar para Portugal para adquirir uma formação superior. Dessa forma, começavam a surgir os primeiros “homens de letra” e intelectuais brasileiros. Essa elite cultural tinha por prática juntar-se em sociedades ou associações. As sociedades científicas eram grupos formados por figuras de eminência, que compartilhavam do interesse comum pela atividade científica. Eram geralmente homens letrados, de boa posição social, que tinham na leitura e discussão de manuais científicos uma forma de lazer e de obtenção de status. A presença de sociedades científicas que contribuíam para o financiamento de museus era comum à época, assim como a nomeação de seus diretores como sócios honorários e correspondentes. Por um lado, esta associação conferia “mérito e reconhecimento a esses sócios e à sociedade que exibia seus nomes em suas publicações” (LOPES, 2001, p. 62), enquanto ajudava na difusão das coleções destes museus, “através de sessões, atas e publicações associadas à sociedade” (idem, p. 61). Ainda segundo Lopes,

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o fato de existirem sociedades que suportaram financeira e cientificamente museus pode ser tomado como indicador de maior ou menor apoio das comunidades locais a essas iniciativas, que completavam o quadro das instituições necessárias ao desenvolvimento das Ciências Naturais, ao lado das sociedades científicas (2000, p. 229).

Foram diversas as sociedades científicas atuantes no Brasil Oitocentista, nas mais diversas áreas. Em 1829, nascia no cerne da Academia de Medicina do Rio de Janeiro, a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (SMRJ). Visando o desenvolvimento do ensino da medicina no Brasil e o fim do monopólio português sobre a prática médica, a SMRJ focou seus esforços na publicação de revistas médico-científicas. Estas publicações tinham por propósito divulgar os últimos desenvolvimentos da medicina e familiarizar o público leigo com a sua prática. Dá-se o nome de “vulgarização científica” a esta prática de instrução de um público leigo acerca dos métodos e meios da ciência. O termo “vulgarização científica” foi amplamente utilizado durante o século XIX, significando o mesmo que “divulgação científica”, ou seja, especificamente a prática de difusão da ciência para um público não familiarizado. Este termo “começou a ser mais frequentemente utilizado no momento da institucionalização da ciência, que promoveu uma mundialização dos valores e procedimentos científicos, constituindo-se num processo de circulação transnacional e transcultural de difusão de novas idéias” (VERGARA, 2008, p. 138). Seu uso, no Brasil, veio por influência dos livros franceses, onde o vocábulo vulgarisation é utilizado até hoje. No caso da SMRJ, o primeiro periódico vulgarizador publicado foi o jornal Propagador das ciências médicas (1827-1828), seguido pelo Semanário de Saúde Pública: pela sociedade de medicina do Rio de Janeiro (1831-1835). Transformada em Academia Imperial de Medicina, a antiga SMRJ começa a publicar a Revista Médica Fluminense (1835-1841), que mais tarde foi batizada de Revista Médica Brasileira (1841-1845). Em 1845, a Academia passou a publicar nos Anais de medicina Brasiliense: jornal da academia imperial de medicina do Rio de Janeiro (1845-1849). Além destas, existiram muitas outras publicações vulgarizadoras nas quais os cientistas e homens letrados do Brasil Oitocentista publicaram. Em um rico trabalho sobre o tema, Maria Margaret Lopes destaca algumas das publicações de maior notoriedade no país, como: O Patriota, a revista Niterói, a terceira fase da Revista Brasileira, a revista Guanabara, a Biblioteca Guanabarense, a Gazeta Médica, o

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Arquivo Médico Brasileiro, Minerva Brasiliense, O Auxiliador, e a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Podemos adicionar a este conjunto o periódico O vulgarizador: jornal dos conhecimentos úteis, editado por Augusto Emílio Zaluar entre os anos de 1877 e 1880. Zaluar, tido como o autor da primeira obra de ficção científica brasileira, intitulada Dr. Benignus, foi um dos grandes vulgarizadores da época, com sua publicação que pretendia “estar ao alcance de todas as inteligências” (idem, p. 141). Nesta publicação, o foco era a modernização nacional através da “formação de um pensamento genuinamente brasileiro” (VERGARA, 2007, p. 1), no qual se priorizava a publicação de obras literárias de autores brasileiros e obras científicas de renomados cientistas brasileiros como João Batista de Lacerda e João Barbosa Rodrigues. Outros cientistas que colaboraram com a revista foram Charles Frederick Hartt e Orville Derby, ambos do Museu Nacional. O médico Luiz Couty, que trabalhava no Laboratório de Fisiologia Experimental do Museu Nacional, foi autor de um dos mais importantes trabalhos de vulgarização científica no Brasil do século XIX quando, em 1879, publicou Os estudos experimentais no Brasil, na Revista Brasileira. “Nesse artigo, Couty defendia a necessidade de desenvolver uma ciência nacional para cuidar dos problemas do país, como também sustentava a idéia de que, para obter apoio da sociedade para suas atividades, o cientista deveria comunicar os seus avanços ao público em geral” (idem, p. 141). As preocupações de Couty refletem, em âmbito brasileiro, a força da prática de vulgarização que já circulava na Europa e nos Estados Unidos. Durante todo o século XIX, encontramos uma relação de mutualismo entre as camadas de intelectuais que formavam as sociedades científicas, os museus e as publicações científicas de cunho vulgarizador. A comunidade científica brasileira que se formava e se associava em sociedades científicas era composta por indivíduos que, muitas vezes, estavam ligados aos museus de história natural. Eram estes indivíduos interessados por ciência que partiam em expedições científicas, que coletavam e analisavam espécimes e que depois os estudavam e conservavam nas reservas técnicas. Interessados na divulgação de suas descobertas e na de seus pares, publicavam em periódicos que circulavam pelo grande público e nos anais dos museus onde trabalhavam. E entendiam o próprio museu como uma ferramenta de vulgarização, utilizando seu espaço para as reuniões das sociedades e para a montagem de exposições.

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A Sociedade Auxiliadora de Indústria Nacional, criada em 1828 e principalmente ligada à engenharia, foi outra associação de destaque que teve uma relação muito próxima aos museus e ao Museu Nacional, em particular. Sobre o MN, Maria Margaret Lopes comenta que “o museu manteve vínculos estreitos com algumas das mais significativas instituições culturais e científicas do país, tais como: a Academia de Belas-Artes, a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, as Escolas Militar e de Medicina” (LOPES apud GODOI, 2009, p. 3). Em parte, esta associação deve-se ao fato de que dois de seus diretores foram membros associados à SAIN. Leopoldo César Burlamaque, diretor do MN entre os anos de 1847 e 1866, ano de sua morte, não era apenas sócio, mas secretário perpétuo da sociedade. Tendo assumido o cargo de diretor após a morte de Burlamaque, Francisco Freire Alemão de Cisneiros, renomado botânico brasileiro e um dos nossos maiores cientistas do século XIX, era membro associado à Sociedade Auxiliadora e a diversas outras sociedades de intelectuais, como a Academia de Medicina e a Academia Filomática do Rio de Janeiro, dentre outras. Em 1850, Freire Alemão foi um dos membros fundadores e presidente da Sociedade Velosiana, que tinha como objetivos principais os estudos de botânica, zoologia e mineralogia. Embora tenha durado apenas cinco anos, a sociedade teve seu impacto no cenário científico brasileiro. Com suas reuniões nas dependências do Museu Nacional e a publicação do periódico Biblioteca Guanabarense, divulgavam não só novidades associadas às disciplinas as quais se propunha estudar, mas também “tornariam público seus estudos sobre as coleções ali existentes no Museu, bem como a história do próprio museu” (LOPES, 2001, p. 61). A proximidade entre museus e sociedades científicas era tamanha que notamos a atuação destas sociedades na criação de alguns dos museus Oitocentistas brasileiros. Em São Paulo, a Associação Auxiliadora do Progresso de São Paulo juntou objetos visando formar uma coleção para o seu próprio museu. Embora pequena, esta coleção juntou-se a outras, anos mais tarde, para dar origem ao Museu Paulista. A coleção do Museu Paulista iniciou-se a partir de uma coleção particular. O coronel Joaquim Sertório possuía um reconhecido gabinete onde, de acordo com o geólogo norte-americano Orville Derby, podia-se colher “alguns fatos importantes sobre a geologia da Província” (LOPES; FIGUEIRÔA, 2003, p. 27). Em 1890, o

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prédio construído pelo Cel. Sertório e sua coleção foram comprados pelo conselheiro Francisco de Paula Mayrink que, sem interesse na coleção, doou-a à Comissão Geográfica e Geológica do Governo do Estado de São Paulo em 23 de dezembro de 1890. Acrescidas dos objetos da coleção do Museu Provincial da Associação Auxiliadora do Progresso de São Paulo e de outro acervo particular, de um colecionador conhecido simplesmente como Pessanha, além de objetos do naturalista Hermann Von Ihering, que viria a dirigir o museu, foi formada a primeira coleção do Museu Paulista. Mas, a princípio, o que se tornaria mais tarde o Museu Paulista começou como uma coleção encostada à seção zoológica da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, onde trabalhava o geólogo estadunidense naturalizado brasileiro Orville Derby. Segundo correspondência de Derby analisada por Maria Margaret Lopes e Silvia Fernanda de Mendonça Figueirôa em A criação do Museu Paulista na correspondência de Hermann Von Ihering (1850-1930): o governo de São Paulo não está especialmente interessado nem em estudos zoológicos nem no museu, considerando este último mais bem como uma espécie de elefante branco [...] uma opinião com a qual eu intimamente concordo. Ele consiste de uma coleção privada feita por um ‘curioso’ e vendida por ele junto com a casa para um rico especulador durante o ‘boom’ [do café], o qual fez presente da coleção ao governo e ficou com a casa. O governo não sabendo o que fazer com ela e não desejando incorrer em despesa, ‘encostou’ o museu na Comissão, e eu muito relutantemente aceitei o encargo a fim de preservar o que havia de valor nas coleções e para manter viva a idéia de um museu, que no futuro poderá se transformar em algo melhor (idem, p. 30).

Após um ano trabalhando como zoólogo da Comissão, Hermann Von Ihering, naturalista teuto-brasileiro, conseguiu a mudança do estatuto da coleção para a de Museu Paulista, o qual muito lhe agradava, pois ambicionava ser diretor de um museu. E não apenas de qualquer museu, mas de um museu de proporções sulamericanas, como indicado no regulamento de fundação do MP: O caráter do Museu em geral será o de um Museu Sul-Americano, destinado ao estudo do reino animal, de sua história Zoológica e da História Natural e cultural do homem. Serve o Museu de meio de instrução pública e também de instrumento científico para o estudo da natureza do Brasil e do Estado de São Paulo, em particular (idem, p. 32).

Com a criação de seu pequeno museu provincial, a Sociedade Auxiliadora do Progresso de São Paulo buscava um mecanismo institucional que permitisse ampliar suas possibilidades de atuação, guardar e preservar sua coleção e exibi-la ao

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público. O museu, portanto, era uma importante ferramenta para as sociedades científicas que precisavam de um local para salvaguardar suas coleções, para realizarem suas reuniões e para exibirem ao público suas pesquisas. Funcionava, também, como amparo institucional que legitimava a prática destas sociedades. Também é possível notar, a partir das correspondências de Orville Derby e Hermann Von Ihering, a importância que estes cientistas davam às coleções e aos museus. Apesar da falta de interesse do Estado de São Paulo, Derby aceitou a responsabilidade de administrar a recém adquirida coleção, imaginando que esta poderia fazer parte de um museu, que no futuro poderia “se transformar em algo melhor”. Von Ihering também reconhecia a importância dos museus e, mais ainda, ambicionava dirigir um. Assim, percebemos como os naturalistas Oitocentistas estavam ligados aos museus e como havia uma relação de troca: criavam e dirigiam museus que, por sua vez, funcionavam como o espaço necessário para que praticassem suas pesquisas e desenvolvessem suas carreiras. Outra sociedade ligada à criação de um museu foi a Sociedade Filomática de Belém do Pará, criada em 1866. Neste caso, o próprio nome já esclarece sua relação com as ciências. Significando “amigo das ciências”, o adjetivo filomático foi amplamente utilizado durante o século XIX para batizar sociedades científicas pelo mundo todo. A de maior destaque e, talvez, a primeira, foi a Societé Philomatique de Paris, criada na França em 1788 e da qual participaram renomados cientistas como Lavoisier, Fresnel e Pasteur. No Brasil, a sociedade filomática de maior destaque foi a de Belém, criada pelo naturalista Domingos Soares Ferreira Penna. Natural de Minas Gerais, Domingos Soares focava seu interesse científico no estudo da história natural da região amazônica, assim como o fizeram diversos outros naturalistas brasileiros e estrangeiros. A Sociedade Filomática de Belém foi o embrião do que, em 1871, tornou-se o Museu Paraense, tendo Domingos Soares como seu primeiro diretor. Os museus estavam fortemente associados à pesquisa científica, como afirma Schwarcz, ao dizer que “no período que vai de 1870 a 1930, os museus nacionais – o Museu Paulista, o Museu Nacional e o Museu Paraense de História Natural – desempenharam importante papel como estabelecimentos dedicados à pesquisa etnográfica e ao estudo das assim chamadas ciências naturais” (1993, p. 67). Dentre as atividades realizadas por estes museus, a publicação de periódicos vulgarizadores, que divulgavam as pesquisas sobre suas coleções, era uma das

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mais freqüentes. O Museu Paulista, em 1895, lançou a sua publicação intitulada Revista do Museu Paulista, onde o tema predominante eram as ciências naturais. A partir da nomeação do naturalista e zoólogo suíço-alemão Emílio Augusto Goeldi para a direção do Museu Paraense, em 1893, uma grande reforma foi feita e o museu se voltou de forma ainda mais atuante para as ciências. Goeldi criou duas revistas: a Memória do Museu Paraense e o Boletim do Museu Paraense, onde “divulgou de forma ininterrupta, em mais de cem artigos científicos, principalmente a produção de seus diretores sobre a Zoologia e a Botânica da região amazônica, mas também, em menores proporções: as pesquisas sobre Geologia, Paleontologia, Etnografia e Arqueologia” (LOPES, 2010, p. 63). Em 1894, a fim de argumentar a favor de sua reforma que propunha uma atuação mais científica do museu, Goeldi publicou um artigo no Boletim do Museu Paraense onde afirmava que “é preciso que o museu cesse de ser uma repartição pública e se torne uma officina scientífica.” (LOPES apud SCHWARCZ, 1993, p. 87). Já no Museu Nacional do Rio de Janeiro, o grande responsável pela reforma que tornou a instituição um local mais ativamente dedicado à ciência foi seu diretor Ladislau Netto. Em 1870, Netto foi nomeado diretor-substituto do Museu Nacional, sendo efetivado no cargo em 1876, pelo imperador D. Pedro II. Durante sua direção, o museu passou por diversas reformas, sempre visando uma maior atuação científica. Ele contratou os mais destacados naturalistas para trabalharem no museu onde, na época, estava instalado o mais avançado laboratório científico do país. Durante a gestão de Ladislau Netto, a instituição passou a contar com sua publicação científica periódica, Archivos do Museu Nacional, primeira revista científica duradoura no país, voltada exclusivamente às ciências naturais. Tratava-se de uma estratégia clássica, usada ainda hoje pelas instituições de pesquisa, para fazer intercâmbios com publicações internacionais. (LOPES, 2010, p. 60).

Nesta publicação, o museu pretendia dar conta de todas as investigações e trabalhos realizados no estabelecimento, das notícias nacionais ou estrangeiras que interessarem as ciências de que se ocupa o Museu, do catálogo de coleções mais importantes, dos donativos feitos ao estabelecimento, e dos nomes dos membros correspondentes [publicando] de preferência os trabalhos originais do pessoal docente. (LOPES, 1993, p. 195).

A partir de extensa pesquisa para sua tese de doutorado, intitulada O que nossos cientistas escreviam: algumas das publicações em ciências no Brasil do

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século XIX, Rachel Pinheiro chegou à conclusão de que entre 1800 e 1900 houve um aumento exponencial no número de publicações científicas na Europa. O Brasil acompanhou esta tendência e as publicações científicas no Brasil no segundo reinado eram valorizadas como essenciais no fazer ciência pelos próprios naturalistas. [...] Em nada alheios a esse movimento, aqueles que se dedicaram a implantar as Ciências Naturais entre nós também se preocuparam com a divulgação científica de seus trabalhos quer nos jornais diários, como era o costume, quer em tentativas mais ou menos bem sucedidas de organização de periódicos específicos vinculados às instituições de pesquisa do país. (PINHEIRO, 2009, p. 1).

Ainda segundo a autora, “com um ponto todos concordavam, publicar era preciso, e foram feitos grandes esforços para viabilizar a existência de revistas que trouxessem em suas páginas a produção científica dos naturalistas da corte do século XIX.” (idem, p. 26). O término da proibição que não permitia ao Brasil ter tipografias indubitavelmente facilitou o início da produção literário-científica na colônia. O século XIX viu surgir diversas publicações, sobre as mais variadas temáticas, em todo o território brasileiro. Através das publicações científicas, era possível aos nossos naturalistas encontrarem outro espaço institucional de legitimação de suas práticas: nas páginas dos periódicos com os quais colaboravam. Assim, não só legitimavam a ciência que faziam, mas divulgavam-na para um público mais amplo. E não apenas o público leigo poderia ter acesso a estes periódicos, mas também o público internacional. A facilidade de se enviar estas revistas e periódicos para outros países facilitou o intercâmbio internacional no campo das ciências e tornou-se prática comum no século XIX. Era uma maneira de conectar cientistas de diferentes partes do mundo que compartilhavam dos mesmos interesses de pesquisa e de se adentrar na comunidade científica internacional, sendo possível, assim, cruzar os limites físicos das instituições onde se trabalhava. Os museus, caminhando pari passu com a prática científica, também fizeram parte deste processo e produziram suas próprias publicações. A produção de anais, nos quais seus funcionários publicavam sobre a história das instituições, suas coleções e suas pesquisas mais recentes, e a produção de catálogos dos acervos e das exposições tornou-se uma prática comum. Sobre a publicação de catálogos, Lopes comenta que

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vêm sendo os objetos mais importantes produzidos a partir das coleções desde o século XVI. Nos catálogos, as coleções através de suas imagens e descrições viajavam por territórios bem mais amplos que os salões apertados dos museus. Assim impressas, as coleções alcançavam públicos muito mais amplos do que aqueles que visitavam o museu, e ampliavam a possibilidade de coletar, organizar e comparar. (LOPES, 2001, p. 60).

A comparação era especialmente importante em ciências como a Zoologia, a Botânica e a Paleontologia, que se baseavam em métodos comparativos. Já sobre os anais, a autora afirma que para o final do século, a maioria dos museus latino-americanos em atividade publicou regularmente seus Anales, mesmo que por vezes, para desgosto de seus diretores, estes sofressem atrasos por conta de falta de verbas, dificuldades de impressão de desenhos, fotografias, quando não mudanças políticas na instituição ou no país. (LOPES, 2001, p. 61).

A prática da publicação integrava a comunidade científica internacional e os diretores de museus, eles mesmos naturalistas e pesquisadores, estavam à frente deste movimento. O envio e a troca constante de publicações era uma prática comum, já que beneficiava a instituição que enviava suas publicações através da divulgação de suas pesquisas, ao mesmo tempo em que enriquecia a biblioteca daquela instituição que as estivesse recebendo. Além disso, os diretores e funcionários de museus também costumavam publicar suas pesquisas nos periódicos de outros museus, estreitando ainda mais os laços entre instituições que tinham as mesmas preocupações científicas. Outra forma de intercâmbio entre estes diretores de museu se dava através das constantes viagens que faziam para visitar museus ou participar de reuniões científicas, exposições e pesquisas de campo. Como explica Lopes, Na verdade, esses intercâmbios foram em muitos casos determinados pelas próprias relações que se estabeleciam entre os pesquisadores europeus que viviam na América Latina; pelos ambientes naturais de estudos que as fronteiras políticas entre os países não dividiam, bem como, pelos interesses científicos que partilhavam. Os alemães de São Paulo, Buenos Aires, Santiago mantiveram-se em contato constante. A flora, a fauna e a mineralogia andinas uniram pesquisas no Equador, Peru e Chile. A paleontologia das antigas conexões faunísticas fortaleceu os laços entre os museus Paulista, de Montevidéu, Buenos Aires e Santiago. (LOPES, 2000, p. 232).

O intercâmbio entre museus era, portanto, fundamental para o crescimento das instituições. Em um artigo intitulado Cooperação científica na América Latina no final do século XIX: os intercâmbios dos museus de ciências naturais, Maria

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Margaret Lopes investiga os laços de amizades entre os diretores de museus latinoamericanos e os benefícios que estas redes de cooperação traziam para suas instituições. A autora destaca que, em toda a América Latina, os diretores de museus formavam redes de troca de informações e objetos. A troca de coleções era importante, pois permitia aos museus preencherem espaços vazios em suas vitrines, enriquecerem suas mostras e completarem a montagem de ossadas. “Longas séries, peças e esqueletos completos foram fundamentais para atrair o público que se supunha incapaz de compreender o todo de um animal ou de uma cultura, apenas pela observação dos fragmentos, que bastavam aos especialistas (Podgorny, 1995).” (LOPES, 2000, p. 230). É célebre o caso em que Hermann Burmeister, zoólogo e entomólogo alemão que dirigiu o Museu de La Plata, na Argentina, veio ao Brasil unicamente para acompanhar a montagem de um esqueleto fóssil de Scelidotherium, que doara ao seu amigo Ladislau Netto, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Sobre a doação do diretor argentino, Lopes (2001, p. 65) comenta que “o esqueleto bem armado foi admirado repetidas vezes pelo imperador brasileiro D. Pedro II, que visitou o museu acompanhado de todo a Família Imperial, inclusive de seus netos”. Igualmente, “do Rio de Janeiro, foram borboletas para Buenos Aires. Abelhas e insetos de todo o tipo ‘voavam’ desde São José da Costa Rica até São Paulo, Buenos Aires, Valparaíso e Montevidéu.” (LOPES, 2000, p. 230). Alguns

especialistas

nestes

museus

tornavam-se

conhecidos

por

pesquisarem determinado tipo de acervo, o que fazia com que os museus latinoamericanos em rede enviassem para classificação todo o tipo de acervo que fizesse parte da especialidade de um determinado naturalista. Assim, estudos de arqueologia americana focavam-se no Museu do México, enquanto os estudos sobre as origens da “raça” americana concentravam-se nas mãos de Florentino Ameghino, paleontólogo argentino. No Brasil, Hermann Von Ihering, do Museu de São Paulo, era um conhecido especialista na classificação de conchas de moluscos fósseis ou viventes. Para permitir toda esta troca de coleções e informações, estes diretores e especialistas de museus costumavam trocar inúmeras correspondências. De acordo com Lopes e Figueirôa (2002, p.24), As cartas eram um importante veículo do qual interessados de diferentes ordens abriam seu caminho no mundo das ciências e das relações internacionais, seja buscando emprego para si, ou para algum

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conhecido; conquistando status diante de um colega e/ou eventual colaborador, checando informações antes de suas publicações, etc. Tratava-se de estratégias de afirmação pessoal e institucional, constituindo uma privilegiada forma de sociabilidade e de consagração na comunidade científica.

Mas as publicações constituíam apenas uma das facetas da atividade científica praticada pelos museus de história natural. No Museu Nacional, além das publicações, também eram ministradas conferências públicas com o propósito de instruir o público leigo sobre o que se havia descoberto de mais recente no campo científico internacional. Inicialmente batizado como Museu Real, quando de sua criação por D. João VI em 6 de junho de 1818, o museu começou a partir da junção de diversas coleções. A primeira destas coleções veio da Academia Militar do Rio de Janeiro, que contribuiu com uma coleção mineralógica, antes pertencente ao mineralogista alemão Abraham Werner. A Casa dos Pássaros, um dos primeiros gabinetes de curiosidades do país, fundado pelo vice-rei Dom Luís de Vasconcelos, contribuiu com sua coleção de aves empalhadas. O próprio rei D. João VI contribuiu com objetos de madeira, mármore, prata, marfim e coral, além de uma coleção de pinturas a óleo. Juntando-se estas coleções e algumas outras provindas de instituições menores, formou-se a primeira coleção do MN. Schwartzman (2001, p. 55) afirma que À medida que o século progredia, o Museu Nacional se tornou um centro científico, onde os naturalistas europeus se reuniam ao chegar ao Brasil. Ludwig Riedel, que veio em 1820 para juntar-se à expedição científica de G. I. Langsdorff, serviu durante algum tempo como chefe da seção botânica do Museu; Friedrich Sellow, que viajou também ao Brasil por sugestão de Langsdorff, percorreu o interior comissionado pelo Museu. Fritz Müller, cuja obra Für Darwin é considerada uma contribuição à teoria da evolução, foi durante muitos anos um naturalista viajante do Museu. Outros nomes memoráveis associados ao Museu Nacional incluem Hermann Von Ihering e Émil Göldi. Servindo como naturalista viajante para o Museu depois de chegar da Alemanha, Von Ihering tornou-se o fundador e primeiro diretor do Museu Paulista, em 1894. Göldi juntou-se ao Museu Imperial como assistente da seção zoológica e mais tarde foi convidado a organizar o Museu do Pará, que hoje traz o seu nome.

Foi criado, assim, um museu de caráter enciclopédico, seguindo o modelo de grandes museus europeus, como o Museu de História Natural de Paris, símbolo da modernização e do progresso. A importância do Museu Nacional para a implantação, institucionalização e desenvolvimento das Ciências Naturais no Brasil é irrefutável, já tendo sido objeto de ampla pesquisa. Desta vasta bibliografia, podemos destacar alguns textos

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referenciais que muito esclarecem sobre o papel desta instituição, como a tese de doutorado de Maria Margaret Lopes, intitulada As ciências naturais e os museus no Brasil no século XIX, o artigo O Museu Nacional e o ensino das ciências naturais no Brasil do século XIX, de Magali Romero Sá e Heloísa Maria Bertol Domingues e o livro O espetáculo das raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930, de Lilia Moritz Schwarcz, só para citar alguns exemplos. O MN tinha papel de destaque não apenas em âmbito nacional, mas era também reconhecido internacionalmente e sua extensa e variada coleção continha, segundo Lopes (2010, p. 60) mais de 300 aves, 1.200 minerais, medalhas, moedas e maquinário da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Reunia antiguidades egípcias e greco-romanas. Possuía um laboratório de Química, coleções mineralógicas internacionais de referência para investigação e coleções de todo o Império português. [...] O Museu Nacional funcionou ao longo do século XIX como um órgão consultor dos governos para pesquisa em Geologia, mineração e recursos naturais. Em suas seções e laboratórios eram analisadas inúmeras amostras que chegavam de todas as regiões do país, como carvão, minerais, plantas, animais, esqueletos humanos de indígenas ou escravos de diferentes nações para estudo das raças, bem como ossadas fósseis de enormes mamíferos desconhecidos.

Já no decreto de sua criação, a missão do museu estava estabelecida como “propagar os conhecimentos e estudos das ciências naturais no Reino do Brasil.” (SÁ; DOMINGUES, 1996, p. 79). Desde sua gênese, portanto, o MN foi pensado como um espaço gerador e divulgador da prática científica e assim atuou e contribuiu para a atuação de outras instituições científicas. O museu permitia, por exemplo, que escolas e faculdades utilizassem seu espaço para a realização de aulas, onde o uso das coleções, equipamentos e laboratório do museu certamente contribuía para a formação para a ciência. A Academia Militar e a Academia de Medicina, por exemplo, ministravam suas aulas no amplo auditório do museu, com capacidade para 121 cadeiras. A partir de 1875, o Museu Nacional iniciou uma prévia do que se transformou em seu próprio programa de aulas, conhecidas como os “Cursos Públicos do Museu Nacional”. Nestes cursos gratuitos, ministrados pelos diretores, vice-diretores e chefes das seções do museu, versava-se sobre os mais diversos temas científicos. “Neste sentido parece importante registrar a participação do Museu Nacional no processo de divulgação científica e instrução popular que ocorreu no final do século XIX e que, apesar de sua curta duração, marcou um significativo momento não só no estudo da história natural no Brasil, como também

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para a própria história do Museu Nacional.” (idem, p. 80). O Museu Nacional permitia, também, o acesso de mulheres aos seus cursos públicos. Esta atitude, por si só, expressa o caráter vanguardista do museu, já que, às mulheres, só foi permitida a entrada em programas de ensino superior a partir de 1879. Embora os cursos públicos já estivessem previstos no regulamento do museu desde 1842, só começaram a ser implantados em 1875. Quando Ladislau Netto assumiu a direção do museu e tentou reativar o antigo laboratório de química através de verbas do Ministério da Agricultura – ao qual o museu estava subordinado – recebeu a cobrança, pelo ministro, de que os cursos fossem implantados. Preocupado com a formação para a ciência, Ladislau Netto há muito vinha tentando sensibilizar a classe política para a relevância da atuação do Museu Nacional como instituição geradora de conhecimentos científicos em nível nacional e internacional. A partir da cobrança do ministro, Netto iniciou o programa de cursos públicos, lecionando ele mesmo um curso em botânica. Entre 06 de julho e 07 de outubro daquele ano, foram ministradas “4 palestras sobre botânica, 4 sobre zoologia, 2 sobre arqueologia e etnografia e 1 sobre mineralogia. [...] A repercussão junto ao público e à imprensa foi extremamente favorável, tendo deixado Ladislau Netto entusiasmado com essa nova função do museu.” (SÁ; DOMINGUES, 1996, p. 82). Os cursos públicos passaram, então, a ser uma das principais preocupações do diretor do museu e abrangiam disciplinas como botânica, agricultura, geologia, biologia, mineralogia, antropologia e zoologia. Sua repercussão junto à imprensa da época foi tão favorável que, em uma nota no Jornal do Commercio de 10 de março de 1876, reproduzida por Magali Romero Sá e Heloísa Maria Bertol Domingues (1996, p. 82), lê-se: estes cursos, de que já houve um ensaio no ano passado, são destinados à instrução das classes estranhas ao estudo da história natural, das senhoras, dos homens de letras, dos empregados públicos, do povo, enfim, que poderá utilizar deste modo uma hora desocupada da noite em proveito de sua instrução. [...] os nomes do pessoal encarregado do ensino do museu dispensam-nos de dizer o que esperamos de tão importante instituição, em favor do público e da instrução superior do país

Um dos objetivos dos cursos era, portanto, estar ao alcance do grande público não familiarizado com a ciência. Para isso, as aulas contavam com material didático variado, aproveitando-se dos espécimes do museu e, segundo aponta o

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Jornal do Commercio de 27 de outubro de 1876, até mesmo um projetor de imagens foi utilizado em uma das preleções do naturalista Charles Frederick Hartt. O Museu Nacional foi, portanto, pioneiro na alfabetização científica da sociedade em seus cursos que procuravam sempre trazer ao público os mais avançados conceitos das diversas disciplinas científicas. Seus palestrantes tinham a oportunidade única de expor e defender novas teorias, como a teoria evolucionista de Charles Darwin, apresentada ao público pelo Dr. João Joaquim Pizarro (que foi dirigente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro entre 1902 e 1903). Em suas aulas sobre o evolucionismo, Pizarro, “como excelente orador que era, costumava escandalizar o auditório durante as suas preleções sobre a ‘Teoria da Evolução’, enfatizando as semelhanças entre o homem e o macaco.” (idem, p. 84). A popularidade dos cursos fazia com que membros das mais altas classes sociais se interessassem por comparecer. Professores, deputados, senadores, damas da alta sociedade e até mesmo o Imperador D. Pedro II costumava freqüentar as aulas para ouvir sobre os diferentes ramos das ciências naturais. A presença do Imperador, sempre interessado em acompanhar o desenvolvimento dos estudos científicos na Corte, ajudava a incitar a curiosidade do público e muitos compareciam às aulas apenas para verem o Imperador pessoalmente. Para Schwartzman (2001, p. 58), O apogeu da ciência imperial foi marcado pela presença ativa do próprio Imperador em todos os assuntos relacionados com a ciência, a tecnologia e a educação. Fazendo papel de mecenas, o interesse de Dom Pedro II pelas ciências o levou a buscar a companhia de cientistas, tanto no Brasil como no exterior, e a participar de todos os acontecimentos culturais e científicos mais importantes do país.

O Imperador Dom Pedro II teve um papel de grande importância para o financiamento de atividades científicas no Brasil. Após atingir a maioridade e ocupar, de fato, seu papel na política brasileira, D. Pedro II dá início a criação de uma política cultural no país, procurando buscar o que poderia ser reconhecido como cultura brasileira e pretendendo forjar uma memória desta nação. Suas ligações com as instituições culturais e científicas brasileiras são bem reconhecidas, sendo notável o fato de que esteve presente em um total de 506 sessões do IHGB, de onde só se ausentava por motivo de viagem. Em comparação, D. Pedro II compareceu a mais reuniões do IHGB do que às sessões da Câmara, onde só costumava estar presente duas vezes ao ano, para iniciar e encerrar os trabalhos.

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Estudando a participação do imperador nas instituições culturais, Lilia Moritz Schwarcz afirma que: O Museu Nacional, por exemplo, além de ter sua origem ligada à política de um monarca português no Brasil, que lidava com as vicissitudes de um Império que se transferia para a colônia, até o último quartel do século XIX se sustentava enquanto um projeto bastante associado ao Estado Nacional e, em especial, à figura do Imperador. (SCHWARCZ, 1993, p. 90).

Foi assim que Pedro II estabeleceu sua imagem de mecenas das ciências, tendo mesmo proferido, em uma das sessões do IHGB, a seguinte máxima: “A ciência sou eu”, em alusão ao dito de Luís XIV. Com esta afirmação, o Imperador tomava seu posto como patrono da atividade científica brasileira. Os cursos públicos do MN, no entanto, tomavam muito do tempo dos diretores e vice-diretores da instituição, que também tinham de cumprir suas obrigações de pesquisadores. Por esta razão, o caráter regular dos cursos não durou muito tempo. Logo, Ladislau Netto promoveu outra reforma em que destituía a regularidade dos cursos e alterava o status das preleções para o de “conferências extraordinárias”. Os cursos só foram novamente retomados de forma regular em 1911, já durante o período republicano, pelo então diretor João Batista de Lacerda. A função educativa dos museus era tomada como de grande importância, tendo Lacerda escrito, já em 1905, em seu livro sobre a história do Museu Nacional, que: os museus não são unicamente destinados a exibir coleções, mais ou menos bem coordenadas e classificadas. Eles visam também instruir o público com o auxílio dessas coleções, e a maneira de tornar efetiva essa instrução, baseada no conhecimento prático dos objetos, é dá-la mediante conferências públicas. (LACERDA apud SÁ; DOMINGUES, 1996, p. 86).

Com os cursos tendo bom andamento, o ministro da agricultura concedeu, portanto, ao MN a revitalização de seu laboratório. Fundado em 1880, o Laboratório de Physiologia Experimental foi o primeiro laboratório deste tipo no país e lá foram realizados os primeiros estudos com venenos de animais, de plantas, do álcool da cana de açúcar, do café, das doenças dos homens e dos animais, de fisiologia cerebral e do clima. Sobre o seu laboratório, o Jornal do Commercio registrou, em 2 de março de 1880: Desde que o Museu Nacional deixou de ser mero repositório de coleções para tornarse, na forma do seu regulamento, propagador doutrinal das Ciências Naturais, era lhe indispensável um laboratório. Tratando de o estabelecer o Sr. Ministro da Agricultura presta distinto serviço a um ramo de estudos a que é de todo o ponto necessário dar

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entre nós o máximo desenvolvimento. Com os seus cursos orais, com a sua revista e dentro em pouco com o auxílio de seu laboratório, o Museu Nacional pode constituirse em um foco de ativa propaganda das Ciências Naturais. Os bons resultados desta impulsão não precisam em nosso tempo ser encarecidos, mormente em um país, como o nosso em que tão vasto e inexplorado campo se depara a investigação científica. (Jornal do Commercio apud LOPES, 1993, p. 178).

Sob a direção de Louis Couty e, posteriormente, de João Batista de Lacerda, o laboratório do MN foi berço de diversos desenvolvimentos científicos e de aulas da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Já no início do período republicano, o laboratório foi desanexado do museu e rebatizado como Laboratório de Biologia do Ministério da Agricultura, passando a realizar pesquisas mais relacionadas aos interesses econômicos do governo, como o estudo das doenças que atacavam os animais pastoris. O Museu Nacional também esteve envolvido com as grandes exposições realizadas durante o século XIX. Foi a partir do século XVIII que países como França e Inglaterra começaram a realizar espetaculares feiras, onde o objetivo era mostrar o que se produzia de melhor, em uma exibição de progresso e modernidade. A partir de 1851, estas feiras tornaram-se grandes exposições internacionais, contando com a participação de representantes de todos os continentes. Na primeira exibição internacional foram estabelecidas quatro categorias que perdurariam durante as próximas mostras. Os produtos eram divididos em: manufaturas, maquinário, matéria-prima e belas-artes. A partir da terceira exposição universal – Londres, 1862 – o Brasil foi presença cativa. [...] Na verdade, para a concepção do estande que iria representar o Brasil nos certames estrangeiros, havia toda uma sistemática interna que garantia a qualidade do pavilhão nacional. Em primeiro lugar, cada província realizada suas feiras prévias e os produtos então escolhidos eram enviados para uma mostra nacional, onde seriam selecionados para a feira mundial. Só então é que o Brasil estava pronto para apresentar uma exibição fora de seu território. (SCHWARCZ, 1998, p. 393).

Utilizando-as como uma ferramenta para projeção política, o imperador D. Pedro II patrocinava diretamente estas mostras, distribuindo prêmios para os produtores de maior destaque. Segundo Schwarcz, “a presença constante do Brasil diz muito do esforço do imperador e das elites da corte para veicular uma imagem diversa desse país distante, agrícola, monárquico e escravocrata, mas que queria se ver representado como uma nação moderna e cosmopolita.” (idem, p. 397). Os museus, por sua vez, também estavam ligados à prática das exposições. O Museu Nacional, por exemplo, se envolveu na preparação da Primeira Exposição Nacional,

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preparatória para a Exposição Universal de Londres, de 1862. Contando com objetos levados para o museu por membros de expedições científicas, o museu foi o responsável pela organização da exposição. Aproveitando-se de sua vasta coleção e de seus profissionais qualificados, o MN esteve envolvido com diversas destas exposições. Em 1876, para a Exposição Universal da Filadélfia, Charles Frederick Hartt foi o encarregado do museu para organizar a coleção de minerais que representaria o Brasil. Além de organizar as coleções, os membros do museu também viajavam para os locais das exibições, onde atuavam como representantes do Brasil, como fez o diretor Ladislau Netto na Exposição Universal de Chicago, em 1892. Não foi apenas com as Exposições Internacionais que o Museu Nacional ganhou destaque. Em 1882, Ladislau Netto juntou recursos e organizou a Exposição Antropológica Brasileira, primeira do gênero na América do Sul, uma das mais importantes exposições montadas no Brasil da época e que constituiu um marco para o MN e para a carreira de Netto, cujo esforço foi reconhecido com a condecoração da Ordem da Rosa, concedida pelo Imperador D. Pedro II. Sobre esta exposição, Netto veio a dizer: Estava no interesse intelectual do Brasil e era de seu estrito dever colocarse na primeira linha das nações americanas que mais a peito empreenderam o estudo das gerações, a quem antes de Colombo fora por séculos sem conta, avassalado este vasto continente. E o Museu Nacional, paladino das Ciências Naturais no Império Brasileiro, devia caber tamanha glória. (NETTO apud LOPES, 1993, p. 188).

Analisando a importância desta exposição, Lopes argumenta que nela foi exibida a singularidade nacional com que Netto esperava inserir o Brasil no mundo científico internacional. O que se pretendia expor e o que unia os conteúdos das diversas vitrinas era o papel original que cabia ao Museu Nacional do Rio de Janeiro cumprir na construção do imaginário do Império brasileiro e no panorama das ciências universais. A Exposição Antropológica Brasileira destacava as investigações da particularidade local, ainda não completamente estudada – as origens da ‘raça’ brasileira. (LOPES, 2001, p. 64).

Com mais de 1.000 visitantes durante os três meses em que esteve aberta ao público, esta exposição foi um dos grandes orgulhos de Ladislau Netto, que tinha planos para realizar uma segunda exposição antropológica, que nunca chegou a ser realizada.

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Em todas estas atividades – publicações, exposições, cursos públicos – os museus estavam contribuindo com a educação pública sobre questões científicas, marcando seu papel no panorama científico internacional. O médico e zoólogo William Henry Flower, que dirigiu o Natural History Museum, na Inglaterra, publicou um artigo intitulado The museums of natural history em que “inicia seu discurso fazendo uma revisão da origem e da evolução dos museus e assinalando a importância de sua transformação em espaços públicos vinculados ao Estado, o que lhes conferiria um novo papel no fim do século XIX: colaborar com a educação e com a investigação científica. A importância dada a essa dupla função dos museus é central no discurso de Flower. [...] ...pesquisa científica e educação constituíram de fato a articulação [...] que marcou o mundo dos museus de ciências naturais na transição para o século XX (Sheets-Pyenson, 1988; Lopes, 2003).” (LOPES; MURRIELLO, 2005, p. 21).

Para Lopes e Murrielo, o artigo de Flower é demonstrativo de uma verdadeira tendência na ação museológica Oitocentista. As autoras concluem que os comentários sobre as concepções de ciências e educação dos construtores de museus da transição para o século XX evidenciam o quanto a pesquisa científica, os rumos que tomavam a história natural e as exigências em torno da necessidade de ampliar o alcance na educação popular foram dimensões inseparáveis das funções que se atribuíam aos museus no novo século (idem, 2005, p. 28).

A ciência Oitocentista, por sua vez, era uma ciência que extrapolava os limites físicos dos museus, dos gabinetes científicos e dos laboratórios e percorria livremente o território brasileiro, ainda inexplorado, em busca dos seus objetos de estudo. Durante o século XIX, a ciência era uma ciência viajante.

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CAPÍTULO 2 A ciência viajante

“Homem de ciência, é só de ciência, nada o consterna fora da ciência.” – Machado de Assis, através de Simão Bacamarte, personagem da novela O Alienista, 1882.

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Diferente da ciência contemporânea – alocada em grandes laboratórios esterilizados por cientistas com grandes jalecos brancos –, a ciência Oitocentista pode ser adjetivada de ciência viajante. Isto porque a prática da ciência não se limitava apenas às salas das instituições científicas. Havia, sim, uma ciência de gabinete, onde homens de ciência analisavam os espécimes que recebiam e os comparavam com o que já fora descrito anteriormente em livros e enciclopédias. No entanto, para que o cientista de gabinete tivesse material com o qual trabalhar, era necessário, primeiro, que alguém se aventurasse até áreas inexploradas do território para a coleta de amostras. E este papel cabia ao cientista viajante, aquele bravo e indômito naturalista que formava, com os recursos que conseguia reunir, as comissões de exploração que saiam para desbravar novos territórios. Para o cientista de gabinete, o viajante era visto como um coletor, cujas coleções eram essenciais para a história natural e as viagens eram uma etapa essencial para a transformação da natureza em ciência. O século XIX foi, portanto, um período fértil para expedições de exploração, de onde podemos citar exemplos como a expedição do capitão James Cook e do botânico Joseph Banks, patrocinadas pela Royal Society de Londres; as expedições de Lewis e Clark com a índia Sacajawea pelo território norte-americano; ou a famosa expedição da qual participou Charles Darwin a bordo do navio HMS Beagle. Considerava-se a viagem para desbravar e conhecer como uma empreitada de valor único, tanto que a partir de 1833 começa a ser publicado o Bibliothèque Universelle des Voyages, que se pretendia uma enciclopédia sobre todas as viagens realizadas ao longo da história. Nesta publicação, seu editor afirma: As viagens são a escola do homem, ele não dá um passo sem aumentar os seus conhecimentos e ver recuar diante de si o horizonte. À medida que avança, seja através de observações próprias, seja lendo os relatos de outros, ele perde um preconceito, desenvolve o espírito, apura o gosto, aumenta a sua razão, acostumando-se ao altruísmo. E tanto por necessidade quanto por justiça em relação à humanidade, sente-se cada vez impelido a se tornar melhor, dizendo a si mesmo segundo o filósofo inglês Tolland: o mundo é a minha pátria, e os homens são meus irmãos. (apud GUIMARÃES, 2000, p. 389).

Mantido isolado do mundo pelas políticas protecionistas da coroa portuguesa, o Brasil ainda possuía muito a ser explorado. A importância dada à ciência e ao estudo das culturas primitivas motivou um sem número de viagens pelo mundo. “A natureza das novas terras criava um surto de expedições e descrições da flora, da

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fauna, da geologia, da mineralogia, da antropologia e de vários outros temas que aguçavam a sede de conhecimento dos europeus da era da revolução científica.” (FIGUEIRAS, 1990, p. 223). E não foram poucos os naturalistas estrangeiros que, encantados pelos mistérios da terra brasilis, se aventuraram desde além-mar para aqui fazerem suas pesquisas. Não é exagero afirmar que no Brasil, até meados do século XIX, a maior parte da ciência era feita por naturalistas viajantes, que para cá vinham com o intuito de coletar espécimes e enviá-los à Europa para estudo. Quando Figueiras analisa as origens da ciência no Brasil, afirma veementemente que: Dezenas de naturalistas estrangeiros acorreram ao país após a chegada do Regente. Isto se intensificou após o casamento do herdeiro com a Arquiduquesa austríaca Leopoldina, em 1817. A futura imperatriz era uma devotada naturalista e encorajava as mais variadas expedições por toda a extensão do Brasil. Entre estas expedições, podem-se citar as de Maximilian, Príncipe de Wied-neuwied, que publicou em 1820 sua ‘Viagem ao Brasil’, seguida de uma grande obra sobre a ‘História Natural do Brasil’, a de Auguste de Sainte-Hilaire (1816-22), que escreveu vários livros sobre as suas observações, a do cônsul russo Barão Langsdorff, e acima de todas a expedição de Carl Friedrich Von Martius e Johann Baptist Von Spix, que cruzaram extensamente o país entre 1817 e 1820, publicando posteriormente vários relatos. Martius passou o resto da vida dedicado a publicar sua gigantesca ‘Flora Brasiliensis’, em 40 volumes, só terminada em 1906, 38 anos depois de sua morte. (FIGUEIRAS, 1990, p. 228).

Um dos maiores proponentes da ciência viajante foi o naturalista alemão Alexander Von Humboldt, que defendia que mesmo “impressões estéticas experimentadas pelo viajante em cada região fazem parte da própria atividade científica e não podem ser substituídas por descrições ou amostras destacadas dos lugares onde foram coletados.” (KURY, 2001, p. 865). Para assegurar o registro destas impressões estéticas, era de praxe que cada comissão exploradora contasse, além de seus naturalistas, com um artista. Os artistas viajantes que acompanhavam as viagens de exploração tinham por objetivo registrar as paisagens encontradas, os espécimes vistos e ilustrar, sempre que possível, os relatos e descrições feitos pelos naturalistas. Durante o século XIX, este trabalho iconográfico fazia parte da atividade científica, onde imagem e texto se articulavam para garantir a apreensão da totalidade dos lugares visitados e dos espécimes vistos. Estas imagens, produzidas por pintores como Debret, Rugendas, Louis de Choris, Thomas Ender ou Adrien Taunay, compõem um conjunto imagético sobre o Brasil onde é possível compreender o olhar do naturalista sobre a natureza, do homem europeu sobre o

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indígena. Ao analisar a iconografia produzida por estes artistas, Lorelai Kury afirma que a iconografia resultante das viagens científicas do século XIX costuma representar cenas consideradas típicas da vida nos trópicos, onde a natureza e os indígenas têm papel preponderante. O pintor Louis de Choris, que passou pelo Sul do Brasil em 1815, procurou retratar traços naturais e humanos no interior de um mesmo conjunto. Em uma das poucas ilustrações que fez sobre o Brasil, insere em uma paisagem de Santa Catarina, pássaros, répteis, plantas, relevo local e o que seria um brasileiro típico. Diversos naturalistas incluem em suas obras cenas que retratam a relação dos homens com a natureza. [...] Os momentos retratados são especiais, únicos e típicos ao mesmo tempo. Únicos, porque foram vividos e observados pelo próprio viajante ao longo de suas andanças. Típicos, porque os fenômenos descritos ocorrem ali sempre sob as mesmas circunstâncias. [...] A iconografia e os relatos de viagem buscam, assim, descrever de modo exaustivo e profundo os diversos elementos que compõem cada lugar. (idem, p. 869).

Além dos artistas, as comissões de exploração também contavam com uma gama de outros especialistas. Aos cartógrafos cabia a descrição e produção de mapas sobre as regiões que estavam sendo exploradas; aos taxidermistas, a conservação dos espécimes coletados durante a viagem; aos botânicos, a coleta e descrição dos espécimes de flora; aos antropólogos ficava relegada a tarefa de realizar estudos sobre a língua e cultura das diferentes etnias indígenas com as quais se costumava deparar. Juntos, estes viajantes – cada um com a sua tarefa – desbravaram o território do interior do Brasil a procura de novas descobertas científicas. Segundo Maria Margaret Lopes, “seguindo o modelo humboldtiano, em meados do século XIX, as viagens científicas foram reinventadas como empreendimentos transdisciplinares de coleta de dados e de novos desenhos de conhecimentos e desenvolvimento político e econômico dos estados nacionais.” (LOPES, 2009, p. 51). A autora analisa também a importância destas viagens para as carreiras dos naturalistas e afirma que a expedição científica constituía-se em uma parte intrínseca à formação destes homens de ciência Oitocentistas, em parte integrante da consolidação de diversas disciplinas e, também, constituíam parte das missões dos museus. “Ritos de passagem para aqueles que almejavam a consolidação de suas carreiras, as viagens foram também missões precípuas dos museus de história natural.” (idem, p. 52). Dentre as expedições mais notórias que cruzaram o território brasileiro durante o século XIX, podemos citar a expedição patrocinada pelo czar russo Alexandre I e por autoridades do governo brasileiro e comandada pelo cônsul alemão, o barão Georg Heinrich Von Langsdorff. Ela contava com quatorze

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exploradores: o botânico Ludwig Riedel, o zoólogo Edouard Ménétriès, o astrônomo Néster Rubtsov, os artistas Johann Moritz Rugendas, Aimé-Adrien Taunay e Hercules Florence, os caçadores Bento Caetano, João Caetano e Roberto Vieira, os guias Antonio Lopes Ribeiro e Gabriel Ribeiro, o piloto José Pereira da Silva, o empregado João, negro liberto e um escravo de nome Alexandre. Durante a expedição, outras pessoas foram contratadas quando se via a necessidade de mais trabalhadores como carregadores ou remadores e mesmo a esposa de Langsdorff, Wihelmine Von Langsdorff, juntou-se à expedição por algum tempo, até descobrir que estava grávida. Partindo da Fazenda da Mandioca, em Magé, no Rio de Janeiro, a expedição alemã passou oito anos percorrendo extensivamente o território brasileiro passando por locais como São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Pará. Durante este período, os artistas da expedição produziram um total de mil aquarelas e desenhos retratando espécimes coletados e aspectos da paisagem brasileira. Foram também produzidos cerca de 36 mapas e plantas das cidades percorridas, coletados cerca de mil aves empalhadas, quase cem mil exemplares botânicos, uma coleção dendrológica (estudo de madeiras de plantas lenhosas) com cerca de cinco mil objetos, cerca de cem objetos coletados de tribos indígenas, além de mais de quatro mil páginas de manuscritos com dados sobre geografia, botânica, zoologia, medicina, economia, etnografia e lingüística. De todo este rico acervo, nada permaneceu no Brasil, tendo sido todas as coleções encaminhadas à Rússia, onde ficaram desaparecidas até 1930, quando foram encontradas nos porões do Museu do Jardim Botânico de São Petersburgo. Atualmente, as coleções formadas pela expedição encontram-se espalhadas pelos diversos institutos da Academia de Ciências de São Petersburgo e pelo Arquivo Naval Russo. Com este exemplo, observamos uma característica muito comum às expedições estrangeiras que vinham ao Brasil: as coleções formadas por estes naturalistas viajantes eram comumente enviadas à Europa e jamais retornavam ao solo brasileiro. Muitos foram os governos de países europeus que mandaram para as terras brasileiras os seus melhores naturalistas, com a intenção de coletar espécimes representativos da mineralogia, fauna e flora aqui presentes, para que fossem estudados em solo europeu. O interesse destes governos, naturalmente, não se limitava somente ao escopo da ciência, pois, especialmente no caso de novos achados mineralógicos, não apenas a ciência seria privilegiada, mas também a

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economia. Novas terras significavam, também, possibilidades para novas riquezas a serem exploradas e convertidas em bens econômicos. Neste processo, muitas foram as coleções formadas com espécimes tipicamente brasileiros, que uma vez enviadas para outros países, nunca mais voltaram aos seus territórios de origem. Por um lado, podemos argumentar que estas viagens permitiam estudos mais aprofundados destas coleções, já que muitos naturalistas estrangeiros renomados tinham acesso a elas. Os bens naturais brasileiros ganhavam notoriedade internacional não apenas quando eram enviados ao exterior nas Grandes Exposições Internacionais, mas também quando lá chegavam a bordo dos navios que levavam os espólios das expedições. Por outro lado, é preciso pensar que muitos destes espécimes possuíam grande valor científico por sua raridade e, constituindo o que hoje consideramos patrimônio natural, foram permanentemente desapropriados de nossas terras, estando até hoje espalhados por museus, arquivos e institutos científicos europeus. Como no caso das coleções formadas pela expedição Langsdorff, estas valiosas e representativas coleções nem sempre recebem todo o cuidado e estudo que merecem. Foi necessário muito tempo para que a coleção Langsdorff voltasse a ser valorizada e também apresentada ao público brasileiro em suntuosa exposição realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, entre 23 de fevereiro e 25 de abril em São Paulo, entre 11 de maio e 18 de julho em Brasília e entre 3 de agosto e 26 de setembro de 2010 no Rio de Janeiro. Outra expedição científica que merece destaque foi a do naturalista Carl Friedrich Philipp Von Martius, que veio ao Brasil como parte da comitiva da grãduquesa austríaca Leopoldina. Junto com o alemão Johann Baptiste Von Spix, Von Martius percorreu o território brasileiro ostensivamente entre os anos de 1817 e 1820. O resultado desta viagem foi a redação da obra Reise in Brasilien, cuja primeira tradução foi patrocinada pelo IHGB, instituição da qual Von Martius tornouse sócio correspondente. Na ocasião do lançamento do concurso para selecionar o melhor trabalho acerca de “Como se deve escrever a História do Brasil”, o IHGB condecorou o naturalista bávaro ao eleger a sua monografia como vencedora do concurso, em 1845. Em seu trabalho, Von Martius propunha a idéia de um passado nacional que haveria tido início com o surgimento do Brasil independente. Seu texto influenciou diversos contemporâneos que também se propuseram a escrever a história do país, buscando nos índios e na independência da nação as origens do povo brasileiro.

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Notamos, portanto, que o interesse do viajante naturalista muitas vezes também se encontrava com os interesses políticos do Estado. Segundo Guimarães (2000, p. 400), a tal ponto o interesse pelas viagens científicas se tornara também uma questão de Estado, que em 1824, apenas quatro anos após a conclusão da viagem de Spix e Martius, o Ministério da Marinha e das Colônias da França patrocina a publicação de um texto referência para todo aquele viajante que se dirigisse para fora do continente europeu. Curioso observar que, idealizado para um público de viajantes leigos, o texto recorre explicitamente aos conhecimentos da botânica, da geologia, da etnologia como forma de orientar o viajante nas tarefas de recolher e preparar os materiais e amostras, seu acondicionamento e embalagem adequados para envio à França. Até mesmo a redação dos diários de viagem a serem posteriormente trabalhados pelos cientistas quando do retorno ao continente europeu, não escapa aos cuidados e à vigilância do Estado interessado nos resultados destes empreendimentos científicos. O documento hierarquiza ainda os objetos mais desejados, segundo cada região do globo, para compor uma coleção nas instituições européias.

Outro naturalista viajante importante na história do Brasil Oitocentista foi o geólogo canadense Charles Frederick Hartt. Ao todo, Hartt fez cinco viagens pelo Brasil: como membro da Expedição Thayer (1865-1866) organizada pelo geólogo suíço Louis Agassiz, em uma expedição independente (1867), duas vezes como participante da Expedição Morgan (em 1870 e 1871) e como membro da Comissão Geológica do Império (1875-1878). Como resultado de suas observações nestas expedições, Hartt redigiu um dos maiores tratados sobre a geologia e geografia brasileira,

intitulado

Geology

and

physical

geography

of

Brazil.

Sendo,

possivelmente, o maior especialista nesta área, Hartt foi contratado pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde assumiu a seção de geologia. Em Charles Frederick Hartt e a institucionalização das ciências naturais no Brasil, o autor Nelson Sanjad analisa duas publicações de Marcus Vinícius de Freitas sobre o referido naturalista viajante e analisa, também, o relato de viagem como narrativa estruturante do pensamento científico. Sanjad procura na obra de Marcius Vinícius afirmações que comprovem esta tese e afirma que: o discurso dos naturalistas, segundo o autor, também participa da construção de um conceito de nação, uma vez que a natureza aparece aí como elemento constitutivo do território. É nesse quadro, portanto, que Marcus Vinícius insere seu personagem, partindo do princípio de que os intelectuais encontraram um lugar privilegiado no Império de dom Pedro II e que as ciências naturais, ao serem incentivadas pelo governo, cumpriam a missão de reinventar o “mito do paraíso tropical” (SANJAD, 2004, p. 452).

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Os museus, por sua vez, estão inseridos neste contexto como “lugar do discurso científico no processo de formação da nacionalidade brasileira na segunda metade do século XIX.” (idem, p. 455). A relação de interesses, no entanto, era recíproca. Enquanto o Estado procurava utilizar da ciência como uma ferramenta para o progresso e modernidade da nação, procurando demarcar seu território e nele procurar por riquezas, a ciência também aproveitava da sua proximidade com o Estado para conseguir financiamento para suas expedições e pesquisas. É notável o caso do naturalista francês Armand de Quatrefages de Bréau que, durante vinte anos, manteve correspondência com o imperador D. Pedro II. Contrário à teoria evolucionista e não acreditando na origem comum das espécies, Quatrefages orientava o imperador sobre quais expedições poderia financiar, a fim de que pudesse levantar fatos contrários à tese darwinista. O Estado, por sua vez, também se aproveitava das coleções e as utilizava como semióforos2 representantes das riquezas e qualidades naturais de seus territórios, uma garantia de exploração para bem econômico e forma de demonstração de soberania frente à outras nações. Os interesses do Estado na exploração da terra e na construção de uma história nacional também estavam implícitos na primeira expedição científica brasileira. Conhecida por diversos nomes, como: Comissão Científica do Império, Comissão Científica de Exploração das Províncias do Norte, Comissão do Ceará, Imperial Comissão Científica ou, pelo apelido jocoso de Comissão das Borboletas, a expedição brasileira constituiu um marco de consolidação das ciências naturais neste período no Brasil. Com o apoio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e patrocínio do governo Imperial de D. Pedro II, foi formada uma comissão de cientistas brasileiros com o objetivo de explorar algumas das províncias menos conhecidas do país e formar coleções mineralógicas, de fauna, flora e “tudo quanto possa servir de prova do estado de civilização, indústria, usos e costumes dos nossos indígenas” (KURY, 2009, p. 38). A idéia da expedição surgiu com o naturalista e secretário do IHGB, Manuel Ferreira Lagos, que conclamava seus colegas a fazerem uma ciência brasileira, que pusesse um fim ao que acreditava serem erros difundidos por naturalistas estrangeiros. Assim, perguntava: 2

Segundo Chauí (2000), o semióforo é “um signo trazido à frente ou empunhado para indicar algo que significa alguma outra coisa e cujo valor não é medido por sua materialidade e sim por sua força simbólica [...] Um semióforo é fecundo porque dele não cessam de brotar efeitos de significação” (CHAUÍ, 2000, p. 9)

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e não vos parece, senhores, que já era tempo de entrarmos, sem auxílio estranho, no exame e investigação deste solo virgem, onde tudo é maravilhoso? De desmentirmos esses viajantes de má fé ou levianos que nos têm ludibriado e caluniado? De mostrarmos, finalmente, ao mundo, que não nos faltam talentos e as habilitações necessárias para as pesquisas científicas? (idem, p. 38).

Aprovada a idéia e conseguido o financiamento do governo, começaram os preparativos para a viagem. O poeta Antônio Gonçalves Dias, que ficaria encarregado de coordenar a seção etnográfica da comissão e o matemático de ascendência italiana Giacomo Raja Gabaglia, que ficaria encarregado da seção astronômica e geográfica, partiram em viagem para a Europa, a fim de comprar os instrumentos mais modernos e confiáveis para se fazer as medições científicas necessárias, como microscópios, telescópios, termômetros, barômetros e até mesmo uma câmera fotográfica. Compraram também uma biblioteca científica, encomendada ao livreiro Brockhaus, de Leipzig, com uns 2.000 volumes de livros e periódicos, em grande parte ilustrados, escolhidos a dedo. Esta fabulosa coleção foi incorporada a partir de 1863 à Biblioteca do Museu Nacional, onde, fora as perdas, se encontra até hoje. Tamanha despesa só pôde ser feita por causa do interesse pessoal do Imperador pela expedição. (ibidem, p. 23).

Também se juntaram à comissão o botânico Francisco Freire Alemão, do Museu Nacional, que atuaria como líder da expedição e chefe da seção de botânica, Guilherme Schüch de Capanema, adjunto da Divisão de Geologia e Mineralogia do Museu Nacional, para chefiar a seção geológica e mineralógica. O próprio Manuel Ferreira Lagos, adjunto da seção de anatomia comparada e zoologia do Museu Nacional, como chefe da seção de zoologia. E José dos Reis Carvalho, professor de desenho da Escola da Marinha e ex-aluno de Debret. Reunidos e organizados, o grupo partiu a bordo do barco a vapor Tocantins, deixando o Rio de Janeiro em 4 de fevereiro de 1859, com destino à Fortaleza, no Ceará. Haviam boatos, na época, de que a província ainda pouco explorada possuía uma abundância mineral tão farta que costumavam compará-la a um El Dorado brasileiro. Tanto se falava na riqueza da província cearense, que as instruções eram para que todo o material encontrado fosse coletado em quantidade suficiente para ser distribuído pelos museus nacionais e também estrangeiros. A conservação dos espécimes coletados também era uma preocupação e Manuel Ferreira Lagos enfatizou, nas instruções para a seção de zoologia que um mau acondicionamento

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ou a má preparação dos espécimes coletados poderia dificultar ou mesmo impossibilitar a sua classificação. Para garantir o melhor acondicionamento possível, recomendava a utilização das instruções elaboradas pelo botânico e agrônomo André Thouin que, em 1818, publicou um manual de acondicionamento “para os viajantes e empregados nas colônias sobre a maneira de colher, conservar e remeter os produtos naturais” (SÁ, 2009, p. 157) para o Museu de História Natural de Paris. Ainda nas instruções, estavam assinalados os objetivos da expedição. O objetivo primeiro, claramente explicitado em cada uma das Instruções de cada seção, é o mapeamento botânico, geológico e mineralógico, astronômico e geográfico, das condições meteorológicas diárias e da distribuição das populações indígenas. O incremento da agricultura por meio do levantamento das condições climáticas e dos solos, do uso de adubos e fertilizantes, da topografia dos terrenos, de pragas de insetos, da potencialidade da vegetação e da disponibilidade de água subterrânea, marcava todas as instruções. [...] O traço comum das Instruções é a atenção especial a toda e qualquer possibilidade de aproveitamento para a indústria emergente, de qualquer recurso, sejam as rendas e couros dos cearenses, a indústria indígena, o mel das abelhas ou a madeira das árvores. (LOPES, 2009, p. 58).

No Ceará, a comissão se instalou no Liceu Cearense, antes de se separarem e partirem território adentro3. Dividida em três grupos, sendo um formado pelas seções de botânica e zoologia, outro pela seção geológica e um terceiro pela seção astronômica, a comissão passou seus primeiros meses de exploração em direção ao Icó e ao Crato, deixando para adentrar mais profundamente no território no ano seguinte, chegando próximo aos limites com o Piauí e cruzando até Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Ao todo, foram dois anos e cinco meses de exploração por todo o sertão cearense e arredores. A comissão só retornou ao Rio de Janeiro em 13 de julho de 1861, onde o trabalho científico continuou. A Comissão Científica do Império foi altamente produtiva em suas coletas, tendo trazido ao Rio de Janeiro milhares de espécimes. Cerca de 100 animais, segundo Lagos, foram trazidos vivos e, por falta de um espaço adequado para mantê-los no Museu Nacional, foram entregues ao banqueiro Antônio José Alves Souto, dono de uma grande chácara onde abrigava um zoológico particular com espécimes brasileiros e importados da Europa, Ásia e África. O zoológico de Souto já possuía uma relação com o MN, uma vez que enviava para o museu os animais 3

Ver Anexo 1 para um mapa com o itinerário da Comissão Científica do Império. Para maiores informações sobre o itinerário da Comissão, ver as obras: BRAGA, Renato. História da Comissão Científica de Exploração. Imprensa Universitária do Ceará. 1962. e KURY, Lorelai (org). Comissão Científica do Império. 1859 – 1861. Rio de Janeiro. Andrea Jakobsson Estúdio Editorial 2009.

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que morriam, para que pudessem ser preservados e expostos. Lagos também trouxe para o Museu Nacional uma vasta coleção de insetos, com mais de doze mil exemplares, além de quatro mil exemplares de aves, 80 espécies de répteis, mamíferos e outros animais, um conjunto de anotações sobre lendas, folclores e atividades zooextrativistas, amostras de artefatos artesanais, enfeites, vestuários, assim como doou para o museu todos os livros comprados para a expedição. “O Museu Nacional, que lutava desde sua origem por verbas para aquisição de coleções (...) e enfrentava todo tipo de dificuldades para realizar suas explorações cotidianas lucrou enormemente com a Comissão.” (LOPES apud SÁ, 2009, p. 167). As expedições de exploração em muito contribuíam para o fomento das coleções dos museus. Estima-se que, devido ao trabalho dos naturalistas do Museu em 1876, foram adicionados às coleções do MN, cerca de 1.500 espécies, “às coletas de Schwacke, Glaziou, Netto e Jobert entre 1873-1891, cerca de 5.000; devidas à Lindmann em 1893-1894, 200 espécies e 3.500 a Spencer Moore que viajou com John Evans pelo Mato Grosso em 1892.” (LOPES, 1993, p. 183). Além das contribuições para o acervo do museu, Lagos organizou nas dependências da instituição uma exposição com produtos originários do Ceará, inaugurada em 9 de setembro de 1861. Muito elogiada, a exposição ganhou menções no Jornal do Commercio, no Diário do Rio de Janeiro e no periódico local O Cearense. Segundo a notícia no Jornal do Commercio, foram expostos produtos de grande importância econômica, como diversas qualidades de mel, ceras e produtos extraídos de madeiras como a Carnaúba. Conta-se mesmo que o próprio Imperador teria ido visitar a exposição, onde passou duas horas “examinando cuidadosamente os objetos e inquirindo com minuciosidade acerca de cada um” (KURY, 2009, p. 32). Os melhores produtos desta exposição foram enviados, junto com objetos indígenas selecionados por Gonçalves Dias, para a Exposição Nacional de 1861, onde, graças à Comissão de exploração, o Ceará foi a província mais bem representada. Destes produtos expostos, “um ‘quadro’ com 24 espécies de abelhas montadas e 23 vidros com abelhas do Ceará em meio líquido foram posteriormente remetidos para a Exposição Universal de Londres, material que foi premiado com menção honrosa.” (SÁ, 2009, p. 167). Apesar da grande riqueza e variedade de objetos coletados, é importante destacar que muitas dessas coleções foram depositadas no Museu Nacional, porém, lá ficaram sem serem estudadas ou divulgadas. A coleção de aves, por exemplo, em

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função de problemas de acondicionamento, tempo excessivo de exposição pública e falta de catalogação, teve uma parcela considerável perdida. Os resultados zoológicos da expedição jamais foram divulgados. Lagos não chegou a produzir qualquer estudo sobre a fauna coletada, tendo se limitado a proferir palestra no IHGB sobre suas observações relativas à linguagem e aos costumes populares do Ceará, assim como a monitorar a confecção das pranchas de aves. Envolveu-se, a partir de 1863, com os afazeres de seu novo cargo de bibliotecário do Museu Nacional, quando organizou e produziu um catálogo dos livros doados pela Comissão juntamente com o ainda limitado acervo bibliográfico da Instituição. Nem mesmo a chefia da Seção de Zoologia do Museu Nacional, que assumiu em 1866, motivou-o para os estudos zoológicos. As coleções que trouxe para o Museu nunca foram estudadas. Criticado e desacreditado nas suas funções de zoólogo, morreu em 1871 deixando para o Museu Nacional o que mais valorizava: seus livros. (idem, p. 168).

Além das coleções formadas, cujos objetos figuravam em grandes exposições, os naturalistas destas viagens também promoviam a ciência através da publicação dos resultados de suas expedições, nos periódicos científicos da época, nas revistas das sociedades científicas e nos anais dos museus. A divulgação dos resultados das expedições era uma parte importante do trabalho científico, pois legitimava a pesquisa e os achados realizados perante os governos que financiavam as expedições, à comunidade científica internacional e ao grande público. A vulgarização era, portanto, uma preocupação destes naturalistas viajantes. Como exemplo, podemos observar o caso de Guilherme Schüch de Capanema que, ao regressar ao Rio de Janeiro com a Comissão Científica, publicou uma série de 32 artigos no Diário do Rio de Janeiro, sob o pseudônimo de Manoel Francisco de Carvalho, onde descreve suas observações na região Nordeste. Nestes artigos, descreve de maneira minuciosa e clara o meio físico cearense e os fenômenos encontrados, formando um texto inteligível pelo grande público, pois acreditava que “para promover os interesses do povo é preciso tomar conta dele, falar-lhe a linguagem que ele entende: quando quiserdes falar-lhe em sol e lua, usai dos termos simples e chãos de todo mundo, e deixai-vos de dizer: astro do dia e satélite da Terra.” (FIGUEIRÔA, 2009, p. 94). Atualmente, as coleções formadas pela Comissão Científica do Império encontram-se espalhadas por diferentes instituições, dentre as quais podemos citar: o Museu Histórico Nacional e o Museu D. João VI, detentores de diversos desenhos e aquarelas do artista José dos Reis Carvalho; a Biblioteca Nacional, detentora de anotações, diários e pranchas de Freire Alemão; o Museu Nacional, que possui

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livros marcados com o ex-libris da “Comissão de Exploração”, além do herbário de Freire Alemão. Os pássaros coletados por Lagos e Vila Real também ficaram no Museu, mas é praticamente impossível reconhecê-los, pois foram incorporados sem nenhuma etiqueta às séries já existentes. O mesmo aconteceu com o material etnográfico de Gonçalves Dias. Apenas algumas peças podem ser atribuídas sem reservas à Comissão. Parte do material ‘folclórico’ coletado por Lagos ficou exposto durante décadas nas vitrines do Museu e se encontra muito deteriorado. Ainda existem por lá rendas, barcos de madeira, trajes de couro e outras peças típicas, a maioria em mau estado de conservação. (KURY, 2009, p. 44),

As expedições científicas foram responsáveis por prover ricas e variadas coleções para os museus de história natural, não só brasileiros, mas do mundo inteiro. A variedade, a singularidade e a quantidade de objetos que compõem estas coleções as configuram como fontes inestimáveis para a investigação científica mesmo nos dias de hoje. Estas coleções formam um quadro não apenas da natureza brasileira, mas de um modo de fazer ciência Oitocentista, possibilitando investigações não apenas para as Ciências Naturais, mas também para a História da Ciência e, mesmo, História dos Museus. Quantos mistérios estas coleções ainda não estão por revelar, quanto conhecimento científico novo não podem nos trazer e quantas histórias estes objetos, guardados por séculos nas reservas desses museus, ainda não contaram. Tendo em vista estas questões, logo se torna clara a necessidade imperativa de que estas coleções sejam preservadas de forma adequada, visando garantir a sua longevidade e as possibilidades de conhecimento nelas ainda guardadas. Maria Margaret Lopes, analisando o papel da Comissão Científica, resume sua importância: “aglutinando alguns dos mais destacados naturalistas do Império, vinculada às principais instituições científicas do país e fazendo parte da ‘expansão para dentro’ do projeto imperial – mesmo que essa não fosse um todo homogêneo perfeitamente delimitado –, a Comissão sem dúvida marcou sua época.” (2009, p. 81). E não apenas a Comissão do Império, mas todas as outras expedições científicas exploradoras do território brasileiro deixaram sua marca e esta marca pode ser observada na História da Ciência Oitocentista tanto quanto na História dos Museus e, também, na História do Brasil, mais uma vez refletindo o quanto as atividades científicas estavam associadas tanto ao Estado, quanto aos museus.

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E é esta onipresença da ciência brasileira durante o século XIX que nos faz pensar na importância da preservação das coleções que hoje estão distribuídas por nossos

museus,

bibliotecas

e

profundamente no próximo capítulo.

arquivos,

aspecto

que

exploramos

mais

55

CONSIDERAÇÕES FINAIS: Valorização do patrimônio científico brasileiro

“A construção e a preservação de coleções no interior dos museus contribuíram para o projeto de uma taxonomia universal, e a sua exposição pública serviu por outro lado como instrumento do projeto educacional do iluminismo.” (LOUREIRO, 2002)

56

Os museus de história natural do século XIX em muito se beneficiaram com as expedições científicas de exploração. As coletas feitas pelos naturalistas viajantes que partiam nestas expedições formaram amplas e ricas coleções botânicas,

zoológicas,

paleontológicas,

mineralógicas,

arqueológicas

e

antropológicas que conformaram as bases desses museus. A realização de viagens de exploração, a coleta de espécimes, a classificação das coleções, a publicação de catálogos e anais e a montagem de grandes exposições constituíram a essência da prática da história natural dentro dos museus. Por todo o mundo, estas viagens científicas estiveram atreladas às atividades dos museus, uma vez que eram seus próprios diretores, vice-diretores, chefes de seções e técnicos, os naturalistas que partiam para descobrir as riquezas de territórios ainda inexplorados. Imbuídos da certeza de que a prática científica era um sinônimo para progresso e modernização, reis, czares e imperadores patrocinaram expedições, confiantes de que estas viagens trariam resultados que alavancariam suas nações, trariam melhorias para as vidas de seus cidadãos e riquezas para seus países. O Estado se interessava pela ciência como um meio, uma ferramenta, uma forma de se alcançar o tão almejado progresso que, segundo a filosofia positivista do francês Auguste Comte, seria o estágio mais avançado de civilização. Esta mentalidade colocou a ciência na agenda de todos aqueles que desejavam serem reconhecidos como homens eruditos e letrados. Conhecer o funcionamento

das

diversas

disciplinas

científicas

que

começavam

a

se

individualizar e se separar do grande grupo “História Natural” era uma necessidade para qualquer um que desejasse figurar parte desta elite cultural. Assim, para se manterem à par das últimas novidades científicas, discutirem suas teorias e terem o reconhecimento que tanto queriam, estes homens formaram as sociedades científicas. Durante o século XIX, esteve em voga a formação destas sociedades, que financiavam e apoiavam a atividade científica das expedições de exploração, que patrocinavam e mesmo criavam museus de história natural e que publicavam periódicos científicos, onde uma das maiores preocupações era a divulgação da ciência para um público ainda não familiarizado. A “alfabetização científica” ou “vulgarização”, como se chamava à época, era uma preocupação desta elite científica e, através destas publicações, conseguiam educar o leigo sobre as suas práticas, divulgar as suas pesquisas para pesquisadores que estivessem em terras

57

longínquas e, também, conseguir a legitimação das suas atividades entre o público e entre seus pares concorrentes. O papel do museu de ciência na prática da vulgarização científica também deve ser ressaltado, uma vez que, enquanto um espaço não-formal de educação, o museu traz diferentes meios de abordagem e tratamento de conteúdos. “Além disso, o museu dispõe de maior proximidade da relação ciência-cultura e apresenta processos de transposição didáticos que devem ser considerados na adequação entre ensino formal e ciência-tecnologia-sociedade” (PIEDADE FILHO, 2009, p. 3). Através das suas exposições, os museus possuem uma maneira diferenciada de divulgar a ciência para o público, aderindo um novo papel às coleções formadas pelas expedições científicas dos naturalistas viajantes. As mudanças de paradigma nas ciências em fins do século XIX refletiram mudanças de conceitos nos museus da época. Uma delas, como discutido por William Flower, diretor do Museu Britânico, em artigo reproduzido no I tomo da Revista Del Museu de La Plata ainda no século XIX, foi “o arranjo diferenciado das coleções de ‘investigaciones’ para os especialistas e de ‘instruccion’ para o público” (LOPES, 2001, p. 71). Este novo conceito de organização das coleções ficou conhecido pelo termo, em inglês, new museum idea, como proposto pelo próprio Flower. Em seu artigo, Flower procura identificar as questões centrais para que os museus cumprissem seus objetivos científicos e educacionais, estabelecendo que as coleções de pesquisa deveriam ser separadas daquelas destinadas à exibição pública. O valor das instituições museológicas como agentes dentro do grande movimento educacional que via acontecer em sua época era evidente para o naturalista inglês. “Esta função, uma vez que os museus se vincularam ao Estado, remetia diretamente às propostas de construção de identidades nacionais apoiadas em políticas de preservação e valorização de patrimônios naturais e culturais... (PODGORNY, 2000).” (LOPES; MURRIELLO, 2005, p. 25). A influência desta idéia se espalhou pelo mundo, se tornando um referencial para os museus até meados do século XX. Ainda em 1939, Bertha Lutz, zoóloga do Museu Nacional do Rio de Janeiro, escreveu um relatório sobre sua viagem aos Estados Unidos onde menciona o artigo Essays on museums, de Flower. Neste, o autor afirmava ser missão do museu “difundir a instituição e contribuir para o recreio intelectual da massa do povo, e proporcionar ao pesquisador científico o ensejo de examinar e estudar detidamente todos os espécimes que constituíam as coleções do museu. (Lutz, 1939).” (idem, p.

58

22). Assim, o museu deveria ser um espaço, ao mesmo tempo, para leigos e pesquisadores. “O poder de atração dos objetos deveria ser um critério a se priorizar na seleção do material a ser exposto, e sua disposição nas salas deveria realizar-se de forma a poderem ser apreciados pelo público.” (idem, p. 25). Para isso, era preciso que as novas galerias abandonassem as velhas concepções de gabinetes de curiosidades. Todas estas observações levaram à percepção do museu como um organismo vivo. Foi Flower quem lançou a máxima “un museo se asemeja á un organismo viviente; exije atentos y constantes cuidados” (idem, p. 27), repetida por João Batista de Lacerda, enquanto na direção do Museu Nacional do Rio de Janeiro. O papel educacional dos museus como agentes de alfabetização científica era, portanto, de suma importância. Enquanto analisou o museu como espaço de difusão e divulgação científica, o historiador Lúcio de Franciscis dos Reis Piedade Filho escolheu um exemplo notável da importância do museu como incentivador da ciência. Embora seu exemplo trate de um personagem do século XX, a validade e interesse deste exemplo permanecem e, por isso, vale a pena reproduzi-lo: “Em O mundo assombrado pelos demônios, Carl Sagan relata a importância central das exposições em sua vivência. Quando jovem, em 1939, Sagan foi levado por seus pais à Feira Mundial de Nova York, em que lhe foi oferecida a visão de um futuro perfeito que a ciência e a alta tecnologia tornavam possível. ‘Estava claro que o mundo continha maravilhas que eu jamais imaginara’ (SAGAN, 2006. p. 13-14). Seus pais não eram cientistas e não sabiam quase nada sobre ciência, mas ao apresentarem o filho simultaneamente ao ceticismo e à admiração, ensinaram a ele duas formas de pensar, ambas centrais para o método científico.” (PIEDADE FILHO, 2009, p. 4).

A partir deste exemplo, Piedade Filho percebe o papel do museu como um local privilegiado de aprendizagem, “uma vez que dentro dele é possível aprender ciência por meio do toque (experiência concreta), pela visão do que ocorre (observação reflexiva), pela compreensão conceitual e pela experimentação de maneira ativa e instigante.” (idem. p. 5). Assim como, no século XX, a influência dos museus como locais de educação científica foi capaz de incentivar Carl Sagan a se tornar um dos maiores astrônomos que os Estados Unidos já conheceu, também no século XIX os museus estavam cumprindo seu papel de incentivadores e divulgadores da atividade científica. Com o que foi exposto até aqui é possível perceber, indubitavelmente, que os museus de história natural Oitocentistas conformaram-se, por excelência, como locais de ciência. A ciência viajante do século XIX, as expedições científicas de exploração, a prática comum da vulgarização científica e os naturalistas viajantes

59

estavam, todos eles, ligados às atividades dos museus de história natural 4. O Estado, por sua vez, também aparece nesta rede de relações ao financiar, para seus interesses, a atividade dos museus e de seus naturalistas. Com a grande quantidade de expedições realizadas, muitas foram as coleções formadas pelos naturalistas Oitocentistas que ainda se encontram, hoje em dia, acondicionadas nas reservas técnicas de nossos museus. No entanto, muitas destas

coleções

de

animais,

plantas,

cerâmicas,

fósseis,

iconografia

e

documentação ainda não foram exploradas e ainda podem contribuir, em muito, para ampliar a compreensão sobre a cultura científica do século XIX no Brasil. Mesmo as coleções formadas pela Comissão Científica do Império ainda carecem de estudos. Ao analisar esta questão, a antropóloga Maria Sylvia Porto Alegre afirma que tanto a coleção zoológica formada por Manuel Ferreira Lagos, assim como a coleção iconográfica produzida pelo artista José dos Reis Carvalho nunca foram avaliadas. É importante pensar, portanto, na necessidade de uma valorização destas coleções, já que elas ainda constituem ricas fontes para estudos. Atualmente, no entanto, é possível perceber uma subutilização do patrimônio científico como fonte de pesquisa. Segundo a museóloga e historiadora da ciência Marta C. Lourenço, este patrimônio constitui excelentes fontes para pesquisas em história da ciência. Porém, diz que não é exagero afirmar que até cerca de dez anos atrás, o papel das coleções (e dos museus) na história da ciência e da tecnologia era próximo de zero. As coleções setecentistas e oitocentistas de instrumentos eram quase irrelevantes para a história da física. O mesmo se passava com o contributo das coleções de química para a história da química, com as coleções de medicina para a história da medicina, inclusivamente com as coleções de história natural para a história das ciências da vida e da terra. Neste aspecto, talvez a exceção fosse a história da astronomia, onde os instrumentos, apesar de tudo, sempre ocuparam um lugar – mesmo assim, escasso. (LOURENÇO, 2009, p. 48).

A autora advoga, portanto, para que haja uma crescente sensibilização dos próprios museus para a importância das suas coleções como fontes permitindo a sua melhor documentação. [...] Os benefícios são mútuos. Os historiadores têm nas coleções e no patrimônio um nicho com enorme potencial de crescimento. A história da ciência, em geral, ganha novos insights, porventura até agora insuspeitados. Os museus ficam com as coleções valorizadas e, não o esqueçamos, com oportunidades de interpretar e expor ao público as histórias que os objetos contam. Finalmente, o patrimônio científico pode adquirir, gradualmente, 4

No Anexo 2, proponho um gráfico que traduz visualmente esta rede de relações.

60

uma acrescida ‘raison d’être’ nas sociedades contemporâneas. (idem, p. 5152).

Observar o panorama da ciência e dos museus durante o século XIX e compará-lo com os dias de hoje levanta a questão da necessidade de uma maior valorização do patrimônio científico brasileiro e do papel do museu como agente de alfabetização científica. Atualmente, um visitante que entra em um museu como o Museu Nacional do Rio de Janeiro, o Museu Paulista ou o Museu Paraense Emílio Goeldi, sequer imagina que está visitando um local que, séculos atrás, servia de berço para a produção de pesquisas de ponta. Pesquisas que desbravaram o território brasileiro, trouxeram benefícios econômicos para a sociedade e que construíram um passado para uma nação que acabara de nascer e buscava hegemonia. Este movimento de valorização torna-se ainda mais necessário quando percebemos que “o patrimônio da ciência continua a ser largamente ignorado pelas políticas nacionais dos diferentes países e pelas cartas internacionais relacionadas com o patrimônio.” (LOURENÇO, 2009, p. 47). Ao realizar uma leitura das cartas patrimoniais disponibilizadas virtualmente no endereço eletrônico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), é possível perceber que, em nenhuma das cartas, há uma conceituação sólida do que se entende por patrimônio científico. Embora as expressões “bens de valor científico” e “bens de interesse científico” sejam encontradas algumas vezes, há a carência por uma definição do que se entende por estes termos. Percebendo esta carência e refletindo sobre o patrimônio cultural da ciência e tecnologia na atualidade, Marta C. Lourenço e Marcus Granato definem aquilo que preferem chamar de “objetos de ciência e tecnologia” como: o conhecimento científico e tecnológico produzido pelo homem, além de todos aqueles objetos (inclusive documentos em suporte papel), utilizados em laboratórios, as coleções arqueológicas, etnográficas e espécimes das coleções biológicas e da terra, que são testemunhos dos processos científicos e do desenvolvimento tecnológico. Também se incluem nesse grande conjunto as construções arquitetônicas produzidas com a funcionalidade de atender às necessidades desses processos e desenvolvimentos, por exemplo laboratórios, grandes equipamentos, observatórios, etc. (GRANATO; LOURENÇO, 2010/2011, p. 90).

No mesmo texto, os autores definem também o que entendem como ciência e tecnologia, definindo a primeira como: “o conjunto de conhecimentos e de investigações com um suficiente grau de generalidade para resultar em convenções

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concordantes e relações objetivas baseadas em fatos comprováveis” (idem, p. 89) e a segunda como: “o estudo dos processos técnicos, naquilo que eles têm de geral e nas suas relações com o desenvolvimento da civilização” (idem, idem.). Já o conceito de patrimônio é entendido pelos autores como o “conjunto de produções tangíveis e intangíveis do ser humano e seus contextos sociais e naturais que constituem um objeto de interesse a ser preservado para as futuras gerações.” (idem, idem.). Uma definição sólida e consistente destes termos é da maior importância, já que a indefinição do que se quer dizer quando se pronuncia estes conceitos constitui-se no primeiro entrave para a valorização e preservação do patrimônio científico brasileiro. Por tudo o que representa para a história da ciência, dos museus e da própria sociedade, a preservação das coleções científicas é da mais absoluta necessidade, tendo sido prevista já em 1964, pela Recomendação de Paris, que considera as coleções científicas como bens culturais. Da mesma forma, a continuidade da relação entre os museus e a ciência também é prevista pelas cartas patrimoniais. Segundo a Declaração de Santiago do Chile, de 1972, os museus deverão agir, através de suas exposições, como estimuladores e divulgadores de desenvolvimentos científicos e técnicos e assim deverão ser tratados pelos ministérios da Educação e Cultura e órgãos encarregados pelos desenvolvimentos científico, técnico e cultural. Da mesma forma, a divulgação da atividade científica continua, ainda hoje, a ser uma preocupação relacionada ao progresso dos povos. Na Declaração do México, de 1985, lê-se na página 4 que: “o ensino da ciência e da tecnologia deve ser concebido principalmente como um processo cultural de desenvolvimento do espírito crítico”. A Declaração vai ainda além, ao considerar um direito do cidadão a participação no progresso científico. Os museus, por sua vez, continuam inseridos nesta dinâmica de divulgação da ciência, uma vez que são considerados pela Declaração de Quebec, de 1984, como “um espaço de comunicação entre os seus acervos e o público, e divulgador da educação científica em diversas áreas”. Quando as universidades surgiram no Brasil, no século XX, trouxeram para seus campi a pesquisa científica que, antes, localizava-se nos museus. As universidades tomaram, portanto, o papel de centros condutores das ciências e do progresso, que antes era cumprido pelos museus. No entanto, esta nova dinâmica não excluiu os museus. Ao analisar o surgimento das instituições ligadas ao patrimônio de ciência e tecnologia, Granato e Lourenço afirmam que “é no seio das

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universidades, no caso brasileiro, que encontramos a grande maioria dos museus de ciência e técnica” (2001, p. 11) e citam como exemplos: o Museu de Ciência e Técnica e o Museu de Farmácia, da Universidade Federal de Ouro Preto; o Museu Dinâmico de Ciência e Tecnologia e Museu de Farmácia Lucas Marques do Amaral, da Universidade Federal de Juiz de Fora; e o Museu da Escola Politécnica, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. No entanto, não foram em todos os casos que as universidades geraram museus. Lourenço cita como uma das dificuldades de preservação do acervo de C&T o fato de, em grande parte ele encontra-se concentrado em “instituições que não possuem nem vocação, nem missão, nem orçamento, nem pessoal qualificado, nem, muitas vezes, sensibilidade para a sua preservação e divulgação [...] [como] universidades, politécnicos, antigos liceus e escolas técnicas, institutos e laboratórios de investigação, hospitais, sociedades científicas.” (2009, p. 47). Mesmo assim, ainda é possível perceber que, em muitos casos, mesmo quando a ciência vai para as universidades, o museu continua a ser entendido não apenas como um espaço adequado para o acondicionamento das coleções, mas como uma ferramenta importante de divulgação científica. Porém, também vimos que, muitas vezes, o patrimônio resguardado nestes museus não está sendo utilizado em toda sua potencialidade e, muitas vezes, nunca o foi. Sua própria preservação física já constitui uma questão complexa e que demanda estudos onde participem de especialistas de diferentes áreas. A responsabilidade da preservação do patrimônio de C&T, segundo Granato e Lourenço, é uma atribuição do Ministério da Cultura (MinC), pois se trata de patrimônio cultural brasileiro. No entanto, “são raríssimas as iniciativas de proteção efetuadas nessa área.” (2010/2011. p. 95). O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), responsável pela formulação e implementação da Política Nacional de Ciência e Tecnologia firmou uma parceria com o MinC em 28 de outubro de 2008, estabelecendo políticas de integração entre as atividades de ambos os ministérios. O documento gerado por esta parceria estabelece 18 objetivos relacionados ao patrimônio científico, dentre os quais podemos destacar o objetivo de número seis: “promover estudos e ações voltadas para a proteção, preservação e recuperação do patrimônio cultural e científico brasileiro.” (idem, idem.). Foi percebendo a necessidade de preservação destas coleções, muitas delas formadas durante o Oitocentos, que o Museu de Astronomia e Ciências Afins, do Rio de Janeiro, desenvolve, desde 2009, o projeto de pesquisa Valorização do

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Patrimônio Científico e Tecnológico Brasileiro. Este projeto teve sua gênese nas reflexões desenvolvidas pelo núcleo de preservação das coleções de instrumentos científicos do MAST e nos estudos desenvolvidos no âmbito do Programa de PósGraduação em Museologia e Patrimônio, uma parceria do MAST com a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). “Este projeto se justifica, em primeiro lugar, pelo valor documental e histórico desse patrimônio; em segundo lugar, por quase nada desse tema ser estudado no país; e em terceiro lugar, por estar muito ameaçado, necessitando ser descoberto e preservado” (idem, p. 99). O objetivo desta iniciativa é elaborar um panorama mais claro sobre o patrimônio da ciência e tecnologia no Brasil, procurando defini-lo, inventariá-lo e analisar estratégias para sua preservação5. Um dos primeiros resultados deste projeto foi a publicação intitulada Coleções científicas luso-brasileiras: patrimônio a ser descoberto, onde são levantadas questões relacionadas às origens, estado e preservação das coleções científicas brasileiras e, também, portuguesas. Outro movimento importante em prol da preservação do patrimônio de ciência e tecnologia são as conferências nacionais de CT&I. Na 4ª Conferência Nacional de CT&I, realizada entre 26 e 28 de maio de 2010, o professor da Universidade Federal Fluminense e diretor do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Paulo Knauss, relatou o seguinte: “O debate realizado com o público reforçou o ponto de vista da importância da colaboração entre Cultura e CT&I. A discussão ressaltou, igualmente, a importância de se garantir investimentos que valorizem a relação entre cultura e ciência, cujo potencial poderia ser incrementado pela colaboração orçamentária entre MINC e MCT&I, ou entre o Fundo Nacional de Cultura e o Fundo Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Em seu desdobramento, isso significaria aprofundar a integração do sistema nacional de cultuar e sistema nacional de CT&I, formular políticas em conjunto.“ (apud GRANATO; LOURENÇO, 2010-11, p. 98).

Analisando estas iniciativas, Granato e Lourenço percebem “que está em curso um movimento para resgatar o patrimônio cultural relacionado à Ciência e à Tecnologia e torná-lo mais visível para a sociedade.” (idem, p. 99). No entanto, este movimento está apenas iniciando e é preciso que haja uma maior conscientização pública da importância da salvaguarda das coleções Oitocentistas, não só pelo valor de seus raros espécimes e instrumentos, mas por representarem a memória de um fazer científico do passado, da época das grandes expedições de exploração e desbravamento do território brasileiro. Para isso, é preciso que os nossos museus 5

Para mais informações sobre o Projeto de Valorização do Patrimônio Científico e Tecnológico Brasileiro, ver no endereço eletrônico do MAST: http://www.mast.br/projetovalorizacao/inicio.html

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de ciência contemporâneos tenham consciência do inestimável valor das coleções que estão guardadas em suas reservas técnicas. É preciso que estes museus tomem a frente na luta por uma maior atuação do Estado para a preservação destas coleções e, para que isto aconteça, nenhuma estratégia é melhor do que mostrar o que estas coleções representam. Para isso, os museus podem montar exposições onde desperte, no público, um maior interesse pela ciência e pela valorização do patrimônio científico brasileiro. É preciso, mais do que nunca, que os museus resgatem, em seu passado, as qualidades de produtores e divulgadores de ciência. Desta forma, não só valorizarão e garantirão a preservação de seu patrimônio científico, mas também contribuirão para uma maior educação científica da sociedade o que, até os dias de hoje, continua a ser associado ao progresso e ao desenvolvimento.

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ANEXO 1 Itinerários Aproximados das Excursões da Comissão Científica do Império

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Imagem modificada a partir do original encontrado na página 83 da publicação KURY, Lorelai (org). Comissão científica do Império. 1859 – 1861. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda. 2009.

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ANEXO 2 Quadro: Rede de relações entre museus, ciência e Estado

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CIENTISTAS

EXPEDIÇÕES

COLEÇÕES

SOCIEDADES CIENTÍFICAS

MUSEUS

PUBLICAÇÕES

VULGARIZAÇÃO

Quadro: Rede de relações entre museus, ciência e Estado. Fonte: ANTUNES, Anderson, 2011

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REFERÊNCIAS

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1. BRAGA, Marco; GUERRA, Andreia; REIS, José Claudio. Breve história da ciência moderna: a belle-epoque da ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 2. BRAGA, Renato. História da Comissão Científica de Exploração. Imprensa Universitária do Ceará, 1962. 3. CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL. Jornal da Expedição Langsdorff. Material educativo da exposição Langsdoff. Centro Cultural Banco do Brasil – Rio de Janeiro. 3 de Agosto a 26 de setembro. 2010. 4. CHAUÍ, Marilena. Brasil, mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. 103 p. 5. CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Estratégias de construção da nação: a materialização da história pelo Sphan. In: Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: UFRJ, 2009. p. 43-91. 6. CID, Maria Rosa Lopez; WAIZBORT, Ricardo. Alípio de Miranda Ribeiro e as lições da Comissão Rondon para o Museu Nacional. Filosofia e História da Biologia. São Paulo, v. 1, p. 215-227, 2006. 7. DANTES, Maria Amélia M. As ciências na história brasileira. Ciência e Cultura. São Paulo, vol. 57, n° 1. jan. – mar. 2005. 8. DIAS, Cláudia M. Coutinho. História da ciência: uma perspectiva multidisciplinar. Revista On-line Unileste. vol. 1. nº 1. jan. - jun. 2004. 9. FIGUEIRAS, Carlos A. L. Origens da ciência no Brasil. Química Nova, n° 13(3), p. 222-229, 2009. 10.FIGUEIRÔA, Silvia. Areias, ventos e secas: ainda assim, um “eldorado” à brasileira. In: KURY, Lorelai (org). Comissão científica do Império. 1859 – 1861. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda, 2009. 11.____. Mundialização da ciência e respostas locais: sobre a institucionalização das ciências naturais no Brasil (de fins do século XVIII à transição ao século XX). Asclepio, n.2, p. 107-123, 1998. 12.GODOI, Felipe Daniel do Lago. O passado e a construção do pensamento científico no Brasil dos Oitocentos. Anais do II Encontro Memorial do Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Minas Gerais: Universidade Federal de Ouro Preto, 2009.

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13.GONÇALVES, Adelaide. Uma viagem utópica ao Brasil do século XIX: a experiência de Louis Léger Vauthier e Jules Benoit Mure (1842-1846). In: XIII Economic History Congress. Buenos Aires, 2002. 14.GRANATO, Marcus; LOURENÇO, Marta C. O patrimônio científico do Brasil e de Portugal: uma introdução. In: GRANATO, Marcus; LOURENÇO, Marta C (Org.). Coleções científicas luso-brasileiras: patrimônio a ser descoberto. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST/MCT, 2001. p. 7 – 14. 15.____. Reflexões sobre o Patrimônio Cultural da Ciência e Tecnologia na Atualidade. Revista Memória em Rede. Pelotas, v. 2, n. 4, dez. 2010 – mar. 2011. 16.GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. História e natureza em Von Martius: esquadrinhando o Brasil para construir a nação. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. VII(2), 389-410, jul. – out. 2000. 17.HENRY, John. A revolução científica e as origens da ciência moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 18.KODAMA, Kaori. Em busca da gênese do Brasil nas províncias do norte: Gonçalves Dias e os trabalhos etnográficos da Comissão Científica de Exploração. In: KURY, Lorelai (org). Comissão científica do Império. 1859 – 1861. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda, 2009. 19.KURY, Lorelai. Explorar o Brasil: o império, as ciências e a nação. In: KURY, Lorelai (org). Comissão científica do Império. 1859 – 1861. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda, 2009. 20.____. Francisco Freire Alemão, botânico e viajante. IN: KURY, Lorelai (org). Comissão científica do Império. 1859 – 1861. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda, 2009. 21.____. Viajantes naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. VIII (suplemento), p. 863-880, 2001. 22.LOPES, Maria Margaret. O início do movimento dos museus no Brasil. In: As ciências naturais e os museus no Brasil no século XIX. Tese. (Doutorado em História Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 167-216, 1993.

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23.____. Cooperação científica na América Latina no final do século XIX: os intercâmbios dos museus de ciências naturais. Interciencia. Caracas, vol. 25. n° 5. p. 228-233, ago. 2000. 24.____. A Comissão Científica de Exploração. Uma “expansão para dentro”. In: KURY, Lorelai (org). Comissão científica do Império. 1859 – 1861. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda, 2009. 25.____. Cooperação científica na América Latina no final do século XIX: os intercâmbios dos museus de ciências naturais. Interciencia. Caracas, vol. 25, n° 5, p. 228-233. 2000. 26.____. Pesquisa científica é no museu. Revista de História da Biblioteca Nacional. Edição Especial. Rio de Janeiro, p. 59-63. out. 2010. 27.____. A mesma fé e o mesmo empenho em suas missões científicas e civilizadoras: os museus brasileiros e argentinos do século XIX. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 21, nº 41. p. 55-76. 2001. 28.LOPES, Maria Margaret; FIGUEIRÔA, Silvia Fernanda de Mendonça. A criação do Museu Paulista na correspondência de Hermann Von Ihering (1850-1930). Anais do Museu Paulista. São Paulo. 2002-2003. p. 23-35. 29.LOPES, Maria Margaret; MURRIELLO, Sandra Elena. Ciências e educação em museus no final do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. v.12 (suplemento), p. 13-30, 2005. 30.LOPES, Maria Margaret; PINHEIRO, Rachel. Cientistas brasileiros do século XIX: a taxonomia de Freire Alemão. I Simpósio de Pesquisa em Ensino e História de Ciências da Terra. III Simpósio Nacional sobre Ensino de Geologia no Brasil. Campinas: Unicamp. 2007. 31.LOUREIRO, José Mauro Matheus. Entre “natureza morta” e cultura viva: os museus de história natural. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v. II, nº1. 2007. 32.LOURENÇO, Marta C. O patrimônio da ciência : importância para a pesquisa. Museologia e Patrimônio. Rio de Janeiro, vol. II. nº 1. jan. – jun. 2009. Disponível em: < http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewFil e/45/25>. Acesso em: 23 jun. 2011.

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33.MACHADO, Deusana Maria da Costa et all. A contribuição dos museus para a institucionalização e difusão da paleontologia. Anuário do Instituto de Geociências. Rio de Janeiro: UFRJ. vol. 30. 1/2007. p. 158-167. 34.MARTINS, Carlos (org.) Revelando um acervo. Coleção Brasiliana. Fundação Rank-Packard. Fundação Estudar. São Paulo: Bei Comunicação, 2000. 35.PIEDADE FILHO, Lúcio de Franciscis dos Reis. Museu, ciência, tecnologia e sociedade: o museu enquanto espaço de difusão e divulgação científica. Foro ibero-americano de comunicação e divulgação científica. Campinas: Unicamp, 2009. 36.PINHEIRO, Rachel. O que nossos cientistas escreviam: algumas das publicações em ciências no Brasil do século XIX. Tese. (Doutorado em História e Ensino de Ciências) – Unicamp, Campinas, 2009. 37.POMIAN, Krzysztof. Colecção. In: ROMANO, Ruggiero (org.). Enciclopédia Einaudi. , vol. 1. Portugal: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. 38.PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. 150 anos depois: na ronda do tempo. In: KURY, Lorelai (org). Comissão Científica do Império 1859-1861. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda, 2009. 39.SÁ, Magali Romero. A zoologia da Comissão Científica de Exploração. In: KURY, Lorelai (org). Comissão científica do Império. 1859 – 1861. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio Editorial Ltda, 2009. 40.SÁ, Magali Romero; DOMINGUES, Heloísa Maria Bertol. O Museu Nacional e o ensino das ciências naturais no Brasil do século XIX. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência. São Paulo, n. 15, p. 79-88, 1996. 41.SANJAD, Nelson. Charles Frederick Hartt e a institucionalização das ciências naturais no Brasil. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, vol. 11(2), p. 449-455. maio -ago. 2004. 42.SEMEDO, Alice. Da invenção do museu público: tecnologias e contextos. Revista da Faculdade de Letras. Ciências e Técnicas do Patrimônio. Portugal: Universidade do Porto, I série vol. III. p. 129-136. 2004. 43.SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 44.SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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45.SCHWARTZMAN, Simon. A ciência no império. In: Um espaço para a ciência: a formação da comunidade científica no Brasil. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia, p. 50-70. 2001. Tradução de Sérgio Bath e Oswaldo Biato. 46.VERGARA, Moema de Rezende. Ensaio sobre o termo “vulgarização científica” no Brasil do século XIX. Revista Brasileira de História da Ciência. Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 137-145, jul. – dez. 2008. 47.____. Ciência, cultura e público: periódicos científicos-literários no Rio de Janeiro oitocentista. XXIV Simpósio Nacional de História. Associação Nacional de História – ANPUH, 2007. 48.____. As imagens femininas n’O Vulgarizador: público de ciência e mulheres no século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 15, suplemento, p.191-208, jun. 2008.

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