Entre o desenvolvimentismo e a preservação do patrimônio. O caso do Pontal da Barra, no sul do Brasil, Pelotas-RS

July 6, 2017 | Autor: R. Guedes Milheira | Categoria: Archaeology, Sustainable Development, Heritage Conservation, Cultural Heritage Management
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Copyright 2015 - ULAC Fondo Editorial de la Universidad Latinoamericana y del Caribe (FEULAC) Paseo Enrique Eraso. Torre La Noria, pisos 1 y 2. Urb. San Román. Caracas, Venezuela. Déposito legal: Ifi17120153002144 ISBN: 978-980-7045-05-6 Este libro es una publicación arbitrada de la ULAC

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Consejo Directivo Rectora

Dra. Olga Durán de Mostaffá

Coordinador de Postgrado Dr. Julio Flores

Coordinadora del Doctorado en Patrimonio Cultural Dra. Jenny González Muñoz

Comité Editorial y Arbitraje Dr. Julio Flores Dra. Jenny González Muñoz Dr. Evelio Salcedo Dra. Zoila Rosa Ramírez Dr. Agustín Martínez Colección Francisco de Miranda - Volumen I Ser de imagen y de signo: Abordajes sobre el Patrimonio Cultural

Organizadora- Editora

Dra. Jenny González Muñoz

Diseño Editorial

Samuel Schoenberger

Digitalización

Fondo Editorial de la Universidad Latinoamericana y del Caribe (FEULAC)

Corrección

Jenny González Muñoz Jenirée Marín

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ÍNDICE Presentación……………………………………………………………………………5 Prólogo…………………………………………………………………………………7

PRIMERA PARTE ASPECTOS DEL PATRIMONIO CULTURAL MATERIAL Entre o desenvolvimentismo e a preservação do patrimônio. O caso do Pontal da Barra, no sul do Brasil, Pelotas-RS Rafael Guedes Milheira………………………………………………………………16 Los planes urbanos y la pérdida del patrimonio. La modernidad de Caracas y Valencia en 1950 Sara de Atiénzar………………………………………………………………………39 Plaza Venezuela: Paisaje del tiempo María del Carmen Sánchez……………………………………………………………55 Independencia y República en una plaza. Valencia 1821-1890 Patricia Atiénzar ………………………………………………………………………76 Una aproximación al significado cultural del Liceo Antonio José de Sucre, de Cumaná: Bien cultural de principios del siglo XX Ysmery Tineo Toledo……………………………………………………………………92 Memoria, identidad y progreso de la ciudad industrial de Venezuela Andreina Guardia de Baasch……………………………………………….…………114 El bahareque, patrimonio cultural de Venezuela Inés Y. Puente………………………………………………………………….………130 Ontología de Santa María de la Cabeza: La fortaleza Tivisay Guzmán ………………………………………………………………………144

SEGUNDA PARTE SENTIRES DEL PATRIMONIO CULTURAL INMATERIAL El carnaval en El Callao, estado Bolívar José Marcial Ramos Guédez…………………………………………………………157 Múltiples miradas sobre el patrimonio cultural inmaterial Jenny González Muñoz………………………………………………………………167

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La elaboración del altar para la festividad de la Cruz de Mayo. Barrio Marín, San Agustín del Sur. Caracas Raimundo Mijares …………………………………………………………….………187 La Virgen del Carmen de Güiria: Un espacio socio histórico de construcción de la identidad cultural Carmen Cecilia Casas …………………………………………………………………206 Conucos, cayapas y cabañuelas: Biopatrimonio, saberes comuneros y tradiciones agro-culturales entre los píritu-cumanagoto de Venezuela Maury Abraham Márquez González ……………………………………….…………221 La oralidad como fuente para la construcción de la memoria cultural Sandra Bruzual ………………………………………………………………………244 Bandola y Barbat-taar: Patrimonio cultural venezolano e iraní Gabriel Gómez ………………………………………………………………………250

TERCERA PARTE APORTES DESDE EL PATRIMONIO CULTURAL Un modelo de gerencia y humanismo del patrimonio sociocultural caraqueño Gustavo Rafael Merino Fombona……………………………………………………267 Gestión del patrimonio integral: Parroquia Macarao, municipio Bolivariano Libertador Iris Salcedo …………………………………………………………………………285 Identidad cultural: Imagen y espectáculo Ana Isabel Ramos ……………………………………………………………………298 Micros radiales para la educación en patrimonio cultural: Una mirada desde el universo simbólico emocional del ser humano Irene Puigvert …………………………………………………………………………314 Objetos de ensino de Química no Instituto Profissional Feminino (SP), Brasil (1934 – 1939) Maria Lucia Mendes de Carvalho y Marcus Granato…………………………………332 Geografía del Cimarronaje hacia la visibilización del Patrimonio Cultural Afrodescendiente en el MERCOSUR Juan Carlos Piñango Contreras ………………………………………………………353

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ENSAYO VISUAL Paranapiacaba, uma vila inglessa no Brasil: fuligem, ferrugem e modernidade na serra do mar Natália Martins de Oliveira Gonçalves………………………………………………361

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Entre o desenvolvimentismo e a preservação do patrimônio. O caso do Pontal da Barra, no Sul do Brasil, Pelotas-rs por: Rafael Guedes Milheira 1 Resumo Este trabalho trata de um contexto conflitivo que envolve o banhado do Pontal da Barra, localizado na praia do Laranjal, na cidade de Pelotas, Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. A situação tem colocado, de um lado, os empreendedores e proprietários de um projeto de loteamento residencial, e, de outro lado, ambientalistas (ecólogos, biólogos, advogados, professores, arqueólogos, políticos, antropólogos e historiadores), e membros de coletivos locais (em geral, moradores da localidade do Pontal da Barra), que se uniram em prol da preservação do banhado do Pontal da Barra. No local, situam-se espécies de animais ameaçadas de extinção, coletivos de pescadores tradicionais, sítios arqueológicos e áreas úmidas de importância singular para a manutenção do ecossistema da várzea do Canal São Gonçalo. Embora seja um conflito de âmbito local, o caso do Pontal da Barra ultrapassa a esfera local e expõe uma série de problemas da política ambiental e patrimonial do Brasil, sendo um estudo de caso exemplar, que permite partir do conflito político local e abordar a estrutura global de repressão do Estado Nacional brasileiro. Além de avaliarmos a situação atual do processo do Pontal da Barra, sob a ótica do patrimônio arqueológico, nosso intuito é também denunciar as más práticas de gestão do patrimônio e apontar medidas de preservação da Paisagem Cultural.

Palavras-chaves

Patrimônio cultural Arqueologia Gestão do patrimônio Pontal da Barra, Cerritos

Introdução Este trabalho trata de um contexto conflitivo que envolve o banhado do Pontal da Barra, localizado na praia do Laranjal, na cidade de Pelotas, Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Esse conflito tem colocado, de um lado, os empreendedores e proprietários de um projeto de loteamento residencial, e, de outro lado, os ambientalistas (ecólogos, biólogos, advogados, professores, arqueólogos, políticos, antropólogos e historiadores), e membros de coletivos locais (em geral, moradores da localidade do *

1. Professor do Bacharelado em Antropologia/Arqueologia e do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas. Professor do Programa de Pós-graduação em Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Santa Maria. Coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia (LEPAARQ/UFPel) -

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Pontal da Barra, que atuam como pescadores tradicionais), que se uniram em prol da preservação do banhado do Pontal da Barra, onde se situam espécies animais ameaçadas de extinção, coletivos de pescadores tradicionais, sítios arqueológicos e uma área úmida de importância singular para a manutenção do ecossistema da várzea do Canal São Gonçalo. A união desses diferentes atores ocorre através da articulação de um coletivo social chamado Movimento Pontal Vivo. O caso do Pontal da Barra expõe, há mais de vinte anos, de um lado, o interesse desenvolvimentista que busca a construção de um loteamento popular com centenas de terrenos a serem demarcados e vendidos. É um projeto de interesse unilateral que visa ao lucro capital e que tem se mostrado completamente indiferente aos interesses coletivos e à opinião pública sobre o banhado do Pontal da Barra. Esse empreendimento vem sendo projetado e realizado desde meados dos anos 1980, contando com várias Licenças Ambientais dos órgãos públicos responsáveis. Essas licenças têm sido altamente criticadas pelo Ministério Público Federal brasileiro com base em laudos científicos tecnicamente elaborados. Várias delas foram utilizadas como estratégias para a concretização do projeto de urbanização do banhado do Pontal da Barra, desde a projeção de loteamentos residenciais até a criação de um hotel do tipo resort. Os discursos midiaticamente divulgados no intuito de convencer a opinião pública, os gestores públicos e os técnicos dos órgãos de proteção ambiental e patrimonial também oscilam entre: o fortalecimento do turismo local, a urbanização ordenada para evitar a favelização do espaço, o aquecimento do comércio local e a incrementação da infraestrutura urbana para as áreas adjacentes. A área a ser urbanizada corresponde a um espaço de, aproximadamente, 1,6 km por 1 km, relativa a uma área de 1,6 km². O projeto de loteamento residencial, ainda em tramitação em diversas instâncias da gestão pública, tem uma área total de 163,63ha, correspondendo a 2268 lotes, sendo respeitados: 5,13 ha de Área Institucional; 9,80 ha de Área Verde; 11,86 ha de Área de Lazer; 3,86ha de Matas Nativas e 9,75 ha de Áreas de Arborização das Ruas. Além disso, no banhado do Pontal da Barra, existe uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) com uma área de 65,33 ha, que também não será loteada.

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Figura 1. Imagem de satélite da localidade do Pontal da Barra, indicando a delimitação do empreendimento em projeção e locação dos Cerritos.

Do outro lado, um movimento social que articula diferentes segmentos da sociedade pelotense, que visa à preservação do patrimônio cultural e ambiental. Além dos sítios arqueológicos, o movimento busca também a preservação do banhado do Pontal da Barra e de toda a sua diversidade de fauna e flora, suas mais de 500 espécies de animais, alguns deles em ameaça grave de extinção, como é o caso dos peixes anuais - Austrolebias nigrofasciatus e Austrolebias wolterstorffi. O Movimento luta, também, em prol da preservação do banhado por uma questão de proteção social e urbana, pois, frequentemente, o bairro do Valverde, englobado pela localidade do Pontal da Barra, sofre com alagamentos e inundações causadas pela elevação repentina do nível da laguna dos Patos, o que causa perdas materiais aos coletivos humanos locais. Da mesma forma, o Movimento sensibiliza-se com a comunidade de pescadores artesanais do Pontal da Barra, cuja atividade pesqueira embasa a identidade comunitária de coletivos específicos do Pontal da Barra (NEBEL, 2014). O banhado do Pontal da Barra é o palco de um conflito assimétrico, que envolve diferentes atores sociais, cujos interesses e preocupações ultrapassam a unilateralidade. É um conflito bastante comum na contemporaneidade, visto que tem sido cada vez mais frequentes os embates que envolvem o uso de espaços geográficos de diferentes escalas para a construção civil diante dos interesses de preservação de ambientes ecológicos e de áreas de patrimônio cultural, que remetem ao passado de sociedades nativas e ao presente de coletivos tradicionais.

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É exatamente nesse ponto que o presente trabalho busca dar sua contribuição à discussão sobre patrimônio cultural. Pretendemos apresentar uma caracterização que observa os sítios arqueológicos em articulação à paisagem circundante. Ademais, buscaremos demonstrar como o contexto arqueológico deve ser entendido e, portanto, preservado em consonância com a legislação de proteção ao patrimônio arqueológico no Brasil e com os interesses coletivos envolvidos no palco dos conflitos: o banhado do Pontal da Barra.

Pontal da Barra: o palco dos conflitos O Pontal da Barra situa-se no litoral do município de Pelotas, estado do Rio Grande do Sul, no extremo sul do Brasil. É uma localidade às margens da laguna dos Patos, inserida na praia do Laranjal, correspondendo a parcelas do balneário Valverde e de Santo Antônio, lugares que vem sendo, paulatinamente, ocupados como área de moradia desde, pelo menos, os anos 1950. De acordo com Oliveira (1993 apud CRUZ, 2008), a urbanização da Praia do Laranjal que, por volta do ano de 1800, era centro de produção e escoamento de trigo, teve início em 1946, quando a família Assumpção, dona daquela área, decidiu doar terrenos para a prefeitura. Desta oferta resultou a construção de uma praça pública, de um posto policial e de um restaurante, já visando atender aos que buscassem repouso na praia do Laranjal. Segundo Costa (2007 apud CRUZ, 2008), o primeiro loteamento do balneário Santo Antônio foi demarcado por volta do ano de 1950, no que, atualmente, corresponde à porção noroeste deste balneário. Nessa época o arroio Pelotas, cujo baixo curso disseca o caminho entre o centro urbano e o balneário, era transposto por meio de uma balsa. Segundo Cruz (2008, p. 9), pouco tempo depois, iniciou-se a construção do loteamento do balneário Valverde, que se fundiu, nos anos 1970, ao balneário Santo Antônio. Atualmente, segundo Oliveira (1993) e Cruz (2008), os balneários Santo Antônio e Valverde apresentam a maior concentração demográfica e maior infraestrutura urbana entre as praias do Laranjal. Esse fator tem trazido graves consequências ao patrimônio ambiental e cultural, com a perda de áreas verdes, deposição gradativa e desregrada de resíduos domésticos, ocupação irregular de áreas que deveriam ser consideradas de preservação permanente, entre outros fatores degradantes. Através da composição das imagens aerofotogramétricas destacadas a seguir (FIGURA 02) e do mapa (FIGURA 03), pode-se observar o desenvolvimento urbanístico da praia do Laranjal desde o ano de 1953 até o ano de 2004, envolvendo ambos os balneários. Fica evidente, através deste levantamento de imagens, que o crescimento ocorreu de forma intensiva em direção ao Pontal da Barra (ao sul), onde ainda são resguardadas áreas verdes limitadas e circunscritas.

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Figura 2: Evolução da urbanização nos balneários Santo Antônio e Valverde – Praia do Laranjal. Fonte: levantamento aerofotogramétrico / Agência da Lagoa Mirim e Prefeitura Municipal de Pelotas, 2006. Modificado de Cruz (2008, p. 8)

Figura 3: Evolução dos loteamentos nos balneários Santo Antônio e Valverde – Praia do Laranjal. Fonte: Editado por LabTec i. a. / UCPel, a partir de Agência da Lagoa Mirim e Prefeitura Municipal de Pelotas, 2007. Modificado de Cruz (2008, p. 9)

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O Pontal da Barra corresponde a uma extensão da praia do Laranjal que se configura, morfologicamente, como uma ponta de areias quartzosas. É onde se situa a desembocadura do canal São Gonçalo, por onde adentram as águas da Laguna dos Patos no período do verão. O lugar, segundo Cruz (2008) é um remanescente de um dos ecossistemas mais importantes da região. O banhado: Em termos ambientais, e de forma geral, essa importância gira em torno de sua significante participação nos ciclos naturais [por exemplo: o da água e o do carbono], da imensa biodiversidade típica desses ecossistemas, e do controle que exercem nas áreas vizinhas, principalmente com relação à dinâmica hídrica e sedimentológica (SEELIGER, 1998). [...] Ambientalmente, além da importância geral dos banhados, o Pontal da Barra guarda em sua biodiversidade espécies animais endêmicas, serve de abrigo e local de reprodução para aves migratórias, e reduz os efeitos da poluição e do assoreamento na Laguna dos Patos e no Canal São Gonçalo (CRUZ, 2008, p. 11-14).

Figura 04: Vista aérea da várzea do canal São Gonçalo, indicando a localização do Pontal da Barra, à margem da laguna dos Patos.

A cobertura vegetal no Pontal é formada, principalmente, por uma vegetação paludosa, típica de banhados, que pode ser descrita como uma formação pioneira, dominada por ciperáceas (Scirpus spp, Cladium jamaicensis Crantz, Cyrpus californicus, Cyperus giganteus Vahl.), conhecidas popularmente como juncais. Além disso, no banhado do pontal ocorrem alguns capões de mata nativa em avançado grau de degradação, pois é muito comum a exploração das mudas nativas para a comercialização, assim 21

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como para a venda de lenhas e de outros tipos de plantas para jardins. Outro fator que vem debilitando intensamente a cobertura vegetal do pontal é a criação de gado, atividade pastoril que, de longa data, trouxe impactos visíveis ao banhado, pois, em algumas áreas que antigamente eram juncais e mata nativa, há, atualmente, apenas uma cobertura vegetal de gramíneas, o que transformou áreas alagadas em campos. O banhado do Pontal da Barra funciona como uma ferramenta natural de controle hidrológico que regula, portanto, o aumento das águas da laguna dos Patos. No bairro Valverde, em média, a cada quatro anos, ocorrem tragédias relativas aos alagamentos causados pelos fenômenos naturais (mudança do vento, por exemplo), mas, amplamente agravadas pela supressão do banhado. Nessas ocasiões, os moradores do bairro perdem suas casas, que ficam alagadas e com seu mobiliário destruído, colocando as pessoas em perigo de morte. Além disso, o frequente aterramento do banhado vem causando mais um problema relativo aos animais peçonhentos que adentram as residências familiares devido ao seu hábitat natural estar sendo destruído pelos caminhões, retroescavadeiras e, até mesmo, fogo criminoso. Sem outra opção, os animais fogem para as áreas não atingidas momentaneamente, como os pátios das casas e terrenos baldios.

Figuras 5 a 7: a) depósito de lixo irregular no banhado; b) fogo criminoso ateado ao banhado do Pontal da Barra no ano de 2010: cena que se repete frequentemente; c) máquinas aterrando o banhado para construção do loteamento. Fotos: Acervo: Pontal Vivo.

A projeção do loteamento residencial irá trazer um grande impacto também à biodiversidade ambiental, pois, além da vegetação típica de banhado, importante para o ecossistema lagunar, são conhecidas, pelo menos, duas espécies de peixes sazonais ameaçados de extinção, os quais se encontram criticamente em perigo: Austrolebias nigrofasciatus e Austrolebias wolterstorffi (ROSA E LIMA, 2008). Além dos peixes, várias espécies de aves correm o mesmo risco (MAURICIO e DIAS, 2000). Neste sentido, além da ameaça de degradação do patrimônio arqueológico, a perda da biodiversidade animal e vegetal e os danos sociais são aspectos negativos da urbanização do espaço do Pontal da Barra. Historicamente, essa localidade vem sofrendo pressões antrópicas e, além de estudos detalhados da riqueza patrimonial cultural da localidade, ações políticas têm sido realizadas para frear os empreendimentos, no intuito de proteger esse remanescente ambiental, que já foi integrado na identidade dos moradores locais. 22

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Pontal da Barra: histórico de conflitos, histórico de lutas e resistência A história do Pontal da Barra está atrelada a um amplo processo de resistência. Em primeira escala, a própria comunidade de moradores da Colônia de Pescadores do local resiste às estratégias da administração pública do município de Pelotas para a sua mudança. Desde os anos 1970, a comunidade de pescadores, atualmente com 60 famílias oriundas de várias localidades da orla da laguna dos Patos onde a pesca é tradicional (Colônia Z3, Ilha da Feitoria, Ilha de Sarangonha, Ilha do Pesqueiro), luta pela sua permanência no Pontal contra todas as políticas de pressão para sua retirada. Se, hoje, os moradores do Pontal da Barra podem usufruir de uma infraestrutura básica, como água encanada e luz, foi a união comunitária e a postura coletiva de permanência e resistência que permitiu a sua manutenção e a conquista de melhorias. Por consequência, resistiram e resistem à marginalização e à invisibilidade comumente auferidas às zonas ribeirinhas do Brasil, onde habitam comunidades de pescadores tradicionais. Resistiram ao descaso do poder público, que argumentava devido ao fato de a comunidade estar localizada em terreno de marinha e em área de preservação ambiental. No entanto, segundo relatos etnográficos obtidos por Nebel (2014), essa argumentação seria claramente uma estratégia do poder público em evitar a consolidação da comunidade e a criação de uma “favela” no local (NEBEL, 2014).

Figura 8: Vista panorâmica da comunidade de Pescadores do Pontal da Barra. Foto: Nebel (2014, p. 52).

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Porém, mesmo resistindo, parte dos pescadores tradicionais que habitavam a orla da laguna dos Patos, nas imediações do Pontal da Barra, foi deslocada compulsoriamente de suas casas por ordem judicial, entre os anos de 2010 e 2011. Tratava-se da Vila de Pescadores do Trapiche, uma pequena comunidade anexa ao Pontal da Barra, com 30 famílias que se alojaram na orla da praia do Laranjal. Essas famílias tratadas, judicialmente, como “posseiros”, “invasores” e foram responsabilizados pelo “enfeiamento da paisagem” e por estarem acelerando o processo de deterioração do ambiente de banhados do Pontal da Barra. Por este motivo, foi aberta uma ação judicial movida pela Prefeitura Municipal de Pelotas, para a retirada dessas famílias (RUAS 2012). Segundo Nebel (2014), com a deslocação compulsória, elas foram realojadas em outras partes da cidade de Pelotas, a distâncias expressivas da orla da laguna, o que lhes têm causado enormes problemas, hoje, desde dificuldades de identificação social com os novos lugares, até a manutenção do sustento de suas famílias, visto que era a prática da pesca sua atividade de geração de renda. Ainda de acordo com Nebel (2014), esse processo é típico das ações administrativas de “desterritorialização” e “gentrificação”, o que envolve a retirada de comunidades de baixa renda, nesse caso, de pescadores tradicionais, para a chamada “revitalização do espaço”. Nesse caso, a “revitalização” atende a uma demanda privada, cujo impacto sobre o ambiente de banhados será devastador . Esse é, nitidamente, um caso em que o Estado lança mão de seu aparato repressor jurídico a serviço de empresas privadas, com interesses particulares, que visam ao lucro.

Figura 9: Vila de Pescadores do Trapiche. Foto retirada de Nebel (2014, p. 64).

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Em segunda escala, há um movimento de ambientalistas e simpatizantes do Pontal da Barra que atua desde o princípio do planejamento do loteamento Pontal da Barra. Nos anos 1980 e 1990, um grupo formado por ecólogos e biólogos da cidade de Pelotas ativou ações públicas e judiciais contra o empreendimento. No entanto, a falta de subsídios técnicos, naquele momento, foi favorável à legalização do empreendimento, o que permitiu à FEPAM (Fundação Estadual de Proteção Ambiental) licenciar as obras. Entre o final dos anos de 1990 e 2000, poucos foram os movimentos em defesa do Pontal da Barra, o que coincidiu com um resfriamento da economia local e, por conseguinte, com a estagnação parcial das obras de construção do loteamento (RUAS 2012). Somente com a identificação dos sítios arqueológicos e de espécies ameaçadas de extinção houve uma retomada de ações públicas e judiciais. Isto porque, esses dados demonstram a grande importância do Pontal como espaço de memória histórica e arqueológica, bem como um nicho ecológico de alta biodiversidade, Inicialmente, as ações junto aos órgãos de defesa do meio ambiente e do patrimônio cultural brasileiro foram realizadas separadamente, porém, os sujeitos envolvidos passaram a constituir, a partir do ano de 2011, um coletivo político em defesa do banhado, conhecido como “Movimento Pontal Vivo”. Esse movimento atua de maneira autônoma, sem vinculações partidárias, interagindo através de redes sociais, reuniões presenciais para tomada de decisões e ações públicas, como protestos, exposições de fauna e flora e materiais arqueológicos que compõem o patrimônio ambiental e cultural do Pontal. Além de ações públicas que buscam sensibilizar a sociedade pelotense sobre a importância do Pontal da Barra, o Movimento Pontal Vivo organizou dois seminários nos anos de 2012 e 2014. Esses eventos foram de cunho acadêmico, mas tiveram ampla repercussão social. Deles participaram técnicos, ambientalistas e representações políticas locais, no intuito de discutir os aspectos legais do empreendimento, publicizar o patrimônio ambiental e cultural e pensar em estratégias de resistência e luta contra a destruição do banhado do Pontal da Barra.

Figura 10: foto de membros do “Movimento Pontal Vivo” em uma ação de protesto em defesa do banhado do Pontal da Barra. Acervo: Pontal Vivo.

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O Movimento Pontal Vivo foi responsável - através de protestos, denúncias e fiscalização em campo - pela ativação de ações junto aos órgãos públicos como FEPAM e IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), como, até mesmo, junto ao Ministério Público Federal. Atualmente, as obras do loteamento Pontal da Barra estão embargadas por ordem judicial, até que as atividades de peritagem sejam realizadas no local com o objetivo de subsidiar tecnicamente novas decisões judiciais. Além disso, junto ao IPHAN foi aberto um processo de Chancela de Paisagem Cultural, cuja aprovação pode definir a preservação integral do banhado do Pontal da Barra. O conceito de Paisagem Cultura vem sendo empregado como uma ferramenta importante em defesa do patrimônio cultural brasileiro em alguns contextos patrimoniais singulaers. A Paisagem Cultural é: uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores. Diante das transformações contemporâneas e inevitáveis das formas de vida e paisagens do mundo, alguns lugares devem ser assinalados pela relação singular estabelecida entre o homem e a natureza (...). Nesse caso, A chancela de Paisagem Cultural busca assinalar a diversidade de relações que o homem estabeleceu com seu meio, criando cenários de vida que diferenciam os lugares e por isso, testemunham a inteligência, a criatividade e contribuem para a riqueza humana. É preciso estabelecer o entendimento de que a uniformização das paisagens significa o empobrecimento dos cenários de vida e da alma humana. O reconhecimento e a perpetuação de contextos singulares busca a igualdade na diferença, o equilíbrio pela diversidade, a compreensão de cada um pela existência do outro (WEISSHEIMER, 2010).

O Patrimônio Arqueológico do Pontal da barra: os cerritos No banhado do Pontal da Barra, na beira do canal São Gonçalo e da Laguna dos Patos, foi identificado um complexo de 18 cerritos, os quais se encontram ameaçados pelo empreendimento imobiliário em questão. Os cerritos são sítios arqueológicos que se configuram por serem aterros construídos, predominantemente, com terra e diferentes tipos de vestígios de cultura material: restos de fauna, instrumentos líticos e fragmentos de cerâmicos, estruturas de fogueiras e enterramentos humanos. Além de serem encontrados na bacia hidrográfica da laguna dos Patos, os cerritos se encontram no Sul da América do Sul, distribuídos nas porções Leste e Norte do Uruguai, Sul do Brasil (Rio Grande do Sul) e na porção Nordeste da Argentina, ocorrendo, predominantemente, no bioma Pampa, em ambientes alagadiços com datações que oscilam entre 4500 anos A.P. e 200 anos A.P. (LOPEZ MAZZ e BRACCO, 2010). Sinteticamente, podemos dizer que os cerritos são pensados como áreas de sepultamentos, demarcadores territoriais, bem como áreas de descarte de refugo, praças centrais das aldeias e, acampamentos de pesca e plataformas arquitetônicas erguidas para a habitação em áreas alagadiças. Além disso, os aterros são vistos como 26

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monumentos que remontam à memória histórica e à identidade social contemporânea dos índios pampeanos, cujas interpretações mais recorrentes correlacionam a construção e o uso dos cerritos às ocupações dos índios Charrua-Minuano (SCHMITZ, 1976; BASILE-BECKER, 1992; LOPEZ MAZZ e BRACCO, 2010).

Figura 11:- Remanescentes Charrua, século XIX, Uruguai.

As datações radiocarbônicas apontam que a ocupação do Pontal da Barra ocorreu desde, em média, 2500 anos A.P., até, pelo menos, 1200 anos A.P., sugerindo ser uma ocupação indígena bastante antiga e permanente que perdurou por aproximadamente 1300 anos (MILHEIRA, 2013). As escavações arqueológicas no entorno dos cerritos e análises de vestígios botânicos provenientes do sedimento de um dos cerritos denominado PSG-01, revelaram que o ambiente no período de ocupação deveria ser mais úmido, o que sugere que o banhado seria mais denso do que na atualidade (SOARES 2014). Isso leva a crer que os ocupantes dos cerritos teriam um ambiente mais encharcado, configurando vias de acesso entre os diferentes nichos ecológicos que compõem a várzea do canal São Gonçalo, possibilitando a mobilidade dos cerriteiros.

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Figuras 12 e 13: imagem aérea (adaptada de SOARES 2014) e vista panorâmica do Pontal da Barra em épocas de cheia (foto do autor), em que fica evidente a importância da área alagada no entorno dos cerritos e que permitiria mobilidade e circulação pelo ambiente lagunar.

Os cerritos do Pontal da Barra parecem ter sido construídos como plataformas elevadas para moradia em ambientes alagados, visto que os mesmos se localizam em áreas topograficamente mais elevadas. Porém, a função dessas estruturas de aterro não se limitava apenas a moradias. A análise química do sedimento do cerrito PSG-02 apontou um grande potencial agrícola do montículo e estudos iniciais de arqueobotânica, já realizados, permitiram a identificação de plantas que poderiam ter sido manejadas para consumo (SOARES 2014). Os indícios de caça e pesca, por outro lado, nos permitem ter clareza da importância dos animais vertebrados na dieta alimentar. São muito frequentes, em primeiro lugar, vestígios ósseos de peixes da laguna dos Patos, como corvina (Micropogonias furnieri) e bagre (família Ariidae) e, até mesmo, a miraguaia (Pogonias cromis), cuja espécie era comumente encontrada na laguna há 40 ou 50 anos atrás, sendo rara sua presença na atualidade. São normalmente encontrados, também, ossos humanos que remetem a sepultamentos. Esses sepultamentos denotam um aspecto simbólico, portanto, dos montículos de terra que reforçam a ideia de que esses aterros não são apenas moradias, tampouco apenas acampamentos de pesca lacustre. Em nosso entendimento, é possível apontar que esses cerritos seriam multifuncionais, sendo usados como áreas de moradia, túmulos, acampamentos de pesca e, possivelmente, como áreas de plantio, interpretação que ainda carece de mais dados empíricos. 28

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Figura 14: (01) banhado do Pontal da Barra com capão de mato típico de onde se localizam os cerritos; (02) perfil estratigráfico retificado no cerrito PSG-02; (03) escavação arqueológica no topo do cerrito PSG-02; (04) osso de peixe identificado no cerrito PSG-04; (05) fragmento de cerâmica com decoração escovada identificada no cerrito PSG-04; (06) material lítico polido identificado no cerrito PSG-02; (07) mandíbula humana associada a pingente em dente de golfinho no cerrito PSG-02.

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Danos causados aos cerritos do Pontal da Barra pelo loteamento No ano de 2009, foi feito um levantamento sistemático para a composição de um diagnóstico e prospecção arqueológica, em atendimento à legislação. Trata-se do Programa Arqueológico de Diagnóstico e Prospecção na região do Pontal da Barra, Pelotas – , protocolado na 12ª Superintendência Regional do IPHAN (Processo IPHAN nº 01512.000814/2009-83) e autorizado por este órgão (Portaria IPHAN n. 8, de 13 de outubro de 2009). Este programa buscou atender a legislação referente aos empreendimentos imobiliários em área de interesse arqueológico2 (CERQUEIRA, MILHEIRA e ALVES, 2009). Com a realização de relatório, foi possível averiguar o real potencial de pesquisa científica do Pontal da Barra e avaliar o impacto arqueológico e ambiental a que o Pontal da Barra está sujeito com a construção do loteamento. Como forma de minimizar o impacto e resguardar, pelo menos, os sítios arqueológicos, naquele momento foi sugerido ao IPHAN uma série de condicionantes para o desenvolvimento do empreendimento. Essas sugestões foram acatadas pelo instituto, que, por sua vez, obrigou os empreendedores a realização de atividades de: cercamento e sinalização dos sítios arqueológicos; monitoramento arqueológico em todas as etapas das obras do empreendimento; atividades de educação patrimonial; resgate arqueológico dos sítios. Ficou evidente, com esse levantamento, que aqueles sítios localizados mais próximos de onde já existe a urbanização do bairro Valverde, estão mais impactados, devido às atividades de exploração dos cerritos para retirada de terra preta e minhocas. É sabido e de cunho público que membros residentes no bairro Valverde vêm, sistematicamente, explorando os sítios arqueológicos para comercialização irregular do sedimento de composição orgânica e húmica que os compõe. Dessa forma, retiram seu sustento familiar da exploração econômica ilegal dos sítios arqueológicos. Além da exploração de terra preta dos sítios, na área dos cerritos, por serem praças e terrenos com mata, ocorre a deposição frequente de lixo doméstico e restos de construção no espaço dos sítios arqueológicos, causando sérios danos à integridade dos sítios arqueológicos. Essa deposição irregular de lixo também é causada por moradores do bairro Valverde. Tais problemas já foram apontados, também, pelo relatório técnico circunstanciado, enviado ao IPHAN, de autoria de Vicroski (2012): Ao mesmo tempo em que verificamos o perfeito estado de conservação de alguns sítios, também registramos o impacto já gerado a determinadas áreas, em decorrência do *

2. Conforme a Resolução CONAMA 01/86, Resolução CONAMA 237/97, Lei n. 3.924, de 26/07/1961, Constituição Federal de 1988 (Artigo 225, Parágrafo IV), Portaria IPHAN/MinC 07, de 01/12/1988, Portaria IPHAN/MinC 230, de 17/12/02. Da mesma forma, buscou-se com esse trabalho atender as orientações da Portaria IPHAN/MinC 230, de 17/12/02 e os Critérios técnico-científicos utilizados pelo IPHAN/RS para avaliação dos diagnósticos arqueológicos em processos de licenciamento ambiental no âmbito do patrimônio cultural (Versão 06/07/09).

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descarte irregular de resíduos sólidos, escavações para retirada de solo húmico, areia e plantas nativas como coqueiros e figueiras para comercialização por parte da população local (Ver figura 3). No entanto, não foram observadas alterações decorrentes de obras de engenharia sobre as áreas dos cerritos (VICROSKI, 2012, p. 21).

Figuras 15 e 16: Descarte de resíduos sólidos e escavações irregulares no sítio PSG-03 Valverde 03. Fotos retiradas de Vicroski (2012, p. 22).

Além das irregularidades apontadas por Vicroski (2012), no que diz respeito ao depósito de resíduos sólidos, extração de terra e de vegetais para comercialização ilegal, foram observadas alterações decorrentes de obras de engenharia sobre as áreas dos cerritos, ao contrário do que diz o autor do relatório supracitado. É notória a impactação de sítios, como no caso do PSG-03, onde ocorreu a construção de uma das vias urbanas do loteamento, em que a vala de escoamento sanitário da rua destruiu grande parte do setor leste do cerrito. Esse cerrito é um exemplo do descaso com relação à preservação do patrimônio arqueológico, visto que sofreu dano estrutural assim, como a área se tornou um depósito de lixo e de restos de obras. Da mesma forma, é clara a impactação sofrida pelo cerrito PSG-04, devido às obras de drenagem dos terrenos do bairro.

Figura 17: Localização do cerrito PSG-04 e indicação do aterro gerado pela abertura da vala de escoamento no limite do terreno. Fica evidente que o aterro certamente impactou o entorno do cerrito, colocando em risco estruturas anexas que compõem o sítio arqueológico.

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Após a avaliação do estado de conservação altamente degradado em que os cerritos se encontram, tanto as autoridades como os proprietários, já foram avisados, porém nada foi feito a respeito. Embora os donos sejam os responsáveis pela guarda do patrimônio arqueológico, eles alegam que o cuidado dos sítios arqueológicos depende da presença policial. De outro lado, o poder público alega não ter condições de fiscalizar as ações de retirada de terra dos sítios e deposição de lixo. No entanto, ambas as posições frente aos sítios arqueológicos ferem a Lei 3.924 de 26 de julho de 1961, que deixa clara a responsabilidade para com o patrimônio arqueológico: “Art 1º Os monumentos arqueológicos ou pré-históricos de qualquer natureza existentes no território nacional e todos os elementos que neles se encontram ficam sob a guarda e proteção do Poder Público, de acordo com o que estabelece o art. 175 da Constituição Federal Art 3º São proibidos em todo o território nacional, o aproveitamento econômico, a destruição ou mutilação, para qualquer fim, das jazidas arqueológicas ou préhistóricas conhecidas como sambaquis, casqueiros, concheiros, berbigueiras ou sernambis, e bem assim dos sítios, inscrições e objetos enumerados nas alíneas b, c e d do artigo anterior, antes de serem devidamente pesquisados, respeitadas as concessões anteriores e não caducas. Art 5º Qualquer ato que importe na destruição ou mutilação dos monumentos a que se refere o art. 2º desta lei, será considerado crime contra o Patrimônio Nacional e, como tal, punível de acordo com o disposto nas leis penais. Parágrafo único. O proprietário ou ocupante do imóvel onde se tiver verificado o achado, é responsável pela conservação provisória da coisa descoberta, até pronunciamento e deliberação da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional” (grifo nosso). Fica evidente que a urbanização do bairro Valverde e do banhado do Pontal da Barra foi a principal responsável pela destruição parcial de seis dos 18 cerritos identificados no Pontal da Barra. Logo, se a urbanização avançar, seguindo a projeção do loteamento, conforme o que foi aprovado pela licença de instalação vigente, os demais sítios arqueológicos, mesmo que venham a ser cercados, irão ser explorados e destruídos a médio e longo prazo. Nesse sentido, entendemos, após anos de estudos e diversas intervenções arqueológicas realizadas, que mesmo se as condicionantes propostas pelo IPHAN para a legalização do empreendimento forem seguidas, o contexto arqueológico do Pontal da Barra nunca será integralmente preservado. Essas condicionantes, no entanto, irão apenas garantir a preservação e o estudo dos cerritos em si, sem levar em conta as estruturas ao seu redor e, sobretudo, da paisagem cultural e ambiental que cerca os cerritos. Sugerimos, portanto, que seja preservado todo o ambiente do Pontal da Barra logo, sem que o loteamento em questão venha a 32

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ser construído. Devido à sinergia entre o ambiente natural, o patrimônio arqueológico e as comunidades que habitam naquele espaço, o banhado do Pontal da Barra deve ser pensado como uma Paisagem Cultural, um espaço ambiental socializado desde o período pré-colonial. Ele deve ser encarado como um sítio arqueológico de ampla escala, que integra patrimônio cultural e ambiental de maneira holística, devendo, sem sombra de dúvidas, ser preservado em sua integridade devido à sua singularidade histórica. Além do fator econômico, que coloca a paisagem circundante aos cerritos como um fator fundamental de estudo, a paisagem é um elemento de pesquisa também por conta das estruturas que se correlacionam aos sítios. São conhecidas, na literatura arqueológica, estruturas que compõem um built environment (ambiente construído). Trata-se da complexificação do espaço das aldeias, em que os cerritos seriam apenas uma unidade central das aldeias, uma espécie de praça central, onde as tolderias (casas e choupanas) circundariam os mesmos. Além disso, são conhecidos microrrelevos, localizados no entorno dos cerritos, indicando áreas domésticas e unidades funcionais das aldeias, como oficinas líticas, áreas de descarte de lixo, entre outros. Existem, também, caminhos entre os cerritos, constituídos como trilhas, cujos vestígios arqueológicos são modificações planialtimétricas na topografia do terreno. A complexificação dos espaços habitacionais, os caminhos e demais áreas contíguas às aldeias são um fenômeno que decorrem ao longo das gerações, pois, à medida em que a sociedade vai se complexificando, também se intensificam os trabalhos em terra por essas populações indígenas, indicando, portanto, uma paisagem cultural que se modifica ao longo de uma história milenar de longa duração. É importante ressaltar que microrrelevos desse tipo foram identificados no entorno do cerrito PSG-06 através de nosso trabalho com uso de GPR, que apontou estruturas em profundidade a serem averiguadas através de intervenções arqueológicas. Mas, que já apontam a impossibilidade de que o espaço no entorno dos cerritos e as áreas entre os cerritos sejam urbanizadas pelo empreendimento, visto que, assim como identificamos estruturas subsuperficiais no entorno do PGS-06. O mesmo deverá ocorrer no entorno e entre os cerritos do restante do contexto arqueológico do Pontal da Barra.

Considerações finais O conjunto de cerritos que compõe essa Paisagem Cultural do Pontal da Barra é um fenômeno único no sul do Estado do Rio Grande do Sul. São encontrados cerritos em outros municípios do Estado, como Camaquã (RÜTSCHILLING 1989), Rio Grande (NAUE 1970, SCHMITZ 1976), Santa Vitória do Palmar (SCHMITZ, GIRELLI, ROSA 1997), Pedro Osório, Jaguarão (PEREIRA 2008) e Herval (COPÉ 1991), porém, devido ao uso intensivo do solo pela agricultura e de outros fatores antrópicos modernos, boa parte dos cerritos que outrora compunham grandes aglomerados, hoje em dia, 33

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encontra-se isolada na paisagem, distando alguns quilômetros uns dos outros em alguns contextos. É o exemplo dos cerritos do banhado do Colégio, no município de Camaquã, onde as pesquisas realizadas por Pedro Ignácio Schmitz na década de 70 apontavam um total de 102 cerritos na área, os quais, atualmente, encontram-se impactados significativamente ou nem existem mais, como apontou a pesquisa de Silva Jr. (2006). No entanto, no Pontal da Barra há uma situação sui generis, em que há um grande aglomerado de cerritos num raio de não mais que 1,2 quilômetros. Esses cerritos formam um conjunto, obtendo-se visibilidade entre si , sendo possível compreender facilmente sua correlação contextual. Além disso, no Pontal da Barra os estudos arqueológicos têm apontado a ocorrência de estruturas anexas aos cerritos, que, como vimos, compõem a Paisagem Cultural, cujas características são muito sutis na paisagem e cuja identificação depende da preservação do terreno, integralmente, sem intervenções antrópicas modernas. Pensando-se nos cerritos como vestígios da história indígena regional de longa duração, que se apresentam no Pontal da Barra de forma aglomerada, formando um contexto arqueológico singular no sul do Estado do Rio Grande do Sul, seria importante que esse espaço, conhecido como Pontal da Barra, seja entendido como um ‘museu a céu aberto’ ou um parque arqueológico, aberto para visitação pública, o que poderia ser resolvido através da implantação de uma Unidade de Conservação com uso exploratório. Trata-se de uma área que tem um grande potencial relacionado ao ensino-aprendizagem e como área de lazer, em que se situa uma paisagem exuberante, com animais silvestres e um patrimônio cultural milenar a 15 minutos do centro da cidade de Pelotas.

O contexto arqueológico do Pontal da Barra deve ser entendido a partir de dez parâmetros: 1.É um contexto singular. Centenas de outros cerritos existem no Estado do Rio Grande do Sul, porém, o uso histórico da terra, sobretudo pela agricultura com maquinário pesado (plantio de soja, arroz, melancia, etc.), tem destruído sítios arqueológicos sem controle do Estado Nacional brasileiro. Aqueles ainda existentes ocorrem, atualmente, de maneira isolada, em sua maioria, tendo seus aspectos contextuais limitados para estudos arqueológicos. O contexto do Pontal da Barra, por sua vez, ainda apresentase como uma área bastante conservada, com os sítios conglomerados, numa área circunscrita, de altíssimo potencial de pesquisa científica. Logo, a preservação dos cerritos do banhado do Pontal da Barra, em especial, deveria se dar pelo seu contexto particular e singular. 2.Os cerritos do Pontal da Barra deveriam ser tratados como um ‘museu a céu aberto’ ou um parque arqueológico. Um museu que conta a história das populações que 34

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habitaram o bioma pampa, há, aproximadamente, 5 mil anos e, mais especificamente, no Pontal da Barra, há, pelo menos, 2500 anos. O contexto do Pontal da Barra contém vestígios da história indígena regional comumente silenciada no Estado do Rio Grande do Sul. Nesse caso, são vestígios da diversidade cultural e étnica de uma história de longa duração da laguna dos Patos. Como um ‘museu a céu aberto’, o Pontal da Barra seria potencializado como área de lazer e turismo da cidade de Pelotas, um lazer cultural e informativo, relativo à história indígena regional e de fácil acesso. Um parque arqueológico resguardaria a paisagem do Pontal da Barra com sua exuberância, sua fauna e flora nativas e seu patrimônio cultural. 3.Os cerritos só podem ser entendidos em sua totalidade se forem preservadas as suas características paisagísticas e ambientais. A paisagem cultural circundante aos cerritos faz parte do contexto arqueológico. É imprescindível que o banhado e suas características de fauna e flora sejam preservados para que se possa entender sua relação com o ambiente ao seu redor. Se os cerritos forem apenas preservados, cercados, ficando como “ilhas” isoladas em meio a casas e ruas, serão perdidos muitos aspectos bióticos, limitando e impedindo o entendimento das sociedades que os construíram, como é o caso dos microrrelevos nos entorno dos cerritos e das estruturas (caminhos e trilhas), que denotam a conexão entre os mesmos, consolidando, do ponto de vista arqueológico, possíveis comunidades indígenas pré-coloniais. 4.O sedimento dos cerritos, composto por materiais orgânicos, permitiu o desenvolvimento de grandes focos de mata densa, que, por sua vez, contribuem para a preservação dos cerritos, reforçando, cada vez mais, a sinergia entre o ambiente e o contexto arqueológico. Logo, a destruição da mata que circunda os sítios arqueológicos irá causar impactos irreversíveis aos mesmos e vice-versa. 5.Além dos fatores de preservação da paisagem cultural e de seus atributos históricos e ambientais, a preservação do Pontal da Barra deve ser garantida para que as pesquisas científicas não se percam, para que o conhecimento arqueológico e histórico possa ser desenvolvido, aprimorado e transmitido ao longo das gerações. O Pontal da Barra, além de ser encarado como um Museu, deveria ser compreendido também como um laboratório de pesquisa, extensão e ensino. 6.Sugerimos, por fim, que as empresas responsáveis pelo Loteamento Pontal da Barra sejam responsabilizadas criminalmente pelos impactos ao patrimônio cultural e ambiental causados até o momento no Pontal da Barra, conforme a legislação vigente. 7.Através do conceito de Paisagem Cultural, questionamos as condicionantes estabelecidas pelo IPHAN, que indicam que sejam realizadas atividades de cercamento e sinalização dos sítios arqueológicos, monitoramento arqueológico em todas as etapas das obras do empreendimento, atividades de educação patrimonial e resgate arqueológico dos sítios. Essas condicionantes, embora sejam uma praxe no Brasil e 35

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que, dependendo do contexto, funcionem para a salvaguarda do patrimônio cultural, no caso do Pontal da Barra irão apenas garantir a preservação e estudo dos cerritos em si, sem levar em conta suas estruturas adjacentes. Sugerimos, portanto, que seja preservado todo o ambiente do Pontal da Barra, logo, sem que o loteamento em questão venha a ser construído. 8.Além da questão arqueológica, é sabido que várias espécies endêmicas de peixes estão ameaçadas de extinção, entre elas os peixes anuais (Austrolebias nigrofasciatus e Austrolebias wolterstorffi (Rosa e Lima, 2008) e aves migratórias que se abrigam no Pontal em época de procriação. Essa medida impeditiva seria no sentido de preservar, de maneira geral, a fauna, a flora do banhado e os sítios arqueológicos. Destruir o Pontal da Barra e seu patrimônio cultural e ambiental é, além de tudo, um crime à vida. Para concluir, a retirada compulsória da Vila de Pescadores do Trapiche foi uma atividade local, mas reflete um fenômeno que ocorre em nível global, em que as comunidades de ribeirinhos, indígenas e demais grupos nativos, são “desterritorializados” em prol de interesses supostamente coletivos, mas, verdadeiramente planejados engenhosamente para a manutenção de reservas de mercado de empresas construtoras. Nesse sentido, o caso do banhado do Pontal da Barra e seu contexto patrimonial composto por humanos e não-humanos, denunciado nesse texto, deve ser entendido como um capítulo da história ambiental e do patrimônio cultural na região de Pelotas, ainda a ser escrito, visto que as resoluções jurídicas ainda estão em andamento.

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