Epistemologia e Função Sócio Política do Conhecimento: Teoria e Prática Psicológica em Questão

July 3, 2017 | Autor: A. Rodrigues de M... | Categoria: Political Theory, Praxis, Marxismo, Georg Lukács, Epistemologia, Ética (Filosofia), Ontologia, Ética (Filosofia), Ontologia
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Epistemologia e Função Sócio Política do Conhecimento: Teoria e Prática Psicológica em Questão


Amom Rodrigues de Morais email:[email protected]
Universidade Federal de Goiás

"A economia é o método, mas o objetivo é transformar o espírito"
Margaret Tatcher

"As ideias dominantes numa época nunca passaram das ideias da classe dominante."
Karl Marx

Resumo: O presente texto é um ensaio teórico que pretende desenvolver uma reflexão crítica sobre os fundamentos epistemológicos de algumas teorias da psicologia na sua relação com a ontologia e os desdobramentos da constituição do conhecimento enquanto função social e impacto ético político. O caminho percorrido por essa pretensa reflexão crítica orienta-se por uma análise histórico sistemática baseada na ontologia materialista (lukacsiana/marxista), a qual prevê uma apreensão do fenômeno em sua totalidade dialética. Uma apreensão da totalidade social nos permite identificar nexos ocultados pela ideologia e reestabelecer uma associação real entre ideia e seu solo material, sua gênese e função social. Algo crucial nesta perspectiva crítica do texto é que ela pode nos levar a uma compreensão da processualidade sócio histórica que faz a mediação da constituição e compreensão de qualquer que seja o objeto ou método de estudo da Psicologia.
Palavras-chaves: epistemologia; ontologia; ideologia; ciência; ética; política

O presente texto trata-se de um ensaio teórico que se pretende ser uma tentativa de reflexão crítica sobre os fundamentos epistêmicos de determinadas teorias psicológicas na relação com a ontologia e os desdobramentos da constituição do conhecimento na concretude da vida social. Ou seja, nosso escopo consiste em tentar apresentar possíveis relações inerentes entre pressupostos filosóficos/ontológicos e implicações ideológicas de certas teorias, abordando, assim, suas gênesis em determinado contexto sócio histórico e as funções que exercem na sociedade sob condicionadas finalidades. Coube-nos analisar como alguns pressupostos teóricos na Psicologia lidaram com o problema ontológico apontando as consequências práticas ou ético políticas dos mesmos.
Entende-se aqui que as bases históricas da constituição científica da psicologia nos aponta que do ponto de vista epistemológico ela é demasiadamente problemática em função da diversidade de objetos e por possuir uma enorme variedade teórica. Além disso, uma abordagem ontológica de seus objetos nem sempre foi prioridade de grande parte dos pesquisadores em razão de uma falsa associação entre ontologia e metafísica apregoada por preconceitos cientificistas. E ainda acredita-se haver muito o que dizer dos nexos intrínsecos entre constituição teórica e seus efeitos concretos assumidos como função ideológica.
O caminho percorrido por essa pretensa reflexão crítica orienta-se por uma análise histórico sistemática baseada na ontologia materialista (lukacsiana/marxista) a qual prevê uma apreensão do fenômeno em sua totalidade dialética. Submeter certas teorias e fatos ao exame dialético significa desvelar suas contradições e insuficiências. Observar a onde o conceito não alcança, sua insuficiência, ou onde ele vai além do que se afirma aparentemente, ou mesmo diz o oposto do que se enunciou. Uma apreensão da totalidade social nos permite identificar nexos ocultados pela ideologia e reestabelecer uma associação real entre ideia e seu solo material, sua gênese e função social.
É através desse eixo orientador que se desenvolveu a presente argumentação que passa por alguns tópicos em específico no intuito de provar a hipótese aqui norteadora da relação intrínseca entre ciência e prática psicológica com a epistemologia e ontologia.
Desse modo, percorreu-se num primeiro momento questões gerais sobre uma suposta superação da perspectiva ontológica pelo primado da epistemologia a partir da pensamento moderno. Em seguida é abordado alguns aspectos da emergência da psicologia enquanto ciência submetida aos vetos kantianos. Bem como estes se tornaram uma exigência normativa para o fazer cientifico no geral e como foram pré-condições para o desenvolvimento do neopositivismo e neoliberalismo, tratados como um problema teórico e político. Adiante propôs-se mostrar a apropriação pelo markenting das ideias psicanalíticas e da psicologia de grupo nos Estuados Unidos. Outro exemplo de apropriação é a incorporação de ideias psicológicas no mundo das corporações destinadas à reorganizar a dinâmica do trabalho. Por fim, ressaltou-se alguns abusos extremos de práticas e técnicas psicológicas afim de mostrar as sérias consequências ético políticas das mesmas.
Da ontologia à epistemologia
A expressão ontologia significa etimologicamente o estudo do ser ou a investigação da natureza do ser. Uma definição aparentemente vaga e que pode nos levar a atribuir um caráter especulativo e demasiadamente abstrato deste campo de saber. Comumente é associada à ideia de metafísica, a isto se deve por uma razão de transição do tempo histórico, a saber, a superação do pensamento medieval pela modernidade. Em outra chave, essa guinada ganha corpo na dita revolução cartesiana em um primeiro momento, expressa na famosa frase de Descartes cogito ergo sum – "penso, logo existo". No seu discurso do método é apresentado um novo fundamento do saber, qual seja, o pensamento, a consciência, logo poderíamos dizer a subjetividade. A esta é dada a primazia pela qual gera as possibilidades de qualquer conhecimento através de regras que o pensamento deveria seguir para chegar à verdade.
Funda-se, assim, uma tradição no pensamento moderno culminando na figura de Immanuel Kant, que em sua filosofia instaura um novo patamar científico-filosófico quando estabelece um criticismo da razão. Quais eram as possibilidades de conhecimento e entendimento pela razão? Era esta, a questão fundamental para o filósofo alemão. Uma verdadeira revolução no estatuto da filosofia se dá quando é apresentado as categorias a priore da razão; a partir da Crítica da razão pura, estabeleceu-se as fronteiras da razão empírica, condenada a abrir mão das pretensões transcendentais, que nada mais seriam do que um anseio por um Ideal. Nessa crítica da razão firmou-se as condições de possibilidade do conhecimento, não restando mais estatuto legítimo para a ontologia que passou a ser equivalente à metafisica, investigações transcendentais da "coisa em si", impossível para o conhecimento empírico- "verdadeiro".
Desde então a questão do método do conhecimento passou a ter prioridade em relação a ontologia do objeto a ser estudado, ou seja, a epistemologia ganha primazia nas preocupações científico-filosóficas. O Espírito ou o Sujeito passam a ser a sede da verdade, e as preocupações do pensamento ocidental passam a ser sobre o tema do conhecimento. Assim, para se chegar ao saber de determinado objeto seria necessário saber antes da verdade do sujeito que conhece.
Porém, essa transição não se deu de forma gratuita, a despeito da autonomia relativa própria das construções ideativas, os teóricos modernos expressavam uma tendência da perspectiva científica da sociedade burguesa em emergência na época. As ideias também são parte dos fenômenos sociais e estes acompanham o movimento da materialidade histórico social. Não é por acaso, que havia um interesse crescente pelas ciências naturais em função da predominância da circulação de mercadorias, condição básica da nascente industrialização e que por fim acabou por moldar uma razão de caráter utilitarista e instrumental. Ao contrário dos períodos escravista e feudal em que os sujeitos não possuíam um envolvimento direto com a produção, constituindo, assim, uma valorização maior de outras partes do conhecimento e também de outros valores (Tonet, s.d.).
Portanto, observa-se uma diferença fundamental das concepções greco-medieval e moderna, a primeira apresentava um pensamento inclinado às questões ontológicas, ao passo que a segunda nega a ontologia em detrimento de uma gnosiologia- teoria do conhecimento. Para os pensadores modernos, uma teoria do conhecer era imprescindível para a resolução de outras questões, dessa forma, a epistemologia e os fundamentos do conhecimento deveriam preceder outras investigações filosófico-cientificas. Inevitável a constatação da dicotomia entre a centralidade da objetividade do lado das preocupações ontológicas greco-medievais sobre uma teoria geral do ser e a centralidade da subjetividade no interior do pensamento moderno epistemológico (Tonet, s.d).
Perante a concepção greco-medieval e moderna, Karl Marx avança significativamente demonstrando a radical historicidade e sociabilidade do ser social superando a concepção a-histórica e a relativa incompreensão da sociabilidade do homem característica dos períodos anteriores. Ademais, Marx supera a dicotomia entre subjetividade e objetividade até então marcante, propondo uma articulação dialética entre ambos complexos geradora da realidade social. O determinante em Marx nesse sentido é que ele recoloca de modo originário o problema do ser, uma vez que é impossível resolver o impasse das possibilidades e limitações do conhecimento se não se sabe de antemão quem é o ser que conhece (Tonet, s.d).
O que se coloca em xeque a partir daqui é uma gnosiologia fundada sobre si mesma diferentemente da apreensão do problema a partir de sua compreensão ontológica, a qual nos forneceria os elementos necessários para seu conhecimento. Critica-se uma suposta metodologia anterior ao conhecimento do ser do objeto. O que se mostraria uma postura idealista de interpretação. Ao contrário, a perspectiva inaugurada por Marx, chamamos aqui de ontologia materialista, pretende apreender o objeto em sua totalidade. Essa concepção é melhor sistematizada por Lukács (2102), que elaborou magistralmente uma ontologia do ser social fundamental por resgatar a importância da elucidação da natureza da sociabilidade humana. Veremos alguns traços gerais de sua relevância.
Em uma palavra, a ontologia lukacsiana possui um significado histórico relevante. Ela tem como objetivo demonstrar a possiblidade ontológica da superação da barbárie do homem pelo homem (Lessa, 2002). Propor uma ontologia em pleno século XX pode parecer ultrapassado. Entretanto, Lukács (2012) visava recuperar através de uma ontologia do ser social os fundamentos últimos da realidade do mundo dos homens. O "por que" da sociedade e os homens serem de uma forma e não de outra. Se há então uma suposta "natureza essencial humana" privatista, utilitarista etc. como bem quer a hegemonia liberal (tendo até declarado o fim da história em sua versão "fukuiamista"), vale questionar: de onde vem esta essência? Qual seu fundamento e explicação? É contraposto a esta concepção que se justifica a elaboração da ontologia lukacsiana; de modo a renovar o pensamento marxiano com a intenção revolucionária totalmente antagônica à ordem vigente (Lessa, 2006).
Afirma o filósofo húngaro: "ninguém se ocupou tão extensamente quanto Marx com a ontologia do ser social" (Lukács, 2012 p.25). No obra marxiana, apreende-se o caráter da universalidade histórica do ser e o caráter puramente social do mundo dos homens. Assim, Gyorgy Lukács, um dos principais pensadores marxistas do século XX, se deu o imenso esforço de sistematizar uma ontologia do ser social a partir de Karl Marx. Em termos gerais, a ontologia de Lukács "concebe a substancialidade do mundo dos homens como resultado exclusivo das ações dos homens enquanto indivíduos e enquanto gênero humano" (Lessa, 2002, p. 70).
Se o pressuposto da universalidade histórica do ser social estiver correto assim como afirma Lukács (2012), é necessário pois submeter o surgimento da psicologia científica do século XIX a um exame do problema da relação entre ontologia e epistemologia em uma chave histórico crítica, o que pretendemos esboçar no próximo parágrafo. Isto significa refletir sobre a psicologia como um problema científico e voltar às perguntas em relação a natureza do ser do objeto Psi. É a partir desta discussão ontológica que se pode obter as bases para estabelecer as condições epistêmicas e metodológicas do objeto. Bem como levar em consideração também as questões e impasses ético-políticos da prática da Psicologia. Pois a partir da perspectiva da ontologia materialista (lukacsiana) há uma relação bastante intrínseca entre princípios ontológicos e a Ética, haja visto que o próprio Lukács escreveu sua ontologia do ser social como condição básica para uma posterior elaboração de uma Ética.
Surgimento da psicologia científica sob a epistemologia kantiana
No que concerne ao problema da Psicologia enquanto Ciência, Thomas Teo, em seu artigo "Philophical Converns in Critical Psychology, nos lembra que esta já era uma preocupação epistêmica que remonta ao filósofo Immanuel Kant, ao propor que o estudo da "Alma" (psique) não poderia ser cientificamente estudado uma vez que ela não seria passível de empiria e impossível de se tornar uma disciplina experimental autêntica assim como a Física.
Ao propor a questão do conhecimento em novos fundamentos, Kant postula-o como uma síntese a priore entre as formas e categorias do sujeito transcendental/razão pura e do diverso sensível oriunda da experiência. Uma sem a outra seria impossível, pois a razão pura por si mesma leva a especulações abstratas sem provas empíricas, ao exemplo da metafísica, ao passo que o puro sensível não poderia ser apreendido sem as categorias a priore, que esquematizam os conteúdos empíricos. Temos a partir de então uma divisão entre sujeito empírico (cognoscível) e sujeito transcendental (incognoscível e opaco em si). O sujeito transcendental, apesar de legitimar o conhecimento dos objetos, pois os situa-os num tempo e espaço, seria completamente limitado em elaborar um conhecimento de si (Ferreira, 2014).
Desse modo, o esquematismo kantiano enquanto critério normativo do fazer científico, criticaria todas as tentativas de constituir uma psicologia no século XVIII, uma vez que o sujeito transcendental jamais poderia ser enquadrado no tempo e no espaço (formas a priore). A partir dos vetos kantianos, uma psicologia empírica só seria possível, pois, sob um exame do conjunto das nossas experiências conscientes, o sujeito empírico submetido a um elemento discreto de análise, de uma matematização e de objetividade. Portanto, o reconhecimento cientifico da psicologia deveria advir de todo um rigor metodológico (Ferreira, 2014).
Nota-se três vetos básicos para uma psicologia cientifica independente. (1) O problema da objetividade será resolvido através da teoria das energias especificas de Johannes Muller (1826), que foi um fisiólogo, o qual propôs que cada via nervosa possuiria uma energia nervosa especifica e que corresponderia em um tipo de sensação específica de cada nervo. Esta posição indicaria uma espécie de "kantismo fisiológico ", na medida em que a sensação agora entendida como variação das energias nervosas específicas, substituiria assim o sujeito transcendental. Ao contrário deste, a sensação se constituiria como elemento preciso e fisicamente localizado como fenômeno. (2) Um outro obstáculo epistemológico seria o da análise das experiências do sujeito empírico. Uma vez que se estabeleceu a sensação como objeto cognoscível, restava saber qual o procedimento objetivo para analisá-la. A suposta solução vem de um discípulo de Muller, Hermann von Helmholtz (1860), e consistiria no método da introspecção experimental no qual se processaria "uma análise consciente em que os sujeitos dos experimentos eram treinados para reconhecer o aspecto mais bruto e selvagem de nossa experiência ". (3) Por fim, restava o problema da matematização que fora solucionado pela psicofísica de Gustave Fechner (1860), na qual estabelecia uma lei rigorosamente matemática sobre a relação entre domínio físico e o psicológico envolvendo equações na associação de estímulos, percepção e sensação (Ferreira 2014, p.99).
São estas respostas aos vetos de kant que criaram as condições metodológicas para que em 1879, um outro neokantiano Wundt inaugurasse a psicologia como formação e área de investigação acadêmica. Observa-se pois, que no século dezenove foram desenvolvidas tentativas de transformar a psicologia em ciência natural, tornando certas facetas do sujeito, tal como as sensações experimentáveis objetivamente e matematizáveis. Nestas empreitadas fisicalistas da ciência aspectos considerados subjetivistas e/ou elementos puros do espírito, por exemplo, foram postas de lado. Desde então os impasses de cunho epistemológicos sempre perpassaram as polêmicas relacionadas aos vários objetos da psicologia.
O legado do esquema epistemológico kantiano, como já foi mencionado a princípio, concentra-se exclusivamente nas formas gnosiológicas do sujeito marcando a ciência experimental positiva como o grande paradigma normativo a partir do século XIX. Dessa forma, uma crítica ontológica não é mais prioridade da filosofia muito menos da ciência.
Os objetos de estudo da Psicologia nem sempre foram tematizados em relação às suas dimensões ontológicas. E fazer o exame crítico dessas dimensões requer saber que a concepção destes mesmos objetos corresponde a um contexto sócio histórico mais amplo. Os elementos que constituem o objeto e método de estudo da psicologia experimental do século XIX como a sensação, percepção, fisiologia nervosa etc, só são possíveis com o respectivo avanço das ciências naturais alimentada por um clima de avanço no processo de industrialização corrente no centro do capitalismo. As transformações das bases materiais da sociedade são o solo fértil para uma progressão de uma razão técnica em que permite o fomento da construção de novos instrumentos para o avanço do saber.
Ademais, conforme Foucault, em O Nascimento da Clínica (1977), há, com o surgimento da anatomia clínica, mudanças nas disposições do saber, bem como a emergência de uma nova estrutura epistemológica fundada numa sensorialidade perceptiva. Fato que se insere numa configuração mais ampla de racionalização sobre a vida em todos os seus domínios, desde o mais objetivo até aspectos subjetivos.
Mas o olho absoluto do saber já confiscou e retomou em sua geometria de linhas, superfícies e volumes, as vozes roucas ou agudas os assovios, as palpitações, as peles ásperas e ternas, os gritos. Soberania do visível...O que oculta e envolve o véu da noite sobre a verdade, é paradoxalmente a vida. (Foucault, 1977 p. 190)
A ascensão deste saber como olhar que tudo vê tem como uma de suas gênese a medicina clínica e esta tem um papel importante na constituição das ciências do homem, na medida em que ela oferece métodos e instrumentos capazes de chegar a elementos correlacionados à mente, como a sensação, por exemplo. Mas, sobretudo, ela é também uma expressão máxima de um saber sobre a natureza do homem como um saber positivo, marcadamente animado pelo otimismo do positivismo, não apenas como método ou perspectiva de conhecimento, mas também como projeto de sociedade e de humanidade.
Nesse sentido, vale destacar como afirma Thomas Teo (s.d.), ao se referir que alguns teóricos consideram que os mais relevantes modelos na Psicologia estão relacionados com o desenvolvimento e avanços da tecnologia. Dessa forma, o computador, por exemplo, ofereceria o modelo do funcionamento da mente, tal como propõe a Psicologia Cognitiva. Assim como a metáfora animal oferece a descrição para o comportamento humano no Behaviorismo. Pressupõe desta forma, que todo saber teórico é socialmente mediado, ou seja, depende de modelos de inteligibilidade que remontam a construções propriamente humanas situadas na totalidade de complexos sociais. A própria ideia de natureza biológica no advento da modernidade se fundamentou no modelo da máquina/relógio. A fabricação de relógios na época de Descartes chegou a um alto grau de perfeição levando-o a comparar o modelo automático do relógio ao corpo humano, prova disto é o funcionamento da fisiologia explicado a partir de princípios mecanicistas. Tal modo de conceber a relação entre teoria e práxis nos leva à reflexão sobre a relação que se constitui entre saber teórico e função ideológica.
Saber e Ideologia
A epistemologia moderna com a primazia do sujeito do conhecimento levou naturalmente a uma interiorização intimista do homem desdobrando-se na necessidade de uma ciência que respondesse aos "mistérios" desta subjetividade. Georges Politzer no seu livro Crítica dos fundamentos da psicologia (1994) diz sobre o projeto de ciência moderna e suas correlações ideológicas com o sentido de vida interior:
A vida interior no sentido "fenomenista" da palavra, afinal conseguiu torna-se um valor. A ideologia da burguesia não teria sido completa se não tivesse encontrado sua mística. Após várias tentativas ela parece enfim, tê-la encontrada: na vida interior da psicologia (Politzer, 1994, p. 9).
A psicologia clássica, assim, conforme o raciocínio de Politzer, assumiria o papel de nova religião moderna da vida interior que guardava potenciais conservadores, na medida em que serviria como defesa contra as renovações verdadeiras. A suposta profundeza da subjetividade comoveria e sensibilizaria como um eterno pretexto para ignorar a verdade. A função ideológica, portanto, seria o desvio do foco de análise naturalizando as profundezas subjetivas concebendo-a como a priore. Dessa forma, as teorias psicológicas acompanhavam o desenvolvimento das concepções de homem oriundas da sociedade burguesa.
Com efeito, a função social e até mesmo ideológica das teorias científicas deve ser ressaltada, pois cumpre um papel crucial na análise ontológica materialista. Ninguém melhor que Lukács (2012) demonstrou a ligação de fundo sobre os pressupostos filosóficos e suas implicações ideológicas em um dado contexto sócio histórico.
Voltando aos neokantianos, em sua tendência determinante da teoria do conhecimento, nos lembra Lukács (2012), que na virada do século XX foi se constituindo um novo gênero de positivismo. O neokantismo, ao radicalizar a exclusão dos problemas ontológicos pela via do objetivismo fisicalista, funda as bases para o desenvolvimento de um neopositivismo, caracterizado fundamentalmente por incorporar a lógica matemática em sua linguagem (tem sua expressão máxima no empirismo lógico do Círculo de Viena). Vale lembrar que neste momento histórico a economia capitalista obteve um crescimento significativo no domínio da natureza juntamente com um aumento da produtividade do trabalho em função de novas formas de organização do mesmo, alterando a produção e regulando o consumo. Daí a necessidade econômica da manipulação cada vez maior de forma eficaz do mercado. Diante de tal cenário histórico:
[...]a sociologia desenvolve-se de modo cada vez mais resoluto na linha de uma teoria geral da manipulação socialmente consciente das massas. Há trinta anos Karl Mannheim já tentara elaborar um método científico com esse objetivo; é significativo que ele considerasse como elementos estruturantes dessa nova ciência o pragmatismo, o behaviorismo e a psicologia profunda. É digno de nota que Mannheim... tenha chamado a atenção para a afinidade metodológica entre as teorias behavioristas e a práxis fascista. (Lukács, 2012, p.46)

Isto nos aponta para um problema central da vida social, qual seja, o da generalidade da manipulação como objetivo último da metodologia cientifica. Esta mesma manipulação recai agora sobre a totalidade da vida, da esfera econômica, da política à ciência. Nesse sentido, sobre o nexo entre teoria filosófico cientifica e função ideológica, escreve Lukács (2012 p. 61) sobre o neopositivismo:
[...] a causalidade ontológica é substituída por manipulação com dependência funcional, quando o paralelismo psicofísico é transformado em fundamento da manipulação de um grande complexo objetivo, patenteia-se como o neopositivismo contorna com indiferença todas as autênticas questões do conhecimento para, assim tornar plausível a manipulação prática imediata dos problemas.
Fica implícito o caráter reacionário do neopositivismo que se expressa teoricamente na psicologia pelo Behaviorismo, o qual fortalece as tendências de manipulação formalista através, por exemplo, da pretensa purificação da linguagem pelo princípio verificacionista. Em sua aplicação na Análise experimental do comportamento, com efeito, se sobressai a manipulação pragmática e utilitarista tanto na pesquisa quanto em sua função prática concreta, tudo em nome da cientificidade, submetida, é claro, pela ideologia da razão instrumental.
O neopositivismo, afirma Lukács (2012), resolve seus problemas teóricos pela exclusão de toda ontologia em sua proposta de unificação da linguagem científica e pelo seu tipo de manipulação logicista. Além do mais, através dessa linguagem fisicalista e matematizada a ciência não só transforma a si mesma como estende ao plano mesmo da economia política o caráter instrumentalista e técnico, afim de, administrar e dominar conforme a noção de "mundo administrado" proposta por Adorno. Lukács, portanto, percebe, através do nexo entre teoria e prática, o neopositivismo como expressão máxima da universalidade da manipulação anti-humana, característica elementar da modernidade capitalista.
Além do mais, é possível sustentar a associação epistêmica entre neopositivismo e neoliberalismo. Sabe-se que interior no interior do Círculo de Viena, Rudolf Carnap defendia a tese da unificação da linguagem cientifica através da generalização dos enunciados da física matemática para outros campos do saber. Desta forma, o mercado enquanto fenômeno empírico poderia ser apreendido numa outra linguagem e método que fosse capaz de manipulá-lo por completo. Assim temos a Escola de Chicago de economia criada na década de 1950. Sua metodologia era positivista por excelência, na medida em que se utilizava de pesquisas empíricas com base em dados estatísticos em detrimento de uma ênfase na economia política. As ideias desta escola se disseminaram a partir da segunda metade do século XX, sendo significativo que no ano de 1974, Friedrich Hayek recebe o prêmio Nobel de economia, acontecendo o mesmo dois anos depois com Milton Friedman. Dois dos principais expoentes da corrente neoliberal tem suas ideias internacionalmente reconhecidas e aplicadas em alguns países, não por acaso no momento da crise do capital e esgotamento do modelo do Welfare State.
Este "não por acaso" da combinação temporal íntima entre sistema teórico gestado na universidade e contexto sócio político, indica algo a mais. O que está implícito nessa relação proposta entre saber/ciência e ideologia não é que um conteúdo teórico seja necessariamente falso para ser ideológico, ele pode até ser "verdadeiro" ou relativamente verossímil e poder até permitir explicações e descrições precisas, pois em última análise o que é determinante não são seus argumentos ou princípios explicativos, mas a forma como essa teoria se relaciona com as posições subjetivas particulares de onde se originam e para quais finalidades funcionam. Por conseguinte, o efeito ideológico depende fundamentalmente de quando um determinado saber se torna funcional a alguma relação de exploração, dominação ou exercício injusto do poder. Ou seja:
Para ser eficaz a lógica de legitimação da dominação tem que permanecer oculta. Em outras palavras, o ponto de partida da crítica da ideologia tem que ser o pleno reconhecimento do fato de que é muito fácil mentir sob o disfarce da verdade (Žižek, 1996, p.14).

Em certa confluência, a análise de Lukács (2012) leva em conta que o desenvolvimento da matemática, retomando a problemática do neopositivismo, contribuiu para a descoberta de nexos quantitativos da realidade externa obtendo avanços significativos na matematização das relações espaciais, bem como consolidou novas geometrias com aplicações práticas importantes. No entanto, esses instrumentos abstratos não passariam de espelhamentos que refletiriam apenas determinados momentos da realidade, enquanto a realidade em si, na sua totalidade, possuiria uma gama de complexos e nexos entre si muito mais abrangentes. Para tanto, o real de um fenômeno real só pode ser apreendido pela análise da totalidade de seus momentos. Enfim, manipular dada realidade não significa necessariamente conhecê-la por completo.
Na arte de manipular determinada realidade, ideias psicológicas podem exercer funções socialmente úteis. No que diz respeito à sociedade de consumo, vejamos um outro exemplo do caráter ideológico que pode assumir uma dada teoria.
Psicanálise e Psicologia de grupo a serviço do consumismo
No início do século vinte as teorias de Sigmund Freud começam a ganhar notoriedade nos círculos acadêmicos e na sociedade de modo geral, pelo caráter polêmico de suas descobertas a respeito da natureza do funcionamento da mente humana. A maior descoberta da psicanálise foi sua noção de inconsciente e sua implicação nos comportamentos individuais e também grupais. Mas essas noções de instintos ou pulsões que a consciência humana desconheceria não foram rapidamente aceitas pelos círculos de intelectuais e por outros segmentos da sociedade facilmente. Haja visto, pelos típicos processos de constituição dos laços sociais da época, moralmente orientados pelas regras puritanas, mais precisamente do período vitoriano. Para uma sociedade europeia impulsionada pelo confiança no progresso da modernidade a teoria freudiana causava escândalo pela introdução de uma dimensão irracional e ilógica que perpassaria a subjetividade, de modo a denunciar a impotência e o engano do senhorio da "razão absoluta", controladora e esclarecida, herdada do iluminismo.
No entanto, a obra de Freud se constituiria ao longo do tempo em grande referência no estudo da psicologia profunda. As suas ideias fizeram um grande sucesso nos Estados unidos, disseminadas primeiramente por seu sobrinho Edward Bernays que foi considerado o pai das Relações Públicas e grande influente da propaganda. Barnays, como um grande estrategista do marketing que trabalhava para importantes corporações na década de 1920/30, faria utilização da descoberta sobre a psicologia de grupo de seu tio Freud, para manipulação dos consumidores no mercado capitalista em ascensão.
Nessa empreitada, a atividade de propaganda iria ter que partir de uma nova concepção influenciada pelas noções da psicanálise, qual seja, a de indivíduos guiados pela irracionalidade e por conseguinte, potenciais manipulados. Portanto, essa era a tarefa da propaganda, utilizar de recursos e instrumentos que moldasse e direcionasse o inconsciente das pessoas para o consumo de mercadorias. Foi nesse objetivo, que Barnays se utilizou de modo pragmático e utilitarista de textos de Freud para se apropriar da ideia de como se constitui a psicologia de grupo e a partir disso propor formas de manipulação das massas. [1]
Freud inicialmente em seu texto "Psicologia das massas e análise do eu" propõe que o interesse dessa psicologia é o individuo entendido como membro de uma raça, de uma nação, de instituições, ou como parte de uma multidão de pessoas que se organizam em grupo (Freud, 2011). Desse modo, fica claro que o indivíduo será sempre visto estando inserido em determinado agrupamento ou núcleo de socialização onde o foco de estudo seria a análise do eu e de seu funcionamento quando se está participando do compartilhamento das vivências de um grupo.
Logo na introdução, Freud retoma a descrição da mente grupal feita por Gustave Le Bon. Para este, os indivíduos por mais diferentes que fossem em vários aspectos, uma vez aglomerados em um grupo, passariam a compartilhar uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito diferente, daquela da qual cada membro dele, tomado individualmente sentiria ou agiria caso estivesse só. O que ele queria dizer é que certas ideias e sentimentos não se transformam em atos efetivos quando os indivíduos estão na condição de isolamento, mas sim quando se formam os grupos.
Le Bon tinha em mente que os grupos eram formações que despertavam nos indivíduos aspectos socialmente barrados, ou seja, as formações grupais para ele possuía uma identificação com a mente primitiva. Na condição de pertencente a um grupo o indivíduo adquire um sentimento de poder invencível que lhe permitiria despertar instintos que isoladamente teria reprimido. A responsabilidade que sempre controla o sujeito frente à normatividade social desapareceria (Freud, 2011). A irracionalidade seria predominante nas pessoas vinculadas fortemente a grupos, elas não possuiriam capacidade crítica e reflexiva deixando o grupo sempre aberto a influencias devido a seu caráter demasiadamente crédulo.
Ademais, os sentimentos nos grupos são geralmente simples e excessivos, dessa forma, "o grupo só pode ser excitado por um estímulo excessivo, quem quer que deseje produzir efeito sobre ele não necessita de nenhuma ordem lógica em seus argumentos; deve pintar nas coisas mais fortes, deve exagerar e repetir a mesma coisa diversas vezes" (Freud, 2011, p.49). Esta, nos parece uma ótima fórmula para uma estratégia de disseminação de propaganda de mercadorias. E foi exatamente a partir dessas concepções que uma certa doutrina econômica, a saber, o liberalismo de mercado, pensaria o indivíduo humano. Nas chamadas sociedade de massas, as teorias políticas e econômicas da ordem capitalista, partiria do princípio que as pessoas massificadas, tanto na produção quanto no consumo, se comportariam de maneira irracional, egoísta e utilitarista, e esses seriam os atributos da própria natureza humana.
Foi nesse bojo, de apropriação e distorção da psicanálise a um fim perverso, que Barnays e toda a corja das relações públicas revolucionaram o mundo da propaganda a serviço das grandes corporações. Estas, temiam a super produção de mercadorias em um contexto de acumulação em grande escala, por isso o consumo deveria de todas as formas ser impulsionado.
E como quase sempre, a produção do conhecimento científico guiada pelo signo do pragmatismo instrumental estava mais uma vez envolvida nos estudos dos grupos através da psicanálise que contribuiu para ascensão do eu na sociedade de consumo. O resultado da produção e manipulação de desejos inconscientes foi uma atomização generalizada da sociedade. Cada membro dela vivendo na falsa ideia de liberdade do seu próprio eu que era expresso pela marca que usava. Além do valor utilitário das mercadorias elas eram agora consumidas pela ideia, pelo status quo e pelo sentimento que elas despertavam nas pessoas. O aspecto do valor de uso das mercadorias estava sendo gradativamente substituído pela hegemonia do valor de troca o que instaurava a necessidade da obsolescência programada dos bens de consumo duráveis, afim de acelerar o ritmo do consumo de modo a acompanhar as mudanças no processo produtivo. Por essas e outras razões, a psicologia de grupo necessitava de constantes pesquisas empíricas a respeito das condições psicológicas do funcionamento dos grupos. Apesar de estudar as pessoas necessariamente vinculadas a grupos, as conclusões oriundas da psicanálise da propaganda eram individualistas e profundamente ideológicas, pois esse era o objetivo do liberalismo de mercado, vender a ideia da satisfação individual e alcançar a felicidade expressa na mercadoria. Esse era o "sonho americano".
Sonho este, que veio a ser abalado pela crise de 1929, que foi um desastre econômico, e pela emergência do totalitarismo fascista na Europa, o que representou uma ameaça à ideia de liberdade tão cara à "América". O fascismo, juntamente com os resultados catastróficos da segunda guerra mundial foram condições para se repensar o perigo contido nas massas, já destacado pelas ideias de Le Bon anteriormente. A ideia da irracionalidade bárbara das massas mais uma vez corroborava e legitimava a necessidade de proteger o sacrossanto ideal de liberdade individualista.
Ideias psicanalíticas, ademais, também acharam solo fértil além do marketing em outros setores da sociedade como a esfera organizacional do trabalho.
A instrumentalização da Psicologia Organizacional
No início da primeira metade do século XX a sociedade estadunidense conhece a disseminação da cultura psicológica que vai se sedimentando na vida cotidiana das pessoas. Esta influência ia desde à penetração nas Forças Armadas até a educação de filhos e sexualidade, passando do âmbito público ao foro privado. Mas é no meio empresarial norte-americano onde esta influência foi bastante acentuada, no qual os psicólogos provaram não haver qualquer incompatibilidade entre a dimensão dos afetos e a dimensão da ação econômica.
Numa época de expansão da indústria em série, psicólogos experimentais eram solicitados pelas corporações empresariais a solucionarem as questões de disciplina e da produtividade no trabalho. Psicólogos clínicos inspirados em ideias psicodinâmicas também tiverem um papel relevante nas mudanças inseridas nas novas organizações do processo produtivo. Elton Mayo, psicólogo e sociólogo implicado na teoria da Administração fez sua formação como psicanalista junguiano e teve o "mérito" de inserir a imaginação psicanalítica no lócus de trabalho. Mayo, é conhecido por conceber a Teoria das Relações Humanas, que ao contrário da Teoria Clássica da Administração reformulou a linguagem moral da individualidade do trabalhador; propôs um novo vocabulário de "relações humanas" em substituição da retórica de racionalidade adotada pelos engenheiros de produção (Illouz, 2011). A dimensão da subjetividade, portanto, começa a ganhar visibilidade discursiva no meio organizacional, isto irá ser uma das marcas principais do processo de mudança do taylorismo/fordismo para toyotismo/pós-fordismo.
Para versarmos sobre as novas organizações do trabalho, é necessário levar em conta antes o processo de internacionalização da organização do trabalho, iniciada com a crise capitalista da década de setenta no século vinte, seguida da transação do regime de acumulação keynesiano-fordista para o pós-fordista/toyotista, no bojo da globalização da economia marcada pelo avanço neoliberal. Todo esse processo levou e tem levado à combinação de culturas organizacionais híbridas, de forma que empresas nacionais mesclam-se com tecnologias de "gestão do inconsciente" pós-fordistas produzidas nos países de capitalismo central (Heloani, 2011, p.110).
A dita "gestão do inconsciente" é produto, dentre outras razões, de grande investimento científico financiado por grandes corporações que possui em seus domínios pesquisas avançando no conhecimento organizacional e na elaboração de estratégias da gestão do trabalho e do trabalhador. Assim demonstra Heloani (2011, p.111) ao mencionar o projeto Saturn, da GM, como um imenso laboratório de psicologia organizacional, no qual mantem experimentos e resultados a serem bem mais explorados e utilizados futuramente.
Ora, sabemos da grande conivência ao longo da história da ciência psicológica em relação às novas exigências de respostas práticas para as grandes demandas corporativas no que diz respeito aos processos organizacionais. Dessa forma não nos surpreende a constatação de novos movimentos emergentes na gestão de pessoas, inclusive na cultura organizacional. Cultura esta, constituída por sistemas de valores, regras e substituição do léxico no processo de comunicação que envolve uma nova gramática ou semântica fazendo circular novos significantes capturando a linguagem dos sujeitos no novo mundo do trabalho.
As gramáticas inconscientes acabam por:
[...] apropriar-se das "virtudes" dos trabalhadores (como atenção, persistência e dedicação, entre outras) e, num processo de incorporação, as representam como um produto da organização. Retoma-se assim a fusão efetiva "empresa-mãe" (protetora) que se identifica com o trabalhador -fruto da empresa- numa lógica em que gestão dos códigos atinge o plano das representações. (Heloani, 2011, p.109).
Além da nova gramática e da manipulação da comunicação temos outros dispositivos estratégicos do toyotismo. Poderíamos citar, dentre muitos outros, os programas de qualidade, incluindo os círculos de controle de qualidade (CCQ); a melhoria contínua (Kaizen); as células de produção e os grupos semi-autônomos; o Just in time; o Kanbam; e as tecnologias de grupo (TGO); além das dinâmicas de grupo e da sociometria, que enfatiza a vivência psicoafetiva grupal.
Podemos utilizar os CCQs como exemplo de como o envolvimento cooptado pode ocorrer nas organizações. Os círculos de controle de qualidade, segundo seus manuais, são procedimentos que tem por finalidade, a melhoria da qualidade e o aumento dos níveis de motivação, estimulando o trabalho em equipe. As equipes de trabalho, como assim são chamados os círculos, fazem reuniões e treinamento em dinâmica de grupo. Eles obedecem a uma metodologia behaviorista, no intuito de adaptar o trabalhador à empresa, ocorre assim, por esses instrumentos gerenciais uma racionalização das diversas subjetividades (Heloani, 2011).
Implicações ético-políticas das práticas psicológicas/considerações finais
Tendo em vista a exposição de algumas relações problemáticas entre ciência e práxis, por fim, nos leva às implicações ético-políticas de certas epistemologias desprovidas de fundamentos ontológicos mais abrangentes. Pois se há uma concepção do ser do objeto, as vezes irrefletida, sua epistemologia levará a uma prática que responda às particularidades postas na sua gênese. Sendo assim, podemos ter e temos, por exemplo, uma epistemologia utilitarista que favoreça um fazer psicológico utilitário e particularista sob uma forma falsa de universalidade científica.
A Ciência e a tecnologia de forma geral tem cumprido um papel muito ambivalente quanto às suas aplicações e impacto na vida social. Ela pôde ir de um polo ao outro, da penicilina e várias formas de analgesia, cura de doenças etc, à bombas nucleares e genocídio. Trouxe inúmeras descobertas e benefícios para a humanidade ao mesmo tempo em que criou um ambiente de barbárie e a possiblidade de sua própria destruição. Aproximadamente metade dos cientistas do todo o mundo dedica boa parte de seu tempo e atividades para fins militares, afirma Carl Sagan, em O Mundo Assombrado Pelos Demônios(1995):
Embora alguns cientistas ainda sejam vistos como estranhos ao sistema, criticando corajosamente os males da sociedade e dando os primeiros avisos sobre catástrofes tecnológicas potenciais, muitos são considerados oportunistas submissos ou uma fonte complacente de lucros empresariais e de armas de destruição em massa. (Sagan, 1995, p 19).


No caso em específico da ciência psicológica chega-se a alguns extremos como no caso do problema imigratório nos Estados Unidos onde a prática da psicologia tem se servido do uso de testes de inteligência como mecanismo de segregar os "menos aptos" e controlar o fluxo imigratório para o país, bem como também tem disponibilizado o uso de técnicas para extrair informações de suspeitos de terrorismo. ["Psycological practice has often involved abuses perpetrated by the powerful, from intelligence testing as a means to control immigration into the United States to applying psychological techniques to extract information from suspected terrorists"]. (Teo, s/d, p. 48).
E o que dizer da recente polêmica envolvendo a APA (American Psychological Association) sobre o envolvimento com práticas de tortura? Em 2014 o jornalista do The New York Times James Risen, publicou o livro Pay Any Price: Greed, Power, and Endless War" [Pagando qualquer preço: ganância, poder e uma guerra sem fim] em que denunciava a principal entidade representativa dos psicólogos estadunidenses de contribuir com práticas de tortura infligidas em prisioneiros políticos na Baía de Guantánamo, Abu-Ghrabi e em outros prisões. Foi instaurada uma investigação na qual se relatou o envolvimento direto de diretores e vários associados da APA com o Departamento de Defesa do Pentágono e da CIA durante a "guerra ao terror" do governo Bush. Não obstante, no Brasil houve algo semelhante, como afirma o livro "Ministério do Silêncio", do jornalista Lucas Figueiredo, houve muitos psicólogos durante a ditatura civil-militar que contribui no treinamento de agentes do Sistema Brasileiro de Inteligência (SNI, hoje Abin) que espionavam e entregavam sujeitos supostamente subversivos para o DOI-CODI-órgão de repressão. (Lisboa, 2015).
Por fim, uma Psicologia que se pretenda crítica deve exatamente fazer o enfrentamento de todos esses impasses, apresentando a complexidade dos fundamentos ontológicos na sua inerente relação com as escolhas metodológicas e sobretudo, as implicações na dimensão prática, da ética e política dos fazeres psicológicos. Destaca-se a necessidade de refletir sobre as limitações de ordem cultural do pensamento ocidental e se abrir a outras perspectivas possíveis para além das particularidades caraterísticas da Psicologia dita científica.
Este texto tentou, portanto, em contemplar de certo modo a reflexão sobre os fundamentos mais elementares do saber da ciência psicológica ao propor iluminar as questões da relação entre ontologia, epistemologia e ideologia, geralmente ignoradas ou obscurecidas em muitas abordagens teóricas e que acabam por passar ao largo da questão em muitas de nossas formações acadêmicas. Por isso se faz de suma importância resgatar essa dimensão crítica e adentrar ao real do fenômeno psíquico e compreender a essencialidade histórica do homem. Algo crucial nesta perspectiva crítica do texto é que ela pode nos levar a uma compreensão da processualidade sócio histórica que faz a mediação da constituição e compreensão de qualquer que seja o objeto ou método de estudo da Psicologia em detrimento de concepções essencialistas, naturalizantes ou simplesmente superficiais.

Notas:
[1] Baseio-me no documentário The Century of the self; BBC 2002. Adam Curtis.







Referências
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Ferreira, A. A. L. (2014). O múltiplo surgimento da psicologia. In Jacó-Vilela, A.M. (Org.) História da Psicologia: Rumos e Percursos. p. 99. Rio de Janeiro: Editora Nau.
Freud, S. (2011) Psicologia das Massas e análise do Eu e outros textos. p.49. Obras completas, volume 15. São Paulo: Companhia das Letras.
Illouz, E. O amor nos tempos do capitalismo. (2011). Rio De Janeiro: Ed. Zahar.
Heloani, R. (2011). Gestão e Organização no Capitalismo Globalizado. pp. 109,110,111. São Paulo: Editora Atlas.
Lisboa, F. (2015, 29, de Julho) Psicologia e Tortura: uma perigosa relação. Recuperado em: http://psicologiadospsicologos.blogspot.com.br/>
Lessa, S. (2002) Mundo dos homens. p.70 São Paulo: Boitempo.
Lukács, G. (2012) Para uma ontologia do ser social I. pp.25,46,61. São Paulo: Boitempo.
Politzer. G. (1998) Crítica dos fundamentos da psicologia. p. 9. São Paulo: Editora UNIMEP.
Sagan, C. (1995). O Mundo Assombrado Pelos Demônios p. 19. São Paulo: Companhia das Letras.
Tonet, I. Marxismo para o século XXI. p. 48. Artigo, Sem Data
Žižek, S. (1996). Um Mapa da Ideologia. p.14 Rio de Janeiro: Contraponto.




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