ENTRE O (DES)ENCANTAMENTO E O RE(ENCANTAMENTO) DO CONTEMPORÂNEO: modernidade, pós-modernidade ou a conversa inacabada

May 23, 2017 | Autor: Jean Carlo | Categoria: Social Theory, Sociology of Education, Postmodernism
Share Embed


Descrição do Produto

ENTRE O (DES)ENCANTAMENTO E O RE(ENCANTAMENTO) DO CONTEMPORÂNEO: modernidade, pós-modernidade ou a conversa inacabada

JEAN CARLO DE CARVALHO COSTA

Editora da UFPB João Pessoa 2015

Para Bárbara

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

4

1. O PROBLEMA DA ORDEM NA MODERNIDADE 13 1.1 DA DESORDEM À ORDEM: O OLHAR SOCIOLÓGICO OU COMO ORGANIZAR O CAOS... 14 1.2 DESCONSTRUINDO A MODERNIDADE: CRÍTICAS E POSSIBILIDADES....................................................................................................... 19 1.3 A MODERNIDADE RESISTE, REFLEXIVAMENTE... ................... 22 2. NATUREZA E HISTÓRIA DA IDEIA DE PÓS-MODERNIDADE

29

2.2 SOBRE O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: INTÉRPRETES E TENDÊNCIAS TEÓRICAS ........................................................................................ 34 2.3 MODERNIDADE, PÓS-MODERNIDADE E EDUCAÇÃO: CONFRONTOS E PERSPECTIVAS PARA O SÉCULO XXI ............................... 37 3. MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE: O LEGADO SOBRE AS IDEIAS DE EDUCAÇÃO E ESCOLA NA CONTEMPORANEIDADE

44

3.1 “EDUCAÇÃO: SOB, PARA E APESAR DA PÓS-MODERNIDADE”... 45 3.2 EU, TU, ELES, NÓS: SUJEITOS, IDENTIDADE (S), NOVAS FORMAS DE VIDA... .................................................................................................................... 50 3.3 JUVENTUDE(S) EM TEMPOS PÓS-MODERNOS: RISCO, POLÍTICA PÚBLICA E RECONHECIMENTO SOCIAL... ...................................................... 57 PARA NÃO CONCLUIR... REFERÊNCIAS

67

65

INTRODUÇÃO

Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do atual. Water Benjamin (1994, p. 119)

Nas últimas décadas, em particular, após a publicação de A condição pós-moderna do filósofo francês Jean-François Lyotard, em 1979, talvez uma das perguntas mais constantes no dia a dia da Universidade, mas que também invadiu por completo outras esferas da vida cotidiana, desde o cafezinho com os amigos até propagandas na televisão é: o que é a modernidade? E, junto a essa, o que seria a pós-modernidade? Existiria entre um mundo possível de ser denominado pós-moderno? Mas, afinal, como esse seria? Inevitavelmente, as respostas são as mais variadas tanto em relação a sua conceituação como também em relação a datas e eventos históricos possíveis de serem associados a uma ou a outra expressão. Essas respostas foram e são derivadas de disciplinas como a filosofia, sociologia, teoria da literatura, estética etc., como também de áreas não acadêmicas, consequência da vulgarização do tema e de sua assimilação, muitas vezes, estranha e inconsequente, ao senso comum. Para fins de condução desse livro, a ideia é destinar uma atenção mais cuidadosa ao olhar sociológico sobre esse conjunto de transformações recentes, bem como as consequências sobre as ideias de escola e educação na contemporaneidade. Ora, inicio o texto afirmando que as ciências sociais e, especificamente, a própria sociologia, desenvolveram-se, no final do século XIX, como uma espécie de resposta intelectual a um período histórico determinado (DOMINGUES, 1999), por alguns, chamado de modernidade, ou, como consensualmente se observa, a chamada sociologia clássica surgiu como produto do diálogo que os pensadores sociais, àquele momento, estabeleceram com a sua sociedade sendo esse atravessado por possibilidades de avanços vários e, claro, por inevitáveis consequências não pretendidas por esses sujeitos, nas palavras de Max Weber. De qualquer modo, a sociologia é uma disciplina profundamente envolvida com a sociedade moderna e constitui, indubitavelmente, “um dos meios pelo qual a modernidade tomou consciência de si mesma” (SELL, 2014, p. 15). De fato, o que se denomina institucionalização da sociologia teve origem em meados da segunda metade do século XIX. Aí ela inicia a sua inserção no âmbito acadêmico enquanto

forma de saber que, gradativamente, vai sendo considerado necessário para o entendimento da vida em sociedade. Nesse período, isso ocorre como uma tentativa de se interpretar e compreender a transição pela qual passava, àquele momento, o Ocidente, cuja característica fundamental, associada a ele, era a ideia de que existiu uma transição de uma forma de viver designada de sociedade tradicional para uma ordem social dita moderna, urbana, industrial e democrática (SZTOMPKA, 1998), essa que nós conhecemos muito bem e que nela nos encontramos profundamente embebidos. A análise mais sistemática e completa dessa ideia de transição parece ter sido realizada por meio de um modelo tipológico, produzido pelo sociólogo Max Weber (1864-1920) no início do século XX. Ele opõe as ideias de sociedade agrária tradicional e sociedade capitalista, guiado pelas categorias de racionalização da vida e desencantamento do mundo, sendo essas bastante investigadas ao longo do século XX e início do XIX (SELL, 2013). A ideia, de modo resumido, é atribuir maior importância à capacidade do homem em gerir a sua própria vida em comparação com o papel protagonista que explicações religiosas exerciam, em particular, em sua vida moral1. Entretanto, o que nos interessa, no momento, é argumentar em torno da aproximação existente entre o que se entende hoje por sociedade moderna ou modernidade e a própria sociologia, “dada a sua orientação cultural e epistemológica” (GIDDENS, 1991, p. 13), bem como o fato de ser ela a “disciplina mais integralmente envolvida com o estudo da vida social” (GIDDENS, 1991, p. 13). Além disso, outro fator foi ter se tornado uma das disciplinas responsáveis pelo entendimento da ação humana em condições de modernidade, produzindo uma categorização explicativa que, hoje, estrutura a ideia de modernidade e permeia a literatura de modo geral, além das próprias representações individuais sobre o que é a vida nos dias de hoje. Nesse sentido, trata-se de perceber que, a partir desse período, torna-se uma constante a preocupação da pesquisa e da teoria em concentrar-se em processos que constituem algo que é denominado de sociedade, especialmente de sociedade moderna, e da produção de categorias de análise ou palavras que de algum modo expliquem a sociedade como, por exemplo, o capitalismo, a globalização, o individualismo, a nação, a raça etc. Isso nos auxilia na compreensão do desmembramento das transformações que identificam o período. De certo modo, essas preocupações invadem o pensamento social europeu e têm 1

Para Max Weber, a racionalização e a intelectualização crescentes têm uma consequência decisiva que é essa ideia de desencantamento, ou seja, para ele, os progressos da ciência e da técnica levaram o homem a deixar de lado a crença nos poderes mágicos, nos espíritos e nos demônios, perdendo, assim, o sentido profético e o do sagrado (FREUND, 2006).

ressonância em nossa América Latina e nas inquietações da elite intelectual do século XIX em adequar a teoria então produzida e a sua inserção no mundo novo. Ora, a expressão sociedade, sem dúvida, não foi inventada recentemente. Entretanto, é mais do que provável que o uso mais frequente da palavra ocorra nos dias de hoje e, além disso, de modo bastante diversificado, atendendo às especificidades de inúmeros interessados. Ou seja, pode referir-se à totalidade dos seres humanos na Terra, em conjunto com as características que geralmente os definem, como valores, crenças, sua cultura e as suas instituições, podendo também ser utilizada para significar agrupamentos mais restritos, isto é, uma sociedade animal, civil, nacional, uma Sociedade Protetora dos Animais e assim por diante (NISBET, 1996). Pode, também, ser utilizada por muitos para definir recortes da realidade, tornando cada um deles objeto de estudo de uma determinada forma de conhecimento, uma vez que é esse o objetivo da clássica querela entre as noções de indivíduo (genético) e sociedade (social/cultura). O que se deve, no entanto, extrair dessa multiplicidade conceitual é o fato de que todos esses conceitos derivam de discussões que apareceram durante um período histórico consensualmente denominado de período moderno ou apenas modernidade. Período que, embora tenha as suas raízes estendidas até épocas anteriores ao Iluminismo, é marcado, de modo efetivo, por seu dinamismo sem precedentes, algo que vemos hoje com a rapidez que invade o nosso dia a dia, por sua rejeição à tradição, tratando-a de modo ruim e pernicioso, por sua marginalização e por suas consequências globais (LYON, 1998). Por exemplo, a nossa ralação com os pais, muitas vezes, é mais de rejeição de seu legado do que, ao contrário, de uma assimilação e reprodução para a próxima geração do que nos foi dado. Essa é uma das discussões correntes em torno da ideia de juventude, como veremos no Capítulo 3. Ora, um dos primeiros usos da expressão latina modernus foi entre os séculos V e VI, com a queda do Império Romano, com o intuito de distinguir o cristão oficial presente do romano pagão do passado (SMART, 1990; KUMAR, 1997), ou seja, instituía-se a nova era cristã. Essa compreensão sugeriu a dimensão histórica da complexidade de seus usos no curso desses dezesseis séculos (CARVALHO, 2012). Contudo, do modo como é utilizado nos dias de hoje, o termo se aplica à ordem social que emergiu após a Renascença, guiada por uma compreensão positiva de futuro e do papel protagonista do homem na condução dele, dois elementos presentes em nossa visão de mundo hoje. A expressão Modernidade trata-se de uma noção alimentada para constituir um espelho no qual é possível ver o Ocidente, o seu passado, o presente, as possibilidades futuras, no entanto, a extensionalidade das transformações subsequentes a transcendeu a esferas globais, radicalizando o conceito:

A tradição do Ocidente, construída como herança greco-romana, toma impulso na Renascença, período em que a Europa nórdica e ocidental projeta-se para o mundo, conquistando outros povos e redefinindo-se a si mesma. Do ponto de vista social, a formação da Europa coincidiu com o estabelecimento de uma aristocracia; do ponto de vista ideológico, com a crença na ideia de civilização. Erigia-se, assim, uma barreira simbólica e cultural entre a elite dominante e o povo, por um lado, e entre a Europa e os povos de outros continentes, recém-integrados econômica e politicamente à área de poder europeu (GUIMARÃES, 2002, p.1).

Além disso, do ponto de vista da natureza da construção do conhecimento que, a partir de então, é elaborado e disseminado, Gianni Vattimo, um dos principais filósofos da atualidade e um excelente intérprete da noção de modernidade, acrescenta:

a modernidade pode caracterizar-se, de fato, por ser dominada pela ideia da história do pensamento como uma ‘iluminação’ progressiva, que se desenvolve com base na apropriação e na reapropriação cada vez mais plena dos ‘fundamentos’, que frequentemente são pensados também como as ‘origens’, de modo que as revoluções teóricas e práticas da história ocidental se apresentam e se legitimam na maioria das vezes como recuperações, renascimentos, retornos (VATTIMO, 1996, p. VI).

Ainda que a própria ideia de conceito implique a possibilidade de variadas significações serem atreladas a ele, e o próprio conceito de modernidade não se ausentar de ser incluído nessa variação, haja vista a enorme quantidade de estudos relacionados a ele, vários autores procuraram formas apropriadas de abordar a categoria. Sztompka (1998), por exemplo, sugere que ele pode ser compreendido com base em dois pontos de vista: o histórico e o analítico. “O conceito histórico de modernidade refere-se a um tempo e lugar determinados; é datado e situado. Define-se pela indicação de exemplos e não pela enumeração de características” (SZTOMPKA, 1998, p. 133-134), ou seja, o mundo moderno tem data e local para começar. Já o sentido analítico objetiva a organização conceitual desse período: o que mudou, afinal, em relação ao trabalho, à família, as formas de estado e de governo, enfim, quais foram as mudanças mais radicais e relevantes no estilo de vida das pessoas? Na literatura, há certo consenso entre historiadores, sociólogos e cientistas sociais, de modo geral, em se referirem a esse período como situado no início do século XVII até fins do XVIII, na Europa. Uma época caracterizada pela constituição de um novo modo de organização social relacionado a mudanças no estilo de vida das pessoas, que se exacerbam especialmente no período que compreende o fim do século XIX e o início do XX. De fato, Anthony Giddens, em seu clássico estudo sobre a modernidade, a princípio, anuncia: Como uma primeira aproximação, digamos simplesmente o seguinte: ‘modernidade’ refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a

partir do Século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência (GIDDENS, 1991, p. 11).

Um dos mais importantes sociólogos contemporâneos, com mais de duas dezenas de livros publicados no Brasil, abordando temas que transitam desde o Holocausto até o amor e a solidão do homem moderno, é Zygmunt Bauman. Sobre questão similar, ele argumenta:

chamo de modernidade um período histórico que começou na Europa Ocidental no século XVII, com uma série de transformações sócio-estruturais e intelectuais profundas, e atingiu sua maturidade primeiramente como projeto cultural, com o avanço do Iluminismo e depois como uma forma de vida socialmente consumida, com o desenvolvimento da sociedade industrial capitalista e, mais tarde, também a comunista (BAUMAN, 1999, p. 299-300).

Krishan Kumar, outro estudioso da modernidade, ainda que não seja possível perceber similaridade em relação à exatidão das datas, confirma a observação de Giddens em relação ao fato de que as estruturas da modernidade se desenvolveram ocorreu entre os séculos XVI e XVIII e começou nos países do noroeste da Europa – especialmente na Inglaterra, Holanda, norte da França e da Alemanha (KUMAR, 1997. Em outra abordagem, talvez denominada por muitos de microssocial, o americano Marshall Berman, recentemente morto, em seu excelente livro Tudo que é sólido desmancha no ar ‒ a aventura da modernidade (1986), nos apresenta uma caracterização histórica em que a modernidade é dividida em três momentos, de tal modo que a sua organização transita do século XVI até o século XX (BERMAN, 1986). Em princípio, na primeira fase, entre os séculos XVI e XVIII, ele nos diz que as pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna; mal fazem ideia do que as atingiu. Elas tateiam, desesperadamente, mas em estado de semicegueira, no encalço de um vocabulário adequado; têm pouco ou nenhum senso de um público ou comunidade moderna (BERMAN, 1986, p. 16).

Esse vocabulário, ao qual se refere Berman, serviria para um maior compartilhamento do que sentem, uma vez que eles ainda não detêm o senso de comunidade ou público moderno, ou talvez o tenham em pequena escala, no interior do qual pudessem proceder a esse intercâmbio. Já a segunda fase, segundo Berman e confirmado por Seidel (2001), tem início com a grande onda revolucionária de 1790:

é com a Revolução Francesa que ganha corpo, dramática e abruptamente, um vasto público moderno que compartilha a sensação de viver em uma época de convulsões e revoluções que desencadeiam transformações nos níveis pessoal, social e político (SEIDEL, 2001, p. 33).

De fato, do ponto de vista histórico, há certa concordância em se afirmar que esse novo modo de organização social que emerge na Europa, naquela época, foi impulsionado pelas grandes revoluções que assolaram o período. Por um lado, as revoluções americana e francesa forneceram o quadro político-institucional da modernidade, ou seja, a democracia constitucional, o governo da lei e o princípio da soberania dos Estados-nação; por outro, a revolução industrial inglesa forneceu o alicerce econômico: produção industrial por meio da força de trabalho livre em cenários urbanos, engendrando o industrialismo e o urbanismo como novos modos de vida, e o capitalismo como a nova forma de apropriação e distribuição (SZTOMPKA, 1998). É importante salientar que o fato de os processos sociais ora tratados terem sido impulsionados pelas chamadas grandes revoluções não implica afirmar a inexistência deles em um período anterior aproximado. De fato, Jurgen Habermas, em seu clássico O discurso filosófico da modernidade (1990), inspirado no pensamento hegeliano, sugere que três acontecimentos ocorridos por volta de 1500 - a descoberta do Novo Mundo, o Renascimento e a Reforma - constituem a transição epocal entre a Idade Média e a Idade Moderna, ressaltando que, apenas no século XVIII, o limiar histórico fixado em meados de 1500 foi reconhecido retrospectivamente como sendo, na realidade, esse início (HABERMAS, 1990). De fato, noções espaciais tradicionais, como a cidade, o campo e a rua sofrem transformações que refletem essa mutação qualitativa no estilo de vida das pessoas. A cidade separa-se do campo, do qual, contudo, passa a estar mais próximo em sentido não espacial, agora visto como área de lazer, por conta do trem, do automóvel ou da bicicleta. A cidade grande, afirma Waizbort, em sua neoclássica interpretação de Simmel, constitui o lugar histórico do moderno estilo de vida (WAIZBORT, 2000). De fato, “apesar de a cidade continuar a crescer sobre si mesma, na medida em que se liberta da proximidade com o rural, ela passa a ser regulada por outra dinâmica” (SEIDEL, 2001, p. 22), semelhante ao que Berman (1986) denomina de celebração da vitalidade urbana. A modernidade, nesse sentido, questiona todos os modos convencionais de se fazerem as coisas, substituindo autoridades por seu próprio arbítrio, baseada na ciência, no crescimento econômico, na democracia ou na lei (LYON, 1998). Contudo, Berman nos diz que a onda nos proporciona muito mais, haja vista que,

Com a Revolução Francesa e suas reverberações, ganha vida, de maneira abrupta e dramática, um grande e moderno público. Esse público partilha o sentimento de viver em uma era revolucionária, uma era que desencadeia explosivas convulsões em todos os níveis de vida pessoal, social e política. Ao mesmo tempo, o público

moderno do Século XIX ainda se lembra do que é viver, material e espiritualmente, em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro (BERMAN, 1986, p. 16).

É dessa intensa contradição vivida pelos indivíduos modernos no século XIX, de se sentirem cotidianamente vivendo em um mundo que ainda não se constituiu inteiramente moderno caracterizado como sensação de viver em dois mundos simultaneamente, que emergem as ideias de modernidade e de modernização, as quais caracterizarão, no século XX, a terceira e última fase da modernidade (BERMAN, 1986). Trata-se da expansão do processo de modernização, no século XX, guiado por meio de uma escala que engloba todo o mundo, especialmente, a partir das transformações no âmbito da cultura, fundamentalmente associadas ao modernismo na arte e no pensamento do homem ocidental. Uma consequência da localização ocidental dessas transformações foi o fato de que o Ocidente, fortemente contrastante com sociedades anteriores ou mesmo com outras sociedades, tornou-se o modelo de modernidade, ou seja, modernizar era ocidentalizar-se (BERMAN, 1986; KUMAR, 1997), e isso, de certo modo, é visto também entre os pensadores sociais brasileiros no século XIX, quando a preocupação central é nos colocar em compasso com o ritmo das sociedades europeias. A consequência disso é a rejeição não apenas ao próprio passado, mas, também, a todas as outras culturas que não se mostram à altura de sua autocompreensão. O fato de que o Ocidente se transforma em uma espécie de modelo de modernidade tem consequências fundamentais em relação às noções de nacionalidade e de identidade nacional, devido, em parte, à suposta legitimidade existente em um dos aspectos que caracterizam o conceito, ou seja, sua doutrina da universalidade cultural. Isso acontece tanto em termos da tipificação de seu conteúdo quanto das suas consequências para o que se compreende contemporaneamente por pós-modernidade. Trata-se, pois, de: uma generalizada euforia do poder devida tanto à emancipação providenciada pelas potencialidades de vida sugeridas pela ciência e pela técnica - filhas gêmeas do iluminismo -, quanto à emancipação de fato, advinda de um sentimento de otimismo, segurança e orgulho que a Europa vivia. O bem-estar das potências europeias repousa, nesse período, na consolidação do neoimperialismo colonial e na crença na ciência definitiva cada vez mais próxima das leis inabaláveis do universo (SEIDEL, 2001, p. 25).

De fato, é justamente em relação a esse aspecto que se percebe a grande contradição do conceito e o porquê de haver a necessidade de se efetuar uma releitura do impacto que os efeitos da ideia de modernidade tiveram sobre o pensamento social do século XIX, em que se acreditou estar configurando e encerrando uma espécie de avaliação definitiva sobre o melhor

modo de se viver em sociedade, haja vista que, do ponto de vista dessa concepção, ser moderno é

encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: neste sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia (BERMAN, 1986, p. 15).

Ainda que essa caracterização histórica se apresente de modo bastante útil, do ponto de vista analítico, não parece suficiente. Como nos diz o próprio Sztompka (1998, p. 134), “definir um cavalo apontando para um animal que pasta na campina não desobriga os zoólogos de esforços analíticos mais profundos”. De fato, vários autores se preocuparam em desenvolver modelos que fossem capazes de explicar as transformações sociais do período, unindo aos aspectos gerais já mencionados análises mais sofisticadas sobre as mudanças percebidas tanto no âmbito das relações institucionais entre empregado-empregador, por exemplo, quanto no âmbito mais privado das relações humanas. Um dos primeiros a indicar aspectos que pudessem tipificar o período moderno foi Augusto Comte (1798-1857). De acordo com Ribeiro Júnior (2003), Comte indicou algumas características acerca da “nova ordem social”, a saber: a concentração da força de trabalho nos centros urbanos; a organização do trabalho guiada pela eficácia e pelo lucro; a aplicação da ciência e da tecnologia à produção; o surgimento de um antagonismo latente ou manifesto entre patrões e empregados; os contrastes e as desigualdades sociais crescentes e, por fim, a existência de um sistema econômico com base na livre empresa e na competição aberta. Outros autores, baseando-se especialmente em concepções evolucionistas vigentes da época e também em uma forma de perceber esse processo histórico a partir do contraste entre imagens da modernidade e da sociedade tradicional pré-moderna, produziram uma série de leituras ou interpretações sugerindo modelos polares ou dicotômicos. Podem ser mencionados os modelos propostos por Herbert Spencer (1820-1903), opondo o que ele denominou de sociedade militar e sociedade industrial; pelo sociólogo alemão Ferdinand Tönnies (18551936), entre comunidade e sociedade; pelo próprio fundador da sociologia Émile Durkheim (1858-1918), entre solidariedade mecânica e solidariedade orgânica; por fim, talvez a mais completa e sistemática tipologia da modernidade, a elaborada por Max Weber (1864-1920), que opõe a sociedade agrária tradicional à sociedade capitalista.

Enfim, inúmeros são os modelos e diversos são os conteúdos que os constituem. Contudo, não há dúvida em relação à extensão e à amplitude dos efeitos que transformaram a vida cotidiana dos indivíduos. Ver-se-á, mais adiante, uma espécie de esquema produzido com o objetivo de apresentar uma visão heurística de entendimento desse período histórico que ainda ecoa nas inquietações diárias do homem contemporâneo. Isso será realizado em três capítulos que apresentaram, no primeiro, uma caracterização geral da ideia de moderno, uma espécie de complemento à introdução; no segundo capítulo, perspectivas teóricas que procuram explicar a falência do moderno e a emergência de um mundo pós-moderno e, finalmente, o terceiro capítulo é destinado a apresentar algumas das consequências dessa conversa sobre as ideias de escola e educação, destinando atenção especial à juventude e a ideia de política pública.

CAPÍTULO 1: O PROBLEMA DA ORDEM NA MODERNIDADE

1. 1 DA DESORDEM À ORDEM: o olhar sociológico ou como organizar o caos...

a divisão do trabalho não é específica do mundo econômico: podemos observar sua influência crescente nas regiões mais diferentes da sociedade. As funções políticas, administrativas, judiciárias especializam-se cada vez mais. O mesmo ocorre com as funções artísticas e científicas. Estamos longe do tempo em que a filosofia era a ciência única; ela fragmentou-se numa multidão de disciplinas especiais, cada uma das quais tem seu objeto, seu método, seu espírito. Emile Durkheim (1995, p. 2).

Não é fácil discernir a modernidade, esse longo período histórico, a partir de algumas poucas categorias, mas é papel da sociologia procurar analisar e ampliar a sua compreensão da realidade constituída em conceitos passíveis de entendimento por seus pares, mas também por indivíduos comuns. Além dos modelos clássicos mencionados na Introdução, inúmeros outros poderiam ser citados, todos relevantes para se estabelecer um esquema relativamente organizado para ser possível pensar a modernidade. Ademais, creio ser necessário delimitar uma perspectiva teórica que possibilite fornecer os elementos que, na atualidade, tenham se tornado, consensualmente, essenciais para poder-se olhar, reflexivamente, os efeitos que a modernidade exerce sobre o entendimento do mundo contemporâneo. Kumar (1997), seguindo a estratégia de construir modelos polares anteriores, como o do próprio Max Weber, acrescenta observações empíricas que acabam por sintetizar as tipologias anteriores e nos auxiliam a entender o que caracteriza o período moderno, haja vista que os elementos identificados por ele parecem aproximar-se do que se pode chamar de certo consenso na sociologia atual (SZTOMPKA, 1998). Associando-se a tipologia de Kumar à argumentação, sobre questão semelhante de outros autores contemporâneos que se debruçaram sobre a natureza da modernidade e, especialmente, sobre as suas consequências, talvez seja possível constituir a forma necessária para compreender, do ponto de vista teórico, certas fundações orgânicas da modernidade. Kumar, em seu modelo, destaca um conjunto de cinco princípios ou fundamentos que, segundo ele, seriam os princípios organizadores do período moderno, aqueles que definem a sua estrutura. Esses princípios, de acordo com o autor, são: o individualismo, a diferenciação, a racionalidade, o economismo e a ideia de expansão (KUMAR, 1997). De modo sucinto, caracterizarei cada um deles e, concomitantemente, sugerirei o seu reflexo em alguns subdomínios da vida social cotidiana. O primeiro dos princípios ‒ a noção de individualismo ‒ abrange, segundo Steven Lukes (1996), uma enorme quantidade de ideias, doutrinas e atitudes, igualmente adquirindo

variabilidade de acordo com a sua apreensão em determinados países europeus, tendo como fator aglutinador a atribuição de centralidade ao indivíduo. A princípio, sua origem pode ser atribuída ao século XIX, no período pós-revolucionário francês, significando a ideia de dissolução dos laços sociais, o abandono pelos indivíduos de suas obrigações e certos tipos de compromissos sociais (BERMAN, 1986). Na Alemanha, por outro lado, a expressão esteve associada ao romantismo e tendia a significar o culto do caráter singular e da originalidade do indivíduo como também a emergência da individualidade, traduzida na interpretação do sociólogo alemão George Simmel a respeito da intensificação da vida nervosa no mundo moderno (WAIZBORT, 2000). Por fim, em terras inglesas, o significado do termo contrastava com a ideia de coletivismo. Tipicamente, também foi associado às virtudes da autoconfiança, na esfera da moral e, nas esferas econômica e política, aos princípios do liberalismo. Daí talvez seja possível extrair uma síntese dos diversos usos, salientando o fator mais importante: a ideia de que, na modernidade, o indivíduo depara-se com a possibilidade de se deslocar fisicamente, desvinculado de regras de autoridade que regem as coletividades sociais, associando-se, assim, a grupos e tomando decisões de acordo com a sua própria vontade e circunstâncias (GIDDENS, 1991), invertendo, assim, por completo a própria noção de indivíduo:

A identidade e o destino pessoal e coletivo se articulavam, assim, à situação de trabalhador de um local e de um senhor de terras que exercia efetivo poder de vida e de morte sobre seus subordinados, com a contrapartida de aparecer amiúde como seu compadre. Isso na verdade não diferia muito, ao menos nesse aspecto, de outras formas de trabalho, como aquelas que os camponeses do feudalismo e de outros tipos de servidão, de caráter coletivo, conheceram ao longo da história. Essa estabilidade se encontra também em profissões de caráter artesanal, que de modo geral são herança e obrigação que passavam ao longo de gerações (DOMINGUES, 1999, p. 23).

Isso significa dizer que, aos poucos, a modernidade foi rompendo com este tipo de relação, abrindo espaço para os inúmeros deslocamentos possíveis, cuja menção já foi efetuada, e para o consequente desencaixe do indivíduo em relação a essa estabilidade que identifica o cotidiano no período pré-moderno. Hoje, as pessoas se encontram muito mais flexíveis em relação às suas escolhas e possibilidades de vida independente de sua relação familiar, afetiva ou religiosa. A noção de diferenciação, segundo os princípios sugeridos por Kumar, ainda que tenha, dentro da literatura sociológica, uma história recente (LASH, 1997), diz respeito, de

modo geral, a um processo social identificado em sociedades ou espécies de sociedades particulares que têm sido objeto de comentários por parte de filósofos, mestres religiosos e pensadores políticos ao longo dos séculos. Trata-se de um conceito que se refere ao reconhecimento e à constituição como fatos sociais de diferenças entre grupos ou categorias particulares. De modo geral, várias espécies de diferenciação podem ser identificadas, dentre elas destacamos: a diferenciação entre os sexos, entre grupos etários, étnicos e linguísticos, entre categorias profissionais e entre classes e grupos de status. Contudo, na literatura sociológica, o conceito de diferenciação esteve historicamente associado às interpretações relativas à modernidade, conquistando sistematicidade nas obras de Herbert Spencer (1820-1903), Karl Marx (1818-1883) e, especialmente, na sociologia clássica de Émile Durkheim (1858-1917), a partir do momento em que se encontrou associada ao desenvolvimento econômico e à ideia de divisão do trabalho. Também foi definido por Durkheim como a fonte do individualismo que caracteriza as sociedades modernas, uma vez que houve um desmembramento de efeitos nos estilos de vida dos indivíduos, não apenas restringindo a sua influência ao âmbito do trabalho. Daí a confirmação de que o conceito é um processo que pode ser identificado, especialmente, na esfera do trabalho e, contemporaneamente, na esfera do consumo, o qual diz respeito, primeiro, à constante necessidade de especialização que é imposta ao sujeito no âmbito profissional e, segundo, à grande possibilidade de escolha que se encontra atrelada ao consumo. Ambos os fatores levaram a consequências impensadas em épocas anteriores relativas à educação, à carreira profissional e aos estilos de vida possíveis. No século XX, em razão das consequências das revoluções industriais, da exacerbação do processo de globalização e também do que Octavio Ianni denominou de a nova “divisão transnacional do trabalho” (IANNI, 1996, p. 1), outras formas de diferenciação social têm conquistado proeminência no pensamento social. A de gênero e identidade e, especialmente, a de raça, origem étnica ou nacionalidade são, sem dúvidas, as mais relevantes. O terceiro dos princípios mencionados ‒ a noção contemporânea de racionalidade ‒ trata-se de um conceito, muitas vezes, ambíguo, compartilhando tal dificuldade de precisão conceitual com outros termos similares, por exemplo, as noções de racionalização e racionalismo. Contudo, creio que essas expressões tornaram-se gradualmente mais citadas na história da ciência a partir do momento em que se atribui importância ao indivíduo e ao poder da mente humana, veiculada pela redefinição da ideia de razão na modernidade, de discernir as teias que estruturam o mundo.

De fato, geralmente, os primórdios do uso da noção de racionalidade podem ser associados à declaração Iluminista clássica de que a mente e a sociedade humana são tão racionais quanto às outras operações da natureza e tão sujeitas, quanto estas, à razão científica. Trata-se de uma mudança em termos de procedimentos teóricos e metodológicos utilizados para se conhecerem o mundo e o universo, que caracteriza o que hoje se entende pela ideia de ruptura instituída na história do pensamento ocidental pela modernidade. Essa ruptura se efetiva por meio do pensamento galileico, rompendo com o dualismo, típico do pensamento antigo, que tratava os conteúdos e as possibilidades de entendimento do mundo celeste e do mundo terrestre como dissociados. Do ponto de vista analítico, a modernidade unifica o universo pela afirmação de que as mesmas leis que regulam os corpos celestes igualmente regulam os eventos que ocorrem na Terra. A consequência imediata desse processo é o desenvolvimento das ciências físiconaturais e a própria reificação do homem e de suas produções socioculturais. Isso, de tal modo que as categorias de racionalidade e de racionalização, de acordo com alguns dos principais cientistas sociais modernos, tornam-se fundamentais para se entenderem as transformações que ocorrem nesse período, especialmente na teoria da modernidade desenvolvida por Max Weber (1864-1920). Aludindo a Weber, Julien Freund (2000, p. 19) propõe que “a racionalização, como ele, por vezes, associava à noção de intelectualização, seja o resultado da especialização científica e da diferenciação técnica peculiar à civilização ocidental”. Do ponto de vista weberiano, a abrangência no cotidiano desses conteúdos é imensa:

O método de laboratório do cientista, o livro razão de lucros e perdas do capitalista, as regras e distinções do burocrata dentro da organização, tudo atesta o significado da racionalização. Esse cálculo cuidadoso criava o controle, era um meio para o domínio. Podia-se domar a natureza, tornar dóceis os trabalhadores, equiparar os lucros e perdas nos livros e conter a complexidade, tudo pela aplicação da ferramenta da racionalidade (LYON, 1998, p. 42).

De fato, a ideia de racionalidade também pode ser vinculada ao papel privilegiado que a ciência conquistou no período moderno e, também, ao seu caráter universalizante, tendo afetado especialmente o âmbito do trabalho, como ressaltam Durkheim (1995) e o próprio Weber, ao enfatizar a diferenciação técnica. Nesta, as ideias de despersonalização e organização racional do trabalho, em seu âmbito institucional, são fundamentais. O quarto princípio ‒ a noção de economismo ‒ diz respeito ao papel fundamental que a atividade econômica, os objetivos econômicos e os critérios econômicos de realização tendem a tomar, na esteira do desenvolvimento do modo de produção capitalista no século

XIX, superando preocupações com família, parentesco, política ou guerras, todas tornadas menos importantes. É importante ressaltar que não se trata de identificar um único fator como sendo determinante, uma vez que a própria noção de guerra e o seu caráter industrial transformam-se em um dos aspectos institucionais fundamentais para se entender a modernidade (GIDDENS, 1991), mas enfatizar que a vida, na modernidade, passa a ser gerenciada, quase sempre, pelos aspectos constituintes do princípio do economismo - o trabalho e tudo que envolve lucro e força de trabalho são as dimensões centrais. O quinto e último dos princípios sugeridos, que nos possibilitam um entendimento da caracterização geral da modernidade sem, necessariamente, adotar uma teoria explicativa sobre os processos que a tipificam, relaciona-se com a noção de expansão. Trata-se de uma das características centrais da modernidade que tem nos processos de colonização e de globalização os seus protótipos e o seu clímax no período que convencionalmente se denomina de era do imperialismo:

A expansão, como objetivo permanente e supremo da política, é a ideia central do imperialismo. Não implica a pilhagem temporária nem a assimilação duradoura, características da conquista. Parecia um conceito inteiramente novo na longa história do pensamento e ação políticos, embora na realidade não fosse um conceito político, mas econômico, já que a expansão visa ao permanente crescimento da produção industrial e das transações comerciais, alvos supremos do século XIX (ARENDT, 1989 [1951], p. 155-156).

A ideia, inevitavelmente, encontra-se associada à noção de colonialismo, a qual designa a ocupação, pela força e em longo prazo, por parte de um país metropolitano, de qualquer território fora da Europa ou dos Estados Unidos. Expandir-se, conquistar territórios, certamente, não se trata de um privilégio contemporâneo. Contudo, a Europa moderna caracteriza-se por ter sido o maior investidor nessa prática nos últimos cinco séculos, chegando ao ápice em fins do século XIX, especialmente na década de 1880. Entretanto, a ideia de expansão teve muito mais implicações do que se supõe apenas derivando as suas consequências da ênfase depositada na esfera econômica: isso porque ela invade e expande os seus conteúdos não apenas geograficamente, mas penetra, na esteira dos princípios modernos de racionalidade e universalismo, a cultura das coletividades sociais, em uma tendência homogeneizadora gradualmente crescente. É como se o mundo fosse ficando cada dia mais igual. De certo modo, o século XX expeliu essas inquietações na forma da constituição de um imenso cenário de problemas sociais, econômicos, raciais e identitários que, de certa forma, têm origem na ideia de expansão típica do período moderno.

Bem, considerando que já se tem uma visão razoavelmente definida de alguns dos fundamentos que identificam a modernidade, é necessário, agora, compreender em que medida as mudanças em relação a esses conteúdos trouxeram implicações relativas à ressurgência de questões vinculadas à formação de um ethos profundamente localizado nos mais diversos espaços da cultura contemporânea, especialmente no que diz respeito às novas formas de educação.

1.2 DESCONSTRUINDO A MODERNIDADE: CRÍTICAS E POSSIBILIDADES...

O presente está sempre querendo o que o torna feio, abominável e insuportável. O presente é obsoleto. É obsoleto antes de existir. No momento em que aterrissa no presente, o ansiado futuro é envenenado pelos eflúvios tóxicos do passado perdido. Seu desfrute não dura mais que um momento fugaz, depois do qual (e o depois começa no ponto de partida) a alegria adquire um toque necrofílico, a realização vira pecado e a imobilidade, morte. Zygmunt Bauman (1999, p. 19).

Embora existam divergências em relação ao que se entende por modernidade, não há qualquer ausência de consenso tanto na literatura científica quanto nas representações que o homem comum tem sobre o seu cotidiano, em relação ao fato de que o seu dia a dia tem sido modificado em um ritmo bastante diferente do observado em civilizações pré-modernas. Ou seja, do ponto de vista sociológico, parece haver uma espécie de mudança estrutural que tem transformado as sociedades modernas no final do século XX (HALL, 1998). Uma das consequências dessas transformações é o fato de que alguns autores, autointitulados ou, muitas vezes, intitulados à sua revelia, de pós-modernos, associam essa mudança à existência de outro mundo. Isso, de tal modo que os princípios essenciais que regem o período moderno são questionáveis, tendo início logo na própria concepção de história e de tempo que subjaz à modernidade (KUMAR, 1997). Inversamente, em Gadamer (1997), a noção de diálogo, que efetivamente solda o significado da relação passado-presente-futuro, tem valor essencial, no sentido de que se torna impossível pensar sobre o presente que se compartilhe da existência de um diálogo inevitável com o passado, visto que um conceito não exprime uma essência, mas apenas a história. Contudo, isso não deve implicar a associação desse diálogo à ideia de que a história chegará a um fim, que esse diálogo com o passado permitirá que se percorra um caminho cujo objetivo seria corrigir as frustrações do passado. Mas não posso deixar de concordar com certo caráter

ético que conduz esse movimento. Nesse sentido, percebo com bastante proficuidade a concepção de Bauman de que a modernidade é sisífica2, e é essa inquietude que envolve passado, presente e futuro que toma o aspecto de progresso histórico. Na verdade, a concepção ressaltada acima já se encontra presente em fins do século XIX e também na primeira metade do século XX, em autores que se inquietaram com o esforço do intelecto moderno de exterminar a ambivalência, a incerteza, o diálogo, como o importante pensador alemão Walter Benjamim (1892-1940) que, em seu hoje clássico Sobre o conceito de história, salienta:

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. [...] O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (BENJAMIM, 1994, p.224-225).

De fato, diferente do que pensavam filósofos e políticos modernos quando partilhavam de um ideal em que as ideias e os princípios mencionados acima levariam a vida humana a um estágio mais avançado e melhor de desenvolvimento, as transformações percebidas em nossa época evidenciam que os pilares de sustentação do mundo moderno, vistos anteriormente, parecem ruir: é o fim da belle époque, restando apenas sobras de uma época de crise que identificaria a angústia do projeto:

O final brusco e violento da belle époque, coroamento de um processo de quatro séculos de história, trouxe consigo a agonia dessa visão do mundo chamada modernidade, agonia que vivemos agudamente no presente, e cujo outro nome é, precisamente, a crise do Século XX, primeiro capítulo de uma era de incerteza que está, apenas, começando (KUJAWSKI, 1991, p. 14).

Essa percepção diferenciada do que se denomina modernidade não passou completamente ausente na obra de clássicos analistas da ideia, por exemplo, Marx, Durkheim, 2

Bauman se inspira do mito de Sífico que foi objeto de um clássico ensaio filosófico escrito pelo francês Albert Camus, em 1941. No ensaio, Camus introduz sua filosofia do absurdo: o do homem em busca de sentido, unidade e clareza no rosto de um mundo ininteligível desprovido de Deus e eternidade. Será que a realização do absurdo exige o suicídio? Camus responde: "Não. Exige revolta". Ele então descreve várias abordagens do absurdo na vida. O último capítulo compara o absurdo da vida do homem com a situação de Sísifo, uma personagem da mitologia grega, condenado a repetir sempre a mesma tarefa de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, sendo que, toda vez que estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível, invalidando completamente o duro esforço despendido.

Benjamin, Baudelaire, Dostoievski, Weber e Simmel, alguns deles fundamentais para a tradição sociológica. Este último é considerado consensualmente “o sociólogo por excelência da modernidade, no sentido em que Baudelaire a entendia” (VANDENBERGUE, 2005, p. 44). David Lyon, em sua análise da modernidade ora utilizada, ressalta que as primeiras análises sociais emitiram notas de advertência e preocupação. No mundo da produção, Marx encontrou capitalistas exploradores e trabalhadores alienados. Durkheim detectou uma profunda sensação de ansiedade, de incerteza com relação ao andamento das coisas, entre os afetados pelas novas divisões do trabalho. Weber temia que a racionalização talvez abatesse o espírito humano, trancafiando-o na jaula burocrática. Simmel sentiu que a sociedade de estranhos produziria novo isolamento e fragmentação social. E assim por diante. Nas décadas finais do século XX, quando a realidade comprovou essas premonições sociais científicas, a modernidade foi vista como uma confusão (LYON, 1998, p. 48). Além desses autores, cuja proeminência na sociologia clássica é indiscutível, não é possível deixar de mencionar dois dos mais importantes pensadores ocidentais que, sem dúvida, constituem o seleto grupo de críticos da modernidade e progenitores do conceito de pós-modernidade: Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Martin Heidegger (1889-1976). Nietzsche, por meio da introdução da noção de niilismo, traduz, naquele contexto, o que, nos dias de hoje, se entende por uma crítica aos conceitos de verdade e de racionalidade do modo como a tradição Iluminista nos legou, opondo a eles a ideia de que a realidade não é unívoca e que à razão Iluminista opõem-se os sistemas de persuasão, cujo objetivo definitivo seria a solidificação de metáforas por um determinado grupo social. Heidegger, por seu turno, além das contribuições para a teoria, já mencionadas em seu livro Ser e Tempo, publicado há 80 anos, dedica-se a entender também as transformações modernas por meio da filosofia da diferença presente em Nietzsche, mas, ao invés de uma crítica à verdade, aprofunda e desloca o alvo de seu questionamento em direção à constatação de que a diferença é constituinte do Ser. Ou seja, o erro da filosofia até então, segundo Heidegger, é a focalização na verdade ao abordar a relação entre os seres, porque o foco deveria ser a sua existência prévia (HEIDEGGER 1998 [1927]; LYON, 1998). No âmbito da sociologia contemporânea, talvez as mais importantes teorias sobre a modernidade e as suas consequências sejam as de Anthony Giddens e Jürgen Habermas. Além disso, é relevante também considerar que não há consenso na teoria social em estreitar a relação entre a mudança percebida na contemporaneidade e a pertinência do uso da expressão pós-moderna para caracterizá-la. Nesse sentido, antes de iniciar a apresentação do que

realmente significa esse pós e quais as relações possíveis com a educação, apresentarei a Teoria da Modernização Reflexiva de Anthony Giddens e algumas de suas implicações para o fazer educativo. É curioso e, ao mesmo tempo, importante comentar que a inserção desses autores como precursores da ideia de pós-moderno dá-se a sua revelia e apenas ocorre para fins de consecução da heurística dessa seção. Isso porque, por exemplo, o próprio Anthony Giddens, sociólogo que se contrapõe claramente ao pós-modernismo, posicionando-se em torno de uma postura racionalista, mais próxima a Habermas (1990), argumenta que em Nietzsche se pode encontrar a origem de seu projeto de radicalização da modernidade. Foi o filósofo alemão um dos que chamou a modernidade à razão, “mostrando que o próprio Iluminismo era um mito, formulando perguntas inquietantes sobre o conhecimento e o poder”. Para ele, nos dias de hoje, “a modernidade tem sido obrigada a ‘tomar juízo’” (GIDDENS, 1997, p. 74).

1.3 A MODERNIDADE RESISTE, REFLEXIVAMENTE...

Os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que não têm precedentes. Tanto em sua extensionalidade quanto em sua intensionalidade, as transformações evolvidas na modernidade são mais profundas que a maioria dos tipos de mudança características dos períodos precedentes. Sobre o plano extensional, elas serviram para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo; em termos intensionais, elas vieram a alterar algumas das mais íntimas e pessoais características de nossa existência cotidiana. Anthony Giddens (1991, p. 14).

A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter. Anthony Giddens (1991, p. 45)

Como é perceptível, há uma diversidade de concepções relativas à modernidade, que sugerem aspectos tanto positivos quanto negativos a ela associados. Essa é a razão da sua ambivalência tanto no que diz respeito ao diagnóstico quanto ao prognóstico possível. Por exemplo, poderíamos aqui mencionar as críticas apresentadas por Zygmunt Bauman (1999),

com base na ideia de autodestruição da humanidade, bem como outras noções que postulam a necessidade de retorno a formas tradicionais da vida social ou, ao contrário, sugerem a impossibilidade de retroação da sociedade e a necessidade de construção de um novo tipo de sociedade pós-moderna (SZTOMPKA, 1998; LYON, 1998). Giddens (1991 [1990]; 1997 [1995]), sociólogo inglês de extrema importância na contemporaneidade, tanto do ponto de vista teórico quanto no que diz respeito ao seu papel na política europeia recente, aborda a modernidade como um período de constantes transformações que ele interpreta a partir das descontinuidades sociais que assinalam nas instituições modernas um aspecto singular, diferenciado das instituições de ordem tradicional. O caminho teórico traçado por Giddens apresenta dois aspectos centrais: a sua Teoria da Estruturação Social e a Teoria da Modernização Reflexiva, esta última mais atrelada à interpretação particular relativa à modernidade. Elaborada com a intenção de superar limitações do Funcionalismo e do Estruturalismo, a Teoria da Estruturação Social de Anthony Giddens apoiou-se em ideias oriundas de diversas fontes, especialmente as da sociologia interpretativa. Enquanto o pensamento funcionalista, ancorado na biologia, tomava essa ciência como a mais compatível com as ciências sociais para conceituar a estrutura e o funcionamento dos sistemas sociais, e o pensamento estruturalista se fixava em estabelecer relações de cunho cognitivo entre as ciências sociais e naturais, Giddens (1989). Apoiado na sociologia interpretativa, essa perspectiva de análise sociológica buscava, prioritariamente, compreender as ações dos indivíduos. Contrapondo-se à exacerbada ênfase na ação ou na estrutura, a Teoria da Estruturação parte do princípio de que o domínio básico das ciências sociais está voltado para as práticas sociais ordenadas no tempo e no espaço. Nesse sentido, Giddens (1989) argumenta que as atividades sociais não seriam criadas pelos indivíduos, mas sim recriadas continuamente por eles e através dos meios pelos quais eles se expressam como atores. Esse processo ocorre mediante a recriação das ações, reproduzindo as condições necessárias que tornam possíveis tais atividades. A continuidade das práticas sociais presume reflexividade, porém, esta somente é possível a partir da continuidade de práticas que permanecem no tempo-espaço. A ação reflexiva é um processo que permite aos indivíduos monitorarem o fluxo contínuo de sua vida social. Essa monitoração está vinculada às intenções do ator, considerando, portanto, o ser humano como um agente intencional. Vale salientar que a ação intencional não corresponde ao acúmulo de motivos, mas, principalmente, ao controle das situações por meio da monitoração contínua de suas ações e das ações de outros. Desse modo,

as normas são tomadas como aspectos mutáveis, frente às quais os indivíduos podem tomar várias atitudes manipulatórias (Giddens, 1989). Considerando a capacidade de transformação dos indivíduos, Giddens (1989), em sua Teoria da Estruturação, situa a constituição da ação com base em três processos básicos: monitoração reflexiva, racionalização da ação e motivação da ação. A monitoração reflexiva refere-se à capacidade dos indivíduos para controlar uma situação; a racionalização encontrase vinculada às intenções do agente em obter um determinado resultado, e a motivação, diferente dos dois processos anteriores, não está necessariamente ligada à continuidade da ação, pois se refere, mais especificamente, ao potencial da ação. Isso quer dizer que, embora toda ação seja considerada intencional, os resultados nem sempre são os pretendidos, de modo que as consequências não premeditadas podem constituir um processo de retroalimentação para novos atos. Nessa perspectiva, ação envolve poder e poder, nesse caso, refere-se à capacidade de transformação dos indivíduos (poder do indivíduo). Giddens (1989) cita a monitoração reflexiva como um dos aspectos relevantes para a manutenção do controle da ação em seu contexto. Porém, o sentido que lhe é concedido na obra A Constituição da Sociedade não é o mesmo que Giddens dedica à noção de reflexividade em obras posteriores a essa clássica, a qual defino, a partir das palavras do autor, como o meio de filtrar as informações, que são constantemente renovadas e que servem de base para a transformação da vida cotidiana a partir de mudanças nas práticas sociais, por meio de ações criativas, transformando tais práticas com base no seu aspecto original frente às mudanças na sociedade. Os elementos constituintes da Teoria da Estruturação remetem à ideia de que a estrutura não detém caráter imutável, e as mudanças possíveis decorrem da ação dos indivíduos sobre a estrutura (e vice-versa) como sujeitos dotados de poder de transformação. Mais do que qualquer outro elemento da Teoria da Estruturação, a capacidade de transformação enquanto monitoramento reflexivo e contínuo da vida social representa um dos mais importantes aspectos para a sociedade moderna. A relevância da reflexividade na vida social moderna consiste na capacidade de analisar constantemente as práticas sociais e transformá-las com base em informações acerca delas. Essas transformações não têm um caráter definitivo para tais práticas, já que estas poderão ser reformuladas em momentos posteriores com base em novas informações. Como exemplo da necessária transformação das práticas sociais, as mudanças sociais observadas no cenário nacional, desde a abertura política, são suficientes para fundamentar hipóteses referentes às mudanças nas práticas sociais, por exemplo, do movimento estudantil e de outros grupos sociais que, no Brasil, se

constituíram no período pós-militar, formulando reivindicações e formas de participação social condizentes com um contexto sociopolítico baseado na democracia. Nesse sentido, a reflexividade constitui o aspecto dinâmico da vida social, tornandose cada vez mais imprescindível diante da necessidade de “adequação” e reformulação da prática social frente a alguns aspectos característicos da modernidade, como as mudanças e transformações sociais em curto espaço de tempo. É sobre esse aspecto que Giddens se debruça em seus últimos trabalhos, enfatizando a necessidade da reflexividade social no mundo moderno como um mundo globalizado caracterizado pelo movimento, pela incerteza e pelo risco social, conceitos fundamentais para a compreensão de suas ideias relativas à modernidade. Giddens (1991) considera a modernidade como um período caracterizado por um desenvolvimento social descontínuo, sendo, portanto, fundamental a compreensão da natureza das descontinuidades sociais para que se possa, de fato, analisar e entender a modernidade e suas consequências. A descontinuidade à qual Giddens se refere não está associada às descontinuidades típicas dos períodos de transição (como na passagem das sociedades tribais para as sociedades agrárias) nem ao que o materialismo histórico marxista considerou como ruptura de classe, mas ao conjunto de descontinuidades específicas associadas ao período moderno. Tais descontinuidades geraram e geram alterações tanto no amplo plano social quanto no plano pessoal. Para ele, a dinamicidade que caracteriza e distingue a sociedade moderna das tradicionais é consequência da separação do tempo e do espaço e da sua recombinação, que permite o estabelecimento de uma nova relação tempo-espacial na sociedade; do desencaixe dos sistemas sociais e da ordenação e reordenação reflexiva das relações sociais à luz da aquisição contínua de conhecimento, afetando as ações de indivíduos e grupos. A transformação na relação tempo-espaço como uma característica da modernidade ocasionou a independência destes dois núcleos ‒ tempo e espaço ‒ de tal modo que gerou o desenvolvimento de certo espaço vazio. Assim, a relação face a face nem sempre é necessária para a troca de informações, implicando, também, a interferência de relações distantes na dinâmica social de locais diversos sem, necessariamente, ter havido algum contato direto e presencial dos indivíduos de uma determinada sociedade com aquela geradora das informações que conduziram às transformações. O sociólogo inglês considera a separação tempo-espaço fundamental no processo dinâmico das sociedades modernas, por ser essa a condição principal do desencaixe, que ele define como “o deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua

reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (GIDDENS, 1991, p. 29). Esse deslocamento permite uma conexão entre aspectos locais e globais, resultando em uma maior abertura para as mudanças de hábitos locais. Ele distingue dois tipos de mecanismos de desencaixe: fichas simbólicas e sistemas peritos. As fichas simbólicas significam os meios de intercâmbio que circulam sem necessariamente revelar as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em uma situação particular (ex: o dinheiro). Os sistemas peritos se referem aos sistemas de competência profissional que organizam o ambiente material e social no qual nos inserimos (ciência). Embora o uso de determinadas tecnologias represente, simultaneamente, necessidade e risco: as pessoas aceitam o risco por acreditar na perícia de seu sistema (ex: uso de carros e elevadores, consulta médica). Nessa perspectiva, o mecanismo de desencaixe está vinculado à confiança, uma vez que, nesse processo, a separação tempo-espaço torna as relações sociais distanciadas, suscitando a necessidade de se confiar no desconhecido, mesmo considerando os riscos possíveis decorrentes da falta de conhecimento e/ou de controle acerca da situação/interação. A confiança, nesse contexto, funciona como um minimizador da sensação de perigo a que os indivíduos estão expostos (GIDDENS, 1991; 1997). Nos trabalhos mais recentes, Giddens (1991, 1993, 1997) enfatiza as transformações sociais ocasionadas pela mudança referente ao tempo-espaço, consequentemente, as relações sociais em nível global e a necessidade de os indivíduos se adequarem ao ritmo de transformação da sociedade moderna, fazendo uso de mecanismos, como o desencaixe e a reflexividade como características definidoras da ação humana. A reflexividade, embora esteja embasada no conceito de monitoração reflexiva, é definida de modo diferenciado, considerada na vida social moderna como um meio de filtrar as informações e transformar as práticas sociais a partir destas, seguindo um processo contínuo guiado pela renovação de informações. Trata-se da transformação da vida cotidiana com base em novas descobertas e da possibilidade de agir criativamente frente às mudanças, transformando-as com base no seu aspecto original. Embora o conhecimento reflexivo seja constituinte da modernidade, ele não remete à ideia de certeza, mas de revisão contínua e de transformação advinda dessa revisão. O acesso à informação, assegurado pelos diversos meios de comunicação e por meio dos resultados de estudos, fornece aos indivíduos a possibilidade de avaliar a vida social e de tomar essa avaliação como base para novos comportamentos e práticas sociais (GIDDENS, 1991 [1990]). Embora Giddens enfatize a confiança como elemento central do desencaixe, fundamental para a manutenção do equilíbrio entre as relações sociais a distância, não

podemos desconsiderar que eventos sociais como o ataque aos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001, as guerras e invasões de territórios e as constantes alterações na economia afetam, em maior ou menor grau, a confiança dos atores sociais. Tal confiança, necessária ao desencaixe, gera instabilidades, conflitos e oposição a projetos políticos e planos econômicos que representam ameaças à sociedade. É o que ele denomina de riscos globais. Um dos desdobramentos possíveis, em relação à educação, é concebê-la não mais como um processo cumulativo, uma vez que, em um mundo guiado por elementos de incerteza que o tempo todo nos fazem rever nossos procedimentos de análise, é necessária uma consciência crítica e reflexiva constante. Ou seja, a importância da revisão e transformação do conhecimento e das práticas nas sociedades modernas também deve remeter à organização e reorganização dos sistemas de regras e reorganização das relações sociais que, por sua vez, ampliam as possibilidades de reconstrução das velhas formas de conhecimento. A concordância relativa à ideia exposta por Ulrich Beck (1997), de que hoje vivemos em uma sociedade de risco, nos leva a compreender o aprendizado social moderno como uma reação dos indivíduos às incertezas. Nesse sentido, ele concebe as sociedades geradoras de risco como as que mais possibilitam aos sujeitos oportunidades de mudança. A sociedade de risco surge no decorrer dos processos de modernização, produzindo ameaças que nem sempre podem ser previstas pela ciência, ocasionando transformações nas relações da sociedade moderna com os recursos naturais e culturais; no relacionamento da sociedade, com ameaças geradas por ela, e no significado da coletividade e dos grupos. Assim, a necessidade de decisão, emergente dos riscos sociais, exige a constante revisão e reformulação das práticas sociais com base em novas informações. Já Giddens (1991), apoiado nesses aspectos, destaca a importância da reflexividade lembrando que, embora em diversas culturas a revisão e a transformação das práticas sociais, baseadas em novas informações, correspondam a uma rotina, apenas na modernidade, de modo radical, essa revisão pode ser aplicada a todos os aspectos da vida, igualmente aos tecnológicos. Sob essa perspectiva, a modernidade é constituída e constituinte do conhecimento reflexivo aplicado, apesar de esse conhecimento não se encontrar relacionado à ideia de certeza. De modo sintético, pode-se considerar a modernidade, do ponto de vista de Giddens, como um conjunto de elementos inter-relacionados do processo de globalização que, em seu desenrolar, estende as relações sociais, culturais, políticas e econômicas ao nível global, propiciando amplas influências no cotidiano das pessoas e, concomitantemente, exigindo

maior autonomia local; do risco, que surge de modo inevitável como consequência da ação humana e da imprevisibilidade dos resultados da operação dos “sistemas abstratos”, gerando, portanto, a incerteza como perda ou diminuição de garantias decorrentes de possíveis falhas nos sistemas abstratos na sua operação ou em seu projeto inicial; e da confiança enquanto meio de amenizar a sensação de perigo e a possibilidade de estabelecer relações cotidianas a partir dos sistemas abstratos, pautados na ausência de interação face a face (GIDDENS, 1991; 1997). Ou seja, um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo às ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial. Para Ulrish Beck: “isso levanta a questão da autolimitação daquele desenvolvimento, assim como da tarefa de redeterminar os padrões (de responsabilidade, segurança, controle, limitação do dano e distribuição das consequências do dano) atingidos até aquele momento, levando em conta as ameaças potenciais. Entretanto, o problema que aqui se coloca é o fato de estes últimos não somente escaparem à percepção sensorial e excederem à nossa imaginação, mas também não poderem ser determinados pela ciência (BECK, 1997, p. 17). Finalmente, diante de um cenário social constituído por constantes transformações, novas informações, riscos e incertezas, Giddens afirma que os indivíduos podem apresentar diversas reações de adequação ou ajuste às incertezas e aos riscos sociais, como: a) aceitação pragmática frente às tarefas cotidianas e repressão consciente da ansiedade; b) otimismo, crença na mudança e impedimento dos perigos por parte das divindades, da ciência e tecnologia ou da racionalidade humana; c) pessimismo cínico e hedonismo voltado para o aqui e o agora ou d) oposição às fontes de perigo, em geral, conduzida pelos movimentos sociais (SZTOMPKA, 1998).

CAPÍTULO 2:

NATUREZA E HISTÓRIA DA IDEIA DE PÓS-MODERNIDADE

2.1 SOBRE O PÓS-MODERNO: OS PRIMEIROS OLHARES E A AUSÊNCIA DE CONSENSO EM TORNO DE UMA IDEIA...

A sociedade pós-moderna se caracteriza por uma tendência global a reduzir as atitudes autoritárias e dirigistas e, ao mesmo tempo, aumentar a oportunidade das escolhas particulares, a privilegiar a diversidade e, atualmente, a oferecer fórmulas de programas independentes nos esportes, nas tecnologias psicanalíticas, no turismo, na moda casual, nas relações humanas e sexuais. Gilles Lipovetsky (2005. p.3)

De modo geral, a depender do autor, nós temos uma definição ou compreensão distinta do que se refere à ideia de pós-moderno. Obviamente, é importante ressaltar que esse não consenso é consequência da própria natureza dinâmica e conflituosa das ciências humanas, sempre guiadas por um entendimento complexo da vida humana. A nós cabe observa de que modo esse entendimento nos auxilia a compreender as coisas em nosso redor e como proceder em relação a isso, no nosso caso, em particular, refletir sobre as consequências desse entendimento em nossas práticas cotidianas. Ora, ainda que não tenhamos um consenso, é possível pedir auxílio a alguns autores. Fredric Jameson, um filósofo contemporâneo, define a pós-modernidade como a condição sociocultural e estética do capitalismo contemporâneo, também chamado de pós-industrial ou financeiro (JAMESON, 2007); outro autor, o filósofo francês Gilles Lipovestky (2005), afasta-se dessa dimensão econômica relativamente reducionista e afirma que vivemos em uma era do vazio, ressaltando as diversas possibilidades de vida na contemporaneidade. Enfim, trata-se de um termo que se tornou de uso corrente, mas bastante disputado, e a respeito do qual, teóricos e acadêmicos têm diferentes concepções. Percebe-se certa confusão, incompreensão ou perplexidade diante das mudanças na sociedade contemporânea. Para o crítico marxista norte-americano Jameson (2007), a ideia de Pós-modernidade pode ser compreendida com uma espécie de lógica cultural do capitalismo tardio, ou seja, uma lógica conservadora, incapaz de promover a transformação social. Com visão semelhante, mas escrevendo como filósofo, Jürgen Habermas (1990) também considera que a Pós-modernidade estaria relacionada a tendências políticas e culturais neoconservadoras, determinadas a combater os ideais iluministas e os de esquerda. Um dos pioneiros no uso do termo, o francês François Lyotard, falava da condição pós-moderna como aquela em que as metanarrativas modernas foram desacreditadas, em que a ciência não mais poderia ser

considerada como a fonte definitiva da verdade ‒ uma era em que o saber estaria novamente aberto e em permanente construção. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman é um dos principais popularizadores do termo nos meios acadêmicos e considera a Pós-modernidade como a consequência sociológica inevitável da modernidade ‒ uma realidade ambígua, multiforme, a que ele prefere chamar de líquida, à luz da clássica expressão marxista “Tudo o que é sólido desmancha no ar.” Há aqueles autores que preferem evitar o termo. Gilles Lipovetsky (2005), por exemplo, um dos expoentes da filosofia francesa atual, prefere o termo hipermodernidade, ao considerar que não houve uma ruptura com os tempos modernos, como o prefixo pós dá a entender. Ele considera que os tempos atuais são modernos, uma intensificação de características das sociedades europeias modernas, tais como o individualismo, o consumismo, a ética hedonista, a fragmentação do tempo e do espaço. A segunda metade do século XX assistiu a um processo sem precedentes de mudanças na história do pensamento e da técnica. Ao lado da aceleração avassaladora nas tecnologias de comunicação, de artes, de materiais e de genética, bem como da expansão humana, ocorreram mudanças paradigmáticas no modo de se pensar a sociedade e suas instituições. De modo geral, as críticas apontam para as raízes da maioria dos atuais conceitos sobre o homem e seus aspectos, constituídas no momento histórico iniciado no século XV e consolidado no século XVIII. A Modernidade que surgira nesse período é agora criticada em seus pilares fundamentais, como a crença na Verdade, alcançável pela Razão, e na linearidade histórica rumo ao progresso. Para substituir esses dogmas, são propostos novos valores, menos fechados e categorizantes. Uma vez adotados, eles serviriam de base para o período que se tenta anunciar no pensamento, na ciência e na tecnologia, de superação da Modernidade. Seria, então, o primeiro período histórico a já nascer batizado: a Pósmodernidade. Se os fatores determinantes forem infraestruturais, pode-se dizer que a Pósmodernidade começa com a passagem das relações de produção industriais para as pósindustriais, baseadas fundamentalmente em serviços e trocas de bens simbólicos ou abstratos, como a informação e a circulação de dinheiro nos caminhos virtuais da especulação financeira. Nesse caso, ela seria de distribuição desigual, realidade já presente em algumas regiões e ainda muito distante para outras, pois a organização das relações de produção não se dá de forma homogênea ‒ ainda ‒ em todas as partes do mundo. Contudo, se for a superestrutura que define as alterações, a Pós-modernidade nasce no processo de contestação das certezas metafísicas do pensamento moderno na segunda metade do século XX. Do fim da Primeira Guerra Mundial em diante, uma onda de

revisionismo e romantismo varreu o pensamento ocidental e cosmopolita. Gradualmente, cresceu a concepção de que nem o capitalismo seria demoníaco nem o socialismo seria libertador, ou vice-versa. Se fosse esse o caso, haveria uma pós à Pós-Modernidade, ou seja, deixaria de ser um conceito hipotético e passaria a ser uma configuração real da cultura. Não deve ser por acaso que as contestações relativistas tenham aparecido justamente nos mesmos países em que a economia caminhou para o estágio de produção pós-industrial. Na Europa Ocidental e na América do Norte, verificou-se o conjunto de fenômenos socioculturais que permitiram identificar os tais novos valores. Desde a década de 1980, desenvolve-se um processo de construção de uma cultura em nível global. Não apenas a cultura de massa, já desenvolvida e consolidada desde meados do século XX, mas um verdadeiro sistema-mundo cultural que acompanhe o sistema-mundo político-econômico resultante da globalização. A Pós-modernidade, que é o aspecto cultural da sociedade pós-industrial, inscreve-se nesse contexto como um conjunto de valores que norteiam a produção cultural subsequente. Entre esses, a multiplicidade, a fragmentação, a desreferencialização e a entropia que, com a aceitação de todos os estilos e estéticas, pretende a inclusão de todas as culturas como mercados consumidores. No modelo pós-industrial de produção, que privilegia serviços e informação sobre a produção material, a comunicação e a indústria cultural ganham papéis fundamentais na difusão de valores e ideias do novo sistema. Outra dimensão a ser apontada diz respeito ao caráter múltiplo e polissêmico dos objetos e o modo por meio do qual nós os representamos, em especial, a transitoriedade que caracteriza essa representação. Alguns denominam isso de crise. Vamos pensar então um pouco sobre essa dimensão. O que se denomina Crise da Representação, que assombra a arte e as linguagens no contexto pós-moderno, é um fenômeno diretamente ligado à destruição dos referenciais que vinham norteando o pensamento até bem recentemente. O registro do real (figurativismo) era o principal eixo da pintura até 1870, assim como do restante da arte, até o pós-guerra. Dali em diante, valoriza-se a entropia; tudo vale, e todos os discursos são válidos. O resultado disso é que não há mais padrões limitados para representar a realidade, o que provoca uma crise ética e estética. A justificativa para essa mudança pode ser mais objetiva: com a História apontando para a formação de uma sociedade global (nível macro), todas as visões de mundo préexistentes (nível micro) não poderiam ser descartadas, sob pena de excluir interessantes mercados consumidores do sistema-mundo capitalista. O pós-moderno, assim, pelo seu caráter policultural, sua multiplicidade, sua hiperinformação, serve bem à constituição de uma

rede inclusiva de consumidores. E dentro disso está inserida a dejeção dos referenciais de representação. E é justamente por causa desse aspecto que Fredric Jameson, anteriormente mencionado, associa a ideia de pós-moderno à lógica do capitalismo tardio. Trata-se uma espécie de forma que o capitalismo toma nos dias de hoje para assimilar as ideias de diferença e individualismo, traduzidas, de modo geral, na estrutura social do consumo de massa. Outra maneira de compreender o pós-moderno se encontra associada aos meios audiovisuais, os quais, de certo modo, também podem ser tratados na mesma lógica do capitalismo tardio empregada por Jameson. Utilizando-se da sua capacidade de atingir mais sentidos humanos (visão e audição, responsáveis por mais de ¾ das informações que chegam ao cérebro), eles têm um potencial mais rico e imediato para transmitir sua mensagem e sua visão de realidade. A literatura, a música e a poesia dependem de um grau mais alto de abstração e interação lógica com o intelecto, não obstante outras artes mais antigas já tivessem seus momentos de mescla entre ficção e realidade. É o caso, por exemplo, das pinturas rupestres das cavernas (que eram os próprios animais pintados, e não representações deles) ou da escultura das primeiras civilizações (que buscavam a própria forma do real). Hoje, entretanto, estão na esfera da arte ou ficção. Pode ser que, num futuro incerto, o homem ria do vídeo, perguntando-se como pôde um dia acreditar numa imagem formada por circuitos eletrônicos. Mas, até lá, continuará em dúvida sobre sua validação ou não como parte da realidade. Do ponto de vista estético, é possível identificar diferenças fundamentais em relação a tudo o que veio antes, incluindo todas as estéticas modernistas. Os próprios critérios-chave da estética moderna, do novo, da ruptura e da vanguarda são desconsiderados pelo Pósmoderno. Já não é preciso inovar nem ser original, e a repetição de formas passadas não é apenas tolerada, mas, também, encorajada (KUMAR, 1997). Entretanto, ainda que diversas obras estéticas, de diferentes categorias, apresentem características semelhantes e recorrentes, não parece correto nem possível falar de um estilo pós-moderno, muito menos de um movimento pós-moderno. Tais conceitos prescindiriam de certo nível de organização, articulação ou mesmo intercâmbio que simplesmente não existe entre os produtores de estética. Se foi possível falar em movimento modernista, isto é em virtude do fato de haver grupos relativamente próximos e em certa frequência de contato na Europa do início do século XX. Na Pós-modernidade, os artistas até têm maiores possibilidades de se comunicar, mas as incalculáveis tendências e linguagens postas em prática tornam impossível uma unicidade formal.

As similaridades estéticas entre os produtos provavelmente são consequência das condições de produção e de circulação, pois um dos efeitos sabidos da globalização é a homogeneização das relações de produção e dos hábitos de consumo. Daí advém o neohistoricismo (na verdade, um não historicismo, na medida em que desconsidera a História), que é a mistura de todos os estilos históricos em produtos sem período definido, é o fim da proibição, é a admissão de todo e qualquer produto, pois, se o processo de regulamento couber ao mercado, toda produção será considerada mercadoria.

2.2 SOBRE O PENSAMENTO PÓS-MODERNO: INTÉRPRETES E TENDÊNCIAS TEÓRICAS Há verdades e verdades. Embora o mundo esteja cheio de pessoas que andam por aí achando que sabem perfeitamente tudo a respeito de nós, o fato é que nunca se chega ao fundo daquilo que se desconhece. A verdade a nosso respeito é infinita. Tal como as mentiras. Preso entre uma coisa e outra, pensei. Philip Roth (2002, p. 398)

Charles Lemert (2000) identifica três conjuntos de teorias sociais atuais que refletem posições impositivas relevantes no tocante a um autoentendimento relativo à questão do pósmodernismo: o pós-modernismo radical, o modernismo radical e o pós-modernismo estratégico. A primeira vertente sugerida, o pós-modernismo radical, tem na teoria de Jean Baudrillard o seu principal referencial, embora possam ser associados a essa perspectiva outros dois autores tais como: Guy Debord e Jean François Lyotard, esse último autor de livro (hoje clássico) sobre a temática, A condição pós-moderna (1998 [1979]). Na perspectiva do pós-modernismo radical, a modernidade é uma espécie de discurso; trata-se de uma cultura que acredita em certas metanarrativas ou histórias amplamente partilhadas sobre o valor e a verdade da ciência e da própria verdade. O pós-modernismo radical postula que crenças como essas já não são consideradas completamente legítimas e, nesse sentido, não são universalmente tidas como críveis. Ou seja, as crenças totalizantes que alicerçam o mundo moderno, que têm sido as principais responsáveis pela sua estrutura e contextura, durante os últimos quatro séculos ‒ razão, ciência, nação, técnica, progresso, revolução ‒, hoje são consideradas falíveis, desestabilizando o mundo em que o homem habita (KUJAWSKI, 1991).

A teoria de Baudrillard, de certo modo, parece ir além dessa constatação e é, sem dúvida, por isso que a vertente é considerada radical, que a modernidade é uma coisa do passado, porquanto ele acredita que o mundo da cultura, hoje, se encontra completamente separado de toda base necessária na realidade. A vida social seria, em sua teoria, bem mais um espetáculo que simula a realidade do que a própria realidade. O homem viveria, do ponto de vista de Baudrillard, em uma hiper-realidade, em que a simulação da realidade seria mais real que a própria coisa (LEMERT, 2000). Um exemplo dessa ideia é afirmar que as réplicas, na Disneyworld da América mítica, são a coisa americana real – mais real que qualquer aldeia americana nos dias de hoje. Na segunda vertente ‒ a do modernismo radical ‒, situam-se alguns sociólogos contemporâneos: os integrantes da Escola de Frankfurt, especialmente Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas, além de Anthony Giddens e Pierre Bourdieu, já estudados no percurso anterior, podem ser considerados referências essenciais. De acordo com essa perspectiva, pós-moderno deveria referir-se a uma evidente ruptura com o moderno, o que, para ela, não estaria ocorrendo, confirmando-se apenas uma espécie de crise, termo cujo uso é bastante ressaltado em oposição à decadência, visto que este parece ser carregado de uma mística equivocada de volta à tradição ou de fim do mundo (KUJAWSKI, 1991, p. 84). O próprio Giddens (1991) utiliza a expressão radicalização da modernidade para referirse a mudanças que têm sido evidenciadas no interior desse período ainda em evidência. Duas críticas importantes, intrínsecas ao discurso modernista radical que, de certo modo, apresentam semelhanças com a vertente anterior, são: primeiro, a crítica à ideia de totalidade e às crenças totalizantes ressaltadas acima; segundo, a crítica ao essencialismo, ou seja, ao fato de a crítica do ideal de cultura que ele sustenta serem as diferenças sociais, no máximo, variações incidentais de uma única natureza humana, universal, verdadeira e essencial. Para Lemert (2000), os modernistas radicais acreditariam que essa crítica, embora sensível a importantes questões morais e políticas, é, em si, perigosa. Em vez disso, veem os tristes efeitos da totalização como um fracasso social sob certas condições históricas, mas não como falha inerente à própria modernidade. O essencialismo é um modo de pensar profundamente enraizado na tradição ocidental. Suas origens estão no pensamento e na filosofia gregos e, possivelmente, remontam ao pensamento indo-europeu. Na filosofia ocidental, a noção de essência surge junto à de existência. Poderíamos dizer, para dar uma definição simplista, que o essencialismo postula a primazia da essência (o que uma coisa é) sobre a existência (o fato de a coisa ser). Gênero, raça e nação, por exemplo, são desenvolvimentos modernos desse tipo de pensamento. Nesse

sentido, o fato de que alguém é negro ou branco, brasileiro ou alemão, homem ou mulher é muito mais significativo nesse tipo de pensamento do que sua existência concreta como um ser em mutação possuidor de múltiplas possibilidades. De certo modo, é essa forma de pensar que caracteriza o que se denomina mundo moderno ou modernidade. A crítica de Anthony Giddens situa-se mais estreitamente relacionada ao âmbito institucional. De acordo com ele, a ideia de pós-modernidade expressa o desenvolvimento de um novo e diferente tipo de ordem social (GIDDENS, 1991), cuja existência nos retiraria das instituições modernas, algo difícil de ser percebido. Em relação a esse aspecto, ele atribui às transformações contemporâneas, importante papel na constituição de uma tendência que conduza o homem a um autoentendimento da modernidade, ou seja, é “a modernidade vindo a entender-se a si mesma” (GIDDENS, 1991, p. 54). E essa nova ordem por muitos reivindicada, a era pós-moderna, ele situa no futuro, em um instante ainda por ser construído, caracterizada notadamente pela correção, controle e minimização dos riscos a ela inerentes, algo que deve ser concretizado por meio de um sistema ‘pós-escassez’, da desmilitarização, da humanização da tecnologia, bem como por uma maior participação democrática (SEIDEL, 2001). Nesse sentido, as críticas a algumas das categorias essencializadas que definem o percurso do pensamento moderno levam, nesse caso conceitual específico, à afirmação de que um tipo de unidade supõe que a sociedade civilizada deva ser inerentemente pluralista. Isso quer dizer que viver em conjunto, em tal sociedade, significa negociação e conciliação de interesses naturalmente diferentes e que é normalmente melhor conciliar interesses diferentes que coagir e oprimir indefinidamente. A terceira e última vertente, o pós-modernismo estratégico, reúne um conjunto de autores que são categorizados como pós-modernistas radicais. De modo geral, os mais correntemente inseridos nessa perspectiva são Michel Foucault, Jacques Derrida e Jacques Lacan. O fato de haver uma relativa distinção entre esses autores e os pós-modernistas radicais tem como consequência aproximá-los de uma abordagem moderna, como a veiculada nas obras de Giddens e de Bourdieu. Mas, afinal, o que distingue e aproxima esses autores? Na verdade, a expressão deriva de importante antologia publicada em 1967, denominada de The linguistic turn, ou a “virada linguística”, sob a responsabilidade do filósofo norte-americano Richard Rorty, que tem a sua obra como um dos principais horizontes teórico-metodológicos da atualidade, por um lado, centro dos debates em torno da natureza da epistemologia científica através do diálogo histórico instaurado pelo pragmatismo e, por outro, importante interlocutor a nas discussões referentes à democracia e ao liberalismo contemporâneo (SOUZA, 2005).

É possível dizer que há um compartilhar teórico nas obras de Foucault, de Derrida e de Lacan em relação a certos aspectos. A princípio, percebe-se um compromisso com a reinterpretação de pensadores sociais clássicos modernos, por exemplo, Nietzsche e Freud; segundo, a convicção de que a linguagem, ou discurso, é fundamental para toda ciência do humano, uma preocupação teórica na esteira da reviravolta linguístico-pragmática da qual fala Manfredo Araújo de Oliveira (1996) e, por fim, a rejeição de toda versão do ideal de uma essência, totalidade ou centros universais como base para o pensamento sobre o social (LEMERT, 2000, p. 66). Os dois primeiros aspectos são similares aos encontrados nas duas primeiras vertentes, porém, o último deles é aquele considerado distintivamente pós-moderno. Contudo, a diferença entre esses autores e os radicais encontra-se não na discordância existente entre eles, mas sim, no modo como abordam os temas da totalidade e do essencialismo, ou seja, os pós-modernistas estratégicos:

assumem uma postura com relação à cultura e à realidade do mundo mais modesta que os pós-modernistas radicais. Tal como os modernistas radicais, os pósmodernistas estratégicos preocupam-se menos com imaginar o novo mundo do que com repensar e reescrever a própria modernidade (LEMERT, 2000, p. 66).

Em relação a essa assertiva, é possível dizer que esses autores, do mesmo modo com que um Giddens ou um Bourdieu, alimentam-se de uma mesma preocupação, cujo eixo é pensar a modernidade e os processos que a constituem a partir dela mesma e de suas consequências sobre a contemporaneidade, divergindo apenas na postura tomada em relação ao problema. Os autores teórico-metodológicos da atualidade são, por um lado, centro dos debates em torno da natureza da epistemologia científica através do diálogo histórico instaurado pelo pragmatismo e, por outro, importantes interlocutores nas discussões referentes à democracia e ao liberalismo contemporâneos (SOUZA, 2005).

2.3 MODERNIDADE, PÓS-MODERNIDADE E EDUCAÇÃO: CONFRONTOS E PERSPECTIVAS PARA O SÉCULO XXI

As ordens racionais da vida moderna estão meio que rearranjadas de modos estranhos e incongruentes, que, não obstante, parecem normais apesar de sua anormalidade. Charles Lemert (2000, p. 42).

De acordo com o que foi observado até o momento, percebe-se a existência de certo consenso sobre o argumento de que, na atualidade, o mundo tem passado por uma série de modificações. Estas têm como uma de suas consequências mais destacadas o fato de que se percebe uma espécie de alteração da percepção do tempo histórico, especialmente em virtude da rapidez identificada no ritmo das mudanças, na rapidez e na velocidade que caracteriza o nosso mundo. Essa desorientação ou, então, quem sabe, esse excesso de orientação, haja vista a multiplicidade de intervenções teóricas no âmbito das ciências sociais, leva-nos a nos depararmos com uma série de expressões que têm como objetivo identificá-lo e personificálo. Ou seja, a ideia de que se vive, hoje, em sociedades pós-industriais, pós-revolucionárias, na sociedade da informação, pós-fordistas, pós-estruturalistas, pós-modernas etc., nos sugere que uma das características úteis para identificar essa desorientação ou descontinuidade que distingue as instituições sociais modernas das tradicionais seria, de fato, o acelerado ritmo associado a essas mudanças. Uma percepção que é consequência da própria variabilidade interpretativa associada à contemporaneidade e à transformação concomitante dessas mesmas análises em curto espaço de tempo. Um exemplo interessante desse ritmo de mudança se encontra associado à própria concepção giddensiana de interpretação do contemporâneo. De modo geral, gestada sob a égide do conceito de modernização reflexiva, cujo ápice se deu na década de 1990, envolta em um conjunto de teses que evidenciavam uma profunda renovação no interior das ciências sociais e, hoje, é percebida por alguns sociólogos como apresentando claros sinais de esgotamento (COSTA, 2004). Contudo, ainda que divergências sejam identificadas em relação a qual conceito, princípio ou elemento fundante seria o mais adequado para singularizar a contemporaneidade, creio que dois aspectos são tratados de modo similar. Em primeiro lugar, parece haver certo consenso, tanto na literatura mais especializada quanto nas representações, do homem comum acerca do mundo no qual ele se encontra, em relação ao fato de que a vida cotidiana tenha sido modificada em um ritmo bastante diferente do observado há poucos séculos. Essas transformações, às vezes, parecem tomar tamanha dimensão que levam alguns autores, autointitulados ou, muitas vezes, intitulados, à sua revelia, de pós-modernos, a associar essa percepção à própria existência, de fato, de outro mundo. Associado à ideia de que algo mudou, encontra-se, em segundo lugar, uma espécie de concordância, por vezes involuntária, em se tratar a modernidade ou o período moderno como eixo central para se compreenderem as transformações pelas quais transita o homem

contemporâneo. A importância atribuída à modernidade é evidente em autores reconhecidamente modernos, como o próprio Giddens, segundo o qual, nós deveríamos “olhar novamente para a natureza da própria modernidade a qual, por certas razões bem específicas, tem sido insuficientemente abrangida, até agora, pelas ciências sociais” (GIDDENS, 1991, p. 12). Outrossim, é também uma percepção partilhada e com a qual se identificam autores pós-modernos, como o próprio Charles Lemert, para quem é impossível falar de pósmodernidade e de suas teorias sociais sem falar também de modernidades (LEMERT, 2000). Depreende-se daí a complexidade teórica associada a toda uma diversidade de intervenções teórico-metodológicas que recaem sobre os conceitos em questão, que transitam desde concepções radicalmente modernas, como as de Anthony Giddens (1991) e Jurgen Habermas (1990), até perspectivas interpretativas fundamentalmente iconoclastas, como as de Jean Baudrillard. Trata-se, no entanto, para fins de articulação final, de esclarecer alguns elementos dessa contenda. É conveniente observar, agora, a distinção ressaltada acima, entre épocas, implícita nessas reflexões, a existência entre uma primeira e uma segunda modernidade. Seguindo a proposta analítica de Ulrich Beck (1997) podemos definir como Primeira Modernidade o período que se estende do início da modernidade industrial, entre os séculos XVII e XVIII, até o início do século XX, período em que domina a realidade do Estado nacional e cuja lógica vencedora é a do progresso, associada à ideia de controle (em primeiro lugar, sobre a natureza). Identidades e papéis sociais aparecem estreitamente interligados em seu interior, salvaguardados de quaisquer elementos de contingência. A Segunda Modernidade, ao contrário, a modernidade contemporânea, filha do sucesso do processo de modernização, parece cada vez mais governada por processos como a intensificação da globalização e dos mercados globais, o pluralismo dos valores e das autoridades, o individualismo institucionalizado. No plano cultural, parecem favorecidas as formas de identidade compósita, nas quais elementos globais e locais se misturam, impondo a convivência conflituosa entre diferentes imagens de si ‒ as identidades cosmopolitas (BECK, 1997). De acordo com simples observações efetuadas no cotidiano e não apenas derivadas de reflexões teóricas mais sofisticadas, essa modernidade caracteriza-se por uma dimensão de riscos, tanto globais quanto locais, mais específicos de biografias privadas. Em relação aos globais, é possível discernir crise ambiental e terrorismo internacional, ameaças econômicas (mas também, por exemplo, sanitárias) de tipo planetário e novas modalidades de

desigualdade social, a partir do empobrecimento crescente de áreas cada vez mais vastas do planeta e, associadas a esta última, novas formas de subocupação, com reflexos devastadores no plano existencial. Sobre os mais específicos, podemos observar as consequências derivadas da impossibilidade de emprego, diminuição em relação ao grau de instrução, ausência de acesso às diversas tecnologias, ausência de homogeneidade no tocante às definições de si mesmo ‒ somos isto ou aquilo de muitas formas e jeitos ‒ bem como determinadas patologias sociopsíquicas atreladas ao consumo excessivo. Nesse cenário, há cada vez menos espaço para dimensões como segurança, controle, certeza, todos os aspectos que contribuíram para definir o perfil social da primeira modernidade. Enquanto esta última pode ser, assim, considerada a expressão do projeto iluminista de superação da ideia de limite ‒ de qualquer limite, a partir daqueles ligados ao conhecimento ‒ a modernidade contemporânea obriga-nos a confrontar a impossibilidade da ideia de controle (LECCARDI, 2005). Se o futuro que a primeira modernidade observava era o futuro aberto, o futuro da modernidade contemporânea é o futuro indeterminado e indeterminável, governado pelo risco, pela incerteza e pela contingência. No âmbito das discussões sobre educação e a escola contemporâneas, essa ausência de controle e homogeneidade definitória e de falta de planejamento relativo ao futuro tem se tornado uma constante, levando alguns autores a dimensionarem a experiência do sujeito contemporâneo como uma espécie de sentimento de vazio. Nesse sentido, a condição sociopsíquica considerada predominante é aquela interpretada a partir da desvalorização do mundo público e a instabilidade da vida humana na contemporaneidade, através de uma apologia da intimidade (SENNET, 1998) ou como uma perda de sentido de si estável, uma espécie de deslocamento ou descentração do sujeito (HALL, 1998). Por outro lado, esse suposto vazio, na verdade, tem conotação positiva, pois se trata da ausência do excesso, do fim de ideologias universalistas, podendo, também, ser interpretado como uma consequência da degenerescência de metanarrativas (LYOTARD, 1998), conduzindo o cotidiano do sujeito, abrindo, assim, possibilidades para uma monitoração de nossas ações de modo mais autônomo: uma espécie de contradição em relação ao caráter essencialista da modernidade, abrindo espaço para se pensar uma nova escola, mais diversa e mais democrática. Como nos

diz o professor Juremir Machado da Silva, conduzido pelas ideias de Gilles Lipovetsky (2005), sobre o individualismo3 e a vida na contemporaneidade,

estamos menos carregados e mais livres, mais lúcidos e menos dependentes, mais exigentes e menos submissos, mais flexíveis e menos engessados por engrenagens de poder em nome de verdades que se apresentam como transcendentais ou universais, embora não passassem de formas locais de controle (SILVA, 2005, p. x).

Detenhamo-nos brevemente sobre essa dimensão, que se revela de uma importância estratégica para compreender o alcance das mudanças ocorridas na interpretação e no estranhamento do futuro. O risco aparece, nesse cenário, mais como resultado da perda de relação entre intenção e resultado e entre racionalidade instrumental e controle, do que, na acepção científica comum, como relação entre um evento e a probabilidade de que este ocorra. Enquanto, na primeira modernidade, o termo risco era substantivamente conceituado como uma modalidade de cálculo de consequências não previsíveis ‒ tratava-se, em suma, de tornar previsível o imprevisível mediante o cálculo probabilístico. Na modernidade contemporânea, a reflexão sobre os riscos impõe instrumentos conceituais de outra ordem. Esses riscos não parecem governáveis pelos métodos da racionalidade instrumental, são riscos de alcance global, e sua prevenção torna-se particularmente difícil. Uma espécie de realidade virtual, uma realidade in fieri, com caráter ameaçador, que envolve o futuro em um manto de pesada incerteza (LECCARDI, 2005). A peculiar incerteza que esses riscos geram está ligada, sobretudo, ao seu caráter humanamente produzido, resultado do crescimento do conhecimento que caracteriza nossa época. De fato, em uma época de riscos globais como a nossa, interrompe-se o imponente processo de colonização do futuro posto em marcha pela primeira modernidade. O futuro foge de nosso controle, com repercussões profundas nos planos político e social. A nova realidade produzida pela difusão de riscos globais transforma o futuro da terra prometida num cenário pintado com tintas foscas, se não abertamente ameaçadoras, para a existência coletiva. É importante ressaltar o vínculo estreito entre essa categoria particular de riscos e o futuro. Por sua própria constituição, com efeito, esses riscos são, por assim dizer, construídos e alimentados em sentido próprio pela relação com o futuro ‒ embora nada nos digam sobre o que, de positivo, devamos perseguir no futuro. Não nos falam de um bem, mas concentram a atenção exclusivamente sobre os males que o futuro pode difundir. A ideia de futuro a que 3

É importante lembrar que há diferenças entre as ideias de individualismo e de egoísmo. Muitas vezes, tratamos ambas como similares, mas elas não são.

conduzem é, portanto, não determinada e, ao mesmo tempo, marcada por um sentimento difuso de alarme, associado a uma sensação de impotência. No entanto, ao contrário das consequências perniciosas derivadas dessa impossibilidade de colonização do futuro, determinadas perspectivas de análise das práticas culturais sugerem a possibilidade de condução do sujeito a uma maior autonomia e gerenciamento de seu cotidiano. Isso em virtude da necessidade de se partir do princípio de que os conflitos sociais são, na verdade, buscas interativas pela consideração intersubjetiva de sujeitos e coletividades. De fato, essa estratégia argumentativa permite analisar como essas noções se tornaram constituintes da forma de se pensarem as identidades e as práticas culturais. A inovação, atrelada a essa perspectiva, reside no deslocamento de um tipo de naturalismo teórico-metodológico para a constituição de uma configuração de análise do social, cuja ênfase recai sobre o produto do diálogo entre as épocas e o caráter reflexivo que as constitui. Isso, de tal forma que pensar as relações internas à escola na era pós-moderna é pensar, não em uma ou outra categoria que mais corresponda a sua essência, mas, na possibilidade de que os contextos de ação conversem, de tal modo que se possa constituir o próprio presente e, consequentemente, o futuro. Em suma, do ponto de vista do discurso pós-moderno, a modernidade e as suas consequências difusas e múltiplas desmembraram-se em dois importantes elementos necessários à compreensão dos conflitos sociais e de determinadas situações de contingência em que se situam certos atores sociais. De um lado, o declínio da sociedade hierarquicamente pré-determinada levou a uma alteração da honra estamental em direção à dignidade geral, o que possibilitou o surgimento da política do universalismo. De outro, o aludido desenvolvimento de uma acepção de self, calcada nas noções de autenticidade e de interioridade, suscita a política da diferença. Nos termos do professor Charles Taylor,

Enquanto a política da dignidade universal lutava por formas de não discriminação que eram bastante cegas aos jeitos em que os cidadãos se diferem, a política da diferença, frequentemente, redefine a não-discriminação requerendo que façamos dessas distinções a base do tratamento diferencial (TAYLOR, 1994, p. 39).

O que parece se evidenciar nesse processo é a suposta autenticidade do local (leia-se aqui a diversidade característica das práticas culturais e das identidades) contra a artificialidade do universalismo cosmopolita historicamente associado à cultura europeia e à constituição de nacionalidades no continente europeu. Trata-se, de certo modo, do fenômeno

da reafirmação de particularidades (WEBER, 1982; 1994), o qual expõe a tensão que marca o que a literatura analisada denomina de mundo moderno e que é o alicerce de todas as suas instituições, até mesmo da própria ciência: a tensão existente entre razão e cultura. No próximo capítulo, veremos como algumas dessas questões são importantes para pensar a educação na atualidade.

CAPÍTULO 3:

MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE: O LEGADO SOBRE AS IDEIAS DE EDUCAÇÃO E ESCOLA NA CONTEMPORANEIDADE

3.1 “EDUCAÇÃO: SOB, PARA E APESAR DA PÓS-MODERNIDADE”...

Num mundo caracterizado pelo caráter fragmentário e episódico do tempo social e individual, as universidades, sobrecarregadas com um sentido de história e tempo linear, adaptam-se mal e sentem-se mal com facilidade. Tudo o que as universidades vem fazendo nos últimos 900 anos faz sentido dentro do tempo da eternidade ou do tempo do progresso; se a modernidade ficou livre do primeiro, a pós-modernidade terminou com o primeiro. Zygmunt Bauman (2008, p. 169)

Em A sociedade individualizada, Bauman (2008) nos introduz alguns dos poucos textos que escreve diretamente sobre educação, cujo título extrai para auxiliar o meu próprio que inicia esse último capítulo. Nele, o sociólogo polonês argumenta em torno da fugacidade da vida e da incredulidade em torno das ideias e dos valores que, de certo modo, são também elementos invasivos nas instituições educacionais. A partir de agora, a nossa ideia é refletir sobre o que vimos até o momento sobre o problema e derivar dele, seguindo Bauman, formas de enxergar escola e educação como protagonistas nesse mundo novo de tanta incerteza e descrença. Ora, a modernidade, por ser a perspectiva dominante e estruturante de nosso eu-ego cartesiano, molda grande parte do sistema educacional atual, estruturado, que visa levar o estudante ao progresso e à autonomia individual. Um sistema em que a grande narrativa do conhecimento cumulativo é a narrativa central, ou seja, quanto mais, melhor. Um sistema amarrado, coerente com sua lógica. A escola atual, grosso modo, possui uma arquitetura montada nos pilares da modernidade. A fragmentação do conhecimento, sua estruturação em pré-requisitos, seu processo de avaliação conteudista e sem significado para os estudantes, tudo isso ancora a escola no século XVIII, tornando-a cada vez mais menos significativa e menos valorizada, distanciando-se de sua função de problematização. Na escola de hoje, o viajante do tempo, vindo do passado, acharia o elo com sua época, sentindo-se em casa. O mais grave, ainda, é que toda essa arquitetura é construída de tal forma que é tomada como natural e, por isso, irreversível. Qualquer tentativa de questioná-la é tensiva, imediatamente repudiada, pois coloca em risco toda uma estrutura de relações arraigadas de poder. Arriscaríamos dizer que os ideais políticos da modernidade, produtos da Revolução Francesa (igualdade, liberdade e fraternidade), fomentam leituras de consequências desastrosas para a escola, a despeito de outros grandes ganhos em outras áreas. A igualdade

nivelou e homogeneizou os estudantes e os sistemas educacionais. Reduziu-se o complexo processo educacional a números, com truques estatísticos adotados por programas com nomes risíveis, como correção de fluxo (Paraná), classe de aceleração (São Paulo) e tempo de acelerar (Amazonas), truques que, num passe de mágica, corrigem os atrasos dos estudantes em relação à idade e à série que deveriam estar cursando. A liberdade serviu de fim, de meta (inatingível) a ser buscada por esses estudantes através da razão. Uma busca ilusória, mas jamais descartada pela escola, pois é sua própria viga de sustentação. A fraternidade trouxe para a escola o humanismo e a política da afetividade que, na maioria das vezes, servem apenas para mascarar as relações de poder, fazendo da polícia a polícia secreta. Apesar da ênfase na questão do sujeito, não negligenciamos a questão política como constitutiva de todo esse processo. Essa questão, tocada aqui en passant, merece um artigo próprio que foge às delimitações deste trabalho. O professor moderno é preparado para o previsto, o controlável. Toda e qualquer problematização contingencial que fuja ao escopo de seu planejamento é vista como ameaçadora, portanto, objeto de eliminação pelo poder soberano. É preciso controlar, dividir para reinar, num empréstimo dos dizeres de Maquiavel para a análise da governamentalidade do professor moderno. A escola moderna, por fim, diz-se atual em consequência de uma transposição de tecnologia, uma mudança de tom que toca, no entanto, a mesma música. Corre o risco de cair no utilitarismo a pretexto de modernizar-se, de tornar-se antenada com a modernidade radical, com as demandas da globalização. Esse jogo de significações, que não altera o sujeito, apresenta-se, no plano político, sob a forma de um discurso muito preciso: o discurso neoliberal. Muda somente a argumentação, mas, como nos certa perspectiva de análise discursiva, a argumentação não muda em nada a posição do sujeito que fala. A pós-modernidade, por outro lado, agrupa sob o seu rótulo perspectivas nem sempre tão amistosas entre si. Aqui podemos incluir desde o niilismo de Nietzsche até a ideia de desconstrução do filósofo francês Jacques Derrida, passando pela fenomenologia, pelo segundo Ludwig Wittgenstein, com seus jogos de linguagem, por Michel Foucault, por alguns teóricos da Escola de Frankfurt, pela filosofia americana de Richard Rorty e, acreditamos, por grande parte do pensamento de Paulo Freire, ainda que parte de sua obra tenha sido montada sob um marxismo clássico como base. Essas perspectivas são coincidentes, similares, mas não idênticas. Esse entendimento é fundamental para a linha de raciocínio que estamos desenvolvendo. Como prometido, aqui retomamos a questão da incredulidade em relação às metanarrativas, tal qual posta por Lyotard. Incredulidade não é, a nosso ver, rejeição, mas a

incapacidade de acreditar. Não nos parece, portanto, estarmos aqui diante da escolha de Sofia, de um isso ou um aquilo. O pós-moderno ganha visibilidade no moderno e nele está imbricado. Essa perspectiva de incredulidade nos metarrelatos é, sem dúvida, um efeito do progresso na ciência, mas esse progresso, por sua vez, a supõe (LYOTARD 1998). O pósmoderno é a suspeição quanto a tudo o que é recebido. Não está em oposição à modernidade, mas em ambivalência com ela (BAUMAN, 1999). A perspectiva pós-moderna é uma forma de ver e desnaturalizar as coisas da modernidade mediante a problematização de seu sujeito. Ou seja, nem tudo que nos é legado é verdadeiro, mas produzido por indivíduos em um determinado tempo. Saber como se deu essa elaboração é a chave, para levar os nossos alunos a questionar as coisas e duvidar de verdades propagadas sem quaisquer reflexões. O uso desse conceito como instrumento de interpretação histórica, sintomaticamente, tem provocado fortes reações, o que é compreensível. Se o saber científico é inoculado pelo vírus da relativização, o delírio individualista que estrutura a sociedade moderna encontra-se ameaçado. Assim, quando mudamos o eixo da crítica pós-modernista da refutação para o da incerteza, do deslocamento, da dúvida, da instabilidade, mudamos a própria concepção de crítica. A pós-modernidade que entende crítica por refutação é uma “pós-modernidade lúdica” (USHER; EDWARDS, 1996, p. 223) que se quer fora da modernidade, colocando-se contra ela numa dicotomização de momentos excludentes, vendo-se, assim, ela própria, como um momento. No nosso entender, trata-se de uma pós-modernidade temporal, niilista e neoconservadora, atributos dos quais Usher e Edwards tentam se desvencilhar – sem sucesso, em nossa avaliação – nas partes finais de seu livro, em grande parte instigante. É uma pósmodernidade excludente, uma pós-modernidade que morde o próprio rabo, pois se torna, ela própria, uma metanarrativa. É a pós-modernidade da contemplação, “do desgosto informado” (FRIDMAN, 2000, p. 13), que se iguala à angustiante imagem proposta por Bauman (1998, p. 194) do “inválido crônico que acompanha a vida da janela de um hospital”. Mas é uma pósmodernidade, mostrando mais uma vez a complexidade da noção. Nós, seres pressionados por um mundo desenhado sob a concepção epistemológica da modernidade, temos que nos defrontar com uma crise de fé nas noções de progresso e melhoria social. Contrapondo-se ao progresso, temos o “pangresso” (SANTOS 2000, p. 43). Em vez de irmos em frente, vamos p todas as direções. Trocamos velhos problemas por novos, criados pelas soluções modernas. Vivemos em um mundo viciado no phármakon da Farmácia de Platão (DERRIDA, 1997). De acordo com esse último, tudo são remédio e veneno ao mesmo tempo, sem nunca, por isso, atingir o fim idealizado da assepsia social, livre e pura, em seu estado final. Fazemos milhares de exercícios físicos, mas adoecemos pelo

excesso deles; produzimos doenças e remédios que desencadeiam outras doenças e assim por diante. Não obstante, vivemos em uma onipresente agonística de um constante recriar de utopias provisórias pelo sujeito heterotópico – o desejo da solução efêmera feito por um eu em movimento, que não para quieto. Para nós, ao situarmos nossa compreensão de crítica, fica clara a atemporalidade do discurso pós-moderno. Não é o tempo que o qualifica, mas o olhar, a postura. Ver pósmodernidade como sucessão temporal é erradicar todo o seu potencial dialético. A pósmodernidade não é a simples superação da modernidade, como o inconsciente não é a superação da consciência. O inconsciente é contemporâneo da consciência, assim como a pósmodernidade é contemporânea da modernidade. A dúvida pós-moderna (que não é a cartesiana, que duvida para buscar a verdade) é a dúvida trágica. É nesse sentido, da crítica não excludente, que entendemos as disciplinas teóricas pós-modernas como críticas. A desconstrução, por exemplo, não é destruição, mas desmontagem dos construtos da ideologia ou do poder, no sentido foucaultiano, ou das convenções que lhe tenham imposto a naturalização do sentido. A Análise de Discurso, da mesma forma, não destrói discursos, mas evidencia funcionamentos, busca desnaturalizar a relação palavra-mundo. Soluções modernas: Nicholas Burbules (2000) cita o exemplo dos antibióticos, que, a despeito de ampliarem a qualidade de vida do homem, criam como efeito da solução bactérias cada vez mais resistentes a eles. Ele diz:

isso torna o uso dos antibióticos uma coisa má e tola? Não - eles têm salvado incontáveis vidas e limitado muito sofrimento desnecessário. Mas inventar cada vez mais antibióticos fará nosso mundo cada vez melhor no futuro? Há muitas razões para se estar incerto disso. (BURBULES, 2000, p. 125)

A tragédia emerge de uma consciência doída de que o contrário daquilo que abraçamos é não raro igualmente precioso; que quando criticamos as nossas próprias pressuposições, a incerteza resultante é difícil e perturbadora; que desejamos ambas, mas não podemos decidir por nenhuma. A questão da tragédia não é uma questão simples de pessimismo versus otimismo. O sentido trágico se refere a uma ampla consciência do impedimento do êxito total, a probabilidade do fracasso parcial e os limites de nosso esforço. Ver a educação sob a perspectiva da tragédia é abandonar o fundacionalismo e acreditar que a dúvida e a incerteza tornam-nos educadores melhores – em parte porque elas reenfatizam a dependência que temos uns dos outros, incluindo nossos estudantes. Isso significa adotar uma maior modéstia em

nossas exigências de transformação social por meio dos processos educacionais. O sentido trágico de educação requer que continuemos nossos esforços sem nos enganarmos sobre as complicações e contradições inerentes ao nosso esforço. O estilo distintivo do trágico na veia pós-moderna é o das procuras e intenções conflitantes, das antinomias que se colocam irreconciliadas. Da perda e mesmo da nostalgia de uma visão de mundo menos intimidante. O grande risco da tragédia, contudo, é cair no pessimismo, é abandonar o que Richard Rorty chama de uma esperança injustificável, mesmo diante da desilusão. Essa postura pós-moderna de educação problematiza questões e as articula com os problemas da vida cotidiana. Essa articulação se dá por meio de narrativas tomadas sem hierarquização epistemológica (GHIRALDELLI JR., 2000) e leva à formulação de novas, pequenas e provisórias narrativas que, então, fundamentam nossas ações culturais, sociais e políticas. É um modus faciendi que vê a educação como diferença, palco em que não se apagam as relações de poder, na perspectiva foucaultiana, mas onde essas relações de poder são questionadas, desnaturalizadas, desconstruídas. Quando as diferenças sustentadas por essas relações de poder são apenas reconhecidas e não problematizadas, temos somente novas dicotomias, como a do dominante tolerante e a do dominado tolerado ou a da identidade hegemônica benevolente e da identidade subalterna mais respeitada. “Antes de tolerar, respeitar e admitir a diferença, é preciso explicar como ela é ativamente produzida” (SILVA, 2000, p. 98-100). Assim, como afirmamos, nessa perspectiva, a temporalidade não é relevante. Essa visão pode ser encontrada, em diversas cores e sabores, em trabalhos tão diferentes no tempo e no espaço como, para citar alguns, em Heráclito e seu banho sempre diferente no rio, nos dos contemporâneos neopragmáticos, como Richard Rorty, na discussão da legitimidade do poder político em John Dewey, nas críticas à imutabilidade do signo de Vygostky e Bakhtin. Em síntese, a atualidade da tematização da pós-modernidade decorre das contingências histórico-sociais que possibilitaram sua constituição como conceito. Enfim, vários autores levantaram questões que, de alguma forma, são perpassadas por essa suspeita perturbada e perturbante quanto à Verdade. Essa postura os torna pósmodernos. A perspectiva pós-moderna é, nesse sentido, a morte da Verdade, a despeito da insistência dos sacerdotes da razão. O valor heurístico central da pós-modernidade é sua insistência na necessidade de pensar sempre de outro modo. Dentro dessa forma de ver a questão, torna-se irrelevante e contraditório falar de escolas pedagógicas ou abordagens de ensino em língua materna ou estrangeira como sendo pós-modernas ou não. Cada uma delas pode sê-lo e, ao mesmo tempo, pode não sê-lo, em diferentes graus e momentos, dependendo

de como veem no bojo de seus construtos o papel da dúvida, da incredulidade em relação à Verdade final e o papel do sujeito como dono de seus gestos de aprendizado. Do mesmo modo, é preciso não esquecer que o sujeito que faz a ciência da linguagem possui uma identidade que, como afirma Coracini (2003, p. 114), “não pode ser considerada um rol de características estáveis” porque muda e deve mudar constantemente. A não relevância de rotular x como sendo isso ou aquilo, mas de problematizar x, desconstruir sua estrutura e seu sentido que nos é dado é um dos sabores da perspectiva pós-modernista. A própria designação pós-modernidade, como dissemos no início, é problemática e nublada, o que não anula sua natureza e, a partir dela, outras noções têm sido pensadas em novas configurações. Algumas dessas vamos discutir em nossa próxima seção e aí, muito provavelmente, algumas dúvidas anteriores vão ficar um pouco mais esclarecidas.

3.2 EU, TU, ELES, NÓS: SUJEITOS, IDENTIDADE (S), NOVAS FORMAS DE VIDA...

Não sou um autor de farsas, mas um autor de tragédias. E a vida não é uma farsa, é uma tragédia. O aspecto trágico da vida está precisamente nessa lei a que o home é forçado a obedecer, a lei que o obriga a ser um. Cada qual pode ser um, nenhum, cem mil, mas a escolha é um imperativo necessário. Luigi Pirandello (2001, p. 40)

Os desdobramentos do olhar pós-moderno sobre a vida humana nas últimas décadas são os mais variados. Se fosse possível produzir uma série de dados sobre algumas dessas consequências elas seriam observadas nas diversas áreas do conhecimento, bem como nos mais diversos canais de produção de conhecimento e informação. Desde a sociologia, a psicologia e psicanálise, enquanto áreas de produção de conhecimento como em situações muito concretas do dia a dia como, por exemplo, o consumo, a apologia ao prazer, a violência gratuita, as novas formas de produzir e assimilar novos conhecimentos etc. No entanto, para fins de execução de nossos objetivos, apenas alguns deles serão tratados, ainda que de forma muito preliminar. Identidade, trocas entre culturas, jovens na atualidade e a ainda importante contribuição da nova escola contemporânea são alguns deles. Iniciemos pela ideia de trocas culturais ou, como alguns denominam, a ideia de multiculturalismo. Ora, para compreender a natureza do significado da palavra multiculturalismo, bem como as suas diversas implicações, mas, especialmente, no âmbito

educacional, é necessário, inicialmente, distinguir os termos multicultural e multiculturalismo, bem como entender as condições de emergência do fenômeno em extensão na sociedade contemporânea e no discurso político mais amplo para, finalmente, depreender algumas de suas principais consequências e alguns dos efeitos transruptivos associados a ele (HALL, 1998). O termo multiculturalismo refere-se às estratégias políticas adotadas para agenciar os problemas da multiplicidade, gerados pelas sociedades multiculturais, ou seja, diz respeito a doutrinas que sustentam as estratégias multiculturais de vida em sociedades complexas, muitas vezes, objetivando a diminuição das desigualdades sociais. Já o termo multicultural traz em si dificuldades quando pensado em sua apresentação como fazendo referência a uma única doutrina específica. Na realidade, o multiculturalismo reflete uma série de processos e estratégias políticas inacabadas, ou seja, há distintos multiculturalismos, assim como há distintas sociedades multiculturais. A nós, cabe compreender onde se encontra situado o Brasil e como isso deve se refletir em nossas ações cotidianas no âmbito educacional. Nessa perspectiva, Hall (2003), um dos principais escritores pós-coloniais da atualidade, distingue alguns tipos de multiculturalismo, a saber:

1) o multiculturalismo conservador, que prega a assimilação da diferença com base nas tradições e nos costumes da maioria, uma espécie de colonialismo em prol da pureza e da integridade da nação; 2) o multiculturalismo liberal, que sugere que os diferentes grupos se integrem às sociedades majoritárias basilados em uma lógica universal de cidadania individual, em que as práticas singulares são avaliadas em termos culturais; 3) o multiculturalismo comercial, cuja lógica expõe a diferença, publicamente, a fim de resolver os problemas de diferença cultural privados, sem destacar a distribuição dos recursos e do poder; 4) o multiculturalismo corporativo, que busca administrar a ideia de que o interesse da maioria visa aos interesses de hegemonia; 5) o multiculturalismo crítico ou revolucionário, muito associado à obra de Peter MacLaren, educador contemporâneo, cujo objetivo é enfocar os movimentos de resistência e de opressão em favor da não diferença de direitos.

As discussões mais recentes sobre a natureza do multiculturalismo derivam a sua emergência da configuração estratégica das forças e das relações sociais contemporâneas, que

se tornaram mais complexas alicerçadas em um conjunto de profundas modificações. A princípio, o fim do sistema imperial europeu, as lutas pela descolonização e a independência nacional, na África e na Ásia, as quais resultaram em Estados-nações profundamente multiculturais (LEMERT, 2000), são alguns exemplos. Outro exemplo típico, visto com certa frequência nos noticiários, é o caso recente da França onde houve inúmeros conflitos derivados do processo de imigração de indivíduos de antigas colônias, por exemplo, Argélia e Marrocos. Em segundo lugar, o fim da guerra fria, impulsionada pela ruptura interna na União Soviética, e o declínio do comunismo de Estado, como modelo de desenvolvimento industrial, trouxeram como consequência a tentativa liderada pelos EUA de construir uma nova ordem mundial. Em decorrência disso, diferentes nações foram adaptadas à ideia de mercado, e culturas locais foram silenciadas em prol do envolvimento que esses mercados requerem. Ao final, observa-se a revivificação de traços antigos em forma de tensões multiculturais. Finalmente, é possível apontar o processo de globalização, que tem como principal característica a compressão do tempo, do espaço, da história e dos mercados em um mesmo cenário global e homogêneo a favor de um desarraigamento irregular das relações sociais e de processos de destradicionalização. Trata-se de um sistema de conformação da diferença, porém não pode controlar tudo a sua volta, impulsionando, assim, efeitos inesperados como, por exemplo, a chamada “formação subalterna da diferença” (HALL, 2003, p. 53). Um dos desdobramentos possíveis de análise dessa contenda teórica é sobre a ideia de identidade, isso devido à centralidade que ela assume para este texto. De modo geral, utiliza-se o termo identidade para remeter a algo uno, integral, original, coerente, estável, quase que imutável, ou seja, o sujeito seria definido de uma vez por todas e marcado de forma quase que indelével. Essa compreensão de identidade está firmemente embasada nos princípios e na concepção de sujeito iluminista. Sobre isso, Stuart Hall assim se expressa: “o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas.” (HALL, 1998, p. 12). Isso implica uma ruptura definitiva com a possibilidade de uma identidade essencial, coesa, fixa, imaculada, permanente. Vamos então nos debruçar na etimologia da palavra indivíduo. O termo indivíduo designa o que não se divide, o indiviso, significado que nos leva à ideia de unidade, de permanência do sujeito que se considera contínuo em relação a uma história existencial de si mesmo. Apesar disso, o indivíduo, quando tirado de seu lugar fixo – como foi configurado por Descartes ‒ torna-se fragmento, dividido e plural, pois, à medida

que sua identidade é atravessada por diferentes divisões e novos antagonismos sociais, ocorre um descentramento do eu. A questão do indivíduo tem sido estudada em vários campos do conhecimento, como consequência das mudanças ocorridas no cerne das formações culturais da modernidade. Com a emergência das sociedades pós-modernas, desintegram-se, por um lado, os sistemas filosóficos tradicionais e essencialistas e perde-se, por outro, o sentido de continuidade entre passado, presente e futuro. O sujeito começa a experimentar a angústia existencial e viver uma profunda crise de identidade. A crise do indivíduo pós-moderno reflete as mudanças que deslocaram as estruturas e os processos centrais das sociedades pós-modernas, “abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável ao mundo social” (HALL, 1998, p. 9). As teorias chamadas pós-estruturalistas e pós-modernas vêm questionando a existência de um sujeito unitário, conhecedor e sistematizador do conhecimento. Se o sujeito iluminista, universal, mestre do discurso do conhecimento, está tendo suas estruturas questionadas e abaladas, como ficam os seres humanos como sujeitos na pós-modernidade? Abrindo um parêntese, gostaríamos de, a partir de agora, fugir do termo marginal e adotar o termo (ex)cêntrico, utilizado pela teórica canadense Linda Hutcheon, para significar tudo aquilo e todos aqueles que se localizam fora do centro, das normas, ou do chamado senso comum. De modo geral, nós nos sentimos pouco à vontade quando somos confrontados com as ideias de provisoriedade, precariedade, incerteza — tão recorrentes nos discursos contemporâneos. Preferimos contar com referências seguras, direções claras, metas sólidas e inequívocas. Apesar disso, hoje são poucos os que se atrevem a negar que a instabilidade e a transitoriedade se transformaram em marcas do nosso tempo. Já não é mais possível desprezar tais afirmações como se elas se constituíssem numa ladainha rezada por intelectuais pósmodernistas, uma espécie de mantra, que tem o poder de desmobilizar o que se acha seguro. De formas muito concretas, temos sido lançados a situações absolutamente imprevisíveis, algumas trágicas, outras fascinantes, quase todas inexplicáveis. Mais do que nunca nos percebemos vulneráveis, sem qualquer preparo para enfrentar os choques e os desafios que aparecem de toda parte. A pergunta daí derivada é: o que fazer? A muitos, talvez pareça mais prudente buscar, no passado, algumas certezas, algum ponto de estabilidade capaz de dar um sentido mais permanente e universal à ação. O ritmo e o caráter das transformações podem, contudo, converter esse recuo em imobilidade. Para outros ‒ e aqui pretendo me incluir ‒ a opção é assumir os riscos e a precariedade, admitir os paradoxos, as dúvidas, as contradições e, sem

pretender lhes dar uma solução definitiva, ensaiar, em vez disso, respostas provisórias, múltiplas, localizadas. Reconhecer, como querem os pós-modernistas, que é possível questionar todas as certezas sem que isso signifique a paralisia do pensamento, mas, ao contrário, constitua-se em fonte de energia intelectual e política. Esse ambiente de transformações aceleradas e plurais em que hoje vivemos parece ter se intensificado desde a década de 1960, possibilitado por um conjunto de condições e levado a efeito por uma série de grupos sociais tradicionalmente submetidos e silenciados. As vozes desses sujeitos faziam-se ouvir inspiradas em posições desvalorizadas e ignoradas; elas ecoavam a partir das margens da cultura e, com destemor, perturbavam o centro. Outra política passava a acontecer, uma política que se fazia no plural, já que era ‒ e é ‒ protagonizada por vários grupos que se reconhecem e se organizam, coletivamente, em torno de identidades culturais de gênero, de raça, de sexualidade, de etnia. O centro, materializado pela cultura e pela existência do homem branco ocidental, heterossexual e de classe média, passa a ser desafiado e contestado. Portanto, muito mais do que um sujeito, o que passa a ser questionado é toda uma noção de cultura, ciência, arte, ética, estética, educação que, associada a essa identidade, vem usufruindo, ao longo dos tempos, de um modo praticamente inabalável, da posição privilegiada em torno da qual tudo mais gravita. Novas identidades culturais obrigam a reconhecer que a cultura, longe de ser homogênea e monolítica, é, de fato, complexa, múltipla, desarmonizada, descontínua. Muitos afirmam, com evidente desconforto, que essas novas identidades (ex)cêntricas passaram não só a ganhar importância nesses tempos pós-modernos, como, mais do que isso, passaram a se constituir no novo centro das atenções. Não há como negar que outro movimento político e teórico tenha se posto em ação, e nele as noções de centro, de margem e de fronteira passaram a ser questionadas. É preciso, no entanto, evitar o reducionismo teórico e político que apenas transforma as margens em um novo centro. O movimento não pode se limitar a inverter as posições. Em vez disso, supõe aproveitar o deslocamento para demonstrar o caráter construído do centro ‒ e também das margens! É necessário admitir, ainda, que o questionamento de sistemas e instituições, práticas e sujeitos solidamente estabelecidos na posição central, que hoje é levado a efeito, não implica a negação de que o centro permanece como uma atraente ficção de ordem e de unidade. O importante é reconhecer que isso se constitui uma ficção. A universalidade e a estabilidade desse lugar central resultam de uma história que tem sido constantemente reiterada ‒ e por isso parece tão verdadeira ‒ do mesmo modo que a posição do (ex)cêntricas não passa de uma elaboração que integra essa mesma história.

Há uma estreita articulação entre os movimentos sociais dos anos 60 e o pósmodernismo. Como afirmou Linda Hutcheon,

subitamente, as diferenças de gênero e raciais estavam sobre a mesa de discussão e, uma vez que isso aconteceu, a ‘diferença’ tornou-se foco do pensamento — desde novas questões de escolhas sexuais e história pós-colonial até questões mais familiares tais como religião e classe (HUTCHEON, 1988, p. 90).

Discutem-se imagens e sujeitos que explodiram a ideia de uma ordem moderna, a ideia de um centro. É nesta perspectiva que pretendo desenvolver minha análise sobre a constituição de diferenças e identidades de gênero e identidades sexuais e, mais especificamente, sobre as formas como esse processo vem se expressando nos dias atuais. Excêntrico é aquele ou aquilo que está fora do centro; é o extravagante, o esquisito; é, também, o que tem um centro diferente, outro centro. Jogar com acepções dicionarizadas das palavras pode se mostrar um exercício interessante: pode nos ajudar a pensar sobre as formas como se estabelecem as posições de sujeito no interior de uma cultura. A posição central é considerada a posição não problemática; todas as outras posições de sujeito estão, de algum modo, ligadas ‒ e subordinadas ‒ a ela. Tudo ganha sentido no interior desta lógica que estabelece o centro e o excêntrico; ou, se quisermos dizer de outro modo, o centro e suas margens. Ao conceito de centro vinculam-se, frequentemente, noções de universalidade, de unidade e de estabilidade. Os sujeitos e as práticas culturais que não ocupam este lugar recebem as marcas da particularidade, da diversidade e da instabilidade. Portanto, toda essa “conversa” pós-moderna de provisoriedade, precariedade, transitoriedade etc. só pode se ajustar às mulheres, aos negros, aos sujeitos homossexuais ou bissexuais. A identidade masculina, branca, heterossexual deve ser, supostamente, uma identidade sólida, permanente, uma referência confiável. Não há mais novidade em tais afirmações. Já há algumas décadas, o movimento feminista, o movimento negro e também os movimentos das chamadas minorias sexuais vêm denunciando a ausência de suas histórias, suas questões e suas práticas. A resposta a essas denúncias, contudo, não passa, na maioria dos casos, do reconhecimento retórico da ausência e, eventualmente, da instituição, pelas autoridades educacionais, de uma data comemorativa: o dia da mulher ou do índio, a semana da raça negra etc. Momentaneamente, a Cultura (com C maiúsculo) cede um espaço, no qual manifestações especiais e particulares são apresentadas e celebradas como exemplares de outra cultura. Estratégias que podem tranquilizar a consciência dos planejadores, mas que, na

prática, acabam por manter o lugar especial e problemático das identidades marcadas. E, mais do que isso, acabam por apresentá-las a partir das representações e narrativas construídas pelo sujeito central. Aparentemente se promove uma inversão, trazendo o marginalizado para o foco das atenções, mas o caráter excepcional desse momento pedagógico reforça, mais uma vez, seu significado de diferente e de estranho. Ao ocupar, excepcionalmente, o lugar central, a identidade marcada continua representada como diferente. Uma estratégia mais desestabilizadora irá colocar em discussão esse tipo de representação. Problematizará, por exemplo, o fato de as mulheres serem denominadas de o segundo sexo (uma afirmativa que é, via de regra, consensual e indiscutível) e levará a analisar as narrativas ‒ religiosas, históricas, científicas, psicológicas e até mesmo no campo da literatura ‒ que instituíram este lugar para o feminino. Tornará possível discutir o que implica, em uma sequência qualquer, ser o segundo elemento; ou o que significa ser o primeiro, isto é, ser a identidade que serve de referência; ou, ainda, permitirá analisar as formas por meio das quais tal classificação se faz presente nas práticas sociais e culturais de qualquer grupo. Se a instabilidade é perturbadora, mais ainda nos parecerá a existência daqueles sujeitos que ousam assumi-la abertamente, ao escolherem a mobilidade e a posição de trânsito como o seu lugar. Para alguns grupos culturais, ser excêntrico significa abandonar qualquer referência à posição central. Não se trata de, simplesmente, se opor ao centro e, menos ainda, de aspirar a ser reconhecido por ele. Esses sujeitos não buscam ser integrados, aceitos ou enquadrados; o que desejam é romper com uma lógica que, a favor ou contra, continua se remetendo, sempre, à identidade central. Assumem-se como estranhos, esquisitos, excêntricos e assim querem viver ‒ pelo menos por algum tempo, ou melhor, pelo tempo que bem lhes aprouver. Precisamos prestar atenção às estratégias públicas e privadas que são postas em ação, cotidianamente, para garantir a estabilidade da identidade normal e de todas as formas culturais a ela associadas; prestar atenção às estratégias que são mobilizadas para marcar as identidades diferentes e aquelas que buscam superar o medo e a atração que nos provocam as identidades excêntricas. Precisamos, enfim, nos voltar para práticas que desestabilizem e desconstruam a naturalidade, a universalidade e a unidade do centro e que reafirmem o caráter construído, movente e plural de todas as posições. É possível, então, que a história, o movimento e as mudanças nos pareçam menos ameaçadores. Por fim, podemos dizer, sem assombro, que hoje vivemos uma crise do sujeito e uma fragmentação ou descentralização das identidades, ou seja, as pessoas são ao mesmo tempo o

que elas pensam que são almejando serem outras que aparecem dia a dia como exemplos melhores do que si mesmas. Estas ideias já fazem parte do senso comum e estão ligadas a outras discussões, também na pauta do dia, sobre a globalização, o pós-modernismo e o hibridismo cultural, mas isso é outra história...

3.3 JUVENTUDE(S) EM TEMPOS PÓS-MODERNOS: RISCO, POLÍTICA PÚBLICA E RECONHECIMENTO SOCIAL

Para poderem chegar a uma autorrelação infrangível, os sujeitos humanos precisam [...] além da experiência da dedicação afetiva e do reconhecimento jurídico, de uma estima social que lhes permita referir-se positivamente a suas propriedades e capacidades concretas. Axel Honneth (2003, p. 198)

As transformações sociais ocorridas nas últimas décadas colocam em evidência as desigualdades sociais existentes entre diversos grupos. Nesse contexto, a condição em que se encontra a juventude vem ocupando lugar de destaque no cenário nacional, haja vista as situações de risco a que esse grupo se encontra exposto, principalmente decorrente da falta de oportunidades, independente do nível social no qual seus membros se inserem. Considerada um período de transição entre a adolescência e a fase adulta, a juventude é percebida como um período que não é delimitado pelos marcos etários definidores da adolescência. Diferente desta última, o termo juventude é muito mais demarcado pelas questões sociais que o permeiam do que pela idade do sujeito. Autores como Abramo (1994), Melucci (1997) e Novaes (2000) enfatizam a necessidade de se compreender a juventude a partir da pluralidade e da diversidade de elementos socioculturais que constituem as experiências juvenis, considerando-se os elementos históricos, culturais, econômicos e religiosos que permeiam grupos de jovens, evidenciando as particularidades emergentes nas distintas juventudes. Nesse sentido, a compreensão do termo encontra-se, prioritariamente, vinculada a formas de expressão, comportamentos, opções e estilos de vida (MINAYO et al., 1999). Sendo um momento de pré-fase adulta, com características das mais diversas, nesse período

da vida, é comum ao jovem a preocupação com o futuro, com a segurança e com a garantia de oportunidades que, de fato, permitam-no ser considerado adulto. Isso mediante a assunção de responsabilidades características, ligadas mais diretamente às definições de suas escolhas, tanto no que se refere ao mundo do trabalho, do emprego fixo e da autonomia financeira quanto de sua dimensão privada ‒ definições sobre sexualidade, identificação grupal, possibilidade de constituir e manter sua família etc. Apesar de essas preocupações serem comuns aos jovens de diferentes grupos sociais, a busca para atingir essa meta é mais precoce e acentuada em jovens de baixa renda. Isso acontece em virtude das suas constantes experiências em relação à insegurança, a certa opacidade e a inevitáveis elementos de risco que, do ponto de vista da teoria social, constituem, ainda que com certas ressalvas (COSTA, 2004), a própria modernidade (GIDDENS, 1991; BECK, GIDDENS e LASH, 1997). As influências do fenômeno da globalização também afetam de modo diferenciado os distintos contextos e grupos, ampliando, de um lado, as possibilidades de acesso a informações e benefícios para alguns setores da sociedade e, de outro, excluindo grupos dos mesmos benefícios, aumentando, assim, as desigualdades sociais. Existentes já há um longo período, as desigualdades sociais tornam-se ainda mais evidentes porquanto as transformações na sociedade ocorrem de modo cada vez mais acelerado. Alguns sociólogos, hoje, por exemplo, ainda que reconheçam a diminuição das desigualdades, fazem alusão a uma espécie mudança qualitativa em relação a ela considerando que, ainda que seja possível identificar a melhoria nos índices de desenvolvimento humano, observa-se, concomitante a isso, o aumento da violência, da crueldade e da indiferença a ela associados. Por outro lado, eles argumentam que isso talvez esteja relacionado à dificuldade de acesso das minorias aos benefícios tecnológicos, sociais e educacionais, que são considerados fundamentais para o acesso a informações relevantes, para a qualificação educacional e para a competência profissional dos jovens, especialmente quando se tratar do primeiro emprego. Portanto, as preocupações da juventude contemporânea, especialmente dos jovens de baixa renda, são, de acordo com Melucci (1997), reflexos das incertezas características das sociedades modernas, decorrentes do acelerado ritmo de transformação social, as quais remetem a inseguranças relacionadas ao acesso à educação de qualidade, à profissionalização e capacitação adequada ao mercado de trabalho. O ritmo das transformações sociais interfere nos comportamentos, nas práticas e preocupações na relação da sociedade com aspectos como educação e trabalho, estabelecendo, nesse caso, uma ligação entre ambos, considerando o primeiro uma condição básica para o segundo.

Partindo de tais premissas, estudos sobre a juventude brasileira, realizados a partir da década de 1990, têm abordado aspectos que investigam o protagonismo juvenil na constituição de grupos culturais (ABRAMO, 1994), na participação em movimentos políticos e sociais (PAIVA, 2000), em movimentos contra a violência (PAIVA, 2000; NOVAES, 2000) nas relações de preconceito contra a juventude, produzidas pela mídia (ALVIM; PAIM, 2000), na inserção dos jovens no mercado de trabalho (BOCK, 2000; MARTINS, 2000) e nas suas preocupações (CARDOSO; SAMPAIO, 1994; MELUCCI, 1997), analisando-lhe o fio condutor, a fim de compreender a realidade, as expectativas e as preocupações da juventude estudantil contemporânea. O mais abrangente dos estudos, nesse período, é a pesquisa Perfil da juventude brasileira, por meio da qual foi realizado um amplo levantamento quantitativo sobre os jovens brasileiros, com a finalidade de apresentar informações e resultados com representatividade estatística nacional para o Governo Federal, a fim de viabilizar propostas de políticas públicas para a juventude. O estudo foi constituído por uma amostra de 3.501 jovens, distribuídos em diferentes regiões (capitais, interior e Distrito Federal), respeitando as características e diversidades regionais do Projeto Juventude, desenvolvido pelo Instituto Cidadania, cujo objetivo era o de apresentar ao Governo propostas de políticas públicas. O tema juventude, escolhido para as discussões entre os anos de 2003 e 2004, resultou em trabalhos divulgados em duas publicações: Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação e Retratos da juventude brasileira: análise de uma pesquisa nacional. Os referidos trabalhos têm servido como subsídios para implantação de políticas públicas para a juventude. Nos últimos três anos de sua gestão, o governo Lula desenvolveu discussões interministeriais que resultaram, no ano de 2005, nas três ações coordenadas pelo governo federal referentes à Juventude: o lançamento do Programa Nacional de Inclusão de Jovens: educação, qualificação e ação comunitária (ProJovem); a constituição da Secretaria Nacional de Juventude e, por fim, a implantação do Conselho Nacional de Juventude. Em relação a esse aspecto, destacamos a preocupação do Estado em responder às questões impulsionadas pela juventude, ou seja, responder aos anseios juvenis como questão social. Como ressaltamos anteriormente, a questão social refere-se aos diversos movimentos que questionam a própria existência da sociedade. Se, por um lado, a discussão sobre a questão social ganhou sistematização a partir do século XIX, com as consequências do pauperismo na sociedade industrial europeia, ganhou contornos diferenciados a partir do século XX. Os contornos, grosso modo, ligavam-se à inserção do indivíduo no mundo do trabalho, portanto tinham as classes sociais como principal referência de luta, debate e

enfrentamento (a questão social liga-se, nessa perspectiva, diretamente às características econômicas advindas da sociedade assalariada do século XX). Contemporaneamente, podemos observar um desafio tanto para o entendimento da realidade quanto para a proposição de Políticas Públicas: a complexidade social nos remonta não mais a um tipo de enfrentamento da questão social, mas sim, à consideração da diversidade tanto de grupos quanto de realidades. Nesse sentido, o jovem, mesmo aquele considerado vulnerável socialmente, não é uma “unidade” cujo vetor principal é a inserção no mundo dos economicamente produtivos; tampouco constitui um todo homogêneo, do ponto de vista sociocultural. A necessidade de se considerar a diversidade, ao se falar de juventude, é imperativa para o sucesso de uma ação política conduzida pelo Estado. Há de se perguntar em que medida as atuais ações citadas interagem com as novas questões sociais da juventude brasileira. O termo no plural revela uma tensão ligada diretamente ao papel do Estado contemporâneo. Por um lado, estamos nos referindo à caracterização da política pública, não mais pela via da homogeneização das práticas, mas, a partir da pluralidade de demandas e ações. Nesse sentido, os diversos grupos e segmentos sociais, com suas diversas demandas e prioridades, interagem na forma de pressão ao Estado. Ou seja, o nível de organização desses segmentos é decisivo no sucesso das reivindicações pela resolução (sempre parcial) de seus problemas. Por outro lado, destacamos a tensão econômica que revela o problema: as diversas questões sociais mostram uma necessidade maior de ação do Estado em relação às diversas demandas. Entretanto, as atuais formas de direcionamento das estruturas macroeconômicas baseadas na estabilização monetária, no controle de gastos e na diminuição da ação estatal, em diversas esferas sociais, declaram uma incapacidade de o aparelho estatal dar conta plenamente das demandas. Nesse sentido, a tensão se manifesta tanto na disputa pelo fundo público quanto na concepção dos principais atores que deverão responder às demandas dos segmentos organizados da sociedade. Um exemplo passível de análise e de breve articulação entre essas categorias teóricas é o Programa ProJovem. O ProJovem foi lançado em 02 de fevereiro de 2005, no Palácio do Planalto, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio de medida provisória. O governo expressava, como parte das políticas públicas para a juventude, o empenho em enfrentar os seus principais problemas, voltando-se para jovens de 18 a 24 anos que estivessem fora do mercado formal de trabalho e que não tivessem concluído o ensino fundamental. O ProJovem foi concebido em articulação com outros Programas, tais como o Programa Universidade para Todos (ProUni) , o Programa Escola de Fábrica e o Programa Primeiro Emprego. Contava, desde o

início, com R$ 300 milhões, garantidos no Orçamento da União em 2005, uma destinação aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2004. A previsão era a de incluir 200 mil jovens em 2005, por meio da realização de um curso de 12 meses, que lhes permitiria a obtenção da certificação do ensino fundamental, uma iniciação à formação profissional e o desenvolvimento de ação comunitária. Integrava o Programa a oferta de uma bolsa de R$ 100,00 mensais, a título de ajuda de custo, desde que os jovens inscritos preenchessem os requisitos de frequência de 75% das aulas e entregassem os seus trabalhos em dia. O ProJovem foi instituído pela Lei nº. 11.129, de 30 de junho de 2005, que criava, também, o Conselho Nacional da Juventude (CNJ) e a Secretaria Nacional da Juventude. As análises sobre o governo Lula devem levar em consideração as diversas variáveis. Alguns autores destacam que a reeleição de Lula demonstrou, por um lado, a vitória simbólica das camadas populares, ocupando o posto máximo da República. Entretanto, o autor destaca que a ascensão simbólica acaba sendo consentida pelas elites brasileiras que não tinham seus interesses econômicos questionados pelo governo, em um movimento que designa de hegemonia às avessas. Longe de apresentar um debate consensual sobre o assunto, destacamos tais reflexões como elementos que comprovam a necessidade de avaliar esse governo a partir da complexidade de práticas que ele sugeriu. A Lei 11.129 prevê, ainda, que o Programa tem validade durante dois anos, sendo avaliado ao término do segundo ano, com o objetivo de assegurar sua qualidade, podendo ser prorrogado por igual período, de acordo com as disponibilidades orçamentárias e financeiras da União. Pelo Artigo 3º da referida lei, a execução e gestão do ProJovem, em âmbito federal, implica uma conjugação de esforços entre a Secretaria Geral da Presidência da República, que o coordena, e os Ministérios da Educação, do Trabalho e Emprego e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, observada a intersetorialidade e sem prejuízo da participação de outros órgãos e entidades do Poder Executivo Federal. Percebe-se, aí, a preocupação com o exercício de ações articuladas, como parte de uma política pública para a juventude, assim como uma correspondente articulação entre entes municipais, uma vez que a Lei prevê, no parágrafo único desse artigo, que, no âmbito local, a execução e a gestão do ProJovem requerem a conjugação de esforços entre os órgãos públicos das áreas de educação, trabalho, assistência social e juventude. Inserindo-se no âmbito da política nacional da juventude, o ProJovem se colocou diante de um duplo desafio: a) criar as condições necessárias para romper o ciclo de reprodução das desigualdades e b) restaurar a esperança da sociedade em relação ao futuro do Brasil. Tais desafios expressam, no nosso entender, a vontade explícita e histórica-política de

enfrentamento de problemas reconhecidamente estruturais da sociedade brasileira, dentro dos limites concretos colocados por essa mesma sociedade em sua inserção no capitalismo internacionalizado, ensejando o alargamento desses limites. O caráter emergencial/assistencial do Programa é perfeitamente justificável por causa da demanda existente e das condições socioeconômicas desses jovens, predominantemente muito precárias, o que os torna “candidatos naturais” à marginalidade social e alvos fáceis para o submundo das drogas e do crime organizado. O que transcende esse caráter são os objetivos de formação geral integrada, qualificação profissional e engajamento cívico, que ensejam o desenvolvimento de ações educativas formadoras de uma consciência crítica, voltada para a emancipação social. Entende-se, na análise sobre as suas intenções, que a concepção de emancipação social não se vincula diretamente às relações de produção pela via da qualificação técnica, tão comum quando falamos de programas governamentais para jovens de classes mais baixas. Nesse sentido, a relação entre escolaridade, ação comunitária e qualificação para o trabalho parece ser um indicativo bem mais abrangente de construção de caminhos de emancipação para essa parcela da juventude. Convém ressaltar que o ProJovem, como parte da política nacional para a juventude, foi fruto do trabalho de um Grupo Interministerial da Juventude, criado em 2004, que envolveu 19 Ministérios, Secretarias e Órgãos técnicos especializados, para elaborar um diagnóstico sobre a juventude brasileira e definir ações governamentais voltadas especificamente para os jovens ou que contemplassem segmentos juvenis, visando sugerir referenciais para uma política nacional de juventude. Os autores do Programa consideram, ainda, que a implantação concomitante do ProJovem, da Secretaria Nacional da Juventude e do Conselho Nacional da Juventude “representa um novo patamar de políticas públicas voltadas para a Juventude brasileira, considerada em sua singularidade, diversidade e suas vulnerabilidades e potencialidades” (BRASIL, 2005, p. 6). Com efeito, o Projeto dedica todo um item à análise da juventude brasileira, em suas vulnerabilidades e potencialidades. As vulnerabilidades são evidenciadas, entre outros dados, pelo fato de que, em 2000, encontrava-se na faixa etária de 15 a 24 anos cerca de 20% da população, ou seja, 34 milhões de brasileiros alvos de novos mecanismos de exclusão social. No que se refere às potencialidades, o Programa destaca a questão do protagonismo e participação social da juventude.

A Juventude é a fase da vida mais marcada por ambivalências, pela convivência contraditória dos elementos de emancipação e subordinação, sempre em choque e negociação. Mas essa também é a fase de maior energia, generosidade e potencial

para o engajamento. Portanto, um programa dirigido aos jovens deve tomar como seus tanto os desafios que estão sendo colocados para essa geração quanto sua forma inovadora de encontrar respostas aos problemas sociais, chamando-os permanentemente para o diálogo e a participação cidadã (BRASIL, 2005, p. 11).

Trata-se, pois, de um Programa que considera as condições objetivas e subjetivas da sociedade brasileira e da sua juventude, ainda que em potencial, para nortear-se por um ideário com potencial transformador. A finalidade do ProJovem é proporcionar formação integral ao jovem, por meio de uma efetiva associação entre: a) elevação da escolaridade, tendo em vista a conclusão do ensino fundamental; b) qualificação com certificação de formação inicial e c) desenvolvimento de ações comunitárias de interesse público (BRASIL, 2005, p. 12).

Como objetivos específicos, são mencionados:

a) a re-inserção do jovem na escola; b) a identificação de oportunidades de trabalho e capacitação dos jovens para o mundo do trabalho; c) a identificação, elaboração de planos e o desenvolvimento de experiências de ações comunitárias e d) a inclusão digital como instrumento de inserção produtiva e de comunicação (BRASIL, 2005, p. 13).

O direcionamento do Programa Nacional de Inclusão de Jovens: educação, qualificação e ação comunitária revela algumas impressões iniciais. Além dos aspectos já ressaltados, citam-se dois pontos centrais neste debate. O primeiro aspecto refere-se a como o ProJovem (como Política Pública direcionada às demandas da Juventude urbana no Brasil) tem respondido relativamente às expectativas dos jovens considerados em situação de vulnerabilidade social ou em situação de risco (LECCARDI, 2005). Evidentemente, a ação do Programa não pode ser vista de forma isolada, mas, sim, em conjunto com a dinâmica socioeconômica da sociedade brasileira, tendo em vista que os caminhos emancipatórios (HONNETH, 2003) não são, de forma alguma, instituídos a partir da implementação de uma Política Social, mas, fundamentalmente, associados a reformas sociais, políticas e econômicas mais radicais. Depreende-se daí a importância da teoria social honnethiana como óculos profícuos no sentido avaliativo, mas, também como lacuna entre a própria política e o contexto sociocultural mais amplo onde o público-alvo se encontra. O termo referido revela, então, o caráter inconcluso da própria natureza e dinamicidade que se encontra atrelado à produção de conhecimento, alvo permanente de pesquisa. O objeto de estudo, portanto, deve ser percebido como complexo e passível de diversos olhares sociológicos.

O segundo aspecto de (in)conclusão revela que o desenvolvimento do Programa pode tomar feições e direcionamentos diversos, com base em variáveis como o papel das instâncias locais na sua condução, por exemplo. Evidentemente, o olhar sobre o ProJovem no município de João Pessoa indica a necessidade de estudos comparativos nas diversas municipalidades no sentido de aprofundar as variáveis postas. Logo, percebe-se que o Programa se apresenta como campo fecundo para investigações futuras. Finalmente, pode-se dizer também que, ainda que o Programa possa aumentar as possibilidades daquilo que propõe (como formação para a cidadania, iniciação ao mundo do trabalho, ação comunitária e, finalmente, aumento de escolaridade desta parcela da população), pode, da mesma forma, revelar a não vinculação direta entre aumento da escolaridade e a participação no mercado de trabalho, por exemplo. Neste caso, o olhar deve se voltar mais sobre as possibilidades de emprego e renda, no atual quadro da sociedade brasileira, do que propriamente sobre o Programa. Essa concepção procura afastar tanto os olhares ingenuamente otimistas (que veem na educação uma ponte direta para a inclusão social, pela via da inclusão no mundo do trabalho) quanto os pessimistas, que, neste caso, seriam fadados ao imobilismo por parte do Estado e de suas políticas públicas. Ou seja, talvez possível identificar, dentro dessa perspectiva, elementos sobre os quais nesse capítulo vem sendo tratados, qual seja uma concepção diferenciada de Política Pública, na qual se pode observar uma gradativa e maior participação dos jovens em parte da elaboração da política, especialmente, no que diz respeito à participação em sua comunidade, conhecendo a sua realidade e fundamentando esse conhecimento para, no futuro, possibilitarlhes intervenções mais concretas em sua própria realidade. Ou seja, percebem-se, assim, desdobramentos da noção de reconhecimento na implementação da Política, uma vez que o ProJovem não apenas é uma política elaborada de modo verticalizado, mas muito mais dialógico, existindo espaços nos quais os jovens podem construí-la, com possibilidade de se fomentar uma consciência crítica no jovem, uma vez que abre espaço para que este possa se tornar um produtor e não um mero reprodutor, dentro da sociedade em geral e da sua comunidade em particular. Assim, é possível extrair, sim, proficuidade da ideia de reconhecimento e da Teoria Crítica em tempos pós-modernos. Tempos de individualismo exacerbado, liquidez que fundar relações e, em consequência, tempos da necessidade de se rever e de reconfigurar ideias e, fundamentalmente, de rediscutir o lugar e a importância de instituições sociais como a escola e a própria Universidade. Desse modo, a título de conclusão, reafirmo o lugar da educação nesse instante singular da vida em sociedade apenas

para concordar com o diagnóstico de Bauman em torno da inevitabilidade dessa instituição “sob, para e apesar da pós-modernidade” (BAUMAN, 2008, p. 158).

PARA NÃO CONCLUIR...

É inevitável observar o modo por meio do qual o mundo tem se transformado de forma radical e rápida nas últimas décadas, trazendo à baila preocupações e conquistas as mais variadas. Assistimos a evolução de determinadas áreas da vida social, vemos a importância que certos valores passaram a ter ao mesmo tempo em que assistimos o declínio ou mesmo a reconfiguração e transformação de outros tantos. Dia a dia acompanhamos mudanças no Ocidente e no Oriente e na relação entre ambos, vemos grupos e indivíduos antes não conhecidos por nós se presentificarem na ordem do dia reivindicando o seu lugar na sociedade; observamos o papel que determinados setores das coletividades passaram a desempenhar na condução da vida, o novo lugar da criança, da mulher e o redesenhar da própria ideia de família e de juventude. Enfim, são tantas outras mudanças que, possivelmente, aqui, haveria pouco espaço para discriminá-las. Essas duas palavras que guiaram a nossa discussão podem nos auxiliar a compreender algumas delas e talvez também contribuir para forjar práticas educacionais distintas das já tradicionalmente ofertadas. Ora, a temática envolvendo as categorias moderno e pós-moderno é, sem dúvida, uma das mais fascinantes na história do pensamento social e, em particular, do conhecimento sociológico. Ao longo das últimas décadas, ela impulsionou o interesse de inúmeros pesquisadores das mais variadas áreas do conhecimento, sendo difícil especular em que lugar exatamente as inquietações em torno do problema inicialmente emergiram. Na sociologia o seu impacto foi crescente ao longo dos últimos e, como foi observar nas seções anteriores, consenso não é algo buscado, mas sim um esforço contínuo de traduzir essas mudanças recentes no sentido de nos conduzir a uma compreensão melhor do que nós estamos fazendo de nós mesmo ainda que, por vezes, esse entendimento nos assuste como, por exemplo, quando o sociólogo polonês Zygmunt Bauman em seu clássico estudo sobre o Holocausto nos diz que: “a civilização moderna não foi a condição suficiente do Holocausto; foi, no entanto, com toda a certeza, a sua condição necessária. Sem ela, o Holocausto seria impensável. Foi o mundo racional da civilização moderna que tornou viável o Holocausto” (BAUMAN, 1998, p. 32). Ou seja, ele argumenta que o nosso domínio da técnica permitiu a construção de uma tecnologia possível de destruir em massa. Trata-se de um exemplo dos elementos paradoxais

que constituem a ideia de moderno e também podem nos possibilitar, por um lado, identificar os nossos avanços e o potencial para ir adiante, mas também, por outro, nos conduzir inevitavelmente à autorreflexão sobre algumas das consequências perniciosas que se encontram imbricadas nesses mesmos avanços. A escola e a educação, nesse sentido, como instituições modernas de produção e reprodução de ideias e práticas precisam ser pensadas e tratadas como produto dessa modernidade ambígua e, às vezes, paradoxal para que, nós, educadores, saibamos compreender melhor a sua história, os seus problemas, o seu caráter, muitas vezes, autoritário e perverso, como também outra instituição moderna como a família pode ser. Mas, isso sem deixar de insistir em seu potencial revelador, esse que talvez possa nos levar mais adiante nessa jornada inacabada que é a vida. Na esteira do próprio Bauman, que possamos pensar, a partir daqui, sempre em defesa, a despeito de tudo e apesar de tudo, da importância persistente da escola e da educação no mundo contemporâneo.

REFERÊNCIAS

ABRAMO, H. W. Cenas Juvenis: punks e darks no espetáculo urbano. São Paulo: Scritta/Página Aberta, 1994. ALVIM, R.; PAIM, E. Os Jovens Suburbanos e a mídia: conceitos e preconceitos, In: ALVIM, R.; G. P. (Org.). Juventude Anos 90: conceitos, imagens e contextos. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. ARENDT, H. Origens do totalitarismo – anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989 [1951]. BAUMAN, Z. A sociedade individualizada. Vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. _____. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. _____.O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. _____. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott (orgs.), Modernização reflexiva. Política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997. BENJAMIM, W. Sobre o conceito da História. In: WALTER, B. Obras Escolhidas. Volume I. São Paulo: Brasiliense, 1994. _____. Experiência e pobreza. In: WALTER, B. Obras Escolhidas. Volume I. São Paulo: Brasiliense, 1994. BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. BOCK, S. D. A inserção do jovem no mercado de trabalho. In: ABRAMO, H. W.; FREITAS, M. V.; SPOSITO, M. P. (Org.). Juventude em Debate. São Paulo: Cortez; Ação Educativa, 2000. BRASIL, República Federativa do. Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação Comunitária - PROJOVEM. Disponível em: , 2002. Acesso em: 03 ago. 2005. BURBULES, N. As dúvidas pós-modernas e a filosofias da educação. In: GHIRALDELLI JR., M. (Org.). O que é filosofia da educação? Rio de Janeiro: DP&A, 2000. CARDOSO, R.; SAMPAIO, H. Estudantes universitários e o Trabalho. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, n. 26, p. 30-65, 1994.

CARVALHO, Marcus Vinícius Corrêa. Moderno, Modernidade, Modernização: polissemias e pregnâncias. In: GIL, Natália; ZICA, Matheus da Cruz e & FILHO, Luciano Mendes de. Moderno, modernidade e modernização: a educação nos projetos de Brasil – séculos XIX e XX. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2012. COSTA, S. Quase crítica: insuficiências da sociologia da modernização reflexiva. Revista Tempo Social, São Paulo, v. 16, n. 2, 2004. CORACINI, M. J. R. F. O discurso da linguística aplicada e a questão da identidade: entre a modernidade e a pós-modernidade. In: CORACINI, M. J. R. F.; BERTOLDO, E, S. O desejo da teoria e a contingência da prática. Campinas: Mercado de Letras, 2003. DERRIDA, J. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1997. DOMINGUES, J. M. Sociologia e modernidade - para entender a sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. DURKHEIM, É. A divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1995 [1893]. FREUND, J. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Forense, 2006. FRIDMAN, L. C. Vertigens pós-modernas: configurações institucionais contemporâneas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. Petropólis: Vozes, 1997. GHIRALDELLI JR. M. (Org.). O que é filosofia da educação? Rio de Janeiro: DP&A, 2000. GIDDENS, A. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, U., GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização reflexiva - política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora UNESP, 1997. _____. A transformação da intimidade. Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Unesp, 1993. _____. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991. _____. A constituição da sociedade. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1989. GUIMARÃES, A. S. A. A modenidade negra no Brasil, EUA e França. Trabalho apresentado na XXVI Reunião da ANPOCS, no GT: teoria social e transformações contemporâneas, Caxambu, Minas Gerais, 2002. HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990 [1985]. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1998.

_____. Da diáspora. Identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. São Paulo: Vozes, 1998 [1927]. HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos morais. São Paulo: Ed. 34, 2003. HUTCHEON, L. A poética do Pós-modernismo. Rio de janeiro: Imago, 1988. IANNI, O. A racialização do mundo. Revista Tempo Social, v. 8 (1), p. 1-23, São Paulo, 1996. JAMESON, F. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2007. KUJAWSKI, G. M. A crise do século XX. São Paulo: Ática, 1991. KUMAR, K. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna. Novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. LASH, S. Sociologia del pos-modernismo. Buenos Aires: Amorrortu, 1997. LECCARDI, C. Para um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo. Revista Tempo Social, v. 17, n. 2, São Paulo, 2005. LEMERT, C. Pós-modernismo não é o que você pensa. São Paulo: Edições Loyola, 2000. LIPOVETSKY, G. A era do vazio. Ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo, Barueri: Manole, 2005. LUKES, S. Individualismo. In: BOTTOMORE, T.; OUTHWAITE, W. (Org). Dicionário do Pensamento Social no século XX. Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 1996. LYON, D. Pós-modernidade. São Paulo: Paulus, 1998. LYOTARD, J-F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. MARTINS, H. H. T. S. A Juventude no contexto da reestruturação produtiva. In: ABRAMO, H. W.; FREITAS, M. V.; SPOSITO, M. P. (Org.). Juventude em Debate. São Paulo: Cortez/Ação Educativa, 2000. MELUCCI, A. Juventude, Tempo e Movimentos Sociais. Revista Brasileira de Educação, n. 5 e 6, Rio de Janeiro, 1997. MINAYO, M. C. S. et al. Fala, Galera: juventude, violência e cidadania. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. NISBET, R. Sociedade. In: OUTHWAITE, W.; BOTTOMORE, T.; GELLNER, E.; NISBET, R.; TOURAINE, A. (Org.). Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

NOVAES, R. Juventude e Participação Social: apontamentos sobre a reinvenção da política. In: ABRAMO, H. W.; FREITAS, M. V.; SPOSITO, M. P. (Org.). Juventude em Debate. São Paulo: Cortez/Ação Educativa, 2000. OLIVEIRA, Manfredo . Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 1996. PAIVA, M. R. Juventude e Mobilização. In: ABRAMO, H. W.; FREITAS, M. V.; SPOSITO, M. P. (Org.). Juventude em Debate. São Paulo: Cortez/Ação Educativa, 2000. PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. RIBEIRO JÚNIOR, J. Augusto Comte e o positivismo. Campinas: Edicamp, 2003. ROTH, Philip. A marca humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SANTOS, J. F. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 2000. SEIDEL, R. H. Do futuro do presente ao presente contínuo: Modernismo vs. PósModernismo. São Paulo: Annablume, 2001. SELL, C. E. Sociologia Clássica: Marx, Durkheim e Weber. Rio de Janeiro: Vozes, 2014. _____ . Max Weber e a racionalização da vida. Rio de Janeiro: Vozes, 2013. SENNET, R. O declínio do homem público. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. SILVA, J. M. Apresentação. In: LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. Ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo; Barueri: Manole, 2005. SILVA, T. T. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T. T. (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000. SMART, B. Modernity, postmodernity and the present. In: TURNER, B. (Org.), Theories of Modernity and Postmodernity. London and Newbury Park, CA: Sage, 1990. SOUZA, J. C. (Org.). Filosofia, racionalidade, democracia. Os debates Rorty & Habermas. São Paulo: UNESP, 2005. SZTOMPKA, P. A sociologia da mudança social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. TAYLOR, C. The politics of recognition. In: GUTMANN, A. (Org.). Multiculturalism: examining the politics of recognition. Princeton/Chichester: Princeton University Press, 1994. VANDERGERGHE, F. As sociologias de Georg Simmel. São Paulo: Edusc; Belém: Editora UFPA, 2005. USHER, R.; EDWARDS, R. Postmodernism and education. Londres: Routledge, 1996.

VATTIMO, G. O fim da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 1996. WAIZBORT, L. As Aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Ed. 34, 2000. WEBER, M. A nação. In: WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982. _____. Relações comunitárias étnicas. In: WEBER, Max.Economia e Sociedade, v. 1. Brasília: Ed. UnB, 1994 [1921a].

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.