Entrevista de John Holloway, com Grupo Fim da Linha

July 21, 2017 | Autor: Daniel Cunha | Categoria: Marxismo, John Holloway, Trabalho Alienado, Autonomismo
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Entrevista com John Holloway A convite do Grupo Fim da Linha, John Holloway e Néstor López estiveram em Porto Alegre em novembro de 2007. John Holloway é irlandês, professor da Universidade de Puebla (México), autor do livro Mudar o mundo sem tomar o poder, entre outros. Néstor López é argentino, editor da revista “Herramienta”. A entrevista a seguir foi realizada em três momentos; um deles é reproduzido na íntegra, e dos demais foram selecionadas algumas perguntas adicionais. Salvo quando indicado em contrário, as perguntas foram elaboradas por integrantes do Fim da Linha. Buscamos tanto quanto possível deixar o texto no ritmo e no tom próprio da conversa, para preservar sua naturalidade. Você poderia falar um pouco sobre a sua história? Como você chegou a uma concepção teórica que não é ortodoxa, distanciada em muitos pontos do Marxismo ortodoxo? Você sempre teve este enfoque, ou em algum momento você pertenceu a algum partido ou a alguma corrente ortodoxa? Não, eu nunca me filiei a um partido. Para mim esse debate, essa reflexão teórica começou nos anos setenta. E começou com a questão da adesão da Grã-Bretanha à União Européia, à Comunidade Européia. Então nós organizamos um grupo de discussão em nível nacional no marco da “Conference of Socialist Economists”, e começamos a falar sobre o significado da União Européia. E chegamos à conclusão de que para falar da União européia tínhamos de ter um conceito de Estado. E daí nós começamos a ler o debate alemão sobre a derivação do Estado. Foi um debate nos anos setenta que tentou entender os limites e as possibilidades e a natureza do Estado a partir da ideia de que era necessário entender o Estado como uma forma do capital, como uma forma das relações capitalistas. E isso implicava ver o Estado mais ou menos como o valor, o capital ou os juros, como uma forma fetichizada das relações sociais. E esta foi então a conclusão principal, naquele momento, e junto com Sol Piccioto editamos um livro chamado State and Capital, que saiu em 78. Daí em diante o próximo passo foi pensar um pouco as implicações políticas desta ideia de que o Estado é uma forma do capital. E eu cheguei à conclusão de que a forma tem que ser entendida como um processo de formação, ou como uma forma de processamento, uma forma-processo. Então era necessário entender o Estado não como algo estático, mas como uma forma de processar das lutas sociais, como um processo de impor certa forma às [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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relações sociais. E isto implicava em entender o Estado, em entender o fetichismo como um processo de fetichização. E isto… bom, há um artigo publicado em espanhol, no México, em 1980, chamado El Estado y la vida cotidiana, que expressa ou tenta explicar esta ideia. E a partir daí… Bom, isso implicava por um lado que obviamente não se podia pensar em uma transição a outro tipo de sociedade através do Estado, o Estado especificamente é uma forma, uma forma especificamente capitalista de conter as lutas sociais, então era necessário pensar em outras formas de organização. Então, implicava entender a luta anticapitalista como luta antifetichizante, uma luta contra a fetichização. E então no contexto do levante zapatista, quando eles saíram dizendo que “queremos fazer um mundo novo, mas não queremos tomar o poder", então isso como que fez pensar um pouco todo o debate teórico anterior em condições mais… mais… urgentes, ou mais… mais políticas, eu suponho. E daí surgiu Mudar o mundo sem tomar o poder... Fazendo uma relação com a questão zapatista, então, ao que nos parece na verdade o zapatismo é posterior ao seu processo intelectual, que teve como uma realização prática no zapatismo. Você vê as coisas assim? Esse movimento é posterior ao teu pensamento? Um pouco isso, mas não uma realização prática, mas sim… sim, na mesma linha, uma manifestação prática que segue a mesma linha de pensamento… sim. E se nós estamos falando da história… parte do processo também foi, depois do artigo O Estado e a vida cotidiana, em Edimburgo começamos a publicar uma revista chamada Common Sense, e também publicamos uma série de livros que foram chamados Open Marxism, Marxismo Aberto, com a ideia de explorar um pouco toda esta linha de pensamento. E Marxismo Aberto… eu creio que é porque se se entende o Estado como um processo, ou se entende o capital como um processo, o dinheiro como um processo, isso implica que é necessário abrir as categorias, e entender que o dinheiro é um processo, por exemplo, de monetização de relações, e isto implica uma luta, e implica uma luta com dois lados, é uma luta antagônica, de monetização e antimonetização. Então, esta é um pouco a ideia do marxismo aberto, a ideia de que nós temos que abrir as categorias para entender, e é necessário entender as categorias como categorias antagônicas e categorias abertas. Neste sentido que você diz da abertura das categorias, o “trabalho” como categoria… há muita coisa a dizer sobre isso… [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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Sim. Nós não nos focamos naquele momento na categoria trabalho, embora obviamente seja a categoria central. Então, pensando em como abri-la, o processo de abrir a categoria “trabalho”, obviamente que chegamos à ideia de que o trabalho é uma categoria antagônica, pois nos leva à ideia do duplo caráter do trabalho de que fala Marx em O capital, de um lado como trabalho útil ou concreto e por outro lado trabalho abstrato. Então, da mesma forma que é necessário entender o Estado como um processo de estatização ou o dinheiro como um processo de monetização, é necessário entender o trabalho abstrato como um processo de abstração. E não só um processo de abstração no passado, não só em termos de uma acumulação primitiva nos primórdios do capitalismo, mas como um processo constante de abstração. E isso também tem a ver com a objetivação do tempo. Você foi inspirado por Benjamin nesta concepção do tempo e da história? Sim, um pouco… eu suponho que um passo importante no argumento é que se se está falando de fetichização como um processo, como um processo atual de estatização, como um processo atual de monetização, como processo atua. Então, nos debates que surgiram sobre a ideia do Estado fordista nos anos 90. Isso implicava uma crítica do conceito tradicional de acumulação originária. O conceito tradicional é que a acumulação originária foi um período histórico com um fim, que terminou… que o processo da formação do Estado, também foi um processo histórico, o estabelecimento do dinheiro foi um processo histórico, e também a homogeneização do tempo também foi um processo histórico. Há… por exemplo o artigo brilhante de Edward Thompson, um artigo clássico, precioso, Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial (1967), no qual ele mostra como a transformação do conceito do tempo foi parte do estabelecimento da disciplina de trabalho dentro da fábrica. Mas… é um belo artigo… que fala de todo esse processo como um processo de luta. Mas sim, ele fala do processo como um processo no passado, através do qual basicamente até o século XIX já se estabelece outro conceito do tempo. Agora, se alguém diz: não, é necessário entender o fetichismo como fetichização, isso implica uma crítica desta separação entre o passado e o presente, implica que todo este processo de monetização, de estatização, mas também de homogeneização do tempo é algo atual. E também implica dizer que a análise que aceita esta separação entre o passado e o presente é na realidade o resultado da homogeneização do tempo, algo que é parte de um processo de fetichização, que é parte do processo de imposição do capitalismo. Então, uma crítica [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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antifetichista também tem que ser uma crítica da homogeneização do tempo, tem que questionar tal separação entre presente e passado. Bom, eu acho que não foi de Benjamin que partimos, mas ela tem a ver com a crítica de Benjamin à linearidade do tempo. E também com as ideias de Ernst Bloch, da importância de entender que o “ainda-não”, o futuro possível é parte do presente. Neste enfoque de ver as categorias aparentemente fechadas como processos está incluído também o conceito de classe, como classificação? Sim. Por muitos anos não se tocou muito na questão da classe. Mas sim, enfim, isso implica em também ver a classe como um processo de classificação, que é necessário entender... O capitalismo tradicionalmente divide a sociedade em classes, mas se se questiona esta separação entre passado e presente, então se está falando da criação de classes como processo de classificação. E classificação, e é na realidade o que Marx também diz em O capital, o processo de acumulação é o processo da criação de classes. Então isso implica entender a classificação como um aspecto de todo o processo de fetichização, o que nos leva à ideia de que a luta, da mesma maneira em que a luta é luta contra a fetichização, também é uma luta contra a classificação, e que nossa luta não é a luta baseada na identidade de classe operária ou trabalhadora, mas é uma luta desses classificados contra sua própria classificação, então é um luta anticlasse. Alguns

teóricos

ortodoxos

identificam

sociologicamente

a

classe

trabalhadora com os operários de fábrica, e então dizem que a luta de classes não existe mais... já que tal classe operária diminui, a luta de classes não teria mais sentido. Mas em seu conceito a luta de classes ainda faz total sentido hoje... Sim. Sim, porque a existência do capital é uma luta antagônica, e uma luta binária, pois é uma luta para impor um trabalho abstrato, o trabalho alienado na atividade cotidiana, no fazer cotidiano das pessoas. E isso implica portanto numa luta do capital contra o fazer, do trabalho contra o fazer. E isso me parece que pode ser entendido como luta de classes, é uma luta para classificar e contra ser classificado. Sua concepção de “mudar o mundo sem tomar o poder”, que implicações têm ela para a forma de luta, ela é diferente da luta para tomar o poder, são [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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organizações diferentes...? Você tem um conceito de brechas ou fissuras, enfim, qual é a diferença entre a luta para mudar o mundo tomando o poder e a luta para mudar o mundo sem tomar o poder? Bem, a luta para mudar o mundo tomando o poder o poder obviamente implica uma luta focada no Estado, que implica pensar em organizar um partido, um partido que será capaz de tomar o poder estatal, seja via insurreição, militar ou da via eleitoral, é a ideia de criar uma organização instrumental, que seja um instrumento efetivo para conquistar o poder estatal. O problema com isso é que obviamente implica a reprodução das estruturas estatais dentro do movimento contra o capital, e se se entende o Estado como uma forma do capital, então isso implica reproduzir o capital dentro do movimento anticapitalista, e já sabemos por muitas experiências que isso simplesmente não funciona. Temos como resultado a hierarquização, e finalmente também o desmobilização das lutas anticapitalistas. Pensar em termos de mudar o mundo sem tomar o poder implica colocar outras formas de organização que não passam pelo Estado, que não assumem a forma estatal. O que parece absurdo à primeira vista, mas na realidade é algo que está presente desde os princípios da luta anticapitalista. E vê-se isso desde o princípio das lutas anticapitalistas, que há outra tradição de organização, como na Comuna de Paris, depois nos sovietes, nos conselhos operários de princípios do século XX, você vê isso também na Guerra Civil na Espanha, nos Conselhos Comunais dos zapatistas, nas assembléias de bairro na Argentina, e é a ideia de pensar a organização não como um instrumento para chegar a um fim, mas como uma forma de articular a rebeldia ou as rebeldias das pessoas em luta... é uma ideia de organização que não é concebida a partir de cima, em termos de construir um instrumento eficaz, mas concebida a partir de baixo, como forma de articular, de expressar estas rebeldias diferentes, como uma forma de pensar em comum, uma forma de pensar coletivamente, e potencializando a rebeldia a partir de baixo. Então, sim, a ideia de mudar o mundo sem tomar o poder implica outras formas de organização, mas não são invenção de agora, mas é uma questão de resgatar, sublinhar a importância desta tradição que existiu o tempo inteiro. E questão de também dizer que aqui nós temos duas tradições incompatíveis, que a ideia da comuna, ou assembléia ou conselho é... bem, é uma forma de organização assimétrica em relação à forma de organização estatal, e é importante dizer isso simplesmente porque toda a tradição do chamado Estado soviético, ou do que está se dizendo agora na Venezuela em termos da criação de um Estado tipo comuna, esta tradição apaga a distinção, e me parece muito importante dizer: não, aqui nós temos duas formas [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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de organização incompatíveis. Agora, a questão das rachaduras. A questão para mim agora é como avançar, não é questão de ter respostas, mas como avançar pensando nas possibilidades de mudar o mundo sem tomar o poder. E eu creio que o que nós estamos vendo é um processo de criação de espaços e momentos de negação e criação, quer dizer, espaços ou momentos nos quais as pessoas dizem “não, eu não vou aceitar”, “nós não vamos aceitar o comando do capital, nós vamos fazer outra coisa de nossas vidas". E se pensarmos o capitalismo como um sistema de dominação, como mando, então tais negações e criações de alternativas podem ser entendidas como rachaduras, fissuras ou brechas no tecido da dominação. E essas fissuras podem ser grandes, como o levante zapatista, ou elas podem ser pequeninas, grandes mas ao mesmo tempo pequeninas, como o Fim de Linha, elas podem ser de muitos tamanhos diferentes, mas basicamente é a mesma ideia de que nós não subordinaremos nossa vida aos ditames do capital, nós não só criaremos um espaço de insubordinação, mas não insubordinação em termos de simplesmente dizer não, mas também em termos de dizer “e vamos fazer outra coisa", então, a ideia do não como algo que abre, entender o “não” como um limiar que abre outro espaço. Foi descoberta uma estrela que não se comporta como as outras, ela nasce, tem um tempo de existência, morre e dá origem a um buraco negro. Ela nasce e morre muitas vezes ao longo da vida. Este tipo de imagem é usada para justificar os atos zapatistas de não tomar o poder. Que importância têm os zapatistas na luta simbólica e na luta real hoje para nós? Eu creio que tem uma importância enorme, porque esboça... porque são uma renovação da teoria revolucionária, que quando surgem, quando se insurgiram em 94, a coisa mais importante não é só o próprio levante, mas é a apresentação de outro conceito de mudar o mundo de um modo radical. Eles estão dizendo obviamente que querem fazer um mundo novo, mas sem tomar o poder. E eles apresentam uma série de conceitos e uma série de desafios práticos e teóricos. Por exemplo, a ideia central da dignidade, que implica que nós não somos os... que não somos... eu entendo a dignidade como uma crítica à teoria leninista, uma crítica à ideia de que os trabalhadores são sujeitos limitados. A dignidade, a ideia da dignidade vai no sentido contrário, eles dizem: nós somos sujeitos humilhados, neste sentido, nós vivemos a negação de nossa dignidade, mas ao mesmo tempo esta negação nunca é uma negação completa, então a dignidade é a revolta contra sua própria [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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negação. Então é um movimento sem limites, é um movimento para fora. Então não é um sujeito definido do leninismo, mas ao contrário um sujeito “antidefinicional”, que vai transbordando, que se rebela, e também há, como parte da dignidade, um questionamento radical da linearidade do tempo, porque quando eles falaram pela primeira vez da dignidade em suas primeiras declarações oficiais, eles falam da dignidade como algo que estava presente nas lutas de seus antepassados, e que era uma grande vergonha ter esquecido a dignidade, então se insurgir agora era como a luta para redimir as lutas do passado, resgatar, fazer viver outra vez a dignidade de seus antepassados, quer dizer, fazer viver outra vez a seus antepassados. Então, para regressar a Benjamim, aí está a ideia que está presente nas Teses sobre o conceito de história, da luta como redenção do passado, quase como uma grande dívida, algo que nós devemos aos antepassados, eles nos deixaram uma pendência, e para ser dignos nós também temos que ser dignos da memória deles, isto é, nós temos que redimir a dignidade das suas lutas. Então, isso é claro que implica cortar a linha, a sequência linear entre o passado e o presente. E a ideia da dignidade também claramente nos leva à ideia de outras formas de organização, porque então nós não estamos falando de organização vertical, organizações verticais como forma de negação da dignidade. O respeito à dignidade implica a crítica da verticalidade, implica partir da dignidade das pessoas, implica romper com a tradição monológica dos grupos revolucionários... Marcos diz que quando o grupo original foi para a Selva Lacandona, no começo dos anos oitenta, eles tiveram que aprender algo muito fundamental, porque eles tinham a ideia de explicar às pessoas o que elas tinham que fazer, explicar às pessoas como é o capitalismo, o imperialismo, tinham a ideia tradicional da política revolucionária como um monólogo, mas muito rapidamente eles aprenderam que não, que isso as pessoas já sabiam. Então era questão não de falar, mas de escutar ou de romper com a tradição monológica e pensar numa teoria revolucionária dialógica. Então, sim, é outro conceito. E isso, então, também leva à ideia do “perguntando caminhamos”, perguntando caminhamos porque nós temos que escutar, nós temos que aprender a perguntar às pessoas sobre suas rebeldias, suas experiências e suas rebeldias. Então sim, são fundamentais. Sobre a questão da crítica do poder, há pessoas que dizem que o problema não é o poder, mas um traidor: Stalin, Lula, um partido, e que se um dia o poder for tomado e não houver traição, a revolução será bem sucedida. O que lhe parece este argumento?

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Não, a categoria da traição é um desastre. Porque tanta gente é explicada em termos de traição, Stalin é explicado em termos de traição... Mas há como uma sequência quase infinita de tantas e tantas e tantas e tantas e tantas traições na história da esquerda, então finalmente... então, não, é absurdo pensar nestes termos. Então é necessário ver que há algo na própria estrutura que está impondo esta traição. Há algo na forma de organização que impõe a traição. E é óbvio, porque se nós pensarmos nos termos do Estado, o que acontece é que para ganhar uma eleição, é preciso se organizar de certo modo, é preciso aceitar certas hierarquias, uma separação entre os líderes e massas, e se um partido de esquerda ganha a eleição, então os líderes estão inseridos em outro mundo, com outras pessoas, com outras pressões, com outros contatos cotidianos, já não são parte do movimento, então... pode ser que sejam pessoas muito bonitas, honestas, o que seja, mas eles já estão operando em outro contexto. Então claro que vão responder algumas questões a partir deste contexto, vão se comportar de outro modo... Então não é questão de traição. John e Néstor estiveram há alguns dias em um seminário que tinha como tema “a crise do trabalho abstrato”, organizado pela revista Herramienta. O que é a crise do trabalho abstrato? Bom, a razão para enfatizar o trabalho abstrato é basicamente a ideia de ver que o trabalho abstrato é o que cria o capital, o trabalho abstrato produz o capital. Mas também há outra coisa dentro do trabalho abstrato que nós dissemos um momento atrás, é questão de abrir a categoria do trabalho e ver que dentro da categoria está o duplo caráter do trabalho. Então há um antagonismo entre o trabalho abstrato e alienado, por um lado, e um fazer que impulsiona para a sua autodeterminação, por outro lado. E todos temos a experiência deste duplo caráter antagônico do trabalho. Todos temos a experiência do trabalho como algo imposto ou alheio, em condições nas quais temos que fazer o que não queremos fazer, por um lado, e o fazer como uma atividade autodeterminada, até certo ponto, por outro lado. Então a ideia é, se pensamos assim, é preciso colocar a questão da crise do capitalismo, da crise do capital, é preciso vê-la mais como uma crise do trabalho abstrato, como uma crise do trabalho que produz o capital. Ou seja, duas coisas: primeiro, entender o fazer como crise permanente do trabalho abstrato, mas também colocar a ideia de que neste momento o que nós estamos vivendo é uma crise agudizada do trabalho abstrato que, se vemos ou pensamos na crise do fordismo dos anos 70, pode-se dizer que [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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esta crise é uma manifestação clara da crise do trabalho abstrato, no sentido de que houve uma recusa muito evidente, muito clara contra a alienação implícita na organização do trabalho abstrato, uma recusa da organização fabril, das linhas de montagem, etc. Uma recusa, uma crise que impôs ao capital a necessidade de reorganizar o processo de produção, de reorganizar suas fábricas, de reorganizar, bom, todo o processo de trabalho. Então falar da crise do trabalho abstrato agora é colocar que apesar desta reestruturação do trabalho o capital ainda não pôde superar a crise do trabalho abstrato, que ainda esta rebeldia que se manifestou nos anos setenta, que esta rebeldia continua viva, mas está tomando outras formas talvez, não? A questão é como pensar a situação atual não a partir da novas estruturas de dominação, como pós-fordismo, ou império, o que seja, mas, ao contrário, pensar a situação atual a partir da crise da dominação, e deste ponto perguntar o que é que está acontecendo. Quando destaca a crise aguda do trabalho abstrato, você destaca a reconfiguração do fordismo, o toytotismo e outras formas de organização como uma fuga do capital em relação aos trabalhadores insubordinados, que são substituídos por máquinas – para fugir de sua insubordinação. A pergunta que fazemos é se não há uma influência da competição entre capitalistas, para aumentar a produtividade com máquinas; isso não seria também um elemento neste processo, ou você não concorda? Mas não são elementos separados. Eu digo que a crise... a insubordinação, a crise é a incapacidade do capital de subordinar o fazer suficientemente para convertê-lo em um trabalho que produz mais-valia suficiente para manter a taxa de lucro. Então, a crise do trabalho abstrato se manifesta como crise de rentabilidade do capital, e esta crise da rentabilidade do capital implica uma intensificação da competição entre os capitais individuais. Então é esta competição que impulsiona a introdução de novas tecnologias e a expulsão do trabalho e desemprego, etc. Mas não podem ser vistas como duas coisas separadas, mas como a intensificação da competição é sempre... é parte de um processo de competir por uma porção da mais-valia social total. Voltando um pouco ao começo, sobre a relação entre a luta do trabalho versus luta contra o trabalho... há algumas cidades na Itália onde as pessoas trabalham seis horas de segunda-feira a quinta-feira, por exemplo. Sabe-se [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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que alguns sindicatos também lutam para a redução da jornada de trabalho. Isto tem algum potencial de algum dia tornar-se uma luta contra o trabalho, ou é apenas uma forma de amenização? Não sei, creio que sim isso, que isso é importante. A luta para reduzir a jornada de trabalho é uma luta... sim, é uma forma de luta contra o trabalho. É uma luta... sim, creio que sim. Ter espaço para desenvolver outro tipo de fazer, outro tipo de atividade. Por outro lado o tempo poderia ser usado somente para consumir mais, por exemplo... este tempo liberado teria que ser... O que acontece, obviamente não é... é uma luta para reduzir o tempo dedicado abertamente ao trabalho abstrato, ao trabalho alienado, mas é uma luta que não coloca de um modo radical a necessidade para abolir o trabalho, não se está colocando como luta contra a abstração do trabalho. Mas sim, tem um potencial. Você prefere o termo “fazer” em vez do termo " trabalho "... alguma razão especial para isso? Creio que há um problema de terminologia, sempre, que é bastante importante, ou seja, se pensamos por exemplo na ideia da alienação, o trabalho alienado, não temos um termo muito claro para o contrário do trabalho alienado. Se pensamos em trabalho abstrato, sim, temos um termo contrário, trabalho útil ou concreto, mas há problemas com o termo, simplesmente porque Marx diz que o trabalho útil existe em qualquer sociedade, mas a distinção entre trabalho e outras formas de atividade não existe em qualquer sociedade. Se pensamos no Estado como forma de organização, podemos falar do contrário como conselho ou comuna ou assembléia. Mas para muitas coisas não temos termos claros, temos dificuldades para expressar, expressar o que nós queremos dizer. E creio que isso surge simplesmente do fato de que o antifetichizante, a luta contra o fetichização é como uma luta debaixo da superfície, é uma luta da invisibilidade contra a visibilidade. É uma luta a partir da penumbra. Então por isso eu acho que há problemas recorrentes de terminologia. Por isso eu gosto muito da ideia de Raoul Vaneigem, quando ele fala da revolução como “a revolução sem nome". Ou também muito explicitamente com os zapatistas, que quando se insurgem vestem as balaclavas, para que as pessoas os vejam. E dizem “nós somos os sem rosto, os sem voz”. Então não somente uma forma de protestar [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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contra a invisibilidade dos indígenas, mas acho que tem um simbolismo mais geral, que estão dizendo que a revolução, a mudança radical do mundo, isso é a revolta da invisibilidade, é a revolta do que não tem rosto, do invisível, do inaudível, do mundo sem nome. Você desenvolveu um conceito de dois níveis de luta de classes, gostaríamos que falasse sobre isso. Bom... para voltar um pouco ao que dizia antes, que a ideia de fetichização como processo implica uma crítica à ideia de acumulação primitiva como uma etapa no passado. Porque o conceito tradicional é que há duas formas... para o funcionamento do capitalismo há dois tipos de conflito: primeiro, é o conflito necessário para criar o trabalhador, para estabelecer o valor, para estabelecer o dinheiro, para estabelecer a propriedade privada dos meios de produção, tudo aquilo que Marx escreve nos capítulos sobre a acumulação primitiva, que normalmente é entendida como um processo passado, mas é um tipo de luta. E então, uma vez estabelecido o capitalismo, nós temos a luta pela exploração. Se dizemos que é necessário romper com esta linearidade da história, é necessário entender que a luta para converter o fazedor em trabalhador é uma luta atual, não? Então, estamos falando, estamos dizendo que estes dois tipos de luta devem ser entendidos como lutas simultâneas. Quer dizer que aqui nós temos dois níveis de luta anticapitalista: por um lado, é a luta para converter a... é a luta por parte do capital para converter o fazedor em trabalhador, e por outro lado a luta para explorar o trabalhador. A partir da nossa perspectiva, esta luta contra a conversão do fazedor em trabalhador, quer dizer, a luta contra o trabalho [está] por um lado, e a luta contra a exploração do trabalhador por outro lado... Agora, a tradição, a visão tradicional se concentra apenas na luta da exploração e assume que a outra parte da luta já não existe. Mas na realidade esta luta da exploração, a luta entre o capital e o trabalho tem como condição prévia a transformação do fazer em trabalho, a transformação do fazedor em trabalhador. Por isso eu acho que se falamos das duas lutas como lutas simultâneas, temos que dizer que o primeiro nível, a luta contra o trabalho, é o nível mais básico. Então temos de um lado a luta do fazer contra o trabalho, e por outro lado a luta do trabalho contra o capital. Mas a luta, para ir mais... finalmente, a luta anticapitalista deve ser entendida como luta do fazer contra o trabalho, porque a luta do trabalho contra o capital é real, mas está encerrada, é uma luta encerrada dentro da lógica do capital. [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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Sobre estes dois níveis, pensando um pouco nisso, nós vemos que há muitos movimentos sociais que trabalham em tensão, como crise interna entre estes dois níveis. Há alguma coisa que marque esta diferença, como momentos que sejam mais de... um nível mais básico, este nível de antipoder, antitrabalho... a busca da dignidade? Quer dizer, assumir a contradição e começar a trabalhar pela dignidade, é este o fator...? Na prática... bom, eu falei obviamente dos dois níveis como dois níveis diferentes. Na prática a separação entre estes dois níveis não é necessariamente tão clara. Se pensamos na luta contra o trabalho como a luta da dignidade, a política da dignidade, podemos pensar no outro nível, da luta do trabalho contra o capital como, por um lado, a luta clássica dos sindicatos, mas também como, talvez, uma política de pobreza, dos pobres, porque em ambos casos a figura chave é entendida como uma vítima, como um objeto. Então, pensando no que você diz, sobre as lutas dos movimentos sociais, de muitos movimentos sociais, eu creio que há estes dois elementos presentes, o tempo todo, mas o tempo todo então é questão de pensar como pensamos em nossas lutas, como uma política de dignidade... como evitamos a conversão... como evitamos recair na política da pobreza. Isto é questão de prática cotidiana, de reflexão constante. E isto acontece

nos exemplos de Venezuela e Bolívia? A “revolução

bolivariana”? Sim, sim. Sim, Venezuela e Bolívia, Lula também, que é muito claramente, muito explicitamente uma política para ajudar os pobres. É a ideia dos pobres como objetos, a quem é preciso ajudar. Mas eu creio que toda a lógica por detrás das lutas estadocêntricas, é uma lógica que assume os trabalhadores pobres como objetos. É outro conceito. E este é o conceito que se recusa, de forma definitiva, no zapatismo. Eles de fato dizem: “não somos poucos, somos dignos”... Para Néstor López: por que um ex-militante da esquerda tradicional se interessa por John Holloway? Porque eu não sou um militante da esquerda tradicional... Ex-... [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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Fundamentalmente por procurar uma teoria da práxis social revolucionária, porque a ortodoxa para mim está perdida, mas... eu gostaria de fazer uma pergunta a Holloway... [Néstor López]: Porque me parece muito... às vezes tenho medo quando pensamos com modelos. Por exemplo... há uma greve. O próprio sindicato, os burocratas lançam esta greve, mas as pessoas começam a se dar conta, e esta é uma experiência vivida, durante a greve que... que vão para um mau caminho com ele. Então eles formam um comitê de greve, e eles começam a... o burocrata quer acabar a greve, mas não consegue, porque aparece um poder ali, insubmisso. E eles fazem uma cozinha popular com fundo de greve, buscam a solidariedade de outros setores de trabalhadores. Há um fazer, há um fazer muito forte, o fazer a greve... não? Em última instância, este não é um trabalho abstrato, mas você tem um trabalho muito útil para eles, porque embora a greve... Eu creio que a greve sindicalista foi encerrada na lógica do capital, mas mesmo assim, para essa comunidade, o que significará talvez essa greve, lograr que não demitam muitos trabalhadores, ou que não tirem a fábrica do lugar, ou enfim [...] é uma instância útil na qual estão trabalhando e discutindo entre todos. Minha pergunta, e para pensar entre todos, é que aí há um espaço muito importante, porque os trabalhadores se tornam fazedores, fazedores de si mesmos, de seu próprio futuro, fazedores sociais. Você também pensa assim? Creio que o grande perigo desta distinção entre luta contra o trabalho por um lado e luta do trabalho por outro é que isto pode ser entendido como uma forma de dizer que as lutas importantes são as lutas fora do lugar de trabalho. Absolutamente não é isso. Não, a luta do fazer contra o trabalho é também uma luta constante dentro dos locais de trabalho, dentro das fábricas, que se expressa exatamente nas greves. Então, a ideia de enfatizar a importância da luta do fazer contra o trabalho não vem para dividir as lutas anticapitalistas, mas pelo contrário, para dizer que a luta de fábrica, a luta exatamente das greves, transbordam o tempo todo, transbordam do trabalho, quer dizer, uma luta contra o trabalho. Uma greve, normalmente, nos jornais, nas declarações dos sindicatos, muitas vezes é apresentada simplesmente como uma ação para obter melhores condições de trabalho. Mas na realidade não é assim. É assim, mas é muito mais, é também a criação de outras relações sociais entre os trabalhadores, entre os trabalhadores e seus (suas) [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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parceiros(as), e seus amigos... é a criação de companheirismos, de forma que para mim a luta do fazer é a criação do companheirismo, e normalmente o companheirismo é entendido como algo subsidiário que se produz na luta do trabalho contra o capital, mas não é assim. O companheirismo é mais o transbordamento da luta do fazer contra o trabalho em relação à luta do trabalho contra o capital. Sim, é muito importante dizer isso, que simplesmente não é o caso de nos focarmos nas lutas fora dos locais de trabalho. Isso que você fala sobre o companheirismo me faz lembrar um frase que me parece brilhante de seu livro Mudar o mundo sem tomar o poder... onde você diz que “o comunismo é o movimento da intensidade contra o embotamento dos sentimentos que fazem com que os horrores do capitalismo sejam possíveis". Essa frase me parece muito bonita... dentro deste contexto você acha que o capitalismo nos torna pessoas insensíveis, como uma patologia sócio-histórica... e dentro deste contexto, o que você acha das análises de Marcuse, a análise filosófica da psicanálise que ele fez, do princípio de realidade destrutivo... até mesmo na relação com a natureza... insensíveis também na relação com a natureza. Sim, creio que sim, que todo o processo de fetichização é um processo de coisificação, como a criação de uma carapuça em nós mesmos. E isso só acontece, eu suponho, pelo... é também um processo de autoproteção, porque senão, como viver com o que está acontecendo no mundo... eu não sei, os horrores da AIDS na África, por exemplo, o fazemos simplesmente através de um processo de alienação, um distanciamento, e isto é parte do processo de fetichização. Então, creio que sim, que a fetichização implica um processo de insensibilização. E sim, eu gosto muito do que Marcuse diz sobre tudo isso, é questão de repensar e pensar politicamente... a psicanálise. *** [Clarissa, jornalista, Revista dos Docentes da UFRGS (ADVERSO)] Existe um termo que se usa hoje: “neomarxismo”. Queria entender isso: onde o seu pensamento converge e onde ele diverge do marxismo? Creio que... não vejo assim. Não vejo como questão de convergência ou divergência com o marxismo. E não me interessa muito se sou marxista ou não sou marxista. Para mim sim. [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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Mas não é questão de etiquetas, é antes questão de pensar... de pensar como mudar o mundo, enfim. Venho de uma tradição marxista, obviamente, me movo dentro deste ambiente, mas creio que para mim não é questão de convergência ou divergência. [Daniel, jornalista] O movimento dos sem-terra no Brasil concorda que assumir a administração do Estado não irá realizar nenhuma transformação. Porém, creio eu que discorda desta visão de que não se pode tomar o poder. Pelo contrário, o MST defende a construção de um poder popular para dar a chamada “direção política” da sociedade. Em que medida, qual a sua opinião sobre esta visão do MST, e esta visão do MST é convergente ou divergente em relação aos zapatistas? Porque me parece que existe uma certa divergência de projeto, digamos assim, entre o MST e os zapatistas... Não conheço suficientemente o que está acontecendo no MST, mas um aspecto... me parece que sim, estão tratando de construir um poder popular, como você diz, um poderfazer que comece desde baixo, através de suas ações estão construindo um poder-fazer social. Agora, o problema é a relação entre esta construção, entre o poder-fazer, por um lado, e o poder-sobre, por outro lado. Falei há alguns instantes sobre as duas tradições dentro do movimento anticapitalista. Por um lado a tradição conselhista, por outro lado a tradição estadocêntrica. É importante dizer que estas duas tradições são incompatíveis. São diferentes. São tradições antagônicas. É importante dizer isso simplesmente porque muitas vezes é dito que não há nenhuma contradição. A ideia, por exemplo, do Estado soviético, foi como uma tentativa de dizer, “não, as duas coisas estão juntas, os sovietes, os conselhos, e o Estado”. Na realidade esta combinação, esta expressão ocultou a repressão violenta dos conselhos, dos sovietes. Então, a própria ideia de um Estado soviético é absurda. É absurda. O mesmo se vermos o exemplo da Venezuela atualmente. Aí dizem que estão tratando de construir um Estado tipo comuna. Que querem abolir o Estado burguês e construir um Estado de tipo comuna ou conselhista. Parece-me que aí há uma falta de clareza, ou é um Estado ou é uma comuna. E não há compatibilidade. Agora, se vemos o caso do MST, eles estão em uma situação difícil, de querer desenvolver o poderfazer, por um lado, uma organização basicamente comunal, e, claro, têm o problema de como relacionar-se com o Estado, por outro lado, o que implica outro tipo de organização, outro tipo de política. E como eu o entendo... obviamente vocês sabem muito melhor do que eu, há então uma contradição um pouco dentro do próprio movimento do MST. Uma [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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contradição real, digo, que surge simplesmente da situação. Para mim, o desenvolvimento desta construção do poder popular deveria implicar um distanciamento muito mais claro em relação ao Estado. Mas aí, vocês... não conheço os detalhes. [Renata, mestranda em geografia da UFRGS] O meu projeto de mestrado vai em direção ao MST, porém com acampamentos, não com assentamentos. E no MST existem, realmente, diferenças. Até por ser um movimento em grande escala. E dentro dos acampamentos existem projetos, digamos, de autogestão, que vai um pouco dentro do tema zapatista. Eu queria saber do senhor, a relação da escala nesse poder-fazer. Por exemplo, se parte de um indivíduo, se parte de um grupo, para poder expressar este poder-fazer contra o podersobre. A intenção é perguntar sobre estas manifestações, mesmo que temporárias, porque os acampamentos enquanto territórios são efêmeros, eles estão ali e daqui a pouco não estão mais. Só que a proposta de resistência, enquanto método de resistência dentro do movimento, é a autogestão. Eu queria saber se essas zonas efêmeras... até me lembram pouco as zonas autônomas temporárias, se elas são também uma manifestação de poderfazer. Sim, isso me parece muito importante. Uma forma de ver este conflito entre poder-sobre e poder-fazer é em termos de rachaduras, ou de fissuras. Há um conflito constante, há como uma rebeldia constante do poder-fazer contra o poder-sobre. Mas esta rebeldia se concentra em certos lugares e certos momentos. E uma forma de pensar isso é em termos de fissuras. Quer dizer, se pensamos na dominação capitalista como um sistema de comando, de mando, o dinheiro nos diz “faça isso”, “não faça aquilo”. E muitas vezes as pessoas dizem “Não, não vamos fazer isso. Vamos fazer outra coisa”. Então, esta negação e criação alternativa pode ser entendida como uma rachadura, uma fissura no tecido da dominação. Se pensamos nos zapatistas, podemos dizer: aqui, em Chiapas, há uma fissura enorme, onde as pessoas estão dizendo “não, já basta, vamos fazer outra coisa”, e estão criando esta outra realidade. O mesmo na Bolívia nos anos 2002-2005. O mesmo com os piketeros e as assembléias de bairro e as fábricas recuperadas na Argentina. As pessoas estão dizendo, “aqui não, aqui não vamos obedecer ao capital, não vamos obedecer ao dinheiro, vamos fazer outra coisa”. Estas são fissuras muito grandes. Mas exatamente como você dizia, podemos pensar na fissura como uma fissura pequena, podemos dizer [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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que no Grupo Fim da Linha, não vamos pensar em como reproduzir o capital, vamos tratar de romper com o capitalismo, então aí temos uma fissura, bom, no momento ainda bastante pequena, mas talvez em alguns anos seja enorme. Ou, podemos pensar em termos pessoais, podemos dizer “não, não vou trabalhar hoje, não vou obedecer ao dinheiro hoje, vou fazer o que eu quero fazer, o que me parece necessário ou desejável”, que seria uma fissura pequeninha. E podemos pensar nestas fissuras... Então, pouco a pouco o que acontece é que ao invés de ver o mundo como um sistema fechado de dominação, começamos a ver, na verdade não, o mundo está cheio de fissuras, rachaduras, grandes e médias, médias e pequenas. E estas fissuras podem ser fissuras espaciais. Como Chiapas. Ou também podem ser fissuras no tempo. Podemos dizer: “este final de semana, neste evento, este mês, aqui e agora, vamos romper com o capital, vamos fazer outra coisa”. E isso, não sei se estamos nos referindo às TAZ, como se chamam em inglês, as “zonas autônomas temporárias” de Hakim Bey... mas isso sim, seria para mim um tipo de fissura. Como também se pode pensar em termos de certas atividades, como a educação, por exemplo. Ou a água. Ou o software. Ou a música. Dizer que não, nossa luta é para que o software não seja uma mercadoria, para que a música não seja uma mercadoria, para que a educação não seja subordinada ao capital. Quando você fala nas fissuras, creio que você está falando sobre o que disse em seu livro: que a revolução consiste na intensificação da crise, da crise subjetiva. Acredito que você também reconhece a crise objetiva do capital. A crise da valorização, a substituição do trabalho vivo por trabalho morto. Como você vê a relação entre essas duas coisas? Para mim a única forma de pensar, ou a única forma que eu logro conceber uma mudança radical é em termo da criação, multiplicação e expansão destas fissuras ou rachaduras. Não me ocorre outra forma de pensar uma mudança radical. Estas rachaduras, ou a expansão destas rachaduras obviamente implicariam uma crise da dominação capitalista. E a sua pergunta é um pouco como pensar esta crise, pensar nela como crise subjetiva ou objetiva. Creio que para mim não há uma distinção, simplesmente porque as contradições aparentemente objetivas do capital na realidade são a reprodução da luta subjetiva. São crises da separação entre sujeito e objeto. Se pensamos no valor, por exemplo, me parece que o valor pode ser entendido como a reprodução do poder da resistência dentro da classe dominante mesma. Bom, um exemplo talvez mais dominante e mais claro seria a questão [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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do crédito. Temos visto, não li os últimos jornais, mas está claro que há uma crise do dólar. E a crise do dólar, e toda a fragilidade que pode resultar para o mundo inteiro, tem muito a ver com a expansão constante do crédito nos últimos 50 anos. Uma forma de entender esta expansão constante do crédito não é simplesmente como uma contradição objetiva do capital, mas como a expansão da força da resistência dentro do próprio capital. Há uma expressão de um político estadunidense dos anos 30, quando começou o New Deal de Roosevelt. Quando o padrão-ouro foi abandonado, esse político disse: “com este abandono do padrão-ouro, a multidão se intrometeu no próprio dinheiro”. O poder das massas conseguiu penetrar no próprio dinheiro. E minava a estabilidade do dinheiro. A lógica obviamente é que o capital, para manter a estabilidade social, teve que debilitar o próprio dinheiro, a estabilidade do dinheiro. Então a força das massas, a resistência, se intrometeu no próprio dinheiro, e criou aí uma instabilidade crônica. E obviamente esta instabilidade crônica foi justificada pela teoria de Keynes e dos keynesianos. Nos anos 70 houve um contra-ataque, um contra-ataque monetarista e neoliberal, dizendo que “não, temos que regressar ao dinheiro real, e deter esta expansão do crédito”. E na realidade não puderam fazê-lo, houve uma expansão constante do crédito, que é como uma reprodução do poder da insubordinação dentro do próprio capital. Então, o poder da insubordinação parece ser uma contradição objetiva do capital. Mas não, não é isso. Então, é preciso entender a crise como uma combinação das diversas manifestações da força da insubordinação, enfim. [Daniel, jornalista] Existe um refluxo nos movimentos. Falando em termos bem práticos, há muito pouca gente na rua, e os movimentos não estão sabendo dialogar com a massa da população no trabalho informal, ou desempregada, porque a esquerda é muito centrada na figura do operário, do camponês. Onde buscar gente para fazer a luta? Para mim a rebeldia está presente o tempo todo. Isso tem muito a ver com a sua pergunta, que a rebeldia está presente o tempo todo. E muitas vezes não se expressa, ou se expressa em queixas individuais, em ações individuais, e neuroses também. Somente em certos momentos, como em 90 no México, 94 e depois na Argentina em 2001, 2002 na Bolívia, 2000 a 2005, em certos momentos há uma convergência das rebeldias, uma explosão das rebeldias. ... no momento atual as coisas esfriaram um pouco... bom, por várias razões. Na Argentina, em parte como resultado do governo de Kirchner e a canalização das rebeldias. O mesmo na Bolívia. Então, parece que são poucos, agora, que é pouca gente, pouca gente [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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que está envolvida. Mas me parece que não se deve definir, não se deve pensar a rebeldia somente em termos de uma rebeldia viva e manifesta, mas também como algo latente na sociedade. E é questão de pensar como provocar, como podemos chegar a esta rebeldia latente. Os zapatistas conseguiram fazê-lo, nos primeiros anos, souberam através de suas ações e seus comunicados. Conseguiram tocar a rebeldia de todos. Agora parece que é mais difícil, neste momento, para eles. [Rodrigo, estudante de direito] Os próprios sindicatos, na verdade, anteriormente lutavam para que se mudassem as relações de trabalho, depois passaram a lutar por melhorias salariais e hoje vemos vários sindicatos lutando para que não se perca o trabalho, para poder trabalhar. Gostaria que você comentasse como enxerga isso, dentro do contexto de refluxo que ele colocou. Tenho uma pergunta relacionada a essa. Pelo que entendi, você relaciona este tipo de organização e de luta com a luta do trabalho, enquanto nós queremos uma luta contra o trabalho. Você enxerga a possibilidade da luta do trabalho, que existe nos sindicatos, nos movimentos sociais, transformar-se em luta contra o trabalho, de se radicalizar essa luta para uma nova perspectiva? Primeiro tenho que explicar... se falamos da luta do fazer contra o trabalho. Quer dizer que há dois níveis de luta anticapitalista. Há a luta do trabalho contra o capital e há a luta do fazer contra o trabalho que produz o capital. Então, o trabalho que produz o capital é o trabalho abstrato ou alienado. Por um lado, está a luta do fazer contra o trabalho abstrato ou alienado, de outro lado a luta do trabalho alienado ou abstrato contra o capital. Agora, a luta do trabalho alienado contra o capital é a luta mais visível. A luta que se organiza em sindicatos, a luta que se organiza em partidos. Esta luta, exatamente como você falou, é uma luta baseada na aceitação da existência da força de trabalho como mercadoria. Então, é uma luta por melhores condições, por melhores salários. Mas é uma luta que fica dentro do marco do capitalismo. Ao mesmo tempo, dentro desta luta, há uma luta que transborda... A luta sempre vai mais-além de suas formas de organização. Então, dentro da luta sindical sempre há a luta por algo mais do que melhores condições de exploração. Dentro dos sindicatos há sempre como um movimento que busca ir mais além do sindicato. E se pensamos em uma greve, por exemplo: oficialmente, a greve é para obter [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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melhores salários. Mas na verdade o que os trabalhadores querem é uma quebra de rotina. Deixar de ir trabalhar por uma semana, ou duas semanas. Querem transformar suas próprias relações. Na Grã-Bretanha houve uma greve muito, muito importante em 1985, a grande greve dos mineiros contra o governo Thatcher, que durou um ano ou mais. E os mineiros, os trabalhadores mineiros e suas esposas iam por todo o país organizando encontros, falando. E em muitos casos eram as esposas que falavam. E elas diziam que a experiência da greve transformou nossa comunidade, transformou nossa relação com nossos pares. Também transformou nossa vida porque antes a ideia de falar em público, a princípio nos dava muito, muito medo. Mas agora, é algo que fazemos a toda hora. Então, por detrás da luta do trabalho contra o capital, muitas vezes dentro disso há uma luta que vai muito mais além, que transborda as formas institucionais. Sobre as dificuldades e os desafios da construção de um movimento de massas... Sempre que você responde alguma pergunta do tipo, você acaba utilizando o exemplo dos zapatistas. Mas não podemos negar que eles possuem uma tradição cultural que é completamente diferente daquela vivida nas cidades. Você vê alguma contribuição do movimento zapatista para um movimento mais urbano? Existe a possibilidade de aprender alguma coisa com isso e organizar algo nas cidades, a partir deste exemplo, ou teria de ser algo completamente diferente? Creio que este é um grande problema agora. Pois os zapatistas são quem exatamente? São campesinos e são indígenas. Têm comunidades muito fortes, com tudo de bom e de ruim que isso implica, comunidades bastante fechadas. Têm tradições de lutas muito antigas, em Chiapas, têm seus próprios terrenos, terras, que eles podem cultivar. E na cidade... bom, um pouco como o MST também tem suas terras... depois de ocupadas tem suas terras. E na cidade é diferente, porque não temos este tipo de comunidade. Não temos acesso à terra para sobreviver, a única forma pela qual podemos sobreviver é normalmente vendendo nossa força de trabalho, dependendo do apoio de nossos... ou de alguma outra forma. Então é uma situação muito diferente. E isso para nós é o problema do zapatismo urbano. E com “a outra campanha” os zapatistas saíram de Chiapas e foram viajando por todo o país com a ideia de estender... bom, com a ideia de escutar, de aprender com outras lutas, mas também de estender o zapatismo a todo o país. E há problemas e dificuldades. Nas cidades a situação é diferente. Então não podemos pensar... podemos aceitar e [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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desenvolver muitos princípios do zapatismo. Claro, é uma questão de luta de dignidade, que não queremos tomar o poder, que temos que caminhar perguntando, etc. Mas sim, a situação não é a mesma. E aí está o problema. Para nós, no México, o grande exemplo é a Argentina. Lá sim houve um movimento muito importante nas cidades. Então, realmente é questão de ir pensando em tudo isso. Porque sim, porque está mais claro agora do que há cinco anos, que estas tentativas de desenvolver autonomia nas cidades enfrentam dificuldades, ou enfrentam contradições nas quais temos que pensar. As autonomias são sempre contraditórias, especialmente nas cidades. E eu sinto que temos que falar sobre estas contradições. E não somente celebrar os êxitos, mas também falar sobre as contradições e as dificuldades. *** Li um texto do Frei Beto, dentro de um espaço de discussão interno ao MST, sobre como o neoliberalismo consegue nos fazer sentir culpados pelos problemas do mundo. Se não tenho sucesso, a culpa é minha, não sou competente o suficiente, ou não apresento os méritos que deveria apresentar. (É uma ideia desenvolvida também no Manifesto contra o trabalho, do Grupo Krisis: eles fazem essa denúncia, do sentimento de culpa individual em relação aos problemas sociais). E então ele nos propõe uma discussão, que também se volta ao indivíduo, mas enquanto potencial, impulso-contra, não como culpa, mas como impulso de superação destas relações. Você concorda com isso? Sim, creio que o neoliberalismo, como você disse, cria um sentimento de culpa, porque tudo é visto em termo de nossas capacidades pessoais, individuais. Mas também creio que a tradição da esquerda cria sentimentos de culpa, porque nos impõe como uma ideia do que deveríamos ser. Por exemplo, para regressar com isto1, a ideia tradicional do sujeito revolucionário como trabalhador, assalariado, é uma ideia defeituosa. É uma ideia defeituosa, porque está baseada na repressão, está baseada na repressão da dançarina. Está baseada na ideia da repressão do “frívolo”, do que não é “sério”. Está baseada na repressão... bom, da mesma forma pela qual esta figura realmente é uma figura reprimida, 1

Holloway aponta para um desenho que utilizou em palestra anterior, aproximadamente reproduzido aqui. A intenção foi apresentar didaticamente tanto a “acumulação primitiva do sujeito” (a transformação do fazedor em trabalhador) quanto o não-idêntico. [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009 25

tomar esta figura como ponto de partida implica a repressão, não sei, do... do lado lúdico, implica a repressão da sexualidade, implica a repressão do dançar... E portanto cria sentimentos de culpa. Cria sentimentos de culpa com relação às atividades que não cabem dentro desta imagem. E cria sentimentos de culpa para pessoas que não se identificam com esta imagem. Então, tipicamente, os estudantes, os acadêmicos, se queremos ser parte do movimento revolucionário, em algum sentido começamos a ter sentimentos de culpa, porque não somos realmente trabalhadores. Ou no caso de alguns grupos... no caso de Néstor [López], sua organização lhe mandou ir trabalhar na fábrica, para que coubesse dentro desta identidade. E isso é terrível! Implica um grau de repressão, de auto-repressão espantoso! (...) Por exemplo, há um livro de Nadine Gordimer onde ela fala de sua experiência dentro do Partido Comunista, onde diz que não havia espaço para falar sobre as coisas que eram importantes para ela, como a questão da sexualidade. E creio que esta experiência foi muito comum nas organizações de esquerda, de tal forma que muita gente simplesmente deixou as organizações e esqueceu toda ideia de revolução. (...) E hoje ainda estamos criando e recriando uma imagem do revolucionário puro. Por exemplo, a imagem do subcomandante Marcos. Por um lado sim, muito bem, uma fonte de inspiração ou de admiração, mas ao mesmo tempo como que cria uma imagem do que deveríamos ser, mas não o somos. É a reprodução da imagem do revolucionário ideal, e portanto a criação de um sentimento de culpa. E por isso, em parte por isso, não queremos falar de forma consciente de nossas contradições. Normalmente não queremos falar sobre isso. Porque falar sobre isso implicaria aceitar que não nos conformamos exatamente como a imagem (...).

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[Artur Sinimbu, Rádio Laboratório de Comunicação Comunitária (Brasília)] O mercado como regulador da vida humana, é apresentado com a ideia de uma “mão invisível”. Por outro lado, historicamente se pensou na alternativa da economia planificada. Do ponto de vista da contradição entre o fazer e o trabalho, como pensaríamos a economia? Existe algum mecanismo de autorregulação da economia para além do mercado? Como você vê a economia planificada? A abstração do trabalho, o trabalho abstrato é a criação de uma síntese social. A abstração é um processo de juntar todas as atividades diferentes dentro de uma totalidade, uma síntese social, ou de uma economia. E isto implica uma separação da economia em relação à vida, uma separação entre economia e vida. Agora, se dizemos que queremos abolir o trabalho abstrato, isto implica abolir a economia, ou abolir a separação entre economia e vida. Implica também abolir a totalização das atividades concretas. Então para mim não seria questão de uma planificação central, mas de um processo que vem de baixo, de ir interrelacionando, estabelecendo relações entre diferentes atividades. Agora, isto pode ser que não seja muito eficiente, mas na realidade a planificação central nos países do Leste também foi muito ineficiente, e o mercado também é muito ineficiente. Porque o mercado implica a destruição enorme, todo o tempo, de valor ou de forças produtivas. Mas também implica que uma porcentagem considerável da população dedique a sua existência simplesmente a assegurar o respeito à propriedade. Então o mercado não tem nada de eficiente. Talvez seja melhor pensar em diferentes atividades, diferentes... não sei, que se vão juntando, e juntado, vai haver alguns desperdícios, mas o modo [concreto]... Não sei, não tenho a resposta. A crise ecológica hoje não é mais novidade para ninguém. Todos já sabem. A minha pergunta é se você vê uma relação entre o trabalho abstrato, ou a transformação do fazer em trabalho, com a crise ecológica, a destruição da natureza. Sim. Porque esta transformação do fazedor em trabalhador é a separação entre sujeito e objeto, é a separação também do sujeito em relação ao mundo que nos rodeia. Então esta separação entre sujeito e objeto implica não somente a objetivação da pessoa, mas também [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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a objetivação de outras formas de vida, e da natureza. Então, parte do trabalho abstrato é precisamente esta ideia, este distanciamento em relação à natureza. A única forma de superá-lo, me parece, é superando o trabalho abstrato, e superando também ao mesmo tempo as formas de pensamento que são parte do trabalho abstrato. Seu último livro é sobre Adorno, livro que você organizou. Gostaria que dissesse se em sua opinião o pensamento dialético segue sendo importante, e por quê. E por que Adorno? Tudo o que falei sobre a relação entre fazer e trabalho, suponho que é um conceito dialético. Porque o que estamos fazendo é de dentro do trabalho. Porque dentro do trabalho existe o fazer. Então é preciso abrir, é preciso abrir a categoria do trabalho, e ver que dentro deste trabalho, desta categoria, há um antagonismo... É preciso não somente pensar em trabalhar, em trabalho e trabalhadores... não. Mas é preciso abrir o conceito de trabalho e ver que dentro do trabalho há um antagonismo. Há um fazer ou um trabalho útil ou uma atividade vital consciente (o termo não importa muito) e existe contra-e-mais-além do trabalho, então se parte de um argumento geral de que as categorias de Marx... quando ele fala em formas de relações sociais... é preciso entender as relações de forma como uma relação contra-e-mais-além, e não somente como uma relação de subordinação, de contenção. E isto, este contra-e-mais-além me parece que tem implicações políticas. Porque justamente se pensamos somente em termos de um mais-além... se pensamos, por exemplo, que o movimento de desempregados existe mais-além da luta de classes, digamos, então estamos dividindo, aceitando a divisão entre as lutas... se andamos em termos de contra-e-mais-além, me parece que estamos pensando em outros termos, estamos falando de uma unidade contraditória das lutas contra o capital. Então, sim a dialética me parece que ainda segue sendo central para entender o que está acontecendo e para pensar em como mudar o mundo. E por que Adorno? Não sei, porque, creio que são duas razões contraditórias. Bom, primeiro porque começamos a ler Adorno nos seminários, e nos parecia incompreensível, e ainda nos parece incompreensível. Mas também muito emocionante. Porque politicamente não é tão atraente quanto Marcuse, por exemplo. Em termos do que escreveu, mas também em termos do que fez. Porque Marcuse se alinhou muito fortemente com os movimentos estudantis, e Adorno não o fez. Mas Adorno nos parece muito importante porque leva esta ideia da contradição e da rebeldia à sua fundação ou à sua categoria mais básica, que seria a identidade. E Adorno diz então, [-] www.sinaldemenos.org Ano 1, n°1, 2009

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não podemos pensar na vida submetida à identidade, temos que entender que o idêntico sempre contém o não-idêntico, o não-idêntico vai escapando do idêntico, vai transbordando do idêntico. E isso me parece que talvez seja a expressão mais básica desta ideia do fazer que vai transbordando do trabalho, ou do fazedor que vai transbordando do trabalhador, ou dos indígenas em Chiapas que transbordaram da identidade indígena. Então, se há implicações políticas, elas são muito, muito emocionantes. E por isso, por isso Adorno. Também implica o seu conceito de classe como classificação, que nós não somos puramente trabalhadores, há algo em nós que escapa. Somos e não somos trabalhadores... Exatamente, que somos e não somos trabalhadores. Quer dizer, somos trabalhadores mas estamos em revolta contra nossa condição de sermos trabalhadores... e transbordamos nossas... [interrompido pelos sinos da igreja próxima]. E sim, há um transbordamento constante, sim... transbordamos de nós mesmos.

(Transcrito por Daniel Cunha. Traduzido por Daniel Cunha e Cláudio R. Duarte. Ilustração de Felipe Drago, reproduzindo aproximadamente ilustração de John Holloway.)

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