Eros e o corpo degradado

July 21, 2017 | Autor: Imaculada Kangussu | Categoria: Critical Theory, Herbert Marcuse, Sigmund Freud, Sandor Ferenczi, Teoría Crítica
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Eros e o corpo degradado

Imaculada KANGUSSU
Departamento de Filosofia – Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP-MG)


Na tradição filosófica ocidental, o corpo costuma não merecer
confiança. Mais do lado da natureza do que do espírito, é carente, por isso
assolado por desejos, é frágil, necessita de permanentes cuidados, é
corruptível, se degenera e, o pior de tudo, é finito. O perigo provocado
por tal desconsideração é que os ideais saem dela fortalecidos, com os
vencedores pisando sobre os corpos vencidos. Corpos não valem nada. Já nos
acostumamos com os miseráveis nas calçadas, as pessoas mais delicadas viram
o rosto, a maioria nem os vê distintamente, confunde-os na paisagem. Mesmo
a ínfima identidade de mendigos lhes é negada. Entretanto, qualquer ideal
superior à vida é ideologia porque lhe falta parâmetros e base de
determinação.
Para discorrer sobre a degradação do corpo, apresento algumas
reflexões recortadas da obra de Herbert Marcuse, provavelmente o filósofo
contemporâneo cujas idéias foram encarnadas com mais evidência. Foi
visceral a incorporação de conceitos por ele cunhados pelos estudantes
rebeldes de 1968. Marcuse tinha então setenta anos. A virulência de sua
recusa a aceitar o estado de coisas que o cercava aparece com força no
discurso que fez (1969), em defesa de Ângela Davis, mulher, negra, ativista
política e sua orientanda, quando ela teve o nome vetado pela reitoria para
ocupar um cargo eletivo na Universidade da Califórnia. Pela atualidade,
cito um trecho:


Eu acredito que a luta está apenas começando a se iniciar – a luta
contra todos aqueles que querem fazer da Universidade uma escola de
treinamento para perpetuação de uma sociedade, cuja segurança e
prosperidade é baseada na opressão e na escravização de outros povos
[...] A luta por Ângela é, em última análise, uma luta por vocês
[...] É uma luta por vocês, por nós, eu gosto de pensar, que não
podemos mais tolerar, que ficamos doentes do estômago ao ver a
sociedade mais rica do mundo viver em uma economia de morte, em uma
economia de opulência, de obsolescência planejada e de poluição que
nós não podemos tolerar. E essa intolerância, essa abençoada
intolerância, atravessa o assim chamado abismo de gerações, para mim
é tão intolerável quanto para vocês.[1]


É bastante, e por si eloqüente, a própria presença de Marcuse no
protesto contra os dirigentes da Universidade onde trabalhava. E também
bastante de acordo com o pensamento do filósofo que sempre percebeu na
cisão corpo-mente um instrumento de dominação. Apresento então, na
seqüência, algumas perspectivas de Marcuse a esse respeito.
No texto "Sobre o caráter afirmativo da cultura", Marcuse observa que
a alienação da cultura no corpo da sociedade é um dos frutos da separação
entre matéria e espírito. O filósofo lembra que, na Grécia Clássica,
felicidade e trabalho estavam essencialmente separados, eles pertenciam a
modos diferentes de existência, uns eram por essência escravos, e alguns
outros livres.[2] O mundo do verdadeiro, do bom e do belo era realmente
situado fora da luta com a matéria, estava muito além da forma de
existência dos escravos, artesãos, comerciantes e mulheres: da maioria da
população; apenas uma pequena parcela de cidadãos podia se ocupar com o que
ia além das necessidades materiais. O bom, belo e verdadeiro não podiam,
portanto, ser sustentados por Aristóteles como valores universais. O
disforme ou o nascido em família vil não poderia de modo algum se tornar
feliz, desde que beleza e nobreza de nascimento eram condições necessárias
para tanto. Também na República platônica, os homens foram considerados
diferentes por natureza, e esta seria responsável pela determinação de cada
homem para a tarefa que lhe fosse adequada. Segundo Platão, ao modelar os
homens, Deus colocou ouro nas almas daqueles aptos a serem governantes,
prata na composição das almas de seus auxiliares; ferro e bronze nas dos
lavradores e artífices[3]. Manter cada um no seu devido lugar era
necessário para manter a cidade em ordem.


Bem sabemos como revestir os lavradores com trajes suntuosos,
coroando-os de ouro, e mandando-os lavrar a terra conforme lhes
apetecer; e como reclinar os oleiros na devida ordem, junto do fogo,
a beberem regalados com a roda do lado, para quando desejarem modelar
o barro; e como tornar felizes todos os restantes de maneira
idêntica, a fim de que toda a cidade esteja contente. Mas não nos
aconselhes a tal. De maneira que, se te obedecêssemos, nem o lavrador
será lavrador, nem o oleiro, oleiro, nem ninguém mais ocupará o seu
lugar; e nessa ordenação é que a cidade se origina.[4]


Na Grécia clássica, as contradições sociais foram consideradas
decorrentes de distinções ontológicas, as diferenças foram naturalizadas e
os conflitos da sociedade de classes foram baseados nas profundezas da alma
humana. Sem problemas de consciência, a teoria antiga pôde sustentar que,
enquanto uma pequena parcela se dedicava ao prazer, à verdade e à beleza, a
maioria dos homens era obrigada a despender sua existência na triste
provisão das necessidades vitais. A separação entre o mundo sensível e o
das idéias, entre o belo e o necessário, tem atrás de si uma determinada
forma política de existência; que através dessa distinção e com a
subseqüente inferioridade do mundo material se livra da má consciência.
Segundo Marcuse,


Por causa de sua inegável materialidade (Stofflichkeit), a práxis
material (materiell) seria isenta da responsabilidade pelo
verdadeiro, bom e belo, que, por sua vez, deveria se conservar na
ocupação teórica. O isolamento ontológico dos valores ideais em
relação aos materiais tranqüiliza o idealismo no que concerne aos
processos vitais materiais. Uma forma histórica determinada da
divisão social do trabalho e da estruturação social de classes se
converte para ele numa forma metafísica eterna da relação entre o
necessário e o belo, a matéria e a idéia.[5]


A interpretação mais radical que encontramos para a origem do dualismo
é a do helenista marxista George Thomson, com base nos assustadores
relatos, sobre o trabalho escravo nas minas de ouro egípcias no século I,
escritos por Diodoro da Sicília, em História, livro 5, §38. Argumentando
que as condições de trabalho escravo na Grécia platônica não diferiam muito
das descritas por Diodoro, o pensador inglês deduz que a realidade está na
origem das imagens sobre as quais são construídas as parábolas acerca da
vida neste mundo e da vida futura. "Foi nas minas que pela primeira vez os
homens conceberam a vida como prisão e o corpo como túmulo da alma".[6]
A realidade material intolerável força o espírito a inventar escapes:
arte, religião, memória são as rotas mais conhecidas dentre as infinitas
fantasias possíveis. A percepção de uma situação restritiva, de uma
realidade intolerável, que é recusada e, simultaneamente, o vislumbre,
mesmo que obscuro, de um outro estado diante do qual o primeiro é condenado
estão na origem do negativo. O despertar da insatisfação, ou, pode-se
dizer, a origem do negativo, é um movimento da liberdade. Jameson
conceitualiza, com agudeza, a liberdade como "impaciência ontológica"[7], e
nunca como um estado a ser desfrutado. "A liberdade é essencialmente
negativa."[8] Ao negar, a liberdade produz uma superposição de percepções:
quando algo é negado, concomitantemente uma alteridade é vislumbrada. A
importância política da cultura está ligada a sua articulação com a
faculdade de negação e à capacidade de presentificar o "outro", simultânea
a esta última.
"Sempre houve um universo estrangeiro para o qual os fins culturais
não valem", assinala Marcuse, "a cultura sempre foi privilégio de uma
pequena minoria, uma questão de riqueza, de tempo e de feliz
coincidência."[9] A moderna civilização burguesa, que não podia mais
defender a cisão ontológica proposta pelos filósofos gregos, sedimentou a
idéia de "liberdade interior". A alta cultura da burguesia se contrapunha
ao real, oferecia uma realidade virtual desfrutada apenas por uma minoria
privilegiada, e acomodava ideais potencialmente negativos na alienada
dimensão estética. Entretanto, a experiência de evasão através da fruição
artística pode produzir uma força dissidente, capaz de resistir aos valores
dominantes, por desviar o foco da realização individual do domínio que
pertence ao lucro e colocá-lo sobre os recursos íntimos do ser humano. Esse
movimento faz com que a evasão não seja definitiva, não seja mera fuga da
realidade: a subjetividade sai da sua interioridade e torna-se "nós" na
cultura. Vulgarmente rejeitada como "noção burguesa", a afirmação da
subjetividade (identidade do sujeito consigo mesmo, diz Hegel), a
insistência no direito à interioridade pode suportar o indivíduo diante das
turbulentas relações do mercado, tornando acessível uma dimensão não-
reificada da existência. Assim, a cultura do idealismo burguês não é só
ideologia, mas também expressa uma situação verdadeira:


Não contém só a legitimação da forma da existência (Daseinsform)
vigente, como também a dor causada por seu estado; não só a
tranqüilidade em face do que existe, mas também a rememoração daquilo
que poderia existir. Na medida em que a grande arte burguesa
configuraria o sofrimento e o lamento como eternas forças do mundo,
romperia continuamente no coração dos homens a injustificada
resignação do cotidiano; na medida em que pintaria a beleza dos
homens e das coisas e uma felicidade extraterrena nas cores
brilhantes deste mundo, junto com a falsa consolação e a falsa
bênção, também aprofundaria o anseio autêntico na raiz da vida
burguesa.[10]


A idéia de um "anseio autêntico" enraizado na organização social,
levada a cabo pela burguesia, remete a pulsões que a sociedade submeteu e a
cultura manteve vivas. Esse antagonismo – que a fundamenta – só pode
admitir a exigência de felicidade se esta for interiorizada,
descorporificada e desmaterializada. Entretanto, a impossibilidade de se
retirar completamente da felicidade seu aspecto sensível torna sua busca
subversiva. Para a sociedade que se reproduz por meio da concorrência
econômica, a simples exigência de uma existência feliz universalizada
representa um antagonismo: "remeter os homens à fruição da felicidade
terrena significa certamente não remetê-los ao trabalho na produção, ao
lucro, à autoridade daquelas forças econômicas que preservam a vida desse
todo."[11] Em uma ordem baseada na carência e no sacrifício, a exigência de
felicidade é perigosa. As contradições internas dessa ordem levam à
idealização de tal exigência. Ainda assim, a dinâmica idealista que,
reiteradamente, adia a satisfação, ou a desvia levando-a a aspirar ao
impossível, serve para rememorá-la e confrontar o homem com a imagem de uma
ordem melhor. A cultura se torna o negativo de uma ordem em que a
reprodução material da vida não deixava outro espaço "para aquele âmbito da
existência que os antigos designavam como 'belo'."[12]
Os homens ficam felizes através do médium da beleza. "A fruição da
beleza tem um caráter de sentimento peculiar, levemente embriagante. A
beleza não tem emprego evidente, não existe necessidade cultural sua.
Apesar disso, a civilização não pode dispensá-la," considera Freud, e
"embora a ciência estética investigue as condições sob as quais as coisas
são sentidas como belas, tem sido incapaz de fornecer qualquer explicação a
respeito da natureza e da origem da beleza, e, tal como geralmente
acontece, esse insucesso vem sendo escamoteado sob um dilúvio de palavras
tão pomposas quanto ocas. A psicanálise, infelizmente, também pouco
encontrou a dizer sobre a beleza. O que parece certo é sua derivação do
campo sexual."[13] A beleza é dotada de um poder perigoso, ameaçador. Sua
qualidade sensorial (Sinnlichkeit) imediata remete imediatamente à
felicidade no plano dos sentidos; por isso, ela só seria confirmada com boa
consciência no ideal da arte. "Para Nietzsche a beleza reanima 'a
felicidade (Seligkeit) afrodisíaca'"[14]; Marcuse opõe à definição kantiana
do belo como prazer desinteressado a afirmação de Stendhal, de que a beleza
é "une promesse de bonheur". E lembra que, também para Hume, a beleza
estimula a fruição, a fruição não é uma manifestação secundária da beleza,
mas constitui sua própria essência. A fruição consiste justamente no
"encontro inocente, despreocupado, harmonioso do indivíduo com algo no
mundo."[15] Nisto reside seu perigo em uma sociedade que precisa racionar e
controlar a felicidade, que libertou o indivíduo mantendo o controle sobre
a fruição. A beleza apresenta à vista o que não pode ser prometido e é
negado à maioria. A sociedade moderna só reconhece a conversão do homem em
objeto quando se trata da servidão. A alienação do próprio corpo no
trabalho é dever moral, o corpo como objeto de prazer é depravação, ou
prostituição – do latim prostituere, por diante do público, expor. Quando a
mercadoria é o corpo, e não a força de trabalho, seu portador é desprezado
por ultrapassar os limites da reificação. "Há uma violação do tabu [...]
cuja manutenção é vital para perpetuação do sistema"[16]. Onde o valor é o
trabalho, o prazer não pode ser um valor. Apesar disso, salienta Marcuse,


onde o corpo se tornou inteiramente objeto, coisa bela, ele
possibilita imaginar uma nova felicidade. Na subordinação extrema à
reificação, o homem triunfa sobre a reificação. A qualidade artística
do corpo belo, ainda hoje presente unicamente no circo, nos cabarés e
em shows, essa beleza e frivolidade lúdicas, anuncia a alegria da
libertação do ideal que o homem pode atingir quando a humanidade,
convertida verdadeiramente em sujeito, dominar a matéria.[17]


Entregue ao prazer, o corpo anuncia a alegria implícita no movimento
de libertar-se do ideal. A libertação antecipa uma espécie de
reconciliação, ainda que parcial, com a natureza. A reificação libertadora
não serve para perpetuar a exploração e a labuta. Para Marcuse, a liberdade
é parte inalienável da fruição prazerosa do belo. Quando os sentidos se
libertam da alma, "quando existe fruição sem qualquer racionalização e sem
o mais leve sentimento de culpa puritano"[18], observa o filósofo, surge
então a primeira luz de uma outra cultura. "A prostituta, o clown e o
acrobata têm um papel muito diferente aqui daquele do lúmpen proletariado
de Marx."[19] Ainda que única felicidade universal possível seja a
felicidade da aparência, o efeito produzido pela aparência é indubitável: a
satisfação é real.
Antes da explosão estudantil do final dos anos 60 no século XX, na
obra sobre o homem unidimensional (1964), é por baixo da base popular
conservadora que o filósofo vai buscar fundamentos, percebendo que o
conformismo ideológico não tem força para agüentar-se por si só: ele
depende das circunstâncias de prosperidade. No "substrato dos parias e
estranhos, dos explorados e perseguidos de outras raças e outras cores, os
desempregados e os não-empregáveis"[20], Marcuse percebe a força elementar
dos que se recusam ao papel que lhes é determinado no jogo, e com isso o
revelam como trapaça. "Quando eles saem às ruas, sem armas, sem proteção,
para reivindicar os mais primitivos direitos civis, sabem que enfrentam
cães, pedras e bombas, cadeia, campos de concentração e até a morte. Sua
força está por trás de toda manifestação política para as vítimas da lei e
da ordem."[21] O filósofo recusa o paralelo fácil com os bárbaros que
ameaçavam o império da civilização, considerando que aceitá-lo seria
prejulgar a causa. Pode-se perceber algumas mudanças no pensamento de
Marcuse, ao final dos anos 60. Apenas quatro anos depois, em An Essay on
Liberation (1969), o filósofo assinala que no continuum repressivo do
pensamento unidimensional aparecem fendas diversas. Segundo Marcuse, "a
revolução cubana e o Vietcongue demonstraram: pode ser feito; há uma
moralidade, uma humanidade, uma vontade, e uma fé que podem resistir e
deter a gigantesca técnica e a força econômica da expansão
capitalista".[22] Se nas sociedades superafluentes, o poder do capitalismo
corporativista, auxiliado pelos mass media, ajustou a imaginação dos homens
para seu próprio mercado, onde a cultura capitalista não penetrou
completamente em todas as casas – nos guetos e nos países periféricos –, o
sistema se mostra menos estável; i.e, ainda não se chegou ao estágio no
qual recusar o sistema de dominação significa rejeitar-se a si mesmo, às
próprias necessidades e valores. A recusa à organização social existente é
acolhida entre "os condenados da terra que lutam contra o monstro da
afluência"[23], e nas sociedades afluentes, ela encontra expressão entre a
juventude, a intelligentsia e as minorias perseguidas. Com sua sufocante
abundância de bens e suas vítimas expropriadas das necessidades vitais,
essa organização social é obscena, afirma o filósofo, e a análise crítica
clama por novas categorias: morais, políticas, e estéticas. A categoria de
obscenidade serve como introdução para Marcuse:


Obscenidade é um conceito moral do arsenal verbal do Establishment,
que abusa do termo aplicando-o não em expressões de sua própria
moralidade, mas naquelas do outro. Obscena não é a figura de uma
mulher nua que expõe seus pelos púbicos e sim a de um general todo
fardado que expõe suas medalhas conquistadas em uma guerra de
agressão [...] O vocabulário sociológico e político precisa ser
radicalmente reformulado [reshaped]: precisa ser arrancado de sua
falsa neutralidade, e metódica e provocativamente ser "moralizado" em
termos da Recusa. A moralidade não é necessária nem primariamente
ideológica. Em face da sociedade amoral, ela se torna uma arma
política.[24]


O autor considera que a moralidade está enraizada no impulso erótico
para conter a destrutividade e criar, e preservar, "unidades de vida cada
vez maiores". Assim, ele lhe atribui um fundamento pulsional. Na medida em
que esse fundamento é histórico e a maleabilidade da "natureza humana"
alcança as profundezas da estrutura pulsional, mudanças na moralidade podem
modificar inclusive o comportamento orgânico.


Quando uma moralidade específica está firmemente estabelecida como
norma para o comportamento social, ela não está apenas introjetada –
mas opera como uma norma para o comportamento "orgânico": o organismo
recebe e reage a certos estímulos e "ignora" e repele outros de
acordo com a moralidade introjetada, que está assim promovendo ou
impedindo a função do organismo como célula viva na respectiva
sociedade. Deste modo, uma sociedade constantemente re-cria este lado
de consciência e ideologia, padrões de comportamento e aspirações
como parte da "natureza" de seu povo, e, a menos que a revolta
alcance esta "segunda" natureza, a mudança social permanecerá
"incompleta", e mesmo auto-anuladora.[25]


No mundo contemporâneo, a extensão do controle sobre a consciência
permite o relaxamento do controle sobre a sexualidade e maior liberdade
sexual. O corpo, sem deixar de ser instrumento de trabalho, tem permissão
para exibir-se; o avanço da sociedade industrial torna os bens mais
acessíveis, dentre eles a própria beleza, através do barateamento de
produtos de higiene, vestuário, cosméticos e outros. O sex appeal torna-se
mercadoria, o que antes era prerrogativa da nobreza é democraticamente
colocado no mercado. "As secretárias e vendedoras sexies, o jovem executivo
e o superintendente atraentes e viris são mercadorias altamente
comercializáveis".[26] O funcionalismo é estetizado. Lojas e escritórios
ficam expostos aos olhares através dos vidros das vitrines. A corrosão da
indevassabilidade rompe as barreiras que separavam a existência privada da
pública. As liberdades concedidas por uma sociedade não livre seduzem a
consciência e dissolvem sua potência negativa. Muito da servidão voluntária
deve-se a essa administração da libido satisfeita através da submissão.
Concentrada em uma parte do corpo, na genitália, a libido pode ser
periodicamente libertada, ou melhor, descarregada. Deixando o resto do
corpo, e todo o corpo, o resto do tempo, livre para ser utilizado como
instrumento de trabalho.
É evidente a diferença entre Eros, sexualidade e genitalidade.
Conforme Freud, é necessário uma distinção nítida entre os conceitos
'sexual' e 'genital', o primeiro possui maior amplitude e permite incluir
atividades sem qualquer liame com os órgãos genitais. A função sexual
também não coincide com Eros, segundo a teoria freudiana.[27] Bataille
salienta a distinção entre Eros e sexualidade, observando que "só os homens
transformaram a atividade sexual em atividade erótica. Donde a diferença
entre o erotismo e a mera atividade sexual, que torna aquela uma busca
psicológica, independente do fim natural dado pela reprodução e pela
preocupação em procriar."[28] A utilização por Freud do termo Eros para
significar pulsão de vida implica uma ampliação do próprio significado para
além da sexualidade. O confinamento de Eros à esfera física parece análogo
à separação antagônica entre o corpo e a mente. O antagonismo começa com a
luta interna do indivíduo contra suas faculdades "inferiores": as sensuais
e apetitivas. Quando "a luta pela existência foi organizada no interesse da
dominação, a base erótica da cultura transformou-se,"[29] escreve Marcuse.
Desde a lógica aristotélica, a concepção grega de logos como essência do
Ser "fundiu-se com a idéia de uma razão ordenada, classificadora e
dominadora."[30] O logos se apresenta como lógica da dominação. E assim
permanece até Hegel, para quem o Espírito é, simultaneamente, a verdadeira
forma de ser e a verdadeira forma de pensar. O Ser é, em sua essência,
razão: semelhante estado só pode ser concebido como o do puro pensamento.
Do ponto de vista freudiano, é difícil defender a possibilidade de
convivência não-repressiva entre Logos e Eros. A diminuição do controle
social exercido sobre os impulsos sexuais – controle realizado através do
estabelecimento do modelo da sexualidade genital, heterossexual e
monogâmica – faria regredir a organização sexual a estágios pré-
civilizados. Liberta, a libido extravasaria os limites institucionalizados
em que é mantida à força. Repetidamente, Freud afirmou que a civilização
depende de relações interpessoais, mantidas às custas da inibição do
impulso sexual sublimado em atividades socialmente aceitas. Tal perspectiva
parece "confirmar a expectativa de que a libertação pulsional pode levar
somente a uma sociedade de maníacos sexuais – i.e, a nenhuma
sociedade".[31] Entretanto, o processo proposto por Marcuse envolve uma
erotização difusa e polimorfa. O que acontece no final do século XX – a
libertação da sexualidade dentro do domínio repressor das instituições de
poder, que costuma culminar em orgias sadomasoquistas – difere radicalmente
do desenvolvimento da pulsão erótica livre. A descarga sexual tem sido
usada como instrumento apropriado para regimes repressivos. Distintamente,
"falamos da auto-sublimação da sexualidade"[32], assinala Marcuse, da sua
transformação ampliada em Eros.
Em sua investida contra a dominação da estrutura pulsional levada a
cabo através da história, Marcuse ousa acenar com um modelo diferente de
organização possível, considerando que, em sua proto-história, o aparelho
psíquico era todo voltado ao princípio do prazer, e é assim que, ainda
hoje, aparece no mundo. Essa plenitude original do ego do prazer inscreve-
se indelevelmente na memória. A impossibilidade de voltar a vivê-la de modo
absoluto não deveria nos condenar à miséria mental ou física. Marcuse
mostra que o retorno da sexualidade a zonas primárias de sua natureza,
anteriores à organização que produz a primazia da função genital, romperia
esse primado e a dessexualização do corpo que o acompanha.
Biologicamente, o desenvolvimento sexual do indivíduo atinge seu
apogeu quando o primado da zona genital substitui os erotismos anteriores.
E os estágios superados persistem na organização definitiva como mecanismos
de "prazer preliminar". Segundo Ferenczi, "o fato de que o organismo se
desembaraçou das tendências pulsionais para a descarga concentrando-as no
aparelho genital aumentou consideravelmente o seu nível de eficácia e
permitiu-lhe adaptar-se mais facilmente às situações difíceis e até às
catastróficas."[33] A unificação das pulsões eróticas através do
estabelecimento da supremacia genital realiza a dessexualização do corpo,
socialmente necessária. Ferenczi deixa a nu, nesta obra citada por Marcuse,
o caráter utilitarista do processo, ao afirma que,


um ser vivo que disponha de uma função genital evoluída é capaz de
melhor adaptação às tarefas da existência, mesmo em suas atividades
não eróticas; pode protelar suas satisfações eróticas pelo tempo
necessário e suficiente para que elas não perturbem a função de
conservação. Podemos dizer, portanto, que o aparelho genital é, ao
mesmo tempo, um órgão "útil" que favorece as intenções e os objetivos
da função de realidade.[34]


Ferenczi imagina, então, um fluxo diametralmente oposto ao que
canaliza a excitação dos diversos órgãos para o aparelho genital
("genitópeto"), cuja direção é inversa: um refluxo ("genitófugo") que
difunde a libido para outros órgãos do corpo. Marcuse considera que haja
uma "tendência libidinal genitófuga" cujo movimento leva a pulsão a outras
formas de gratificação erótica. O próprio Freud admite, por exemplo, a
existência de vínculos libidinais nas relações de colaboração entre
indivíduos, que as prolongam e consolidam. Deste modo, a luta pela
existência não cancela a liberdade pulsional, mas pode ser mesmo um
instrumento de gratificação.
A estrutura pulsional é ao mesmo tempo determinação ontológica e
produto da história. O conhecimento do processo social de construção da
humanidade é uma espécie de saber arqueológico que pode iluminar a
determinação das correntes simbólicas que organizam o real. A importância
do conceito de memória na filosofia de Marcuse foi ressaltada por Jameson,
que considera a "quase platônica" valorização da memória uma das
fundamentações teóricas do pensamento deste filósofo; Mnemosyne ocuparia aí
uma posição mitopoética emblemática. "É porque nós conhecemos, no início da
vida, uma plenitude de gratificação física, porque nós conhecemos um tempo
anterior a qualquer repressão", escreve Jameson, "um tempo que precede à
separação do sujeito e de seu objeto, que a memória, mesmo a obscura e
inconsciente memória deste percurso pré-histórico na psique individual,
pode preencher esse papel profundamente terapêutico, epistemológico e mesmo
político."[35] Jameson se refere à plenitude integral experimentada por
todo ser humano na fase inicial da vida. A rememoração de um estado de
gratificação total denuncia o mundo dos fatos. Marcuse considera que, como
abertura para um real fundamental obnubilado, a rememoração tem implicações
ontológicas e epistemológicas. "Regressão assume uma função
progressiva."[36] "Rememoração é um modo de dissociar-se dos fatos dados,
um modo de 'mediação' que rompe, por rápidos momentos, o poder onipresente
destes."[37] O valor de verdade da memória repousa na sua função específica
de preservar promessas e potencialidades proscritas pelo indivíduo
civilizado, mas nunca inteiramente esquecidas "Do mito de Orfeu à novela de
Proust, felicidade e liberdade têm estado ligadas à idéia de recaptura do
tempo: o temps retrouvé. A rememoração recupera o temps perdue, que era o
tempo da gratificação",[38] considera Marcuse. A rememoração, "que
preservou tudo o que foi"[39], Er-innerung, é ir para dentro, é o contrário
da alienação. Marcuse concorda com a teoria freudiana de que Eros é movido
pela rememoração. Segundo Freud, para se determinar a direção a ser dada às
excitações, "a memória é evidentemente uma das forças determinantes e
orientadoras"[40].
Buscando brechas na ordem dominadora da sociedade unidimensional, o
filósofo percebe que uma fenda possível poderia ser indicada pelas
potências mentais que permanecem essencialmente libertas, e não submetidas
ao princípio de desempenho. Conforme Freud, o princípio de prazer não
reprimido continua prevalecendo nos mais profundos e nos mais arcaicos
processos mentais inconscientes. Contudo, porque inconscientes, eles não
podem oferecer padrões para a consciência desenvolvida. Dentre as
faculdades livres, a atividade mental que mantém o mais alto grau de
liberdade em relação ao princípio de realidade na esfera da consciência
desenvolvida é a fantasia. Nas palavras de Freud: "Com a introdução do
princípio de realidade, uma das espécies de atividade de pensamento foi
separada; ela foi liberada no teste de realidade e permaneceu subordinada
apenas ao princípio de prazer. Esta atividade é o fantasiar." [41] O ato de
elaboração da fantasia, que começa com as brincadeiras infantis e continua
como divagação, manteve-se livre do critério de realidade, é todo voltado
ao princípio do prazer. "A fantasia desempenha uma das mais decisivas
funções na estrutura mental total: liga os mais profundos níveis do
inconsciente aos mais elevados produtos da consciência (arte)".[42] A
liberdade da fantasia, bem como sua relação essencial com a filosofia, já
havia sido assinalada por Marcuse, em 1937, no texto "Filosofia e Teoria
Crítica", onde se lê que.


para preservar no presente o que ainda não está presente como meta, a
fantasia é necessária. Que a fantasia se relacione de modo essencial
com a filosofia, resulta da função que foi designada sob o título de
"imaginação" pelos filósofos, particularmente por Aristóteles e Kant.
Devido à sua capacidade única de "intuir" um objeto mesmo ausente, de
criar algo a partir do fundamento material dado do conhecimento, a
imaginação indica um elevado grau de independência, a liberdade em
meio de um mundo de não-liberdade.[43]


Por sua capacidade de, ultrapassando o presente, poder antecipar o
futuro, a fantasia definiria o homem "a partir do que ele efetivamente pode
ser amanhã."[44] Quando ela é considerada um poder cognitivo, "o pensamento
transforma-se em jogo, jeu interdit; o esprit de sérieux cede lugar à gaya
scienza, à embriaguez e ao riso."[45] Por isso talvez a fantasia é
degradada, "deixá-la livre para a construção de um mundo mais belo e mais
feliz permanece privilégio das crianças e dos loucos,"[46] afirma Marcuse.
A fantasia (imaginação) já estava reconhecida como processo de
pensamento autônomo e com valores próprios, a originalidade freudiana foi
demonstrar sua origem e conexão essencial com o princípio do prazer. Freud
percebeu que a atividade original do pensamento unificada no ego do prazer
é cindida com a introdução do princípio de realidade e uma parte é
canalizada para seu domínio, essa parte será senhora da determinação do
real, das normas e valores, como razão; a outra parte continua livre, mas
impotente e irrealista. "A razão prevalece: torna-se desagradável, mas útil
e correta; a fantasia permanece agradável, mas torna-se inútil, inverídica
– um mero jogo, divagação"[47]. Mas é a fantasia que retém as estruturas da
psique anteriores à cisão provocada pelo princípio da realidade, anteriores
ao principium individuationis, que distingue a vida do indivíduo da vida do
gênero. "A imaginação preserva a 'memória' do passado sub-histórico, quando
a vida do indivíduo era a vida do genus, a imagem da unidade imediata entre
o universal e o particular sob o domínio do princípio de prazer. Em
contraste, toda a vida subseqüente do homem é caracterizada pela destruição
de sua unidade original."[48] Aqui está a possibilidade da vinculação,
feita por Marcuse, entre a fantasia e Eros já que, para Freud, é a
sexualidade "a única função de um organismo vivo que se estende para além
do indivíduo e garante sua conexão com a espécie."[49] A união de Eros e
Fantasia cria imagens de outras formas de realidade, transcende a oposição
do particular e universal e pertence à humanidade para além do principium
individuationis. Marcuse opõe-se a Freud quando este julga que tais imagens
estão presas ao passado arcaico. A partir desta perspectiva, a idéia de um
princípio de realidade não-repressivo significaria o regresso a estágios
mentais anteriores. Para o filósofo, distintamente, as formas invocadas
pela imaginação constituem uma recusa "em esquecer o que pode ser"[50].
Contra o antagônico princípio de individuação, a fantasia reivindica o
indivíduo total unido ao gênero, e como processo mental autônomo busca
superar o antagonismo da realidade e reconciliar o indivíduo com o todo, a
felicidade com a razão. O princípio de realidade remove essa harmonia para
a utopia e a fantasia insiste que ela deve tornar-se real. "As verdades da
imaginação são realizadas, pela primeira vez, quando a própria fantasia
ganha forma, quando cria um universo de percepção e compreensão – subjetivo
e, ao mesmo tempo, objetivo. Isso ocorre na arte"[51]. Marcuse considera
que na obra de arte reaparece a harmonia reprimida entre sensualidade e
razão. A fantasia revela sua função cognitiva ao apontar para essa
harmonia, expressando um protesto contra o modus vivendi organizado pela
lógica instrumentalizada. O filósofo observa que "a metapsicologia
freudiana reinveste a imaginação de seus direitos"[52], como faculdade cujo
valor está ligado à experiência de superar a antagônica realidade. Nas
palavras de Freud,


a arte ocasiona uma reconciliação entre os dois princípios, de
maneira peculiar. Um artista é originalmente um homem que se afasta
da realidade, porque não pode concordar com a renúncia à satisfação
pulsional que ela a princípio exige, e concede a seus desejos
eróticos e ambiciosos completa liberdade na vida da fantasia.
Todavia, encontra o caminho de volta desse mundo de fantasia para a
realidade, fazendo uso de dons especiais que transformam suas
fantasias em verdades de um novo tipo [...] Mas ele só pode conseguir
isto porque outros homens sentem a mesma insatisfação, que resulta da
substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade.[53]


A arte é o mais visível "retorno do reprimido". No reino da fantasia,
"a satisfação é obtida através de ilusões, reconhecidas como tais",
assinala Freud, e, "à frente das satisfações obtidas através da fantasia
ergue-se a fruição das obras de arte", continua o pensador vienense,
chamando a atenção para o fato de que "as pessoas receptivas à influência
da arte não lhe podem atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e
consolação da vida."[54]
A arte reivindica a gratificação sensível e anula o estabelecido,
tornando-se linguagem comum a todos os homens entre os quais a barreira
colocada pelo princípio de individuação caiu. Na arte, o valor de verdade
da fantasia está "no fato de suas imagens pertencerem à humanidade, acima
do principium individuationis."[55] Marcuse lembra que, "quando Freud
enfatizou o fato fundamental de que a fantasia (imaginação) retém uma
verdade incompatível com a razão, ele estava seguindo uma longa tradição
histórica."[56] A potência cognitiva da fantasia reside em sua capacidade
de manter vivas as aspirações de realização integral. As estranhas verdades
preservadas nas lendas e na arte tramam o tecido cultural, e, ainda que
tomá-las como modelos para atitudes existenciais seja considerado loucura,
são aceitos alguns de seus símbolos. O filósofo observa que dentre os
heróis presentes na imaginação ainda está vivo o rebelde que, desafiando os
deuses, cria cultura às custas do próprio sofrimento, e assim apresenta a
idéia de produtividade através de martírio e sacrifício. "Prometeu é o
herói-arquétipo do princípio de desempenho."[57] E no mundo de Prometeu,
Pandora, o princípio feminino, é a maldição desintegradora; "a beleza da
mulher e a felicidade que ela promete são fatais no mundo de trabalho da
civilização."[58]
Marcuse encontra os símbolos míticos para outro princípio de realidade
em Orfeu e em Narciso. Em Eros e Civilização, a apresentação de Prometeu é
breve e esquemática, a de Orfeu e Narciso é rica e metafórica. Harmonizando-
se com seu objeto, o filósofo o faz presente através de os Sonetos a Orfeu,
de Rilke, Le traité du Narcise, de Gide, Narcise Parle e Cantate du
Narcise, de Valéry, entre outros. Nesses versos, os heróis louvados
apresentam imagens de fruição, do homem liberto da labuta; suas vozes são
cantos, elas remetem à experiência do mundo onde "tudo é ordem e beleza./
Luxo, calma e volúpia".[59] Os mitos de Orfeu e Narciso libertam potências
reais cujo telos é "ser apenas o que são."[60] Cabe lembrar que o orfismo,
antiga tendência religiosa da Grécia arcaica, tem como base a rememoração.
Arquétipo do poeta liberator e creator, Orfeu estabelece uma ordem sem
repressão, não através da força e sim do verbo, do ritmo, do canto.


Sempre que tange sua lira atrai tudo que há no seu mundo, tanto os
seres humanos, como os animais, os vegetais e até as pedras, que se
arrastam para ouvir os seus sons. Portanto, a imagem de Orfeu é uma
imagem profundamente erótica. É o Eros, o mágico Eros que liga todos
os prazeres e faz do mundo uma profunda unidade, que vibra ao ritmo
da música.[61]


Marcuse assinala que Orfeu enfrenta a ordem sexual repressiva: após a
morte de sua esposa Eurídice, o vate se esquiva do amor das mulheres e a
tradição clássica liga seu nome à homossexualidade. "Foi ele quem ensinou
aos povos da Trácia a transferirem o amor para os adolescentes e colherem,
antes da juventude, as flores de uma breve primavera".[62] Orfeu paga por
isso com o próprio corpo que foi dilacerado pelas mulheres trácias
enlouquecidas com sua recusa. Morta Eurídice, Orfeu se auto-erotiza e seu
erotismo "é saber, é conhecer", considera Sevcenko. "Na medida em que ele
não dá mais atenção ao mundo, este se volta contra ele", continua o
historiador, "ele arrebenta, mas as partes todas continuam com vida e a
cabeça sozinha continua cantando até o fim dos tempos."[63]
De acordo com Marcuse, a experiência órfica e narcísica do mundo nega
o que sustenta o mundo prometeico. Contra Plotino, que nas Enéadas (I, 6)
discorre sobre o mito de Narciso considerando que este se perde ao
apaixonar-se pelo reflexo de sua imagem sensível, Marcuse percebe a entrega
ao amor a si como alienação libertadora de um mundo falso, como abrigo de
um sentimento autêntico. O filósofo articula a imagem mitopoética de
Narciso vislumbrando sua própria beleza no rio do tempo com a teoria
freudiana. Em Freud, o narcisismo – investimento libidinal no próprio ego –
transforma este em objeto de amor. Em O Ego e o Id, é levantada a hipótese
de que o narcisismo seja o princípio da sublimação, mediado pelo ego. O ego
converte a libido sexual em narcísica – movimento que cria o "narcisismo
primário" – e depois lhe dá outra finalidade, outro objeto, caracterizando
o que Freud denomina "narcisismo secundário".


Sendo este o caso, então toda a sublimação começaria com a reativação
da libido narcisista, que de algum modo extravasa e se estende aos
objetos. A hipótese quase revoluciona por completo a idéia de
dessublimação: sugere um modo não repressivo de sublimação que
resulta mais de uma ampliação do que de um desvio imperativo da
libido.[64]


Mais do que apenas um outro estágio no desenvolvimento da libido, o
narcisismo reflete outra orientação em direção à realidade, uma direção que
engloba o ambiente e não simplesmente se coloca em oposição a ele. Como
tendência unificadora, "descendente direto da libido narcísica", Eros "não
é outra coisa que a libido investida no objeto [...] a fixação de uma
energia flutuante ou orgiástica em um objeto onde ela encontra sua estase
[stase]."[65] Sob a bandeira de Eros, a libido fica unificada "pelo fato
mesmo de que ela encontrou seu primeiro investimento na unidade de si [...]
Eros está marcado pelo sinete do narcisismo e, neste sentido, todas as suas
realizações já podem ser consideradas como sublimadas."[66] As imagens
órfico-narcísicas são as da recusa em aceitar a separação entre sujeito e
objeto libidinal, e podem gerar uma ordem existencial baseada no
"sentimento oceânico". A expressão é de Romain Rolland e aparece numa carta
a Freud:


Trata-se de um sentimento que ele [Romain Rolland, ik] gostaria de
designar como uma sensação de "eternidade", um sentimento de algo
ilimitado, sem fronteiras – "oceânico", por assim dizer [...] o
sentimento de um vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo
e como um todo.[67]


Freud, que diz desconhecer tal sentimento, adverte que o sentimento
oceânico deveria ser estranho ao ego porque este mantém nitidamente
demarcadas suas fronteiras em relação aos objetos, admite, entretanto, a
existência de "um estado – indiscutivelmente fora do comum, embora não
possa ser estigmatizado como patológico – em que ele [o ego, ik] não se
apresenta assim. No auge do sentimento de amor, a fronteira entre ego e
objeto ameaça desaparecer."[68] Eros se torna, portanto, veículo de união e
de libertação do princípio de individuação.


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[1] MARCUSE & DAVIS, Angela. "Talks by Angela Davis and Herbert Marcuse".
[2] MARCUSE. "Para a Crítica do Hedonismo", Cultura e Sociedade, p.173.
[3] PLATÃO. República, livro III, 415a, p.157.
[4] PLATÃO. República, livro IV, 420e, p.163. Cf.423d, p.168 e 486c-e,
p.271.
[5] MARCUSE. "Sobre o caráter afirmativo da cultura", p.94.
[6] THOMSON. Os Primeiros Filósofos, vol.II, p.93.
[7] JAMESON. "Schiller e Marcuse" em Marxismo e Forma, p.71.
[8] MARCUSE. "A note on dialectic", p.447.
[9] MARCUSE. "Comentários para uma Redefinição de Cultura";
respectivamente, p.154 e 159
[10] MARCUSE. "Sobre o caráter afirmativo da cultura", p.99.
[11] MARCUSE. "Sobre o caráter afirmativo da cultura", p.100.
[12] MARCUSE. "Sobre o caráter afirmativo da cultura", p.113 e p.127,
respectivamente.
[13] FREUD. Das Unbenhagen in der Kultur, (1930 [1929]), Gesammelte Werke,
Band 14, p.441.
[14] MARCUSE. "Sobre o caráter afirmativo da cultura", p.114.
[15] MARCUSE. "Para a Crítica do Hedonismo", p.170.
[16] MARCUSE. "Sobre o caráter afirmativo da cultura", p.115.
[17] MARCUSE. "Sobre o caráter afirmativo da cultura", p.115.
[18] MARCUSE. "Sobre o caráter afirmativo da cultura", p.115.
[19] KATZ. Herbert Marcuse and the Art of Liberation, p.102.
[20] MARCUSE. One-Dimensional Man, p.256.
[21] MARCUSE. One-Dimensional Man, p.256.
[22] MARCUSE. An Essay on Liberation, p.81.
[23] MARCUSE. An Essay on Liberation, p.7. É clara a referência à obra de
Frantz Fanon, Os Condenados da Terra (Les Damnés de la Terre, 1963). O
título do livro de Fanon foi tirado do texto original de Eugene Pottier
para L'Internationale; cf. WOODIS. New Theories of Revolution, p.175.
[24] MARCUSE. An Essay on Liberation, p.8.
[25] MARCUSE. An Essay on Liberation, p.11.
[26] MARCUSE. One-Dimensional Man, p.74.
[27] Cf. FREUD. "Trieblehre", in Abriss der Psychoanalyse, GW 17, p.176ss.
[28] BATAILLE, L'Érotisme, p.15.
[29] MARCUSE. Eros and Civilization, p.125.
[30] MARCUSE. Eros and Civilization, p.111.
[31] MARCUSE. Eros and Civilization, p.201.
[32] MARCUSE. Eros and Civilization, p.204.
[33] FERENCZI, Thalassa, p.21.
[34] FERENCZI, Thalassa, p.47.
[35] JAMESON. Marxism and Form, p.113.
[36] MARCUSE, Eros and Civilization, p.19.
[37] MARCUSE. One-Dimensional Man, p.98;
[38] MARCUSE. Eros and Civilization, p.233.
[39] MARCUSE. Eros and Civilization, p.117.
[40] FREUD. "Projeto para uma Psicologia Científica" (1951 [1895]), OC
vol.I, p.401.
[41] FREUD. "Formulação sobre os dois princípios de funcionamento mental"
(1911), OC, vol. XII, p.240.
[42] MARCUSE. Eros and Civilization, p.140.
[43] MARCUSE. "Filosofia e Teoria Crítica", p.155.
[44] MARCUSE. "Filosofia e Teoria Crítica", p.156.
[45] MARCUSE. "Love Mystified: A Critique of Norman O. Brown", in
Negations, p.228.
[46] MARCUSE. "Filosofia e Teoria Crítica", p.155.
[47] MARCUSE. Eros and Civilization, p.142.
[48] MARCUSE. Eros and Civilization, p.143.
[49] FREUD. A General Introduction to Psychoanalysis, p.358.
[50] MARCUSE. Eros and Civilization, p.148.
[51] MARCUSE. Eros and Civilization, p.143-144.
[52] MARCUSE. Eros and Civilization, p.143.
[53] FREUD. "Formulação sobre os dois princípios de funcionamento mental",
(1911), OC, vol. XII, p.242-243.
[54] FREUD. Mal-Estar na Civilização, (1930 [1929]), OC XXI, p.88.
[55] MARCUSE. Eros and Civilization, p.146.
[56] MARCUSE. Eros and Civilization, p.160.
[57] MARCUSE. Eros and Civilization, p.161.
[58] MARCUSE. Eros and Civilization, p.161.
[59] BAUDELAIRE, "O convite à viagem", in Baudelaire. Poesia Completa,
p.235.
[60] MARCUSE. Eros and Civilization, p.165.
[61] SEVCENKO. "Debate" em RIEDL. Narrativa, Ficção e História, p.322.
[62] OVÍDIO. As Metamorfoses, X, 79-83, p.253; citado em Marcuse, Eros and
Civilization, p.171.
[63] SEVCENKO. "Debate" em RIEDL. Narrativa, Ficção e História, p.323.
[64] MARCUSE, Eros and Civilization, p.169-170.
[65] LAPLANCHE. Notes sur Marcuse et la Psychanalyse, p.120. .
[66] LAPLANCHE. Notes sur Marcuse et la Psychanalyse, p.121.
[67] FREUD. Mal-Estar na Civilização, (1930 [1929]), OC vol. XXI, p.73-74.
[68] FREUD. Mal-Estar na Civilização, (1930 [1929]), OC vol. XXI, p.75.
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