Entre o ethos e a reputação: uma análise de representações midiáticas sobre relações públicas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Departamento de Comunicação Social

ENTRE O ETHOS E A REPUTAÇÃO: UMA ANÁLISE DE REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS SOBRE RELAÇÕES PÚBLICAS

Daniel Reis Silva

BELO HORIZONTE 2011

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DANIEL REIS SILVA

ENTRE O ETHOS E A REPUTAÇÃO: UMA ANÁLISE DE REPRESENTAÇÕES MIDIÁTICAS SOBRE RELAÇÕES PÚBLICAS

Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, habilitação Relações Públicas. Orientador: Prof. Dr. Márcio Simeone Henriques

BELO HORIZONTE 2011

AGRADECIMENTOS

Agradeço inicialmente a todos aqueles que contribuíram e ajudaram na minha trajetória na UFMG. Em especial, todos do Programa Polo Jequitinhonha, fundamentais na minha formação acadêmica e humana. Agradeço ainda a amizade e o companheirismo do Erick e Conrado; e a Marizinha, que agradeço tanto pelo crescimento que o Polo me propiciou, como pelo incentivo e confiança durante esse último ano. Agradeço aos amigos de Varginha e que, mesmo com a distância, me incentivaram durante todo o processo: Marcelo, Matheus, Leandro, e tantos outros; Agradeço também a todos os amigos de Belo Horizonte, que tornaram esses últimos anos muito mais agradáveis. Agradeço ao Márcio pela amizade, ensinamentos e oportunidades desses últimos anos, e sem o qual não haveria esse trabalho e não estaria me formando em RP. Agradeço à todos de minha família, que sempre me incentivaram e estiveram do meu lado, em especial ao meu pai, Graça e Tanner. Finalmente, agradeço especialmente minha mãe, por ter me permitido fazer tudo que fiz, viver o que vivi e ser o que sou.

RESUMO O presente trabalho busca estudar a reputação da profissão de relações públicas. Embora se divulgue amplamente a crescente importância da atividade de relações públicas na doutrina da área, pouco é explorado sobre como o reconhecimento social da profissão não acompanha tal desenvolvimento. É especialmente preocupante a imagem da atividade de relações públicas apresentada pela mídia, nas quais se observa uma forte conotação de manipulação e persuasão nas práticas e profissionais. A partir do reconhecimento desse problema, o intuito é explorar as diferenças entre a identidade projetada pela doutrina da profissão, analisada sob o viés do ethos discursivo, e sua reputação, explorada a partir de filtragens midiáticas. Com tal finalidade, recorre-se a análises de três filmes que trazem representações sobre relações públicas, na tentativa de compreender como as imagens projetadas por tais obras dialogam com a identidade da área e, através de suas dissonâncias e controvérsias, impactam na formação da reputação.

Palavras chaves: Relações Públicas, identidade projetada, imagem, reputação, ethos, filtragem midiática, cinema;

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 06 1. CONSTRUÇÃO DE UM PROBLEMA ........................................................................... 08 2. IDENTIDADE PROJETADA, DOUTRINA E ETHOS ................................................. 12 2.1. Dimensões do Ethos ................................................................................................. 14 3. A REPUTAÇÃO DAS RELAÇÕES PÚBLICAS ............................................................ 19 3.1. Análises sociopolíticas ............................................................................................. 22 3.2. Filtragem midiática .................................................................................................. 24 3.4. Advocacy da profissão de relações públicas............................................................. 28 4. ENTRE O ETHOS E A REPUTAÇÃO ............................................................................ 30 4.1. Leitura flutuante ....................................................................................................... 31 4.2. Categorias de análise ................................................................................................ 34 4.3. Hancock.................................................................................................................... 35 4.3.1. Caracterização geral da obra ........................................................................... 35 4.3.2. Apreciação geral da obra ................................................................................ 37 4.3.3. Menções sobre o ethos ...................................................................................... 39 4.3.4. Identificação das práticas ................................................................................. 40 4.3.5. Relação entre as práticas retratadas e o ethos ................................................. 41 4.4. Obrigado Por Fumar ................................................................................................. 42 4.4.1. Caracterização geral da obra ........................................................................... 42 4.4.2. Apreciação geral da obra ................................................................................ 44 4.4.3. Menções sobre o ethos ...................................................................................... 47 4.4.4. Identificação das práticas ................................................................................. 48 4.4.5. Relação entre as práticas retratadas e o ethos ................................................. 50 4.5. Enron: Os Mais Espertos da Sala ............................................................................. 51 4.5.1. Caracterização geral da obra ........................................................................... 51 4.5.2. Apreciação geral da obra ................................................................................ 52 4.5.3. Menções sobre o ethos ...................................................................................... 54 4.5.4. Identificação das práticas ................................................................................. 55 4.5.5. Relação entre as práticas retratadas e o ethos ................................................. 56 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 57 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 61

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho foi motivado por inquietações resultantes da observação sobre a forma com que a profissão de relações públicas é retratada no cinema. Apesar de não ser um dos assuntos mais trabalhados em filmes, é possível perceber uma imagem negativa sobre a atividade e seus profissionais em diversas obras. Dentre as mais significativas podemos citar Mera Coincidência (1997) e Obrigado Por Fumar (2006), que trazem uma visão sobre as relações públicas focada principalmente no aspecto da manipulação da opinião pública e na distorção da verdade, e retratam os praticantes da área como autores de atos questionáveis do ponto de vista ético e moral no exercício da atividade. Em tais obras, a prática de relações públicas é vinculada com a mentira, a persuasão e a tentativa de desviar a atenção da mídia e do público, encobrindo assim fatos negativos. Ao mesmo tempo em que observamos essa imagem negativa da profissão no cinema, chamou nossa atenção o Relatório da Comissão de Especialistas designada pelo Ministério da Educação para elaborar as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Relações Públicas, que traz a afirmativa de que “as Relações Públicas já tem assegurado o seu reconhecimento social” (2010, p.9). O documento justifica essa posição citando Ladislau Dowbor, segundo o qual esse reconhecimento se deve ao papel-chave da comunicação na sociedade atual, na medida em que ela “é uma dimensão de todos os setores, um vetor intensamente ramificado de transformação social” (idem, p.9). Parecia haver então uma contradição entre a imagem do reconhecimento social da atividade e a negativa retratada no cinema, e que demandava futuras investigações. Nesse sentido, encontramos em um artigo de Henriques (2009) chamado “Relações Públicas: O futuro da atividade é o futuro da profissão?”, em que o autor expõe a dissonância entre o crescimento da atividade e da profissão, as bases teóricas e indagações sobre o tema que permitiram que esse trabalho tomasse forma. Nosso objetivo é o de explorar aspectos dessa contradição, em especial as diferenças entre a identidade que é projetada pelos discursos doutrinários de relações públicas e a reputação da profissão nos dias atuais. Para tanto, a escolha foi por analisar imagens midiáticas apresentadas em três filmes sobre o tema, com o intuito de observar como essas representações dialogam com a identidade projetada e com a reputação. Este trabalho divide-se em quatro momentos. O primeiro deles é a construção do problema propriamente dito. Nesse movimento, a intenção foi a de compreender o contexto em que a reputação das relações públicas é considerada na doutrina, identificando a forma

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com que o tema é trabalhado por alguns autores, bem como sua importância e como ela se insere nos dias atuais. A partir desse processo, descrito no primeiro capítulo, delineiam-se os rumos do estudo. O segundo capítulo versa sobre a identidade projetada pela doutrina das relações públicas. Apoiados na noção do ethos discursivo, bem com em análises históricas e revisões bibliográficas, apresentamos uma visão geral sobre a identidade doutrinária da área e os elementos que ajudam a compreender essa manifestação. Após tratar a questão da identidade, o passo seguinte é abordar as noções de imagem e reputação. O intuito é observar um panorama geral sobre a reputação da profissão, pautando esse esforço em análises sociopolíticas sobre o impacto das relações públicas na sociedade e em uma filtragem midiática, com enfoque em trabalhos científicos realizados nos últimos anos sobre tal temática, bem como de algumas reações por parte da doutrina sobre essas representações. Esse movimento é apresentado no terceiro capítulo. Importante observar que não é nosso objetivo encontrar definições para a identidade projetada pela profissão de relações públicas ou sobre sua reputação. O que o presente trabalho propõe é pensar um panorama geral sobre esses dois conceitos, destacando alguns dos elementos principais sobre sua formação. A partir dos elementos da identidade projetada e da reputação, o quarto capítulo é voltado para a análise de representações midiáticas sobre o tema. No caso, foram trabalhadas três obras cinematográficas (Hancock, Obrigado Por Fumar e Enron: Os Mais Espertos da Sala), selecionadas a partir de critérios de abrangência e relevância. A análise tem como objetivo uma melhor compreensão sobre a tensão entre a identidade e a reputação, visando perceber como os seus elementos são apropriados na construção da imagem midiática. Assim, se busca entender como ocorrem a dissonância, as contradições e o diálogo entre a identidade e a reputação. Por fim, são apresentadas algumas considerações finais sobre as análises desenvolvidas, bem como comentários sobre o desdobramento do tema e investigações futuras.

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1. CONSTRUÇÃO DE UM PROBLEMA Gentlemen, practice these words in front of the mirror: Although we are constantly exploring the subject, currently there is no direct evidence that links cell phone usage to brain cancer. (Nick Naylor, Thank You For Smoking)

É possível perceber uma significativa evolução da atividade de relações públicas nos últimos anos, e é sobre esse ponto que versa o Relatório da Comissão dos Especialistas ao afirmar seu reconhecimento social. Esse desenvolvimento da atividade resultou em uma ampliação do seu escopo e de sua importância no mundo moderno. Cada vez mais fica evidente o crescimento da prática e dos conhecimentos da atividade de relações públicas, apontados como frutos do desenvolvimento do campo científico da comunicação e do aumento da necessidade de intervenção especializada na busca por visibilidade midiática, na inserção em controvérsias públicas e na administração de “processos complexos de relacionamento” (HENRIQUES, 2009, pg.2) entre as organizações e os diversos públicos que afetam a sua sobrevivência e legitimam sua existência. Na esteira da importância dessa atividade, Kunsch (2006) afirma que as relações públicas se encontram progressivamente mais valorizadas no mercado e no mundo acadêmico. Porém, esse crescimento extraordinário da atividade de relações públicas acaba por eclipsar outro aspecto de suma importância para a área: o reconhecimento social da profissão de relações públicas. Esse segundo tema ocupa muitas vezes um papel marginal na literatura da área, dando espaço para a exaltação em relação à importância social da atividade nos dias de hoje e as perspectivas promissoras de uma valorização cada vez maior dentro da sociedade. Deixado de lado nas grandes discussões sobre as relações públicas, é como se o futuro da profissão estivesse garantido pela sua vinculação com o futuro da atividade. O problema desse pensamento ocorre justamente ao ignorar “os sintomas do descompasso e dos paradoxos entre a atividade e a profissão de Relações Públicas” (HENRIQUES, 2009, p.3). Segundo Henriques, tais indícios são cada vez mais evidentes, e apontam para uma questão que deveria ser debatida com afinco por pesquisadores da área, e que pode ser colocada da seguinte maneira: “por que a evolução da atividade demonstra um crescimento extraordinário (...), enquanto detecta-se um fenômeno de declínio de

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reconhecimento da profissão – ao menos nos termos em que foi historicamente definida – em várias partes do mundo?” (idem, p.2) A discussão sobre esse questionamento perpassa diversos elementos, como a própria definição sobre o que constitui a profissão, a existência de um corpo teórico e prático capaz de permitir seu reconhecimento, o sentido da profissão e as contradições inerentes que a caracterizam. É fundamental perceber que, como colocado pelo autor, a discussão não pode ficar presa na argumentação e disputa sobre campos específicos de atuação profissional, como muitas vezes ela acaba se constituindo, mas deve abordar os riscos da “perda de controle social dessas práticas” (idem, p.5). Henriques elaborou duas hipóteses sobre o descompasso entre a atividade e a profissão, afirmando que elas não são mutuamente excludentes. A primeira foi relacionada com o crescimento acelerado do escopo da atividade, que não teria sido acompanhado por uma reformulação das doutrinas profissionais. A segunda apontava para certa insuficiência, inconsistência e incongruência das doutrinas profissionais, na medida em que essas não conseguiram acompanhar “a ampliação do escopo da atividade”, não deram conta de “sustentar uma delimitação mais precisa entre as atividades de relações públicas e a propaganda” e não estão em congruência com a “prática que atualmente é demandada e o tipo de profissionalização para isso exigido” (idem, p.4). Considerado como um dos “pais” das relações públicas, Edward Bernays chamava a atenção para um aspecto específico desse problema: a reputação. Em 1992, o autor proferiu uma palestra chamada “O Futuro das Relações Públicas”1 na qual enalteceu o desenvolvimento da atividade, afirmando sua satisfação de ter acompanhado o campo das Relações Públicas desde seu começo humilde até o papel vital na sociedade atual, destacando a área como fundamental para a vida democrática. Porém, lamentou o fato de que era justamente naquele momento de reconhecimento que a profissão tinha que encarar “sua reputação manchada perante os olhos dos públicos” (1992, tradução nossa). Bernays afirmava que, no inicio da década de 1990, cada vez mais as relações públicas eram percebidas com desconfiança pelos públicos. Justamente essa época marca o início do processo de consolidação das críticas à atividade, apoiadas em análises sociopolíticas sobre seus impactos na sociedade e em investigações sobre sua utilização pelas corporações como forma de manipular a opinião pública e obter lucro. A partir daquele momento o assunto

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Palestra proferida na convenção da Association for Education in Journalism and Mass Communications (AEJMC), realizada em agosto de 1992 na cidade de Montreal. Texto encontrado no site The Museum of Public Relations .

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deixou de estar confinado em círculos relativamente restritos para conseguir destaque cada vez maior na mídia e na sociedade, em um processo que se acentuaria nos anos seguintes. Acreditamos que a investigação da reputação das Relações Públicas, que Bernays apontava como manchada, possa ser importante para auxiliar as discussões sobre o descompasso entre a atividade e a profissão. Através de uma melhor compreensão sobre essa reputação, tanto em relação à sua configuração atual como também de sua formação, esperamos encontrar subsídios que colaborem com as reflexões sobre a questão colocada por Henriques, e que ajudem a elucidar algumas das diversas características daquele problema. O motivo da escolha por trabalhar especificamente esse aspecto do tema está ligado à importância que a reputação possui para a profissão de Relações Públicas. É possível perceber um aumento da relevância do conceito de reputação na sociedade atual, impulsionado pelas mudanças sociais que configuram públicos cada vez mais esclarecidos e exigentes em relação a seus direitos e, consequentemente, com grandes expectativas, organizados para defender suas ideias e lutar pelos seus valores. A reputação pode ser entendida como um “crédito de confiança adquirido [...] através de suas ações ao longo dos anos, estando esse crédito associado a um bom nome, familiaridade, boa vontade, credibilidade e reconhecimento” (ALMEIDA, 2005, p.56), estando assim associada a conceitos de credibilidade e confiabilidade. Ela impacta de maneira decisiva nos relacionamentos, e em um cenário em que a aceitação social é tão importante, a reputação passou a ser um dos mais importantes atributos de uma organização ou instituição. No caso da profissão de relações públicas, a reputação tem sua importância ressaltada pelo próprio aspecto social da atividade, na medida em que ela é marcada fundamentalmente por uma natureza mediadora. Na essência, a razão de existir da profissão é a administração de interesses e expectativas conflitantes entre diferentes públicos. Essa é a principal característica de sua atuação, que está assim diretamente vinculada com a capacidade de intermediar relacionamentos. Minar a confiança que os públicos depositam em um profissional da área coloca em risco sua atuação, sua justificativa e sua própria razão de existir. É evidente que estamos falando de um processo gradual, em que a confiança vai sendo abalada ao longo dos anos e afeta o exercício das práticas e sua eficiência. Se o profissional responsável por estabelecer um relacionamento com uma comunidade for visto por ela com desconfiança, todo o esforço da organização em fortalecer aqueles vínculos é colocado em xeque. O porta-voz de uma organização, por exemplo, está estritamente ligado com a credibilidade que as informações por ele divulgadas possuem. Em um cenário no qual os públicos se tornam céticos em relação

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ao profissional e sua atuação, e desenvolvem uma desconfiança e um pré-julgamento sobre as mensagens por ele elaboradas, a própria existência desse profissional deve ser questionada. Quando as informações fornecidas por porta-vozes ou relações públicas de governos e organizações são questionadas não pelo seu conteúdo, mas sim pela sua procedência em um profissional de relações públicas, o próprio processo mediador foi comprometido. Assim, a reputação da profissão de relações públicas impacta a atuação da profissão e até mesmo sua própria função de existir. Quando Bernays apontou para uma “reputação manchada”, ele não se referia a algo pontual e que afetava apenas alguns públicos, mas sim a um fenômeno amplo. É preciso então investigar as características desse problema. Podemos perceber que todo problema de reputação é marcado essencialmente por uma divergência entre certa identidade projetada, que tem como objetivo final a legitimidade social das suas características, e as percepções dos públicos e da sociedade. Uma profissão visa permanentemente instituir a si mesma e seus valores perante os públicos, e o faz através de uma disciplina, que a tornaria identificada, e de um estatuto deontológico, que torna suas práticas socialmente aceitáveis. Esses dois elementos constituem uma espécie de “dever ser” da atividade, que possui intrinsecamente a expectativa de ser reconhecido. Uma reputação prejudicada significa que em alguma medida os públicos não estão percebendo a profissão como aquilo que ela tenta estabelecer. Acreditamos que é justamente na investigação da dissonância entre o conceito público da profissão e essa identidade que podemos levantar subsídios para reflexões futuras sobre o tema. Trabalharemos então três conceitos fundamentais das relações públicas: identidade, imagem e reputação. Almeida (2005) destaca que esses três elementos estão inerentemente relacionados, e afirma a necessidade de que eles sejam investigados em conjunto para que suas dimensões possam ser realmente compreendidas. Nesse sentido, utilizaremos as noções de imagem, identidade e reputação trabalhadas pela autora, aplicando-as para o estudo da profissão de relações públicas da seguinte forma: identidade projetada como a auto-afirmação da doutrina profissional perante seus públicos; imagem como a percepção desses públicos sobre a profissão; e reputação como a consolidação dessas imagens e percepções através do tempo. O primeiro ponto a ser trabalhado é a identidade, que iremos investigar com base no conceito do ethos discursivo.

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2. IDENTIDADE PROJETADA, DOUTRINA E ETHOS “We're not having a war. We're having the appearance of a war” (Conrad Brean, Wag the Dog)

Toda profissão que se institui projeta uma identidade pela qual visa ser reconhecida. Podemos perceber essa identidade através da doutrina profissional, entendida “tanto como o conjunto de princípios basilares do sistema profissional, quanto como às interpretações dos princípios normativos desse sistema” (HENRIQUES, 2009, p.4). Essa doutrina determina uma configuração da profissão na forma de um “dever ser”, formulado a partir das manifestações das organizações profissionais e de discursos acadêmicos e profissionais. Nesses termos, toda doutrina profissional é difusa, pois sua construção está atrelada aos discursos e projeções de uma multiplicidade de atores. Existem diversas organizações profissionais espalhadas ao redor do planeta, e não há uma articulação formal entre elas que garanta a uniformidade de suas mensagens e proposições. Ainda maior é o número de discursos acadêmicos e profissionais que influenciam essa identidade projetada, na medida em que praticamente todo trabalho acadêmico sobre a profissão impacta a doutrina, mesmo que de maneira modesta. Esse caráter difuso gera um desafio lógico que deve ser enfrentado para formular o quadro geral da identidade projetada pela profissão de relações públicas proposto por esse trabalho. Para tal objetivo, pode-se pensar em uma pesquisa que determine as organizações e discursos mais significativos, talvez em termos dos maiores órgãos profissionais de cada país e dos teóricos com maior renome. Mesmo assim haverá um enorme número de projeções a serem analisadas, e nada garante que apenas através da análise desses discursos será possível compreender a doutrina profissional. Acreditamos que o ponto fundamental para compreender a identidade projetada da profissão é identificar os elementos abstratos que permeiam a própria construção da doutrina. Estamos nos referindo a uma tentativa de pensar as linhas gerais que perpassam as projeções doutrinárias e que definem suas características, ou seja, encontrar indícios do pano de fundo que as delimitam, das suas razões. É nesse sentido que o conceito do ethos – entendido como uma das dimensões mais importantes da identidade projetada – é relevante.

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Segundo Almeida (2005), a identidade projetada2 deve ser entendida como uma autoapresentação de certos atributos-chaves através da comunicação, ou seja, uma projeção de si, dos seus valores e características. Para uma profissão, o objetivo dessa identidade projetada é que ela seja reconhecida socialmente de determinada forma e por certos valores, já que é através da aceitação dos seus atributos pelos públicos externos que estes se configuram como verdade. É então uma ação que busca gerar uma percepção positiva dos públicos sobre a atividade, construindo assim uma reputação positiva e gerando credibilidade. A identidade projetada é então um ato de legitimação. Um dos seus elementos definidores é justamente a questão do ethos, implícito em qualquer discurso ou projeção. Consideramos aqui o conceito de ethos como desenvolvido na retórica aristotélica. Aristóteles apontou para três espécies de provas de persuasão em um discurso: o logos, ligado à razão e à lógica argumentativa; o pathos, que era a emoção transmitida; e o ethos, que seria a persuasão pelo caráter. O ethos pode ser entendido como a imagem que o orador tenta construir de si, visando ganhar a confiança do auditório, na medida em que essa é conquistada quando determinadas qualidades são exibidas. O ethos não está necessariamente ligado com o caráter de fato, mas sim com aquele que é projetado. A conquista da confiança está vinculada com a apresentação de qualidades que correspondem aos valores e expectativas de um público, ou pelo menos com aquilo que o orador acredita que ele irá valorizar. Maingueneau (2010) aponta que, nesses termos, o ethos é inerente ao discurso: sempre o receptor de um discurso formará a imagem mental do orador, e esse sempre tentará controlar essa imagem, mesmo que de maneira inconsciente. É nesse sentido que o ethos deve ser considerado como uma dimensão intrínseca da identidade projetada. Na busca pelo reconhecimento, a identidade que a doutrina projeta sempre está relacionada com uma leitura sobre o que ela acredita serem as expectativas e valores sociais. Toda manifestação da identidade tem em si a tentativa de neutralização “de tudo o que, de algum modo, puder desqualificar o sujeito identitário e, por outro, para a projeção daquilo de si que acredita causar as impressões desejadas na audiência” (BALDISSERA, 2011, p.4). Dessa forma, a identidade projetada está em um constante processo dialético de construção. Ao mesmo tempo em que ela busca o reconhecimento de determinada realidade pelos públicos, ela é influenciada pelos valores e expectativas daqueles públicos. Essas expectativas, por sua vez, são formadas pelas percepções e imagens que as pessoas têm sobre 2

Almeida afirma que a identidade projetada é uma das quatro dimensões que compõe a identidade, em conjunto com a identidade percebida, a identidade desejada e a identidade aplicada (2005, p.44).

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a realidade, inclusive sobre a própria identidade. Há então uma tensão permanente entre a identidade projetada e a percepção dos públicos sobre a mesma. É na investigação do ethos da identidade projetada pela doutrina das relações públicas que podemos encontrar o elemento abstrato fundamental que permeia tal discurso, e que nos permite entender o “dever ser” da profissão. Esse ethos é construído através de uma combinação complexa, onde entram em jogo as descrições normativas da profissão, as construções teóricas sobre suas atividades, a forma com que os praticantes descrevem sua atuação e a configuração que as “boas práticas” assumem e se tornam reconhecidas. Através de uma revisão bibliográfica, de pesquisas sobre a história da atividade e de uma análise de projeções de organizações profissionais, identificamos duas dimensões desse ethos que acreditamos serem determinantes para os objetivos de nosso estudo: a negação da associação com a propaganda e a afirmação da função social das relações públicas3.

2.1. Dimensões do ethos

As duas dimensões do ethos aqui identificadas têm uma origem comum: a repercussão da associação histórica entre relações públicas e propaganda. Naqueles que são considerados por muitos como os primeiros textos científicos sobre a atividade de relações públicas, escritos por Bernays, a propaganda era um elemento comum, inclusive aparecendo como título de uma das suas obras mais conhecidas. O autor partiu do sentido estrito da palavra propaganda - propagação de uma ideia - para constituir o que ele chamava de uma visão moderna sobre o termo: “um esforço consistente e duradouro para criar ou moldar eventos, visando influenciar as relações do público com uma ideia, grupo ou empreendimento” (1928, p.52, tradução nossa). Segundo Bernays, a necessidade de uma intervenção cientifica para alcançar os objetivos da propaganda moderna deu origem à função do “especialista de propaganda”. Ele afirma que “novas atividades clamam por novas nomenclaturas. O propagandista que se especializa em interpretar ideias e empreendimentos para os públicos, e interpretar o público para aqueles que promovem ideias e empreendimentos veio a ser conhecido como „consultor de relações públicas4‟” (idem, p.63).

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As dimensões do ethos aqui identificadas não devem ser entendidas como uma classificação exaustiva. O termo “consultor de relações públicas” foi utilizado por Bernays na obra “Crystallizing Public Opinion”, de 1923. 4

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Bernays entendia o profissional de relações públicas como sendo um “propagandista moderno”. É importante perceber que naquele momento histórico a propaganda ainda não tinha em si o peso social adquirido pelo seu protagonismo em duas guerras mundiais, bem como o impacto de décadas de utilização e divulgação das técnicas concebidas e influenciadas por autores como o próprio Bernays e Walter Lippmann. Foi especialmente importante o uso da propaganda durante a Segunda Guerra Mundial, que consolidou o seu significado como uma técnica de manipulação capaz de moldar opiniões e julgamentos através de apelos emocionais. Em última instância, a propaganda ficou caracterizada como uma prática que impedia os públicos de perceberem “que suas escolhas individuais foram produzidas por aqueles que possuem a habilidade de guiar os cordéis da imaginação, dos sentidos e da boa-fé humana” (ANDRADE, 1965, p.25), o que resultaria na transformação dos públicos em massa. O uso das técnicas de propaganda durante a Segunda Guerra foi acompanhado de diversos estudos e análises científicas sobre seus efeitos. É nesse cenário que “as atividades de relações públicas muitas vezes eram descritas apenas como uma espécie mais „suave‟ ou „sutil‟ de propaganda” (HENRIQUES, 2006, p.9). A partir desse movimento de denúncia, a ligação entre propaganda e relações públicas passa a trazer “a desconfiança dos públicos, que tendem a ver na atividade de RP uma função de persuasão e manipulação, transposta aos praticantes” (Idem, p.4). Assim, a associação entre relações públicas e propaganda toma contornos de algo que necessita ser evitado, que gera constrangimentos sociais para a área e que constitui uma tensão permanente devido à própria ligação histórica entre as duas atividades. Nesse sentido, a identidade projetada da doutrina, com o objetivo de construir um conceito público favorável para o reconhecimento social da profissão, é fortemente marcada por essa tensão, e delimitada por um ethos que tem como ponto fundamental as críticas sobre essa ligação. A primeira dimensão que identificamos desse ethos é caracterizada pela tentativa de neutralizar aquilo que desqualifica a profissão, ou seja, negar os elementos que possuem impacto desfavorável na percepção que os públicos possuem sobre ela. Configura-se então como a negação da associação com a propaganda. Essa dimensão do ethos se manifesta com clareza nas tentativas de estabelecer fronteiras definidas entre relações públicas e propaganda. Sobre essa questão, Henriques aponta que, “apesar dos esforços de estabelecimento de demarcações precisas (...), as linhas divisórias nunca foram demarcadas com suficiente nitidez” (2006, p.10). A partir da falta dessas fronteiras definitivas, essa dimensão do ethos é

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marcada por uma renúncia das práticas que são associadas à propaganda, bem como daquelas que carregam suas características, em especial o uso intensivo de técnicas de persuasão. Nesse sentido, a negação ao modo de atuação e a obra de Bernays são especialmente significativos, ao passo que o autor ficou estigmatizado dentro da própria doutrina por utilizar abertamente ideias como a da “manipulação da opinião pública”. É também com base nessa dimensão que podemos entender a declaração de Andrade de que a persuasão não pode ser aceita como um instrumento de relações públicas (1965). A tentativa de afastar o caráter manipulador das práticas de relações públicas também está presente nos códigos de ética de organizações profissionais de diversas partes do mundo. O Código de Atenas, criado pela Associação Internacional de Relações Públicas em 1965 como um código de ética mundial para a profissão, proíbe a utilização “de métodos ou técnicas de manipulação visando criar motivações inconscientes sobre as quais o individuo não exerce controle5”. Outro exemplo pode ser encontrado nas normas éticas do Conselho Federal de Profissionais de Relações Públicas (Conferp), que vetam o uso de “práticas que possam levar a corromper ou comprometer a integridade dos canais de comunicação”. Praticamente todas as organizações profissionais ecoam essa preocupação em seus estatutos ou códigos de ética. Essa vertente do ethos foi-se acentuando na medida em que as práticas foram sendo associadas com manipulação e propaganda. Um exemplo claro é a prática de astroturfing, que pode ser definida como a tentativa de simular apoio ou manifestação popular em relação a uma causa, ideia ou organização. Após uma série de denúncias sobre a exploração dessa técnica durante as duas últimas décadas, baseadas no seu aspecto de manipular a mídia e o inconsciente popular, a prática acabou sendo banida de forma nominal por diversos conselhos profissionais, como a Public Relations Society of America (PRSA) e a Chartered Institute of Public Relations (CIPR) – as principais associações de profissionais da área nos Estados Unidos e no Reino Unido. É possível argumentar que essa prática já era negada anteriormente pelos códigos de ética, enquadrada nos artigos que proibiam a manipulação, mas o aumento do seu reconhecimento como uma prática típica de relações públicas obrigou uma intervenção ainda mais direta sobre a doutrina, em um claro exemplo de como essa dimensão do ethos é construída de modo relacional. Recentemente, uma nova série de denúncias relacionadas com o astroturfing na Austrália levou a manifestações de autores e praticantes da área contra essa

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O Código de Atenas foi formulado em 11 de Maio de 1965, e tem como base a “Declaração Universal dos Direitos Humanos ”. Texto disponível no site Portal-RP.

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prática através de um movimento por meio de blogs, no que pode ser encarado como uma tentativa de reforçar esse aspecto da identidade projetada. Enquanto essa primeira dimensão visa construir uma reputação pela negação de determinados aspectos prejudiciais, a segunda trabalha com a exaltação de pontos positivos, e busca afirmar a função social das Relações Públicas. É uma forma de criar uma boa imagem da profissão junto aos públicos através da projeção sobre como suas práticas contribuem para sociedade como um todo. O argumento defendido por Andrade (1965) de que as relações públicas são necessárias para a preservação do público como instância critica da sociedade pode ser encaixado nessa categoria. Também podemos destacar os estudos de Grunig (1992) sobre o modelo de relações públicas simétrico de duas mãos, que estabelece a ideia de que a atividade está vinculada com um relacionamento bidirecional e com a promoção de um diálogo “ético” pelas organizações. As relações públicas são colocadas então como uma atividade que busca um equilíbrio entre os interesses da organização e seus públicos, que advoga em nome dos públicos dentro das empresas. É possível encontrar os ecos dessa dimensão do ethos em inúmeros textos acadêmicos, que ressaltam como sendo função das atividades de relações públicas prover o “bem-estar social”, gerar uma “harmonia de interesses”, buscar o equilíbrio “voltado para o beneficio da coletividade”, transformar a sociedade e “minimizar as diferenças sociais” e “fomentar a construção da cidadania” (Perruzo 1986; Lesly, 1995; Andrade 1989; Ferrari, 2007; Simon, 2003; Lima 2010). Recentemente essa dimensão está ganhando espaço na esteira da consolidação da Responsabilidade Social Empresarial como orientação gerencial das organizações. Em tal cenário, identifica-se uma linha de pensamento que coloca essa responsabilidade como função das relações públicas, presente em afirmações sobre como a atuação de relações públicas de dá no sentido de conscientizar as empresas de sua responsabilidade para com a sociedade (Kunsch, 1984) ou mesmo de que a prática de relações públicas é a própria responsabilidade social (Grunig, 1999). As duas dimensões do ethos aqui trabalhadas nos auxiliam na compreensão sobre a identidade projetada pela doutrina profissional de relações públicas, na medida em que apontam para os sentidos abstratos que perpassam sua construção. Importante perceber que essas duas dimensões são polos distintos de um mesmo ethos. Elas são constituídas a partir de contexto sócio-histórico comum, e possuem o mesmo objetivo: o reconhecimento social da profissão através da projeção de imagens adequadas segundo as expectativas dos públicos.

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Porém, as duas dimensões trabalham a polaridade entre a negação e a afirmação. A primeira dimensão busca construir a imagem pública da profissão pelo destaque no que a profissão não é: a atividade não é propaganda e não é uma ferramenta de manipulação, não pode usar a persuasão. Já a segunda trabalha a mesma construção, porém através da afirmação do que a profissão é: a atividade é benéfica para a sociedade, promove o diálogo e o bem-estar social. Essas dimensões não são excludentes, mas sim partes integrantes do mesmo ethos, que é construído pela própria tensão entre essa polaridade. Através do ethos encontramos os elementos que permitem entender a identidade projetada pela doutrina e que definem o “dever ser” da profissão.

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3. DA IMAGEM PROJETADA À REPUTAÇÃO DAS RELAÇÕES PÚBLICAS

There's a war. I'm watching it on television. (Conrad Brean, Wag the Dog)

Enquanto a identidade projetada por uma profissão pode ser definida como a sua apresentação perante os públicos, a imagem se refere à percepção desses públicos sobre aquela profissão. Como Almeida (2005) coloca, a identidade e a imagem possuem uma relação de “quem somos” e “como os outros nos vêem”. A imagem é então uma percepção, formada por um processo subjetivo “relacionado à experiência individual e, ao mesmo tempo, somatório de sensações, percepções e interrelações de atores sociais” (ALMEIDA, 2005, p.59). Essa multiplicidade de fatores que atuam na formação da imagem é assinalada também por Iasbeck, que aponta a elaboração da imagem por um individuo como a “relação do discurso que recebe e suas próprias idiossincrasias, experiências anteriores, visões de mundo, desejos e necessidades” (2007, p.88). Devido a esse processo de formação complexo, a imagem deve ser entendida como abstrata6 e inacabada. É algo mutante, fruto de uma constante construção de sentidos. Dentre os fatores que participam do processo de formação da imagem, é importante destacar a identidade projetada. Almeida chama a atenção para natureza relacional existente entre a identidade e a imagem, no sentido em que entre eles há uma “interdependência contínua, como processos de mão-dupla” (2005, p.74). A identidade projetada busca influenciar nas imagens formadas pelos públicos e, ao mesmo tempo, é determinada pelas percepções já existentes, o que traz um processo de rearticulação de sentidos constante. A diferenciação entre a imagem e a reputação passa pela questão da efemeridade. Fombrun (1996) afirma que enquanto a primeira é uma percepção transitória, a reputação implica em um processo cumulativo. A reputação “constitui-se por meio da consolidação das diversas imagens”, que são “sustentadas ao longo dos anos, nas percepções” dos públicos (ALMEIDA, 2005, p.20). Novamente surge um forte aspecto relacional entre os conceitos 6

Ao mesmo tempo em que é caracterizada pela abstração e que “flutua entre a imaginação e sentido”, a imagem também tem um caráter judicativo/caracterizante (BALDISSERA, 2004, p.278), na medida em que representa uma “verdade” para aquele que a constrói.

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aqui trabalhados: a reputação é constituída pela consolidação das identidades e imagens e “estas por sua vez, se retroalimentam da reputação”. (idem, p.78) Como já visto, a reputação pode ser entendida como um crédito de confiança perante os públicos, e sua importância na sociedade contemporânea está cada vez mais em evidência. Srour (2003) associa a reputação com a confiança coletiva, em que os públicos conferem credibilidade para uma determinada atuação. O autor estabelece o “estatuto da confiança”, que conta com os seguintes conceitos conquistados por uma boa reputação: credibilidade, credenciação, certificação, confiabilidade e credulidade. Aponta também que uma reputação positiva pode afetar profundamente as relações com os públicos e com a mídia, criando uma proteção contra críticas. Na esteira do reconhecimento sobre os impactos da reputação, foram desenvolvidos nos últimos anos diversos estudos que visam criar uma metodologia para a mensuração da reputação, porém ainda não se alcançou um único constructo devido à própria complexidade do assunto (Almeida, 2005). É possível perceber dois extremos nas tentativas de aferir a reputação. O primeiro são as pesquisas de opinião que buscam entender a reputação. Iasbeck (2007) aponta para uma inadequação inerente destas pesquisas, na medida em que elas não são capazes de investigar a reputação por si só. Baseadas em técnicas de afunilamento de diferenças subjetivas em prol de elementos mais universais, tais esforços podem encontrar uma imagem, que deve ser compreendida como uma “fotografia” da percepção daqueles pesquisados (Fombrun, 1996), porém não levam em consideração a natureza efêmera das percepções ou o processo de consolidação que gera a reputação. Por ignorar esses atributos básicos da reputação, essa metodologia deve ser tratada com cautela. No extremo oposto estão os métodos abrangentes e científicos desenvolvidos nas últimas décadas, como o do Instituto de Reputação. Desde 1999, o Instituto trabalha em um instrumento de pesquisa desenvolvido por Fombrun, Gardberg e Sever, e chamado de “Quociente de Reputação”. Esse instrumento leva em consideração 20 atributos que formam as seis dimensões que definem a reputação7, e visa ser um método de mensuração global da reputação organizacional. Essa metodologia foge do escopo de nosso trabalho tanto pelo seu foco na questão organizacional – a reputação de uma profissão apresenta características diversas de sua vertente organizacional - como também pela sua abrangência, já que estamos

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Almeida (2005) cita as seis dimensões como sendo “apelo emocional”, “produtos e serviços”, “desempenho financeiro”, “visão e liderança”, “ambiente de trabalho” e “responsabilidade social”.

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mais interessados em um panorama geral da reputação da profissão de relações públicas e não temos a pretensão de realizar um estudo exaustivo sobre o assunto. Acreditamos que uma alternativa viável e adequada para nosso trabalho pode ser encontrada entre esses dois extremos. Para isso propomos uma “filtragem midiática”. Segundo Almeida, “estudos mostram a enorme influência de assuntos tratados na mídia sobre a percepção dos indivíduos”, ao mesmo tempo em que apontam o fato de “uma reputação positiva exerce maior poder em atrair coberturas mais favoráveis” (2005, p.58). A mídia não deve ser vista como alheia à sociedade, mas sim como um público que partilha dos seus valores e contextos. Assim, a mídia influencia na construção de uma reputação, mas seu conteúdo é, em determinado aspecto, um reflexo da reputação já existente. As representações midiáticas então constroem a reputação e simultaneamente apontam para ela. No que tange às relações públicas, a influência das representações midiáticas é ainda maior. Tradicionalmente, a atividade é vista como sendo algo “dos bastidores”, atuando de maneira a não assumir a autoria de muitas de suas ações, o que diminui sua visibilidade perante os públicos. Fall e Hughes (2009) apontam para esse impacto da mídia nas percepções sobre a atividade através de uma pesquisa realizada com estudantes de graduação de relações públicas. Os autores entrevistaram mais de 450 estudantes em múltiplas faculdades ao redor dos Estados Unidos, dos quais mais de 75% afirmaram que a mídia era o principal fator de suas percepções sobre a profissão antes de entrarem no curso. Segundo a pesquisa, cerca de 90% dos estudantes nunca tinham tido nenhum contato com a profissão que não fosse através da mídia antes da faculdade. É com base nesse sentido que a filtragem midiática deve ser considerada um método capaz de fornecer subsídios importantes para a compreensão da reputação. Porém, é preciso adotar algumas precauções para minimizar o risco de tomar como reputação uma imagem ou uma opinião particular. Da mesma forma como pessoas possuem percepções próprias, veículos da mídia também as possuem. Essas imagens da mídia são formadas pelo processo complexo já descrito, em que diversos fatores exercem influência, como expectativas, experiências de mundo, interesses e a própria reputação sobre o assunto que elas tratam. Não podemos focar a investigação em um único veículo ou mídia e esperar encontrar a reputação, sendo necessária a filtragem das interpretações de uma pluralidade de fontes para encontrar os subsídios que pretendemos. Também é necessário cuidado com o caráter fugaz da imagem. Uma análise de todos os jornais impressos de um determinado dia, acrescida de todos os programas de televisão e radiofônicos daquele mesmo período, não permite ir além da identificação de uma imagem. É

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evidente que a reputação está presente na construção daquela imagem, porém pouco podemos dizer sobre ela a partir de tal fotografia. É necessário assim abranger um espaço de tempo maior para vislumbrar os elementos e indícios da reputação. É com base nessas duas precauções que realizaremos uma investigação que busca abranger diversas mídias, durante um espaço de tempo amplo. Também é importante a observação de Iasbeck, de que esses “esforços de leitura das interpretações midiáticas, disponíveis nos jornais, revistas, programas de TV e eventos de massa” (2007, p.12) sejam acompanhados por análises adicionais. No nosso caso, parece oportuno pensar nas análises sociopolíticas sobre o impacto das relações públicas na sociedade, na medida em que essas estabelecem visões críticas relevantes e que foram sendo apropriadas por outros discursos nas últimas décadas. Iremos começar então nosso panorama sobre a reputação das relações públicas com esses estudos, para depois passarmos para a filtragem midiática propriamente dita.

3.1. Análises sociopolíticas

Ao levantar suspeitas sobre o êxito da tentativa de distinção entre as atividades de relações públicas e propaganda por parte da doutrina, Henriques (2009) assinala a persistência de determinadas visões críticas aplicadas às relações públicas como uma evidência significativa. O autor cita três dessas visões, identificadas através em análises sociopolíticas que tratam das atividades da área. A primeira pode ser chamada de “fabricação do consenso” (ou “engenharia do consenso”), e têm em Chomsky, Herman e Habermas seus principais expoentes. Na verdade, ambos os termos fazem referência às obras de Lippmann e Bernays: Lippmann trata a “fabricação do consenso” (1922) como um impacto positivo da propaganda, já que moldar a opinião pública é necessário, na medida em que essa no seu estado natural é incapaz de lidar com o mundo moderno; Bernays também considera a manipulação da opinião pública como positiva, e afirma que a “engenharia do consenso é a própria essência do processo democrático, a liberdade para persuadir e sugerir” (1947, p.113). Na sua visão, o profissional de relações públicas é aquele com o domínio das técnicas para fazer com que uma ideia seja aceita publicamente. É como referência a essas duas obras que Chomsky e Herman (1988) trabalham a idéia da “fabricação do consenso” como a forma com que a mídia molda a opinião pública e

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determina os interesses da sociedade moderna8. Chomsky (1989) é especialmente crítico sobre a função das relações públicas nesse processo, uma atividade considerada por ele como uma das formas mais evoluídas, e que mais evolui, de controle coletivo9. Segundo o autor, se a voz do público é ouvida em uma sociedade, ela deve ser controlada. Nesse sentido, quanto maior a liberdade, mais sofisticadas devem ser as técnicas que controlam a opinião pública, de maneira que é significativo que a indústria de relações públicas tenha se desenvolvido justamente nos Estados Unidos. Habermas coloca a questão da “engenharia do consenso” como uma tarefa central da atividade de relações públicas, já que apenas no clima desse consenso é possível promover a aceitação de uma idéia. Segundo o autor, as relações públicas buscam a reorientação da opinião pública “mediante a formação de novas autoridades e símbolos” (1984, p.227). Ele denúncia também a manipulação que as práticas de relações públicas promovem na esfera pública, na medida em que ou “conseguem inserir material adequado diretamente nos canais de comunicação ou então elas arranjam na esfera pública pretextos específicos que mobilizam os aparelhos de comunicação de um modo previsível” (idem, p.227). A segunda visão crítica é a dos “manipuladores de mitos”, nos termos referidos por Baudrillard. Segundo o filosofo francês, os profissionais de relações públicas podem ser consideradas como “manipuladores de mitos: eles organizam um objeto ou evento como ficção. Eles liberalmente os interpretam – e até mesmo, no limite, eles deliberadamente os constroem” (1983, p.93). O professor Thomas Mickey também aponta para essa crítica, ao afirmar que o profissional de relações públicas cria “uma imagem e o público, frequentemente através da mídia, centra-se naquele signo, e não em uma realidade por detrás dele. Porque, como Baudrillard afirma, não há realidade por detrás daquele signo” (1997, p.87). Finalmente, a terceira visão critica pode ser chamada de “mão invisível”, e é encontrada principalmente na obra de John Stauber e Sheldon Rampton. No livro “Lixo Tóxico é Bom Para Você: Mentiras, Malditas Mentiras e a Indústria das Relações Públicas” (1995), os autores comparam a indústria das relações públicas com o personagem título do filme “O Homem Invisível”. Naquela obra eram utilizados fios e outras técnicas para mover cinzeiros e armas, como se eles fossem manipulados por uma mão invisível. “Ao invés de cinzeiros e pistolas, a indústria de relações públicas busca manipular a opinião pública e a

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Os autores desenvolveram um modelo de propaganda com cinco filtros que distorcem a mídia: propriedade dos meios de comunicação; a necessidade de financiamento e o poder dos anunciantes; a dependência de fontes como o governo e grandes corporações para reduzir custos operacionais; a influência de grupos de pressão; e o anticomunismo, que depois foi trocado pelos autores para „ideologia‟, em especial a da guerra ao terror (1988).

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política. Mas apenas o pode fazer enquanto permanecer invisível” (1995, p.21). A teoria da “mão invisível” afirma que grande parte do que encontramos nos meios de comunicação são na verdade informações plantadas pelo trabalho das grandes firmas de relações públicas, que permanecem ocultas nos bastidores. Essa visão critica foi consolidada em uma vasta literatura de denúncia lançada durante as últimas duas décadas. Miller e Dinnan se inserem nesse movimento, e colocam que “os poderes das relações públicas são misteriosos no sentido que eles não são conhecidos. Eles são encobertos em segredo e fraudes, o que permite seus praticantes a perseguirem seu objetivo [impor interesses e controlar a resposta da opinião pública]” (2007, p.1). É evidente que tais teorias não são mutuamente excludentes, na medida em que mesmo nessa breve exposição aparecem elementos que perpassam as três correntes. Essas visões críticas são importantes para nosso trabalho pelo fato de constituírem o arcabouço teórico que sustenta a consolidação das críticas sobre as relações públicas, e acreditamos ser possível encontrar ecos sobre essas análises na filtragem midiática.

3.2. Filtragem midiática

Os esforços de leitura das representações midiáticas sobre relações públicas que iremos realizar são baseados na tentativa de abranger um grande número de mídias, e de investigar um amplo espaço de tempo. Com esses parâmetros em mente, iniciamos nossa filtragem através de estudos acadêmicos desenvolvidos nos últimos anos nos Estados Unidos sobre como as relações públicas aparecem na mídia. Tratando sobre a mídia impressa, Spicer (1993) estudou uma amostragem de 81 artigos de revistas e jornais em um espaço de quatro anos (1989 – 1992) em que apareciam as expressões “relações públicas” ou “RP”. Através de uma análise de conteúdo, o autor identificou sete temas nos artigos: distração, desastre, hype, merely, guerra, desafio e persuasão (o tema hype foi percebido na tentativa de criar expectativas sobre produtos ou eventos, enquanto que merely apareceu no sentido de minimizar ou descartar notícias negativas sobre organizações, afirmando que elas não eram tão graves ou importantes). Desses sete temas, apenas o de desafio não indicava conotações negativas sobre relações públicas, mantendo um aspecto neutro.

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Podemos perceber nessa colocação de Chomsky uma idéia que remete ao desenvolvimento da atividade de Relações Públicas exposto no início desse trabalho.

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Ainda na linha jornalística, Keenan (1996) investigou os boletins noturnos transmitidos pelas três principais emissoras de televisão americanas entre 1980 e 1995, utilizando também como filtro as expressões “relações públicas” ou “RP”. Apesar de não ter divido seus achados em temáticas, a pesquisa descobriu que cerca da metade dos boletins investigados tinham aspectos predominantemente negativos sobre as práticas e profissionais por eles tratadas, em geral devido à manipulação e ao encobrimento de informações. É da mesma época a pesquisa de Henderson (1998), que investigou cerca de 240 edições do jornal The New York Times entre 1995 e 1996, também filtrando as expressões “relações públicas” ou “RP”. A autora concluiu que apenas em 5% dos artigos investigados o termo “relações públicas” foi utilizado corretamente10, e que em 16% do tempo as relações públicas foram nominalmente referidas como “uma força negativa na sociedade, porque corrompia os meios de comunicação e a democracia” (1998, p.51) Avançando na linha temporal, Jo (2003) realizou uma atualização dessas pesquisas ao investigar artigos e matérias em que aparecia o termo “relações públicas” em dois jornais de grande circulação (The New York Times e Washington Post) bem como nos telejornais noturnos das três grandes emissoras no final da década de 90. Assim como Keenan, ele não realizou uma divisão temática em sua pesquisa, mas concluiu que a conotação negativa sobre as atividades de relações públicas era predominante em quase 75% da sua amostragem. O autor apontou também que em quase um terço dos artigos negativos era citada a ideia do profissional de relações públicas manipulando a opinião pública. Já no campo do cinema, Karen Miller (1999) realizou um amplo estudo das obras lançadas entre 1930 e 1995 com objetivo de identificar o perfil dos profissionais de relações públicas. Para selecionar os filmes, a autora considerou aqueles em que os personagens se identificavam como profissionais da área ou eram explicitamente referidos como atuantes, bem como aqueles em que atividades normalmente vinculadas com relações públicas eram desempenhadas (relações com a mídia, campanhas políticas, gerente de comunicação, entre outras). Dentro desses critérios, mais de 40 filmes foram analisados, e os resultados mostravam uma visão bem negativa. A partir dos profissionais representados nessas obras, foram identificados alguns arquétipos dominantes, como cínico, manipulador, vazio, adulador, movido pelo dinheiro e anti-social. Apenas uma categoria positiva foi encontrada:

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Segundo a autora, o uso correto do termo era aquele que ia de acordo com a doutrina das relações públicas, em especial com as delimitações de práticas e éticas estipuladas pela Public Relations Society of America (PRSA), a principal organização profissional nos Estados Unidos.

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realizado, presente nos personagens com padrão de vida elevado e com sucesso no aspecto profissional e familiar. Uma questão detectada por Miller na maioria das obras analisadas foi o que ela chamou de “relações públicas como mágica”, e traz em si ecos da visão crítica da “mão invisível”. Segundo a autora, a ocultação dos processos desenvolvidos pelos profissionais de relações públicas em detrimento dos resultados criava a impressão que aquelas práticas eram uma espécie de mágica, colocando o profissional muitas vezes como um agente místico, “invisível”. Ela aponta que tal visão chama a atenção principalmente no relacionamento com a mídia, pois nunca era mostrado como os personagens convocavam uma coletiva de imprensa ou conseguiam uma cobertura positiva na mídia, saltando da “vontade” para o “resultado”. Passando para a televisão, Yonn e Black (2007) replicaram o modelo de pesquisa de Miller para investigar o perfil dos profissionais em seriados exibidos nos quatro grandes canais norte-americanos entre 1999 e 2006 (Fox, ABC, NBC e CBS). Com base em dezesseis personagens de dez séries diferentes, os autores encontraram um predomínio de características negativas nos profissionais, incluindo novos arquétipos como manipulador, sem coração e bully (retratado como aquele que utilizava de uma posição influente para a intimidação de outros), bem como diversas ações de cunho anti-social, como mentiras e o encobrimento da verdade. Saindo do aspecto dos personagens, duas conclusões dessa pesquisa chamam a atenção e são significativas para nossa investigação. A primeira é a persistência da visão das “relações públicas como mágica”, mesmo com a pesquisa baseada em uma amostragem recente de produtos midiáticos. Isso elimina a ideia de que a conclusão de Miller era influenciada pelas obras do começo/meio da década, quando a atividade e suas práticas ainda estavam em formação, e reforça uma das visões criticas sobre Relações Públicas (a da “mão invisível”). O segundo elemento apontado por Yonn e Black é a referência sobre como os comportamentos anti-social e politicamente incorretos dos profissionais de relações públicas são “esperados” e “normais pela sua profissão” (2007, p.33, tradução nossa). Os autores afirmam que em mais da metade dos seriados foi expresso que aquele conjunto de atitudes era característico de um profissional de relações públicas, o que nos indica uma cristalização ainda maior da reputação. É importante destacar também os movimentos de denúncia das práticas de relações públicas que se desenvolveram nos últimos anos baseados em aspectos colaborativos da internet. Desses, o maior é o site “PR Watch”, criado pelo Center for Media and Democracy

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(CMD) e que tem como slogan a frase “denunciando spin e desinformação desde 1994” (tradução nossa). Sua missão, segundo o próprio site, é expor a verdade sobre campanhas que visam enganar o público, com foco especial na prática do spin – termo que se refere originalmente a uma tentativa de manipulação da opinião pública através da exposição e exploração tendenciosa de determinados aspectos de uma controvérsia pública, mas referido hoje como qualquer tentativa de distorção em informações. Criado por John Stauber e Sheldon Rampton, os autores por trás da visão da “mão invisível”, o PRWatch pode ser considerado como o maior expoente de uma linha de jornalismo vigilante sobre as práticas de relações públicas pelas corporações que ganhou força na última década. Entre as maiores reportagens divulgadas pelo site estão investigações sobre o uso das relações públicas pela indústria do tabaco e de planos de saúde, ambos marcados por um forte viés de manipulação e propaganda. Conta ainda com uma seção chamada “Spin do Dia”, em que os usuários colaboram com suas próprias denúncias dessa prática, e um boletim trimestral enviado desde sua criação. Além dessas, esse movimento financiou também o lançamento de obras importantes de denúncia e que contribuem para a criação de visões criticas sobre a atividade, como “Lixo Tóxico é Bom Para Você: Mentiras, Malditas Mentiras e a Indústria das Relações Públicas” (1995) e “Acredite em Nós, Somos Especialistas: Como a Indústria Manipula a Ciência e Aposta com Seu Futuro” (2002), ambos de John Stauber e Sheldon Rampton Uma das principais ações do PRWatch foi a criação do SourceWatch, uma enciclopédia virtual colaborativa nos moldes da Wikipédia, visando a denúncia de grupos e técnicas que tentam moldar a opinião e a agenda pública. O site conta com o perfil de diversos profissionais e agências de relações públicas, grupos de lobby e detalhes sobre práticas utilizadas para esse fim, com destaque para o spin, o uso de especialistas para defender produtos ou campanhas, o astroturfing e os front groups – uma prática que cria e financia grupos que defendem determinada causa ou agenda como se fossem um grupo mobilizado espontaneamente na sociedade. Criado em 2003, e com mais de oito milhões de acessos e 56 mil artigos, o SourceWatch é um dos vinte maiores “wikis” privados do mundo11, contando inclusive com políticas especiais para proteção de denunciantes, e uma atuação global, incluindo denúncias de práticas na Europa, Austrália, Rússia e vários outros países.

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3.3. Advocacy da profissão de relações públicas

Outra análise que pode ser feita a partir da filtragem midiática é a do advocacy. Ainda sem termo consolidado em português, o advocacy pode ser entendido como um processo político de defesa pública de uma ideia, realizado tanto por indivíduos como por associações. Ele pode ser motivado por interesses, posições éticas, opiniões religiosas ou políticas, entre outros. No caso específico da profissão de relações públicas podemos identificar um desenvolvimento do advocacy ligado com a reação às críticas realizadas na mídia sobre a atividade. Em 2002, a Public Relations Society of America institucionalizou uma comissão especial voltada para o advocacy da profissão de relações públicas, com a missão de “representar a voz clara e consistente da PSRA sobre os problemas da área”. Essa comissão está representada com destaque no site da organização em uma seção que apresenta algumas de suas atuações nos últimos anos. Entre essas ações podemos destacar a gravação de um vídeo em resposta a uma opinião exibida em um programa de notícias da CBS que “atacava as relações públicas” e a emissão de comunicado reafirmando os códigos de ética da organização quando uma empresa de relações públicas foi acusada de utilizar front groups em uma campanha política. Importante notar que uma prática de advocacy tão evidente e institucionalizada não é recorrente nas principais organizações profissionais de outras atividades, na medida em que nenhum deles é possível encontrar uma sessão nominal com tamanha evidência. Tal prática é comum também no, em especial pelo Conselho Federal de Profissional de Relações Públicas (CONFERP). Entre os casos mais emblemáticos podemos citar a reação ao artigo “Pomba!” escrito por Luís Fernando Veríssimo em 2007, no qual ele afirma que “pombas são dissimuladas e de péssimo caráter”, porém possuem uma ótima imagem, sendo associadas constantemente com a paz. O autor apontava que “profissionais de relações públicas devem venerar as pombas, pois são o maior exemplo conhecido do triunfo de RP sobre a realidade”. Em nota sobre esse artigo, o Conferp afirma a miopia de Veríssimo ao escrever sobre o “triunfo de RP sobre a realidade”, já que isso implica um contraste entre o trabalho de relações públicas e a verdade. Nas palavras da Conferp, “o trabalho de relações públicas é o oposto do que o autor imputou às pombas”, e que “a vinculação da atividade de RP como uma estratégia maquiavélica e intencional de falseamento da verdade” vai contra o que defende os

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Segundo os dados do Wikimedia.org, especializado em assuntos “meta-wiki”.

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códigos de ética da organização12. O conselho atua ativamente na questão do advocacy da profissão de relações públicas, intervindo também em diversas outras questões semelhantes nos últimos anos.

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A retratação de Veríssimo foi postada no site do Conferp dias depois, com uma mensagem de que “o conselho fez sua parte para defender a profissão”. Porém, é relevante notar que na retratação o autor afirma que “entenderam que eu estava atribuindo aos RPs os defeitos das pombas” e que “a intenção não era ofender ninguém além das pombas”. Ele não se retrata por ter colocado as relações públicas em contraste com a

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4. ENTRE O ETHOS E A REPUTAÇÃO

We have huge industries, public relations industry, monstrous industry, which are designed from infancy to mold people into this desired pattern. (Noam Chomsky, The Corporation, 2003)

Nos últimos dois capítulos apresentamos um panorama geral da identidade projetada e da reputação da profissão de relações públicas. Sobre a identidade projetada, a tentativa foi de entender o ethos existente na doutrina profissional como forma de compreender as linhas gerais das manifestações doutrinárias e do “dever ser” por elas formulado. Foi nessa vertente de análise que identificamos a presença de duas dimensões do ethos, ligadas com a negação e afirmação, e que podem ser nomeadas como “negação da associação com a propaganda” e “afirmação da função social das Relações Públicas”. Já a análise sobre a reputação se pautou em análises sociopolíticas e em uma filtragem midiática, apoiada principalmente em estudos acadêmicos das representações da mídia sobre as relações públicas. Com base nas evidências levantadas, comprovamos certa apropriação das visões críticas de relações públicas pela opinião pública e na reputação sobre a profissão. É através dessas investigações que podemos apontar para uma enorme dissonância entre a identidade projetada e a reputação da profissão de relações públicas. Um dado levantado durante nossa filtragem midiática resume essa questão com uma clareza inegável: durante o intervalo de um ano que Hendersen (1997) analisou o jornal The New York Times apenas 5% dos artigos que tratavam de Relações Públicas tinha o sentido “correto” do termo. Por “correto”, a autora entende a identidade projetada pela doutrina. Além dessa pequena porcentagem de vezes que a imagem projetada pelo jornal estava alinhada com aquela que a doutrina busca legitimar, foi identificado que 16% dos artigos apresentavam uma imagem completamente oposta ao que a doutrina manifesta, se referindo à atividade como algo negativo e que manipula a opinião pública. Esses números são referentes a um veículo específico de comunicação, mas não nos parece absurdo imaginar resultados semelhantes em outras mídias. É nessa direção que a filtragem midiática realizada aponta. As análises das representações no cinema, nos jornais

realidade, e sua retratação é mais um indicio para a consolidação da reputação das atividades de relações públicas como manipulares da verdade.

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impressos, na televisão e na internet retratam essa discrepância entre identidade projetada e reputação, assim como o aumento do advocacy a favor da área também a reflete. Acreditamos que é justamente na investigação dessa dissonância que podemos levantar subsídios para discussões futuras sobre esse problema. Propomos então uma análise que leve em consideração as duas dimensões do ethos aqui identificadas e que tente entender como as imagens projetadas pela mídia se distanciam do discurso da identidade projetada, ou seja, que compreenda a relação entre esses conceitos e o seu impacto na reputação. Optamos por realizar essa análise a partir de três obras cinematográficas. A opção pelo cinema se deve às características dessa mídia, principalmente pelo seu alcance e o impacto de sua linguagem narrativa e audiovisual nas percepções dos públicos. Organizamos este estudo empírico em três tópicos: pré-análise, categorias de análise e análise.

4.1. Leitura flutuante

O processo de pré-análise teve como objetivo a escolha dos filmes a serem analisados. A partir das pesquisas realizadas por Miller (1999), compilamos uma lista de mais de cinquenta títulos lançados entre 1930 e 2008, selecionados com base nos critérios desenvolvidos por Miller: filmes em que o personagem se identifica como relações públicas ou que é expressamente referido como profissional da área, bem como aqueles em que os personagens são retratados realizando práticas tradicionalmente ligadas com a atividade, em especial relacionamento com mídia, porta-vozes, campanhas políticas, gerência de comunicação, entre outras. Todas as produções selecionadas pelas autoras eram, ao menos, coproduzidas nos Estados Unidos. Três problemas emergiram nessa lista: o grande número de produções em que o profissional da área atuava apenas como um coadjuvante na obra, com participação limitada ou mesmo apenas citado; o amplo espaço de tempo abrangido, que resultou em várias obras datadas do começo/meio do século passado; e a exigência de personagens praticantes de relações públicas, o que excluía obras que tratavam de temas de relações públicas, mas sem a figura do profissional, como diversos documentários. Foi então necessário revisar essa lista, retirando filmes muito antigos ou com a participação pequena de profissionais de relações públicas, e incluindo filmes que tenham referências específicas de relações públicas ou de suas atividades, mesmo que sem personagens realizando essas práticas. A partir dessa lista revisada, buscamos identificar categorias que eram significativas para nosso estudo a partir da revisão bibliográfica, em especial sobre a reputação da área.

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Importante ressaltar que o objetivo aqui é investigar mais sobre a dissonância ethos – reputação, e não investigar apenas essa última. Essas categorias não têm como atributo a neutralidade, mas sim sua significância na formação da imagem pública da profissão, garantida tanto pelo seu alcance como pela sua relevância. Assim, não é porque uma categoria teve uma conotação predominantemente negativa em relação ao profissional que outra terá que ser positiva. A primeira categoria foi pensada a partir do alcance, buscando identificar aqueles filmes que projetam suas imagens sobre as relações públicas para o maior número de pessoas globalmente, tendo um papel de destaque na formação do imaginário popular sobre a atividade. Chamamos essa categoria de blockbuster, termo utilizado para descrever filmes que são produções de sucesso, geralmente caracterizados por orçamentos volumosos, elencos estelares, grandes bilheterias – principalmente na estreia – e uma presença midiática massiva. Foram considerados inicialmente nessa categoria filmes com orçamentos e/ou bilheterias mundiais acima dos 100 milhões de dólares. Um segundo critério foi estabelecido a partir do próprio objetivo de analisar filmes com grande impacto na formação da reputação das relações públicas: a necessidade de menção às Relações Públicas. Ao não considerar obras a partir de práticas normalmente associadas à atividade e seu profissional, minimizamos o risco de que as diferentes definições existentes minem a característica principal da categoria. Já uma segunda categoria foi definida pela abordagem da prática do spin. Durante nossas pesquisas e revisões bibliográficas visando formar um quadro geral da reputação das relações públicas, o spin sistematicamente apareceu como um dos principais definidores da crítica à área durante as últimas duas décadas. A partir de uma rica literatura de denúncia, a prática ficou associada com a ideia de manipulação e a distorção da verdade, e deu origem aos chamados spin doctors, entendidos como profissionais de relações públicas especializados em tal prática. Como uma das principais vertentes críticas sobre as relações públicas, é interessante observar como tal prática é abordada no cinema. Foram consideradas na categoria spin as obras que tratavam explicitamente sobre o assunto (menção direta ao termo), bem como aquelas que retratavam práticas relacionadas ao sentido amplo que o termo veio a abarcar, como de distorção de informações, encobrimento de polêmicas, uso de especialistas para defender determinado produto ou questão e criação de factóides. Finalmente, uma terceira categoria está ligada com uma vertente de jornalistas investigativos conhecidos como muckrakers. Originada no começo do século XX, essa linhagem de jornalistas busca a exposição da verdade sobre práticas de exploração e

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manipulação pelos governos e corporações13, e possui uma ligação próxima com a atividade de relações públicas14. Depois da Segunda Guerra Mundial, foram realizadas várias tentativas de repreender os muckrakers, e que levaram a uma diminuição considerável nos seus números. A partir da década de 80, os muckrakers ressurgiram com um novo fôlego, impulsionados pelas novas tecnologias de produção e distribuição de conhecimento, desenvolvendo uma forte produção cultural e expandindo sua atuação para mídias como a internet e o cinema. Em relação a esse último, o desenvolvimento aconteceu tanto pela facilidade de produção como pelas novas formas de distribuição, que permitiram que estúdios independentes bancassem os custos de lançamentos e atingir um público amplo. Como resultado, essa categoria que podemos chamar de documentários muckrakers contemporâneos - que tem no cineasta americano Michael Moore sua principal expressão - ficou marcada tanto por um amplo sucesso de público, Fahrenheit 9/11 (Michael Moore, 2004) conseguiu mais de 200 milhões de dólares em bilheteria mundial, como também por um enorme reconhecimento em premiações. Dentre essas, foram diversas indicações ao Oscar de melhor documentário com as vitórias de Tiros em Columbine (Michael Moore, 2003) e Inside Job (Charles Fergunson, 2010) - e prêmios por festivais de cinema importantes, como a Palma de Ouro do Festival de Cinema de Cannes, entregue a Fahrenheit 9/11. Apesar de existir na literatura muckraker uma vertente cada vez mais consolidada que aborda o papel da atividade de relações públicas dentro das corporações15, no campo do cinema encontramos obras de caráter amplo, em que as práticas da área são citadas, porém não como o foco da investigação. A existência de uma menção direta às relações públicas foi o critério de seleção dos documentários de denúncia, sendo consideradas tanto obras com foco na denúncia de corporações como também de governos. Dividimos então as obras listadas nessas três categorias principais (blockbuster, spin e muckraker) e decidimos que seria analisado em profundidade um exemplar de cada, sendo 13

O termo muckraker foi cunhado pelo presidente americano Theodore Roosevelt em 1906, durante um pronunciamento no qual citou um personagem da obra de John Bunyan: o homem com o “muck-rake”. Esse personagem é retratado como um homem que, de posse do seu rodo de limpar a lama, não olha em outra direção se não para baixo. Em troca do seu rodo foi oferecida uma coroa celestial, mas ele preferiu continuar limpando a lama do chão, ou seja, exercendo sua função/obrigação. Roosevelt faz uma analogia desse personagem com os escritores que buscam encontrar a verdade, limpando a lama que a esconde, e elogia os benefícios que esses trazem para a sociedade. 14 Essa ligação pode ser rastreada na própria origem da atividade de relações públicas. Quando a Standart Oil contratou Ivy Lee, considerado um dos fundadores das relações públicas junto com Bernays, para melhorar sua aceitação pública, a empresa estava sendo atacada por diversos muckrakers que denunciavam suas práticas monopolistas. 15 Entre os principais nomes dessa vertente estão John Stauber e Sheldon Rampton, criadores e diretores do Center for Media and Democracy (CMD), do PRwatch e autores de seis obras sobre o assunto, que deram origem a visão crítica da “mão invisível”, como mencionado anteriormente.

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necessário estabelecer os critérios de seleção. O primeiro deles está ligado com o caráter efêmero da imagem e a constante rearticulação entre a reputação e a identidade, o que torna necessário pensar em obras que sejam capazes de refletir o mais próximo possível da articulação atual entre os termos. Um filme da década de 70, por exemplo, não pode servir de parâmetro para um estudo sobre o ethos atualmente, pois não considera as tensões constitutivas surgidas na ressonância com os valores e realidades sociais desse momento. Assim, buscamos selecionar filmes recentes, com foco especial naqueles lançados após 2005. Um segundo critério foi baseado na relevância do filme. Foram considerados alguns indicadores como o número de votos e comentários sobre o filme no Internet Movie Database, a quantidade de retornos encontrados em buscas no Google sobre o título em questão, o histórico da obra tanto em termos de bilheteria como também em premiações, bem como uma análise da relevância temática de cada um dos filmes. Com base nesses critérios, foram selecionados os filmes Hancock (blockbuster), Obrigado por Fumar (spin) e Enron: Os Mais Espertos da Sala (muckraker).

4.2. Categorias de análise

Foram identificadas duas unidades de análise principais: as menções explícitas às relações públicas, suas funções e objetivos; e as práticas retratadas pelas obras. Com base nessas duas unidades, foram definidas as seguintes categorias de análise que serão exploradas sobre cada obra selecionada: a) Caracterização geral da obra: o objetivo dessa primeira categoria é fornecer um quadro geral sobre a obra em si, levantando dados que ajudam a compreender seu contexto, a partir de informações sobre sua origem, realizadores, repercussão, impacto e outros; b) Apreciação geral da obra: um breve texto sobre a obra propriamente dita, sua estrutura narrativa, as situações e personagens ali retratados; c) Menções sobre o ethos: o objetivo é identificar se ocorrem menções que se relacionam de alguma forma com as duas dimensões do ethos identificadas nesse trabalho (“negação da associação com propaganda” e “afirmação da função social das relações públicas”), e, em caso positivo, analisar como elas ocorrem e quais suas características, buscando entender como o ethos está sendo apropriado e influenciando de algum modo o conceito público da atividade de RP;

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d) Identificação das práticas: sistematização das práticas de relações públicas retratadas nos filmes, procurando entender questões sobre como elas são mostradas e se há ou não enfoque nos processos; e) Relação entre as práticas retratadas e o ethos: analisar como as práticas retratadas se relacionam com as questões da identidade projetada, visando identificar em quais pontos esses dois elementos são dissonantes, e como isso é apresentado na obra em questão. Pensar também em como as práticas demonstradas reforçam ou contrariam as visões críticas sobre as relações públicas;

4.3. Hancock

4.3.1. Caracterização geral da obra

Hancock é um filme norte-americano de super-herói lançado em 2008 pela Columbia Pictures, dirigido por Peter Berg e estrelado por Will Smith, Charlize Theron e Jason Bateman. O nome da obra vem do seu personagem principal, John Hancock, um super-herói que combate o crime na cidade de Los Angeles de maneira imprudente e sem se importar com as consequências de suas ações, causando estragos na cidade, contratempos e ameaçando a saúde e o bem estar dos habitantes. Alvo de uma grande aversão popular, Hancock acaba por salvar a vida de um relações públicas, Ray Embrey, que, em dívida com o herói, resolve ajudá-lo a mudar sua imagem perante a população da cidade. Hancock é fruto de um roteiro original escrito por Vicente Ngo em 1996, com o nome de Today, He Comes, que contava a história de um adolescente de 12 anos e um super-herói fracassado. Após despertar o interesse de diversos nomes importantes na indústria cinematográfica, o roteiro passou pelo “inferno de desenvolvimento16” durante anos, e apenas em 2006 a produção engrenou. O principal fator que tirou o projeto da gaveta foi o interesse de Will Smith no papel de protagonista17. Do roteiro original permaneceu o argumento central, inspirado na curiosidade de Ngo sobre explorar como um herói como o Super-

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Inferno de desenvolvimento é o termo utilizado pela indústria cinematográfica americana para filmes que enfrentam dificuldades para serem produzidos. No caso de Hancock, múltiplos diretores foram atrelados ao projeto, e cada um tinha sua visão sobre como devia ser o filme e sobre quem deveria atuar na obra. Assim, o roteiro original foi sujeito a várias revisões, ficando quase 10 anos circulando no estúdio. 17 Will Smith era considerado na época como um dos atores com maior credibilidade e apelo popular. Por Hancock, o ator assinou um contrato de 20 milhões de dólares e 20% do faturamento da obra .

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Homem viveria no mundo real, enquanto que o restante foi adaptador por Vincent Gillian. O filme trocou de nome então para John Hancock e, em sequência, para Hancock. Com uma produção em torno de 150 milhões de dólares, o filme foi visto como uma aposta arrojada da Columbia Pictures, principalmente por não tratar de uma franquia já estabelecida. A desconfiança em torno do lançamento foi ampliada pela insistência do estúdio pelo título apenas com o nome do personagem, escolha criticada por alguns especialistas de marketing, que apontavam para uma eventual falta de apelo com os públicos. O lançamento foi marcado para o feriado de 4 de julho de 2008, Dia da Independência dos Estados Unidos, e a campanha de marketing foi baseada no nome de Will Smith e no argumento de um superherói politicamente incorreto e mal-humorado combatendo o crime, algo que recentemente havia conquistado grande sucesso com Iron Man (Jon Favreau, 2008). Durante seu lançamento, o filme arrecadou mais de 100 milhões no primeiro fim de semana nos Estados Unidos, a melhor estreia de um filme de Will Smith. Hancock também conseguiu êxito na bilheteria mundial, com mais de 78,3 milhões de dólares durante seu lançamento. No total, o filme arrecadou cerca de 624 milhões apenas nos cinemas. Atualmente, uma continuação de Hancock encontra-se em fase de pré-produção, com os atores principais confirmando seu retorno, bem como o diretor Peter Berg. A expectativa é que a sequencia seja lançada em 2014. Apesar de seu imenso sucesso comercial, o filme não foi bem avaliado pelos críticos, ficando com 40% de críticas positivas no Rotten Tomatoes (um site agregador de críticas), com 85 avaliações positivas. O consenso, com base no mesmo site, é que o filme começa promissor, mas a execução e a narrativa da segunda metade desperdiçam o potencial da ideia central e todo seu desenvolvimento. Robert Ebert, um dos principais críticos americanos, apresenta bem essa visão, ao elogiar a premissa do filme e seu tom irônico, bem como as atuações do Smith, Theron e Bateman, mas aponta a falta de apelo e originalidade do final da obra. Hancock teve resultado um pouco melhor na avaliação do público: com mais de 115 mil votos no Internet Movie Database, está com nota 6.5, ou seja, um pouco acima da média. No que tange às Relações Públicas, o filme é um dos poucos blockbusters a retratar um profissional da área com grande destaque e de maneira fundamental para a narrativa. Essa característica chamou a atenção de vários praticantes, e fez com que Hancock fosse bastante comentado nos círculos profissionais pela internet. É comum encontrar análises sobre o filme em blogs de relações públicas que apontam que o “verdadeiro herói do filme é o relações públicas” (STONE, 2008, tradução nossa), que o filme é o primeiro a mostrar “o papel do RP em um personagem que é o „mocinho‟ da situação” (LAGUNA, 2008) e como Ray Embrey é

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um “modelo para a profissão. Ele permanece fiel a seus valores e princípios, ele se importa com as pessoas” (MELISSA, 2009, tradução nossa). Não apenas os envolvidos na atividade falam sobre a integridade moral do personagem, que também é citada por diversos críticos de cinema, como Ebert. Devido ao seu sucesso estrondoso de bilheteria e o destaque que as práticas de relações públicas possuem na obra, não há dúvidas que Hancock é o blockbuster mais significativo já lançado sobre a atividade, sendo representação midiática muito influente.

4.3.2. Apreciação geral da obra

A narrativa de Hancock começa com o personagem título dormindo em uma via pública de Los Angeles, com varias garrafas vazias de bebidas ao redor, enquanto uma perseguição entre vários carros da polícia local e um bandido se desenrola na TV. Acordado por uma criança, Hancock vai atrás dos bandidos, não sem antes receber xingamentos tanto da criança quanto de uma mulher que ele tenta bolinar, e no caminho deixa um rastro de destruição: placas destruídas, carros de polícia capotados, a rodovia interditada e, no final, o carro dos bandidos dependurado em um dos símbolos da cidade. Através dos jornais, a polícia diz que ninguém pediu ajuda dele. No total dessa intervenção foram acumulados 9 milhões de dólares de prejuízo, o que o repórter afirmar ser o recorde pessoal de Hancock. Essas cenas iniciais explicitam a premissa do filme: um super-herói entediado, bêbado, que faz o que quer sem se importar com as consequências públicas das suas ações. Ele está acima da lei, e ninguém pode obrigá-lo a pagar os prejuízos de suas ações. A única punição que ele sofre é a aversão pública da população, materializada nas constantes reclamações pelas suas ações e nas ofensas que recebe. É uma premissa simples, mas que chama a atenção por criar um desvio na tradicional fórmula dos filmes de super-herói e brincar com questões que são ignoradas por esses: qual o efeito e a repercussão dos danos causados pelas grandes perseguições e sequências de ação desses filmes? O que as pessoas afetadas por aqueles danos acham? Quem paga a conta pelos prédios destruídos, carros em pedaços, e tantas outras consequências? Em filmes de heróis é até comum encontrarmos o clichê do herói perseguido e injustiçado, visto com desconfiança pelas autoridades por serem diferentes e gerarem medo. Não é esse o caso de Hancock, porque, como o próprio filme coloca, ele age como um “babaca”.

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É nesse cenário que surge Ray Embrey, um profissional de relações públicas movido basicamente pela vontade de mudar o mundo. Após uma reunião fracassada, na qual tenta convencer uma indústria farmacêutica a fornecer gratuitamente um remédio contra tuberculose, o personagem se vê preso dentro do seu carro prestes a ser atingido por um trem, apenas para ser salvo por Hancock no último segundo. Claro que a ação de Hancock causa diversos estragos e revolta da população, já que ele acaba por destruir o trem, alguns carros e mesmo machucar algumas pessoas. E nesse momento Ray percebe que, se ele não pode mudar o mundo, ele pode mudar Hancock, fazendo com que as pessoas gostem dele. Podemos dividir o filme em duas metades. A primeira é justamente a exploração dessa premissa, mostrando tanto os esforços de Ray para convencer Hancock dos seus problemas – através de vídeos da atuação do herói no YouTube que mostram os atos que geraram sua péssima reputação - bem como trabalhando a evolução do personagem, incluindo o uso de uniforme, sua interação com as pessoas e a preocupação de não causar danos nas suas ações. Nesse processo de mudança, Hancock acaba por aceitar a ideia de Ray de ir para a prisão de maneira voluntária, na expectativa de que a população iria precisar dos seus serviços, o que acaba acontecendo em um assalto ao banco local em que, ao seguir as determinações de Ray, o herói acaba sua ação sob aplausos. Porém, um grande problema da obra é justamente a existência da segunda metade. Ela tem inicio com uma premissa sem muito apelo, em que a mulher de Ray, Mary, acaba por se revelar também uma “criatura” como Hancock e com os mesmos poderes dele, e de quem o herói não se lembrava por ter amnésia. A trama passa a ser então sobre a relação dos dois, e vamos descobrindo que essa vem desde o começo dos tempos, e as coisas vão se desenrolando sem muito sentido, ou profundidade. A segunda parte da narrativa é extremamente inconstante e desinteressante, jogando fora a boa vontade que o público tinha construído até ali com a trama, principalmente por não se decidir entre o tom da película, já que ela busca inventar cenas de ação e intercalar com uma suposta complexidade dos personagens que simplesmente não está ali. De fato, em determinado momento ocorre um confronto entre Hancock e Mary no centro de Los Angeles, e que resulta em diversos estragos causados a prédios e outros patrimônios. O que era o foco durante o começo do filme, não é nem sequer citado nesse momento, não havendo nenhuma repercussão daquela situação. É como se o diretor simplesmente ignorasse aquilo que foi construído até aquele momento, em troca de cenas de ações e de tentativas de criar tensão emocional. O filme começa como uma subversão do gênero, mas a partir da metade se transforma exatamente nos clichês que tratou.

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O filme Hancock possui diversos méritos por sua primeira metade instigante, que flerta com o politicamente incorreto e com a ironia de maneira bem humorada, com personagens bem construídos e uma cidade viva, porém a segunda metade sem graça, clichê, sem direção narrativa e, principalmente, sem alma, faz com que o filme perca muito da força e da boa-vontade que havia adquirido com o público.

4.3.3. Menções sobre o ethos

Desde a primeira menção explícita às Relações Públicas no filme fica evidente uma menção a dimensão do ethos que busca afirmar a função social da área: o personagem Ray Embrey é introduzido na trama como sendo “o Bono das Relações Públicas”, referência clara ao vocalista da banda U2 famoso pelos seus trabalhos de cunho filantrópico. Naquele momento, ele está em uma reunião com a alta cúpula de uma indústria farmacêutica, tentando convencê-los a distribuir gratuitamente um remédio contra a tuberculose em troca do uso de um símbolo que identificaria a organização como uma empresa que deu uma “contribuição radical para ajudar o mundo”. Durante os dois minutos que a cena dura, Ray fala sobre “ajudar o mundo”, “fazer um mundo melhor e mais justo” e aquela que vai ser uma das principais frases do personagem, “salvar o mundo”. Rapidamente o filme estabelece uma imagem do profissional que pode ser considerada uma revisão da dimensão do ethos sobre a afirmação da função social das relações públicas, caracterizada como “RP para salvar mundo”. Durante a projeção, são oito menções explicitas de Ray sobre como ele pretende “mudar o mundo” e “fazer do mundo um lugar melhor” com base no seu trabalho. Em determinado momento, ele afirma que “pode não ser capaz de mudar o mundo”, mas pelo menos ele pode mudar a vida de Hancock, em uma caracterização menos extremista sobre sua função, mas que mantêm o profissional de relações públicas como agente de mudanças positivas. É fácil perceber nessa imagem de “RP para salvar o mundo” ecos da vertente doutrinária sobre como as relações públicas constroem uma sociedade melhor, harmonizam interesses conflitantes ou mesmo fomentam a cidadania – claro que a visão do filme é colocada de maneira mais contundente, própria para aquele formato. Não se trata aqui de questionar o personagem, seus motivos ou suas crenças, mas sim analisar a maneira como essa visão é tratada dentro da própria obra. Para isso é relevante perceber os elementos que compõem a cena em que Ray apresenta a ideia para o grupo

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farmacêutico. A cena começa com o personagem expondo sobre doações beneficentes e os motivos pelos quais o símbolo “All-Heart” é importante para a empresa. Assim que ele fala sobre o que a empresa deve fazer - distribuir gratuitamente o medicamento - o desconforto e a incredulidade causados pela ideia são reforçados através de uma série de planos focando a reação dos presentes e de uma mudança na trilha sonora. Enquanto os presentes na reunião trocam olhares e questionamentos, com uma clara decepção, Ray tenta explicar o conceito, dizendo que esse é o símbolo de que “todos estão falando”. Quando questionado sobre quem já apoia essa ação, ele afirma que já “tem uma franquia de esportes”. “NFL, NBA, NHL?” questionam os presentes. A resposta é “o time de futebol do meu filho”. Essa troca de diálogos explicita o caráter cômico da cena, que termina com a pergunta se Ray seria “um idiota”. Dois elementos são construídos em relação a essa visão: a dúvida inicial sobre a viabilidade e mérito da ideia, que é em seguida transformada em um julgamento sobre como ela beira o ridículo. Há um ceticismo claro em relação ao que Ray expõe, e a ideia acaba sendo colocada pelo próprio filme como algo utópico, algo que não faz sentido naquele ambiente de executivos, que é respondida de maneira irônica. Durante o decorrer da película, o próprio personagem passa a duvidar das suas tentativas, geralmente se referindo a elas com um tom sonhador e impotente, chegando a admitir que talvez “não possa mudar o mundo”. Assim, essa visão de “RP para salvar o mundo” não é tratada pelo filme como um reconhecimento da função social das relações públicas. O dialogo com o ethos é em tom de descrença e de ironia, acentuando o caráter dúbio e a tensão existente entre essa imagem que se pretende construir e a própria natureza das corporações e da profissão. Há então uma dissonância clara entre esse elemento da identidade e a maneira com que ele está sendo retratada pela obra.

4.3.4. Identificação das práticas

Podemos identificar três práticas principais de relações públicas retratadas pelo filme, todas voltadas para melhorar a imagem de Hancock junto aos públicos. A primeira é um trabalho para melhorar a interação do herói, praticamente um treinamento de relacionamento. O inicio desse processo é mostrado através de um diagnóstico sobre a reputação do herói e suas causas, realizado através de exemplos midiáticos como vídeos do YouTube. Entre as medidas sugeridas por Ray para melhorar sua reputação estão o controle sobre a aterrissagem

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- para não causar danos quando Hancock chegar a algum local -, tratar as pessoas com respeito, pedir permissão para tocar em alguém, reforçar o fato que os policiais estão fazendo um bom trabalho, evitar destruir carros de 100 mil dólares e usar portas ao invés de destruílas. Nesse primeiro ponto, os processos são bem explorados nas suas três fases: na identificação, no treinamento e quando as ações são colocadas em prática, durante um assalto ao banco. Uma segunda prática está relacionada com a identificação do herói, criando uma nova dimensão simbólica para ele, representada pelo uniforme. Ray coloca que um uniforme representaria um “propósito”, assim como aqueles utilizados por policiais, médicos ou bombeiros. Novamente, o processo é bem explorado, desde a concepção, as razões e os efeitos dessa ação. Uma terceira prática está relacionada com a sequência da prisão do herói, que aceita se entregar depois de ser convencido por Ray. Essa cena retrata, em determinado aspecto, a visão das “relações públicas como mágica”, já que passa da constatação que Hancock deveria se entregar para uma coletiva de imprensa na frente da prisão, sem focar no modo como os jornalistas foram convocados. Essa questão das coletivas já havia sido levantada por Miller como colaboradora dessa visão, já que, ao não mostrar o processo de convocação, passa a impressão de que basta o profissional querer que uma coletiva aparece.

4.3.5. Relação entre as práticas retratadas e o ethos

Nos três conjuntos de práticas identificados em Hancock, é possível perceber que pelo menos os dois primeiros (“treinamento de relacionamento” e “construção simbólica”) não estão dissociados do ethos da doutrina de relações públicas. Elas não são práticas associadas com a propaganda, nem possuem um teor acentuado de manipulação e persuasão. Na verdade, elas até estão associadas com a ideia de harmonia com os públicos proposta pelo ethos, na medida em que trabalham com o reconhecimento por parte de Hancock dos interesses e expectativas que os públicos possuem sobre sua atuação. Já a terceira prática é mais complicada. Durante a projeção, Ray justifica que Hancock deve aceitar ser preso de maneira voluntária, já que as pessoas o consideram como algo garantido, e que assim ele poderia fazer a sociedade sentir a sua falta, o que aumentaria o reconhecimento de sua importância para aquela comunidade. Ele afirma que em duas semanas as pessoas estarão clamando pelo seu retorno, e que se ele estiver errado, o máximo que pode acontecer é o herói simplesmente sair daquele local.

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Na cena seguinte, durante a conferência para a imprensa, Hancock da uma declaração que começa com a seguinte frase “Eu peço desculpas à população de Los Angeles pelo meu comportamento impróprio e aceito as consequências”. O problema é que o longa deixou claro na cena anterior que esse não era o propósito daquela manobra. Não se tratava de um arrependimento de Hancock, mas sim uma estratégia para influenciar a opinião pública, de forma que todo aquele depoimento não passa de uma mentira. Essa atitude pode ser encaixada na citação de Habermas sobre como as relações públicas “arranjam na esfera pública pretextos específicos que mobilizam os aparelhos de comunicação de um modo previsível” (1984 p.227), pois é exatamente essa a ação naquele momento, com a criação de um evento que possibilitou a inserção de Hancock na esfera pública dentro de um determinado contexto. As motivações por detrás daquele evento não são aquelas ditas para a imprensa. Todo aquele esforço tem caráter fictício, já que o sabemos (pelo próprio filme) que o herói pode sair dali quando bem entender, inclusive já estando determinado que se o resultado desejado (apoio da opinião pública) não for atingido em duas semanas, ele irá deixar a prisão. Sua prisão é apenas um factóide criado como parte de uma estratégia para inserir o assunto sobre a regeneração do herói na mídia. Apesar da construção narrativa da obra evidenciar para o espectador a natureza daquela prática, ela não é comentada nem mencionada como uma tática de persuasão e manipulação da mídia dentro da trama. Caracterizado pelo discurso sobre “salvar o mundo”, Ray não esboçou nenhuma dúvida ética ou moral perante aquela prática, que ele mesmo idealizou. Enquanto essa prática vai claramente contra a dimensão do ethos que busca negar a associação com a propaganda, a forma com que ela é tratada na obra reforça a cristalização da imagem de que mentira e manipulação fazem parte da atividade de relações públicas. É também sintomático que o personagem seja encarado como um representante extremamente ético da profissão não apenas por críticos, mas por praticantes e estudantes da área.

4.4. Obrigado Por Fumar

4.4.1. Caracterização geral da obra

Lançada em 2005, essa sátira política estrelada por Aaron Eckhart acompanha os esforços do lobista Nick Naylor em defender os interesses da indústria tabagista perante a

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opinião pública. Nick é apresentado como um porta-voz e vice-presidente da Academia de Estudos sobre o Tabaco, uma organização criada pelo conglomerado das indústrias do cigarro, conhecido por “Rede do Tabaco”, com o objetivo de estudar os efeitos colaterais da nicotina. O filme foi escrito e dirigido por Jason Reitman, baseado na obra homônima de Christopher Buckley. Antes do seu lançamento a obra chamava a atenção tanto pela polêmica da sua premissa, como também pela sua produção. Mel Gibson comprou os direitos da adaptação do livro mesmo antes da existência de um roteiro, com o objetivo de bancar e estrelar o filme. Porém, a natureza irônica e controversa da trama acabou fazendo com que os estúdios resistissem a essa ideia, com medo de afetar a imagem do astro que já estava envolvido no igualmente polêmico “A Paixão de Cristo”, engavetando assim o projeto. Reitman, que na época havia escrito alguns curtas, resolveu então fazer uma adaptação do livro por conta própria, dando origem ao roteiro que foi eventualmente vendido para a produtora de Gibson. Nos três anos seguintes, o estúdio lutou para encontrar investidores para a produção, enfrentando a resistência dos grandes produtores de Hollywood, que insistiam em alterações do roteiro para que a obra apresentasse um final mais comovente e uma mensagem antitabagista mais forte. Apenas em 2003 a produção de fato começou, com um orçamento de 8,5 milhões de dólares e com Reitman na direção. A polêmica seguinte partiu da decisão do diretor de não retratar nenhum personagem do filme fumando, o que levantou criticas sobre o caráter antitabagista da obra, apesar do mesmo afirmar que se tratava de evitar uma mensagem prócigarros. Em meio às discussões, surgiram rumores antes da primeira exibição da obra no Festival de Sundance sobre cenas de nudez com Eckhart e Katie Holmes que estariam sendo censuradas pelo marido da atriz, Tom Cruise. Logo após a exibição, o filme polarizou a imprensa especializada, que se dividiu entre questionamentos sobre a moral envolvida nas práticas do filme, e sobre a existência ou não dessas cenas. Impulsionado por todas essas controvérsias, a obra rapidamente recebeu status de “cult” antes do seu lançamento, o que garantiu uma das 100 maiores estreias limitadas de todos os tempos, com uma média de mais de 50 mil dólares por sala. A transição do circuito limitado para o aberto não foi tão grandiosa, mas conseguiu bons números. No total, o filme arrecadou mais de 32 milhões de dólares de bilheteria mundial. O humor politicamente incorreto do filme fez sucesso também entre os críticos de cinema, na medida em que conseguiu 86% de críticas positivas no agregador Rotten Tomatoes. O consenso é que o filme apresenta “personagens deliciosamente inescrupulosos”

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e um “cinismo perfurante” ao abordar “todos os lados da questão antitabagismo de maneira hilária e inteligente”. Apesar de conseguir uma aceitação ampla, o posicionamento moral do filme não agradou parte da esquerda liberal, que considera o filme “moralmente filtrado demais” (Thomson, 2010). Em relação à opinião dos espectadores, o filme também conseguiu uma avaliação positiva, conseguindo uma nota média de 7.8 a partir dos quase 75 mil votos de usuários do Internet Movie Database. Em relação à prática do spin, o filme é frequentemente citado como “uma visão cruel sobre a distorção sem fim da verdade que é marca da nossa sociedade” (BRAUN, 2005, tradução nossa). Segundo alguns críticos, “o verdadeiro alvo do filme não é a indústria do tabaco, mas sim o lobby e as práticas do spin, que são males palatáveis para toda a população” (EBERT, 2005, tradução nossa). O PRWatch publicou um longo artigo sobre o livro “Obrigado por Fumar”, afirmando que apesar das tentativas de desmerecer os fatos ali narrados com afirmações que eles seriam exageros ou simples sátiras, “aquela é uma história que a indústria das Relações Públicas terá dificuldades em controlar”. (Stauber, 1994). De fato, quase duas décadas depois da publicação do artigo acima citado se passaram e ainda é fácil encontrar os argumentos que Stauber afirma que seriam usados em defesa das relações públicas. Uma rápida busca no Google da expressão “Thank you for smoking” e “public relations” revela logo entre os primeiros resultados duas páginas com esse conteúdo. O primeiro está no blog de um doutorando australiano da área, que reproduz uma avaliação da obra e afirma que essa é uma “depreciação hollywoodiana da indústria das RP, que falha em mostrar a complexidade da profissão” (COOK, 2006, tradução nossa), enquanto que a também australiana Gaylene Hill afirma que o filme “não representa as relações públicas contemporâneas, mas sim uma caricatura exagerada da indústria” (2011), utilizando como principal argumento o fato de várias organizações profissionais terem códigos de ética que proíbem aquelas práticas. Seja como for, o politicamente incorreto e dono de uma “moral flexível” Nick Naylor é um personagem marcante da última década, sendo amplamente reconhecido como um dos maiores “spin doctors” da ficção.

4.4.2. Apreciação geral da obra A primeira fala que ouvimos de Nick Naylor é que “poucas pessoas no planeta sabem o que é ser realmente desprezado”, dita em uma narração em off poucos segundos antes dele ser vaiado de maneira unânime em um programa de auditório. Ao seu lado naquele dia estava

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a presidente do movimento das “Mães Contra o Fumo Adolescente”, a presidente da “Associação de Pneumologia”, um assessor dos “Serviços de Saúde e Humanitários” e um garoto com câncer. A reação da platéia é explicada pelo próprio Nick, ainda em off: “Você pode culpá-los? Trabalho defendendo uma organização que mata 1200 pessoas por dia. Há Atila, Gengis, e eu, Nick Naylor, o porta-voz da nicotina”, enquanto imagens mostram números representando a quantidade de mortes que cada um desses foi responsável. Nick prossegue sua narração mostrando como funciona a Academia de Estudos sobre o Tabaco, organização que representa, e criada com o intuito de gerar provas para a defesa da indústria do cigarro. Há ali um cientista que há 30 anos pesquisa a ligação entre a nicotina e o câncer, sem resultados conclusivos, um time de advogados contratados a partir das melhores faculdades americanas e o mais importante, o controle de spin, atividade que o próprio Nick exerce com o objetivo de gerar uma opinião pública positiva para o cigarro. Ele não tem um diploma de Medicina ou de Direito, mas sim de bacharel “em ofender e em ser xingado”. Essa introdução, feita pelo próprio personagem, marca já nos primeiros minutos da obra o tom politicamente incorreto e sarcástico da narrativa, bem como uma ideia da narrativa fragmentada e com estética de videoclipe que o diretor adota. Logo após essa breve introdução sobre o personagem, o filme o mostra em ação. Primeiro com o uso da retórica, dizendo à plateia que a indústria do tabaco não tem nada a ganhar com a morte do garoto com câncer, ao contrário daqueles que trabalham contra eles no governo, já que esses dependem daquela fatalidade para aumentar suas verbas. Segundo ele, seus adversários praticam uma verdadeira exploração da miséria humana. Esse argumento ganha força pelos termos absolutamente honestos que Nick utiliza, ao colocar que o interesse da indústria é que aquele menino continue vivo e fumando, e que sua morte representaria apenas a perda de um consumidor. Essa franqueza gera as primeiras dúvidas na plateia, e essas são trabalhadas em seguida com o anúncio de uma campanha de 50 milhões de dólares contra o fumo adolescente que sua organização está lançando, com o argumento de que “todos concordamos que não há nada mais valioso no nosso país que a juventude”. Ficaremos sabendo logo em seguida na narrativa que aquela campanha tinha acabado de ser inventada, mas não sem antes vermos os aplausos que Nick recebe no programa de auditório, ilustrando uma mudança completa da atitude daquele público. Da mesma forma com que a franqueza dos termos do argumento de Nick foi efetiva para mudar o comportamento da plateia naquele programa, ela também é o elemento fundamental para a identificação da audiência com o personagem. É a honestidade brutal do personagem, obtida através da narração em off em que ele se apresenta e expõe sua ocupação

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sem qualquer tentativa de maquilar a realidade, que garante seu fascínio e nos faz torcer e vibrar com a atuação do mesmo no programa de auditório. É a opção pela franqueza que contrabalanceia a questão da moral extremamente discutível das práticas mostrados na obra, evitando que a audiência desenvolva uma relação de repúdio com a própria película, justamente pela identificação com o personagem. Não há dúvidas aqui: o filme pertence a Nick Naylor. Após apresentar o personagem, a narrativa passa a revelar os detalhes do universo orbitado por Nick, a começar pelo seu chefe, BR, caracterizado como implacável. Acompanhamos também um dos almoços dos “Mercadores da Morte”, o grupo de amigos de Nick formado por porta-vozes das indústrias do tabaco, álcool e armas de fogo, no qual são discutidas e compartilhadas experiências e táticas empregadas por eles. O filme também nos introduz a questão familiar do personagem, em especial seu filho Joey, que vive com sua exmulher e que, em um temor exposto por Nick, pode estar formando uma imagem distorcida sobre o pai. Ainda somos apresentados ao Capitão, o último grande nome da indústria do tabaco, e ao senador Finistirre, uma liderança na luta contra o cigarro, e que pretende colocar nas suas embalagens o símbolo de veneno. Um último elemento desse universo é a jornalista Heather, que está escrevendo um artigo sobre Nick, e com quem ele acaba tendo um relacionamento. O filme passa a focar então no desenvolvimento das práticas, motivações e ideais de Nick. Durante todo esse processo o ponto central continua sendo a honestidade com que elas são tratadas, desde a visita do personagem a escola do filho, onde ele questiona a validade da opinião da mãe de uma menina por ela não ser especialista, até declarações sobre o requerimento do seu emprego de uma “certa flexibilidade moral” para defender uma indústria como a do cigarro. Os dois eixos centrais da narrativa são as práticas de Nick e o relacionamento com seu filho, e eles vão sendo trabalhados em conjunto, como na viagem que Joey acompanha o pai em Los Angeles, onde ele pretende negociar para que mais personagens fumem nas telas do cinema. O ritmo da obra é mantido alto durante todo o tempo, principalmente através de uma montagem fragmentada tanto espacialmente, como também no aspecto temporal. A própria duração de pouco mais de uma hora e vinte minutos reflete esse ritmo. No final das contas, é importante perceber que o nível de empatia que o espectador vai desenvolvendo com Nick é tal que muitos vão ficar mais incomodados com o comportamento de BR, que se apropria de uma ideia do protagonista para ganhar créditos com o Capitão, do que com algumas daquelas práticas utilizadas por ele. Não que a construção do personagem

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deixe essas práticas mais aceitáveis, mas ela acaba estabelecendo uma espécie de defesa: ele pode ser considerado um “calhorda, manipulador e sem moral”, mas ele é todas essas coisas de maneira agradável. E esse é o grande mérito do filme, porque sabemos o que o personagem é, sabemos que aquilo é discutível do ponto de vista moral, mas não conseguimos deixar de, em determinado ponto, torcer por ele. É um atestado sobre como as técnicas retóricas que Nick utiliza na introdução do filme para ganhar a confiança da platéia do programa de televisão são efetivas: elas são utilizadas na audiência do filme com resultados similares.

4.4.3. Menções sobre o ethos

Identificamos duas menções sobre as dimensões do ethos aqui trabalhadas. A primeira remete a dimensão da “afirmação da função social das relações públicas”, e ocorre na primeira cena em que Nick encontra a repórter Heather em um restaurante. Logo após ele se sentar a mesa, ela realiza a seguinte pergunta: “como você vê a si mesmo”. Nick responde sem titubear: “Sou um mediador de dois segmentos da sociedade que tentam se ajustar”. Essa declaração evoca a visão das relações públicas como responsável pela criação de uma determinada harmonia na sociedade, daquele profissional como tendo a função de ajustar esses segmentos. Apesar de muito semelhante às definições da atividade que falam sobre “mediar interesses conflitantes”, essa visão diferencia-se por pressupor um resultado de ajuste no final. Mais importante do que perceber essa menção é entender a maneira como ela foi apresentada pela obra, o que pressupõe a compreensão do contexto em que ela foi realizada. Na cena anterior a do restaurante, os “Mercadores da Morte” conversavam à mesa sobre a repórter e alertam a Nick sobre os atributos físicos de Heather, em especial seus “seios”, com a afirmação de que “seios lindos em uma repórter entrevistando um homem com informações privilegiadas é relevante”. Assim que chega ao restaurante, Nick deixa claro que está trabalhando o melhor do seu charme, como ao pedir um vinho caro e pedir para chamá-la apenas de “Heather”. Temos aí o primeiro elemento que deve ser considerado: a vontade do próprio Nick de gerar uma imagem positiva “sedutora” para si – o seu próprio ethos. Logo após a resposta sobre ele ser um “mediador”, Heather afirma que outras pessoas definiram Nick “como assassino, parasita, cafetão, explorador e matador de crianças”. Após um comentário irônico dele sobre como o artigo parece estar equilibrado, a repórter completa perguntando sobre suas motivações. Nick desliga o gravador, pergunta se ela quer saber realmente quais são, e afirma: “controle populacional”, o que causa uma série de risadas por

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parte dos dois personagens retratados na cena. Não é possível deixar de perceber o caráter irônico de toda aquela cena. O filme trata então essa menção como uma “resposta politicamente correta”, e assume um posicionamento de que ela não é levada a sério, na verdade ao contrário, ela é motivo de ironia. Já em relação à dimensão da “negação da associação com a propaganda”, uma menção do seu oposto ocorre no artigo de Heather, que acaba ocasionando a demissão de Nick e seu isolamento social por ter revelado informações confidenciais à repórter. Essa menção é colocada da seguinte maneira: “o objetivo dos encontros [dos „Mercadores da Morte‟, identificados como porta-vozes das suas respectivas indústrias] é a competição pela mais alta taxa de mortalidade enquanto comparam estratégias de como ludibriar o povo americano”. Essa afirmação não é rebatida nem comentada no restante do filme. Na verdade, ela acaba sendo reforçada como verdadeira, já que Nick não se indigna pela veracidade da matéria, mas sim por ela ter sido resultado de informações que ele acreditava serem “confidenciais”. Ainda sobre a “negação da associação com a propaganda”, é válido citar a menção constante da persuasão como um instrumento e uma função primordial da atividade. Encontramos, nos diálogos de Nick com seu filho, menções explícitas ao uso da argumentação como forma de convencer as pessoas sobre determinadas questões.

4.4.4. Identificação das práticas

São diversas as práticas que podemos identificar durante os esforços de Nick de defender publicamente os cigarros e a indústria tabagista. Em especial, existe um grande enfoque na questão do spin em si, com o personagem se referindo a sua própria função como “controle de spin”. Durante a projeção, o filme expõe de forma clara seu entendimento sobre essa prática nas palavras de BR: “distorcer a verdade”. Para isso, uma das principais técnicas utilizadas como “spin” no filme é a tentativa de mudança de perspectivas em um debate, retirando o foco de um aspecto da controvérsia pública desfavorável para a organização e passando para outro. Uma das formas com que isso acontece é quando, ao invés de se defender de uma acusação, Nick ataca quem o acusa. O personagem explica a lógica desse movimento para o filho Joey através da analogia com os sabores de sorvete. Ele não precisa provar que está certo, ele apenas precisa deixar evidente que o outro está errado, e assim o público perde a confiança naquela acusação. Essa técnica é utilizada por Nick em quatro momentos

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diferentes: no programa de auditório que dá início a narrativa, quando ele acusa o assessor do senador de se aproveitar da miséria humana; no programa em Los Angeles com Finistirre, em que ele aponta a incoerência do Senador ao criticar as fazendas de tabaco e no mesmo dia lamentar o estado da agricultura americana; na audiência do Congresso, quando ele acusa as indústrias que sustentam os Senadores presentes de matar mais que o cigarro (em especial o queijo de Vermont); e, finalmente, na sua declaração após o artigo de Heather, em que ele afirma ter aprendido que é injusto ter relações sexuais com membros da imprensa, acusando-a de ter se aproveitado disso. Em nenhum desses momentos ele nega as acusações que estão sendo direcionadas para sua pessoa ou para a indústria por ele representada, se preocupando em diminuir a credibilidade dos seus oponentes. Uma segunda prática utilizada é a da “declaração do especialista”. Essa técnica é citada logo na apresentação que Nick faz sobre a Academia de Estudos sobre o Tabaco, ao dizer que eles se baseiam nas pesquisas de um cientista alemão que há trinta anos pesquisa o assunto e não conseguiu encontrar provas conclusivas da ligação entre a nicotina e o câncer. Essa mesma técnica fica evidente na cena da escola de Joey, quando Nick é interrompido por uma menina que repete a afirmação de sua mãe sobre como os cigarros fazem mal, ao que ele responde questionando se sua mãe é uma cientista, médica ou pesquisadora. Quando a menina diz que não, ele afirma que ela não tem então conhecimentos e credibilidade para tratar do assunto. Essa técnica aparece uma terceira vez após o sequestro de Nick (realizado na parte final do filme, e no qual os sequestradores colam dezenas de adesivos de nicotina em Nick para matá-lo), quando ele pergunta se o médico permite ser citado na frase “o cigarro salvou sua vida”. Há também a tentativa de influenciar a opinião pública ou o foco da discussão com o anúncio de um fato/evento com esse propósito. Um exemplo é o anúncio da campanha de 50 milhões de dólares contra o fumo adolescente no programa de auditório. Outra prática utilizada é a de inserção de produtos na mídia visando um ganho na sua imagem pública e na reputação, retratada pela tentativa de Nick de inserir os cigarros em filmes, nos quais grandes estrelas apareceriam fumando. O objetivo era realçar o apelo do produto pela imagem desses atores. Devido ao próprio enfoque do filme, os processos por trás dessas práticas são um dos principais assuntos tratados pela obra. Eles são explorados em especial nas cenas de Nick com seu filho, em que ele explica tanto seus objetivos como seus modos. Entre os processos mostrados se destacam a criação da campanha de 50 milhões de dólares contra o fumo adolescente, e a maneira como os cigarros seriam inseridos nas produções de Hollywood.

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Também é retratado o processo de ganhar força nos debates através da manipulação das emoções da plateia, referido pelo Senador Finistirre na reunião com seu assessor ao afirmar que quando uma criança com câncer é escolhida para ir a um programa de auditório, ela deve estar em estado terminal, em uma cadeira de rodas e de preferência com um “peixinho dourado”.

4.4.5. Relação entre as práticas retratadas e os ethos É bem evidente a contradição existente entre as práticas retratadas por Obrigado Por Fumar e a dimensão do ethos que busca negar a associação com a propaganda. Em geral, todas as práticas do filme são consideradas como manipulação na literatura de denúncia. Essa percepção é reforçada pela própria obra, já que constantemente são utilizadas expressões como “distorcer a verdade”, “manipular” e “enganar o povo”. Ao mesmo tempo, há referências continuas ao objetivo dessas práticas, que é o de defender publicamente a indústria do tabaco, e possibilitar a manutenção ou o aumento do seu lucro. Esses objetivos assumem um contorno ainda mais cínico pela constante reafirmação do filme sobre a ligação do cigarro com doenças pulmonares e a quantidade de mortes por ele causada. Também é um fato importante a ser constatado que em nenhum momento os personagens tentam negar ou mesmo argumentar o aspecto moral daquelas práticas. Durante todo o tempo é subentendido que aquilo é, em alguma medida, “errado”, não devido às práticas em si, mas pelo contexto que a obra constrói através das constantes afirmações de que o cigarro mata e que a função de Nick é manipular a verdade. O foco do questionamento passa a ser não sobre as práticas, mas nas motivações de Nick, buscando entender quais são os pretextos que o levam a praticar tal atividade. Nesse momento, o personagem acaba evocando um ethos que é típico de outra atividade, o Direito, ao dizer que todo mundo merece uma defesa, inclusive as grandes corporações capitalistas. Ao final da projeção, é possível perceber um enfoque muito maior na investigação dos motivos e fins daquelas ações do que em pensar os meios utilizados pelos personagens, que são, em geral, caracterizados como politicamente incorretos e enquadrados em praticamente todas as três visões críticas sobre relações públicas apresentadas nesse trabalho, mais uma vez mostrando a apropriação dessas pela sociedade e pela mídia.

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4.5. Enron: Os Mais Espertos da Sala

4.5.1. Caracterização geral da obra Lançado em 2004, o livro “Os Mais Espertos da Sala: O Incrível Crescimento e a Escandalosa Queda da Enron” expõe os detalhes de um dos maiores escândalos corporativos da história dos Estados Unidos, ocorrido em 2001: a quebra da Enron, uma empresa de energia que era avaliada em mais de 70 bilhões de dólares. Apesar de afetar e lesar milhares de pessoas, o assunto foi eclipsado por um evento ainda maior, o atentado as torres gêmeas do World Trade Center em 11 de setembro. Apenas com o lançamento do livro, quase três anos depois do fato, é que grande parte da população teve acesso as informações cruciais para entender aquela queda, e o alcance dessas informações foi ampliado com o lançamento da adaptação cinematográfica do livro, em 2005 e com o título de “Enron: Os Mais Espertos da Sala”. Dirigido por Alex Gibney, o documentário foi roteirizado pelo diretor e pelos escritores do livro, Bethany McLean e Peter Elkind, e contou com um trabalho de pesquisa de imagens e coleta de depoimentos que durou mais de dois anos. Entre os depoimentos que ajudam a contar o colapso da Enron e sua participação na crise energética da Califórnia, ocorrida em 2000, estão o do ex-governador da Califórnia, Gray Davis, analistas de mercado, jornalistas e diversos ex-funcionários da empresa. Na época de seu lançamento, o filme aumentou a polêmica ao redor do julgamento de Kenneth Lay e Jeffrey Skilling, que foram os CEOs da empresa e estavam sendo acusado de fraudes. Na esteira da visibilidade da obra, os julgamentos foram acompanhados diariamente pela mídia, adquirindo contornos de espetáculo. A história rapidamente passou a ser um dos cases mais importantes da história corporativa, sendo a grande referência quando se estudam os “crimes corporativos”. O filme foi um amplo sucesso de crítica, com 97% de críticas positivas no Rotten Tomatoes, e uma nota média de 8,1. No site, o consenso é de que ele é um “documentário conciso e divertido sobre o espetacular fracasso da Enron”. Um dos principais aspectos ressaltados pelos críticos é o sentimento de frustração e irritação que aquela história levanta. Roger Moore diz que essa história “profundamente deprimente da maior falência corporativa da história é tão irritante e desanimadora que faz o sangue ferver” (2005, tradução nossa). Geoff Pevere (2005) compara o documentário com um filme-catástrofe sobre Wall Street, porém com vilões facilmente identificados, e ainda não punidos.

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O documentário arrecadou quase cinco milhões de dólares, e teve reconhecimento também na temporada de premiações, ganhando o prêmio do Independent Spirit Awards e sendo indicado ao Oscar de Melhor Documentário – a primeira indicação de Alex Gibney18. Em relação aos espectadores, o filme conta com uma média de 7,7 no Internet Movie Database. Diferente dos outros dois filmes analisados, a narrativa de Enron não foca de maneira proeminente as práticas de Relações Públicas, apesar do papel fundamental que essas ocupam dentro da história narrada, havendo poucas referências explicitas sobre o assunto. Na época do lançamento do filme, o consultor de Relações Públicas Michael Lasky (2006) apresentou uma conferência em que afirmava que o caso da Enron deveria fazer todos os profissionais da área reexaminarem os conflitos existentes nas suas práticas, em especial em relação ao caráter ético e à responsabilidade para com a sociedade.

4.5.2. Apreciação Geral da Obra

“Um castelo de cartas construído em cima de uma piscina de gasolina”. Essa é a definição dada em determinado momento do filme para a Enron, uma das cinco maiores empresas americanas, e avaliada em mais de 70 bilhões de dólares no ano de sua falência. Desde o princípio da projeção, o objetivo do filme é claro: demonstrar como na verdade a empresa não possuía praticamente nenhum valor real. O apelo da obra está justamente na tentativa de revelar os segredos de uma ilusão que durante décadas enganou toda uma sociedade. Com essa proposta, a narrativa do filme se centra nos personagens-chave que participaram da história, analisando suas motivações, características e ações, em um verdadeiro processo de construção de personagens. O primeiro personagem é Kenneth Lay. PhD em economia e considerado o embaixador da desregulamentação do setor de energia norte-americano, Lay é apresentado como um antigo amigo da família Bush, que o chamava inclusive de “Kenny Boy”. É Lay que funda a Enron em 1985, com o objetivo de explorar a nova política de preços flutuantes do gás natural. Logo em 1987 a empresa se envolveu na primeira polêmica, com dois corretores acusados de fraude. Apesar de documentos que provavam que Lay tinha informações sobre isso, ele alegou que não tinha conhecimento da atuação desses corretores, que acabaram

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O diretor veio a ganhar o Oscar de Melhor Documentário em 2007, pelo filme “Taxi to the Dark Side”.

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presos. O grande problema era que a Enron até então não tinha dado o retorno financeiro esperado, com exceção da atuação fraudulenta daqueles corretores. E como uma resposta para os problemas da Enron que surge Jeffrey Skilling, o “homem com uma grande ideia”, e a segunda peça fundamental na história da empresa. Skilling consegue adotar uma nova prática contábil em que rendimentos futuros eram tributados no fechamento de caixa no momento em que seus negócios eram fechados, o que gerava uma diferença enorme entre o relatório fiscal e a quantidade de dinheiro que a empresa realmente possuía. E assim o castelo de cartas foi sendo construído, quando o foco passa a ser não mais o mercado de energia, mas sim a própria imagem da Enron, e suas ações. Não importava mais se a empresa fosse rentável, pois enquanto sua imagem era positiva e ela continuasse a exceder expectativas, o mercado de ações garantia o lucro para a alta cúpula, que via suas ações se valorizando e acumulavam enormes bônus. O filme narra sua história de diversas formas. Dentre os principais recursos narrativos estão os depoimentos de ex-funcionários da empresa e jornalistas que desconfiam da ascensão meteórica da companhia. Porém, os elementos mais impressionantes são os documentos da própria empresa, como e-mails trocados pela direção, telefonemas e conferências gravadas, que após o escândalo assumem um aspecto aterrorizador por revelar detalhes que na época não eram conhecidos. Alguns dos vídeos mais impactantes são aqueles gravados nos encontros de acionistas da empresa e os telefonemas trocados por corretores em plena crise energética da Califórnia, orquestrada pela própria Enron, em que se ouve a comemoração deles em relação a um incêndio que estava consumindo florestas no estado, porque isso iria gerar a desculpa que eles precisavam para ganhar mais dinheiro. Durante toda a narrativa é exposto que aquela história não é apenas sobre a falência de uma empresa, é sobre a corrupção humana em todos seus sentidos. O tom que marca a película é de impunidade, com o diretor dando especial atenção para a atuação daqueles que eram cúmplices do esquema, que tinham informações de que algo estava errado e permitiram que o esquema ocorresse. Entre eles, uma das cinco maiores auditorias dos Estados Unidos, a “primadona” dos bancos de investimento, uma das mais antigas firmas de direito do país, alguns dos principais consultores de finanças americanos e a própria família Bush. É esse sentimento de impunidade que marca o tom pessimista da obra. Na época do seu lançamento, os principais responsáveis ainda aguardavam julgamento, depois de terem lucrado milhões de dólares e, nesse processo, causando a perda das economias e de fundos de pensão de milhares de trabalhadores. Ao destruir qualquer glamour daquela ilusão, e mostrar o envolvimento de diversos setores naquele episódio, o filme trabalha diretamente com a

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insegurança do espectador, e, no seu final, deixa algumas dúvidas: quem garante que isso não está acontecendo nesse exato momento? Como saber se não estamos sendo novamente enganados? Como garantir que isso não acontecerá outra vez?

4.5.3. Menção ao ethos

Diferente dos outros dois casos aqui analisados, não existe no filme uma citação direta sobre a identidade projetada pela doutrina das relações públicas. Em parte, essa ausência pode ser explicada pelo fato do enfoque da obra não ser sobre a atividade, mas sim sobre a história da Enron. Respeitando esse foco, há no filme uma citação importante de ser analisada, e que estabelece uma linha geral sobre o papel que as relações públicas exerceram na construção da Enron: “esta companhia estava obcecada pelo preço de suas ações e obcecada com uma massiva campanha de relações públicas para convencer os investidores que na Enron eram diferentes, inovadores, e precursores de uma nova era empresarial” (Lerach). Essa sentença ocorre no início do capítulo chamado “Me Ame, Me Ame”, que expõe a atuação da Enron em Wall Street, onde, apesar de ter enormes problemas de caixa, a empresa gerava lucros astronômicos para seus dirigentes devido à alta das ações. O narrador do filme afirma que “a Enron armou uma campanha para capturar a mente e o coração dos investidores”, e que o jogo se chamava “subir e jogar fora”: os altos executivos trabalhavam em fazer as ações subirem para depois exercerem suas opções e vendê-las. O papel das práticas de relações públicas era justamente trabalhar a questão do “convencimento” dos investidores, ou seja, persuadir a sociedade de que aquela empresa era diferenciada, sólida e uma ótima opção de investimento. Essa atividade assume contornos fortemente relacionados com a manipulação da verdade pela própria narrativa do filme, que naquele momento já havia retratado que a empresa era uma fraude. Após o depoimento de Lerach sobre a campanha de relações públicas é exibida uma montagem de cenas retiradas de diversas mídias que mostram como os dirigentes da empresa tentavam criar essa imagem de sucesso e convencer os analistas e investidores. Entrevistas na televisão, capas de revistas, eventos, conferências de acionistas, todos esses recortes retratavam o mesmo discurso: como a Enron era diferenciada, inovadora e capaz de sempre apresentar lucros. O capítulo termina com uma constatação do narrador: “por todas as partes, a Enron voava alto. Mas na realidade os lucros não estavam subindo, mas sim indo na direção oposta”.

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A visão de Relações Públicas que é colocada nessa declaração do filme pode ser facilmente identificada na visão crítica de “manipuladores de mitos”, já que a obra nos mostra como aquela persuasão era parte de uma fraude, visava enganar as pessoas para conseguir lucros.

4.5.4. Identificação das práticas

Assim como as menções ao ethos, as práticas em Enron também são retratadas de maneira diferente das outras obras que analisamos. Devido ao foco da obra não ser sobre as relações públicas em si, as práticas relativas a essa atividade são mostradas aqui de forma implícitas. Após a citação específica sobre a “campanha de relações públicas” voltada para construir uma imagem de sucesso da empresa, são mostrados diversos recortes midiáticos nesse sentido, sem nunca ser citado como eles foram construídos. As capas de revistas elogiando a empresa, as entrevistas dos seus dirigentes e os prêmios ganhos por inovação ou outros critérios apontam para uma prática de relacionamento com a mídia eficiente, mas nunca reveladas. Da mesma forma podemos entender as questões de comunicação interna. O filme deixa claro que houve um trabalho massivo de construção de uma cultura organizacional dentro da empresa, uma cultura que trabalhava com valores machistas e elitistas, baseada na competitividade. Essa cultura tinha como expoente máximo o preço das ações, algo pelo qual todos estavam fixados. O filme mostra em algumas passagens o processo de comunicação interna e de criação dessa cultura, como as convenções em que Skilling e Lay aparecem como verdadeiras “animadoras de torcida” comentando sobre o preço das ações e o depoimento sobre como o valor das ações era pregado nos elevadores. Uma prática que teve alguns de seus processos explorados na obra foi o relacionamento com analistas. É mostrado como a empresa buscou se aproximar desse público estratégico para a Enron, já que ela necessitava de suas recomendações positivas para ganhar espaço midiático e construir sua reputação. Os analistas tinham acesso direto com a alta cúpula da empresa, podendo ligar para Skilling a fim de levantar qualquer tipo de informação. Ao mesmo tempo, a Enron oferecia uma compensação financeira para aqueles que seguiam determinadas políticas de recomendações, e ameaçava aqueles que iam contra a empresa.

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Outra prática que pode ser identificada é o spin. Durante a projeção, ele ocorre de maneira notória, principalmente na conferência de acionistas em que Skilling minimiza o artigo da Fortune - que questionava a Enron e o valor de suas ações – afirmando que ele tinha sido motivado por um artigo da Business Week, que elogiava a empresa. Assim, tal artigo não merecia crédito, pois estava ligada com a concorrência entre essas revistas, “se uma escreve algo bom a outra deve encontrar algo negativo para escrever”.

4.5.5. Relação entre as práticas retratadas e o ethos

De maneira distinta das outras obras aqui analisadas, em Enron as práticas de relações públicas são implícitas. Não é possível, por exemplo, dizer muito sobre o relacionamento com a imprensa que é ali demonstrado, ou a comunicação interna. Sobre o relacionamento com os analistas podemos perceber uma exploração do poderio econômico da empresa para manipular informações que irão circular na esfera pública, visando moldar determinada imagem. Porém, fora esse caso específico, pouco pode ser dito isolando as práticas. Porém, é o contexto que o filme estabelece, e no qual essas práticas estão inseridas, que determina a dissonância delas em relação ao ethos sobre como as relações públicas não seriam marcadas pela manipulação da verdade, já que toda a construção da obra é justamente de como o caso da Enron desvirtuou a realidade. No final, é possível perceber como o filme retrata as atividades de relações públicas como uma forma de distorcer a verdade, e com participação fundamental no processo de fraude que lesou milhares de americanos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O interesse fundamental deste trabalho foi investigar a dissonância existente entre a identidade da profissão de Relações Públicas, definida e projetada pela doutrina da área, e sua reputação. Esse objetivo foi inicialmente pautado por uma desconfiança de que, em determinada extensão, os discursos doutrinários que apontavam o êxito da consolidação da atividade com base na sua importância e no seu reconhecimento científico deixavam de lado uma contradição em relação à percepção da mesma em um aspecto amplo pela sociedade. Tal suspeita foi levantada por alguns autores da área, que apontavam para essa incongruência ao mesmo tempo em que assinalavam para o desenvolvimento de aspectos negativos da reputação da profissão de Relações Públicas. A partir da tentativa de formulação de um quadro geral sobre essa reputação, apoiado tanto em análises sociopolíticas sobre o impacto da atividade na sociedade como também em filtragens e análises midiáticas sobre o tema, foi possível constatar que: a) de fato a profissão carrega uma reputação comprometida pela ligação de suas práticas com a manipulação da opinião pública e da verdade; b) há estudos e análises midiáticas que cobrem os últimos vinte anos e atestam essa situação, apontando assim para sua cristalização; e c) não há indícios de que esse quadro esteja sendo revertido nos últimos anos, mas sim evidências de uma consolidação em diversas partes do mundo. O reconhecimento dessa reputação, bem como dos elementos históricos de sua formação, foi de fundamental importância para a compreensão da identidade projetada pela doutrina da área, devido ao aspecto relacional desses conceitos. Nesse sentido, não buscamos definir essa identidade, mas sim caracterizar alguns dos elementos abstratos que a permeiam e a configuram, o que foi realizado através da análise do ethos discursivo. Foi a partir da tensão entre a reputação e a identidade projetada que se tornou possível identificar na doutrina duas dimensões que caracterizam o ethos da profissão de Relações Públicas: a tentativa de negar uma associação com a manipulação e a busca por afirmar a função social da atividade. Através da análise de três obras cinematográficas, escolhidas pela sua relevância e pelo seu alcance, buscamos entender os elementos da dissonância entre essa identidade, caracterizada fundamentalmente pelas duas dimensões do seu ethos, e as imagens projetadas nessas representações midiáticas. Essa investigação evidenciou a fragilidade dos discursos doutrinários, fundamentada em duas características que remetem às hipóteses formuladas por

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Henriques (2009) sobre os problemas da profissão: a insuficiência e a inadequação desses discursos. A insuficiência está ligada com a dimensão do discurso que busca negar a associação com a propaganda e a manipulação. A análise revelou a consolidação de uma percepção de que fazem parte da atividade de relações públicas determinadas práticas envolvendo a tentativa de manipular a opinião pública e distorcer a verdade. Essa percepção mostrou raízes profundas dentro das imagens retratadas nos filmes, já que em nenhuma das obras trabalhadas houve qualquer questionamento sobre sua validade. Mesmo em Hancock, em que o personagem de Ray é associado com um profissional exemplar em termos de ética, não há nenhum dilema resultante da prática que envolve uma mentira para a mídia e para a sociedade. Obrigado por Fumar trata o emprego de práticas que visam manipular a opinião pública e distorcer a verdade como algo natural da atividade de Relações Públicas, sem nunca levantar questionamentos sobre o fato. Não há nenhum tipo de polêmica em relação ao uso daquelas práticas, ao contrário, elas são encaradas como algo esperado daquele profissional, e inerentes à sua função de defender publicamente a indústria do cigarro – a grande discussão do filme não é sobre a atuação do profissional, mas sim sobre os motivos dele atuar defendendo uma organização que vai contra os valores da saúde pública. Em um raciocínio semelhante, em Enron a campanha de relações públicas é apresentada como algo capaz de convencer os investidores a acreditarem em uma mentira, alterando uma realidade. Sabemos que a tentativa de dissociação entre relações públicas e propaganda não é algo novo. Esse é um discurso construído desde a década de 1950, baseado na negação categórica de determinadas práticas, e que nos últimos anos foi apenas atualizado para abranger novas práticas que passaram a ser associadas com a manipulação pela opinião pública. É preciso reconhecer que esse discurso não teve força suficiente para criar um conceito público que desvinculasse relações públicas de propaganda, já que a percepção contrária é que se desenvolveu nos últimos tempos. Perante a cristalização dessa percepção, demonstrada nas obras analisadas, a insuficiência desse discurso passa a ser um elemento que contribui para a própria reputação negativa da atividade. Enquanto insuficiente para sustentar a negação a que se propõe, essa dimensão do ethos acaba constituindo um discurso vazio de sentido, na medida em que sua mensagem não parece ser coerente com a percepção que os públicos possuem. Afeta então a credibilidade e a confiança dos públicos na profissão, ou seja, a reputação. Se a dimensão do ethos que trata da negação sofre pela sua insuficiência, a que visa afirmar a função social das Relações Públicas é marcada por uma inadequação frente à

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realidade social. É impossível deixar de notar o contraste existente entre o tom politicamente incorreto e irônico de Hancock e Obrigado por Fumar com o discurso defendido pela doutrina profissional de relações públicas. Perante o quadro social atual, a pureza extrema do discurso doutrinário soa deslocada. É um sintoma por demais evidente dessa inadequação o fato que nas duas citações diretas sobre o tema, em Hancock e Obrigado Por Fumar, esse ethos seja ironizado e se transforme em motivo de piada. A retórica utilizada por Nick Naylor é significativa para entendermos essa situação. Quando o personagem assume o ethos da honestidade, visando conquistar a confiança de suas audiências, ele está reconhecendo um conjunto de expectativas sociais. Não vivemos em uma época em que o bem e o mal existem de forma isolada. Eles coexistem. O que Nick aponta é que a sociedade atual é marcada por conflitos, interesses e contradições, em que as pessoas não podem mais ser definidas por valores absolutos de bondade ou maldade, e não aceitam esse tipo de extremismo. Quando Nick reconhece que a indústria que ele representa não é um exemplo de bondade e acena para os interesses por detrás de suas ações, ele ganha a confiança da audiência. É nesse sentido que a “pureza” pregada pela doutrina profissional de relações públicas está inadequada: é um discurso extremo que ignora os conflitos inerentes à atividade. Tanto Hancock como Obrigado Por Fumar pincelam alguns desses conflitos, ao perceber a atividade de relações públicas como parte de organizações regidas por interesses que muitas vezes entram em conflito com valores de parte da sociedade, ou com um suposto “interesse pelo bem-estar social”. Esses filmes reconhecem que há ai uma tensão importante, mas o discurso doutrinário, na ânsia de ser aceito, ignora essa questão. Concluímos então que as dimensões do ethos aqui apresentadas ajudam a definir a fragilidade da identidade projetada pela doutrina profissional de relações públicas pela sua insuficiência e inadequação. Em última instância, tais dimensões contribuem também para o próprio processo degenerativo da reputação da profissão. É evidente que essas conclusões não exaurem a questão da reputação negativa da área, nem mesmo os motivos da discrepância entre o desenvolvimento da atividade e da profissão. Porém, elas podem apontar para novas direções de pesquisas. Um desses caminhos perpassa a questão da insuficiência do ethos que nega a associação com a propaganda, em especial os motivos que levam à sua ineficiência. Podemos pensar, por exemplo, se o discurso não está sendo enfraquecido por uma falta de alinhamento dentre os praticantes da área. Outro aspecto que requer futuras investigações é o motivo pelo qual uma área que tem o domínio do conhecimento para diagnosticar problemas de reputação e trabalhar conceito

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público falha de maneira tão categórica em trabalhar essa dimensão dentro de sua própria profissão. Finalmente, nos parece evidente que, frente às dimensões do problema da reputação da atividade de relações públicas, as discussões sobre as direções futuras do ethos doutrinário devem ser tratadas com especial atenção dentro dos meios acadêmicos e das organizações profissionais.

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