EROTISMO MONOCROMÁTICO: a influência de \"50 Tons de Cinza\" na Erotika Fair

Share Embed


Descrição do Produto

EROTISMO MONOCROMÁTICO: A INFLUÊNCIA DE “50 TONS DE CINZA” NA EROTIKA FAIR

Raquel Basilone Ribeiro de Ávila1 Gabriel Zamian de Carvalho2

As pesquisas sobre mercado erótico e sexualidade no Brasil no âmbito das Ciências Sociais datam do início dos anos 2000. Essas pesquisas trazem como contribuição reflexões que remetem a um campo muito mais abrangente, envolvendo estruturas de poder que afetam e são afetadas pelas práticas nesse âmbito. Tendo o filme “50 Tons de Cinza” como um sucesso de bilheterias no início de 2015 e também considerando ser baseado em uma trilogia best seller que conta um romance sadomasoquista, o presente trabalho investiga a influência deste enquanto tema da Erotika Fair. Conhecida como a maior Feira Erótica da América Latina, é um evento que reúne atividades comerciais do mercado erótico, refletindo as principais tendências da atualidade neste ramo consistindo, por isso, um espaço importante para o estudo aqui proposto. Desta maneira, o objetivo do presente trabalho é verificar de que modo o filme e seu universo literário impactam as relações afetivas e sexuais relatadas por interlocutores. Como metodologia, foram utilizadas entrevistas qualitativas, pesquisa empírica e análise documental, nas quais se destacam para estudo: os discursos, materiais produzidos pelos lojistas e fotografias feitas durante a feira. Assim, a constatação de que o público feminino é o mais atento e interessado no tema, sabendo-se que estudos anteriores apontam as mulheres como grandes consumidoras de produtos eróticos no Brasil, torna-se necessária a problematização da categoria gênero. Para isso, são utilizados referenciais teóricos propostos pela Teoria Queer, através de reflexões relevantes para pensar o que se tem por relação erótica, mediante noções heteronormativas. Dos questionamentos propostos, também se pode destacar que, além de provocar o aumento das vendas de produtos relacionados ao filme – ainda que muitos trazendo apenas uma nova roupagem para conteúdos já conhecidos – ampliaram-se as possibilidades para as pessoas explorarem suas sexualidades. Palavras-chave: Sadomasoquismo; Erotika Fair; 50 Tons de Cinza.

1 2

Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

INTRODUÇÃO As pesquisas sobre o mercado erótico no Brasil no âmbito das Ciências Sociais datam inicio dos anos 2000, em pesquisas de autoras e autores como Regina Facchini e Sarah Machado (2013), Jorge Leite Júnior (2006), Maria Elvira Diaz-Benitez (2010) e Maria Filomena Gregori (2011), que, apesar de recentes, começam a florescer principalmente a partir dos anos 1970, com a chamada “Revolução Sexual” (LEITE JR, 2006). O termo “erotismo” advém da literatura libertina do Marquês de Sade, envolta por uma filosofia contestadora.

Junto a esse contexto, no final do

século XVIII, eclode o lado vulgar do erotismo, a pornografia, apresentando-se como uma ameaça à decência. Dentro dessa lógica vai sendo construído um binarismo entre os dois termos: “A pornografia é o erotismo dos outros” (ABREU, p. 16, 1996), assim, enquanto o erotismo é considerado arte, a pornografia é o comercio. Nesse assunto, merece atenção que a expressão “mercado erótico” seja utilizada para atividades comerciais que envolvem produtos voltados ao sexo, como filmes, fotografias, cosméticos, brinquedos, acessórios, entre outros. Afinal, lê-se nas palavras de Bourdieu: Como toda a espécie de gosto, ela une e separa: sendo o produto dos condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência, ela une todos aqueles que são o produto de condições semelhantes, mas distinguindo-os de todos os outros e a partir daquilo que tem de mais essencial, já que o gosto e o principio de tudo o que se tem, pessoas e coisas, e de tudo o que se e para os outros, daquilo que serve de base para se classificar a si mesmo e pelo qual se e classificado (BOURDIEU, p. 56, 2007).

Por isso, o estudo do mercado erótico foge da visão marxista que reduz as relações a uma abordagem economicista. Do mesmo modo, não cabe aqui retomar os estudos de erotismo associado apenas a instituições médicas e jurídicas, e sim trabalhar com as contribuições analíticas de Foucault, mas buscando uma abordagem mais contemporânea: Torna-se estratégico investigar as práticas que envolvem os erotismos, em meio a um universo que parece absolutamente central no mundo contemporâneo: o mercado. Além da constatação empírica de que esse universo é significativo para as

novas alternativas eróticas, parto do pressuposto de que ele constitui atualmente uma figura das mais paradoxais. Nesse cenário, reúnem-se experiências que alternam, de modo intrincado, esforços de normatização e também de mudança de convenções sobre sexualidade e gênero. (GREGORI, p. 59, 2011)

Nosso foco neste texto, no âmbito do mercado erótico, é o estudo da influência de “50 Tons de Cinza” nas relações eróticas dos interlocutores desta pesquisa. É importante ressaltar que não se tem como objetivo abordar a dicotomia “mercado x consumidor”, pois entendemos que “na direção inversa das visões que tendem a tomar o mercado ora como mero reflexo de demandas sociais ora como força manipuladora diante da qual o consumidor é passivo.” (GREGORI, p. 61, 2011). O local ideal que encontramos para esta pesquisa foi a Erotika Fair3. . Considerada a maior feira de produtos eróticos da América Latina. Torna-se interessante para verificar sua influência na sexualidade dos entrevistados porque agrega as tendências do mercado erótico, reunindo marcas famosas de produtos eróticos (do Brasil e do mundo), shows de dança e strip tease, sex shops e palestras (GREGORI, 2011). A feira estava aberta ao público por dois três e funcionava das 14 horas às 22 horas para o público em geral e das 10 às 14 horas para imprensa e profissionais do setor. Importante ressaltar a questão da acessibilidade na feira, em que portadores de deficiência e maiores de 65 anos não pagam a entrada. Esta é considerada a maior feira erótica da América Latina, O filme “50 Tons de Cinza” se torna importante para a discussão devido ao grande sucesso que obteve: a trilogia de livros tornou-se um best seller e seu filme homônimo é campeão de bilheteria no Brasil. Seu conteúdo erótico, que remete ao sadomasoquismo, possibilitou cogitar a

presença desta

temática na feira. Para

dar

continuidade,

é

necessário

conceituar

o

que

é

sadomasoquismo. Conhecido também por BDSM, tem sua sigla dividida em B/d (B – bondage, d – disciplina), D/s (D – dominação, s – submissão), S/m (S

3

O evento possui um site: www.erotikafair.com.br

– sadismo, m – masoquismo)4. Esses conjuntos de práticas podem, e geralmente estão conjugados de diferentes maneiras conforme diversos arranjos de relações se compõem. Dentro deste escopo, a sexualidade dos adeptos é tida como transgressora, operacionalizando prazer e dor de maneira conjunta, colocando em questão o risco, a consensualidade e o poder. Também é essencial para o desenvolvimento das ideias aqui propostas elaborar a diferença entre erotismo e pornografia, pontos que dão os tons desta história e que serão desenvolvidos ao longo do artigo. A categoria gênero aparece

como

importante

também,

não



pela

questão

de

Dominação/submissão e das relações de poderes discutidas e rediscutidas que envolvem o sadomasoquismo, mas pelo próprio perfil da maioria de consumidores do filme: as mulheres. Segundo Joan Scott (1991), “o gênero é, portanto, um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre diversas formas de interação humana”, tornando-se então, uma categoria útil para análise.

METODOLOGIA Esta pesquisa foi realizada através de métodos qualitativos de pesquisa. Foi utilizada análise documental, em que estudamos dados fornecidos pela Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e Sensual, a ABEME, sendo esta um importante fornecedor de dados por ser a única associação a defender os interesses deste setor no Brasil. Além disso, o estudo do filme “50 Tons de Cinza” foi necessário por este ser um dos focos da pesquisa. “50 Tons de Cinza” foi escolhido por ser o campeão de bilheterias nos cinemas brasileiros no primeiro semestre de 2015. Seu conteúdo erótico evidente possibilitou cogitá-lo como principal foco da Erotika Fair de 2015. A importância da Erotika Fair neste estudo está na sua proporção. Sendo a maior feira erótica da América Latina, move investidores do Brasil e do mundo, além de marcas famosas de sex shops e produtos eróticos, contando com shows e palestras e atraindo um grande público. 4

Os caracteres maiúsculo e minúsculos utilizados simbolizam as hierarquias internas da comunidade BDSM.

O contato com grande parte dos materiais foi possível devido à entrada da autora Raquel Basilone Ribeiro de Ávila no primeiro dia da feira, tendo acesso como imprensa, mediante um trabalho de fotografia para um site, em que tomou contato com os materiais e fotografou os stands. Para verificar de maneira mais específica o contato com a influência do filme nas experiências eróticas do público, foram feitas entrevistas na feira por ambos os autores, utilizando de um roteiro para guiar a conversa. Isso possibilitou ter contato com o discurso dos interlocutores a respeito do impacto do filme “50 Tons de Cinza” na feira erótica e as impressões geradas por ele. Durante a feira, a observação dos stands com produtos e as fotografias feitas auxiliaram para se constatar o peso do filme na tematização visual e da programação da feira. O efeito decorrente desta estética traz cores pretas e escuras, pela associação que mobiliza com o universo fetichista, além de imagens de acessórios como algemas, chicotes e máscaras. As entrevistas foram realizadas com 11 pessoas, estando todas na feira, procurando abarcar diferenças. Foram entrevistadas sete mulheres, três homens e uma drag queen; quatro homossexuais, seis heterossexuais e uma heteroflexível; quatro brancos, quatro negros, dois pardos e uma japonesa; nove de classe média, um de classe alta e um de classe baixa; sendo uma das mulheres cadeirante e uma praticante de BDSM5. Nela, conscientemente buscamos abarcar diferentes identidades, sendo que os números de entrevistados refletem os perfis predominantes dos frequentadores da Erotika Fair. Esta observação infelizmente não pode ser feita de forma mais abrangente através de métodos quantitativos principalmente pelo pouco tempo que tivemos disponível. Dificultou também a constatação de que o público dificilmente ficava muito tempo em um local só, havendo maior concentração apenas nos locais dos shows, dificultando a aplicação de um questionário junto ao roteiro. As entrevistas duraram de três a cinco minutos.

5

Importante ressaltar que todas as categorias utilizadas, como mulher, homem, branco, negro, etc, foram utilizadas pelos interlocutores para responder as perguntas sobre seus respectivos gêneros, sexualidades, raça/cor/etnia e classe social.

Uma questão curiosa é que, apesar de todos estarem numa feira erótica, a maioria dos interlocutores apresentou timidez e nervosismo ao realizar entrevista, principalmente na pergunta sobre a compra de algum produto na feira. A discussão entre erotismo e pornografia também se faz necessária no texto. O sadomasoquismo, por ser considerado uma sexualidade transgressiva (FOUCAULT, 1984; RUBIN, 1984; LEITE JR, 2006; GREGORI, 2014; PRECIADO,

2014),

constantemente

aparece

como

tema

de

filmes

pornográficos hardcore bizarros ou extremos (LEITE JR, 2006), mas no caso do filme “50 Tons de Cinza”, o sadomasoquismo é o eixo, embora reinterpretado. Para os estudos sobre mercado erótico e sadomasoquismo, utilizaremos autores e autoras brasileiros de estudos de gênero e sexualidade, teóricos Queer, tanto brasileiros quanto estrangeiros, e autores clássicos da teoria social contemporânea, como Foucault e Bourdieu.

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E DISCUSSÃO Para se discutir sobre mercado erótico no Brasil, é necessário falar sobre a Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico e Sensual, a ABEME, fundada em 2002 e sendo a única entidade neste setor econômico do país. Ela representa a força produtiva de 11 mil empresas instaladas no Brasil, gerando direta e indiretamente 100 mil empregos, o que gera a fatura de um bilhão de reais anualmente (ABEME, 2015). Segundo a ABEME (2015), o setor sensual e erótico brasileiro tem destaque no cenário mundial, não apenas pela grandiosidade e inovação, mas pela criatividade, principalmente no setor de cosmética sensual. A Associação, além de fazer diversas pesquisas quantitativas sobre vendas e tendências no mercado erótico brasileiro, ainda busca defender os interesses das empresas deste setor junto a órgãos governamentais e entidades nacionais e internacionais. O respeito aos empresários e o mercado e rótico no Brasil representa sua luta (ABEME, 2015).

Apesar dos números vultosos fornecidos pela ABEME, Gregori (2011) nos fornece argumentos para se olhar com cautela estas informações: Não é segredo que parte considerável de lojas opera sem muito rigor com o fisco e corre solta a reclamação em diferentes ramos que, se todas as regras fossem seguidas e as taxas pagas, os negócios seriam economicamente inviáveis. Não é, pois, de estranhar encontrarmos no domínio do mercado erótico uma imprecisão, até – a primeira vista – calculada: quanto mais vultosos os números, maiores as chances de novos empreendedores. E é isso mesmo que se nota ao pesquisar o campo. Todas as pessoas entrevistadas que abriram o negócio, sobretudo, no terceiro nicho (o mais rico), alegam terem sido estimuladas por dados de pesquisa fornecidos pela ABEME. Mesmo sem instrumentos adequados para apurar com maior rigor, a investigação nos moldes qualitativos trouxe indícios que contestam a grandiloquência desses números e sugerem alguns parâmetros para desconfiar deles (GREGORI, p. 65-55, 2011).

Tratando-os com cuidado, mesmo que estes dados da ABEME sejam imprecisos, a importância deles reside em virem da única Associação que lida com o mercado erótico no Brasil. É, através de números que busca defender seus interesses e estimular os investimentos nesta área, como é possível ver no próprio texto da ABEME citado (2015). 50 Tons de Cinza” é um filme baseado na trilogia best seller, na qual uma jovem jornalista, Anastasia Steele mantém uma relação com um rico empresário, Christian Grey. Neste relacionamento, Grey afirma sentir prazer de forma diferente, em proporcionar dor, de forma consensual, em Steele. Assim, no filme e no livro há uma referência ao prazer sadomasoquista, em que Christian Grey é um sádico Dominador, que deseja ter relações com Anastasia Steele desde que ela concorde com todas as vontades dele. Aparecem no filme materiais típicos do universo sadomasoquista e fetichista, como os chicotes e mobiliário. O filme foi o campeão de bilheteria no Brasil, evidenciando que o aumento de venda de produtos eróticos com a temática do filme e o sucesso no cinema são diretamente proporcionais. Segundo dados da ABEME (2015), houve um aumento de venda dos produtos sado/fetichistas após o lançamento do livro, mas o maior boom foi depois do lançamento do filme em 2015.

Seguindo estes dados, o mercado erótico se tornou para nós um assunto de grande importância enquanto estudo nas Ciências Sociais no campo da sexualidade, gênero e mercado erótico. A presença do filme na feira estava evidente: vários stands com imagens do “50 Tons de Cinza”6, produtos tematizados, show com performance do Mr. Grey (o protagonista do filme), palestras que tratavam sobre sadomasoquismo, sendo que uma delas teve participação de praticantes como o Senhor WZ, La Mandala, Domme Sakrador e sua submissa cathy, apresentações de shibari com Toshi-San e fetichistas vestindo roupas de látex. A frequência da Erotika Fair, conforme observado nos três dias do evento e nas entrevistas é pautada por um importante dado – quem a frequenta pertence à classe média ou alta. O preço do ingresso já na entrada “seleciona” o acesso apenas de quem pode pagar o valor, R$50,00, que apenas dá direito às atrações do evento ligadas ao palco, sendo todas as demais pagas separadamente. Ou seja, estamos falando de pessoas privilegiadas por, pelo menos capital financeiro, no sentido cunhado por Bourdieu: Os poderes sociais fundamentais são: em primeiro lugar o capital econômico, em suas diversas formas; em segundo lugar o capital cultural, ou melhor, o capital informacional também em suas diversas formas; em terceiro lugar, duas formas de capital que estão altamente correlacionadas: o capital social, que consiste de recursos baseados em contatos e participação em grupos e o capital simbólico que é a forma que os diferentes tipos de capital toma uma vez percebidos e reconhecidos como legítimos. (BOURDIEU, P. 1987. p.4)

Tomar como ponto de partida essa constatação permite relacionar o tema escolhido, 50 Tons de Cinza, ao grande sucesso obtido pelo filme nos cinemas, pois, como já mostrado neste texto, a ABEME (2015) baseia suas ações em pesquisas com consumidores, previamente detectados em sua maioria entre o público feminino da classe média. Um dos pontos bastante exaltados sobre a Erotika Fair entre as pessoas entrevistadas foi a diversidade agregada. Merece destaque a quantidade de cadeirantes presentes, sendo que um dos espaços da feira foi dedicado à

6

Imagem 01.

exposição de fotografias de deficientes. A Entrevistada 01, sendo dessa condição, mostrou-se bastante animada com essa movimentação. Ao contrário dela, a Entrevistada 02, cujo repertório de práticas eróticas engloba o BDSM, se mostrou bastante decepcionada com a feira, declarando: Entrevistada 02: “É uma feira, no meu ponto de vista, muito “café com leite”, muito heterossexual e muito “papai-e-mamãe”, assim, não tem muita coisa no lado de fetiche, não tem muita coisa diferente. Acho que é uma feira bem hetero e café com leite”.

Embora nem todas as pessoas entrevistadas tenham lido o livro ou assistido ao filme, todas já haviam ouvido falar dele e associaram “50 Tons de Cinza” ao contexto erótico. Tal fica evidente quando a Entrevistada 04 destaca: Entrevistada 04: “Quem leu o livro ou ouviu falar, quem foi assistir o filme ouviu falar, é impressionante quando você fala “50 Tons de Cinza” todo mundo já tira uma impressão, já diz “sei o que você está falando”.”

O fato do filme “50 Tons de Cinza” ter repercussão, com unanimidade, entre as mulheres pode parcialmente explicar seu sucesso. Afinal, a repercussão é verificada entre quem consome o livro e filme através de comentários sobre o assunto entre si e com quem não teve acesso direto ao produto. Tal polêmica, em alguns casos, torna-se curiosidade, e desejo de acesso a esse universo (das conversas e da história) como declara as Entrevistadas 08 e 06: Entrevistada 08: “A minha opinião é que é bem interessante, porque como gera muita polêmica, tem gente que fala que é bom, tem gente que fala que não é bom, eu fico curiosa de assistir, pra ver como que é mesmo realmente.” E também a Entrevistada 06: “Eu até vou ver o filme por curiosidade e para acompanhar as pessoas, porque eu não achei, assim, tanta coisa no filme e nem no livro”.

Essa curiosidade atiçou principalmente as interlocutoras que se declararam mulheres. Além das entrevistas, a pesquisa da ABEME (2015) também identificou que as mulheres são mais “audaciosas” em suas compras eróticas, consumindo excitantes, lingeries e vibradores, enquanto a compra masculina se foca em produtos que são diretamente ligados ao tamanho do pênis. Tanto nesta pesquisa, quanto a realizada pela ABEME, as mulheres buscam novos horizontes para suas relações sexuais.

A questão de gênero se mostra importante para as articilações intelectuais daí decorrentes. Butler (2001) traz um importante conceito, a performatividade, para o estudo de reiterações de normas apreendida socialmente, sendo que: A performatividade não é, assim, um “ato” singular, pois ela é sempre uma reiteração de uma norma ou conjunto de normas. E na medida em que ela adquire o status de ato no presente, ela oculta ou dissimula as convenções das quais ela é uma repetição. Além disso, esse ato não é primariamente teatral; de fato, sua aparente teatralidade é produzida na medida em que sua historicidade permanece dissimulada (e, inversamente, sua teatralidade ganha uma certa inevitabilidade, dada a impossibilidade de uma plena revelação de sua historicidade. (BUTLER, p.167, 2001)

O grande interesse feminino por “50 Tons de Cinza” está associado diretamente ao personagem Christian Grey enquanto imagem e personificação de poder e sedução. O Entrevistado 03, ao ser perguntado sobre as impressões do que ouviu falar a respeito do livro e filme (mesmo não tendo lido ou assistido): Entrevistado 03: “Que é bom, que ele [Christian Gray] é seduzente, que ele seduz a mulher”.

E prossegue, ao relatar um show do palco da feira em que um dos strippers faz este papel: Entrevistado 03: “Ah, ele é belíssimo, é gostoso, seduzente, a dança dele é interessante, ele seduz as meninas no palco e elas acreditam naquilo, entram nessa fantasia, isso realmente é muito interessante. [...] ele seduz diferente, tem um olhar diferente, dança diferente, ele sabe centralizar a mulher no momento do desejo ali que estão os dois”.

Na apresentação, o stripper que o representa inicia sua performance primeiramente com roupa social, como referência de um típico empresário. Em seguida, conforme vai se despindo, aparecem roupas fetichistas, no caso, um arreio e uma sunga preta, munido de acessórios que utiliza com mulheres da plateia que se dispõe a subir no palco. Este show é tido como um dos ápices do evento e reúne uma multidão de expectadores7.

7

Imagem 02.

Os aspectos do personagem Mr. Grey enquanto protótipo de poder, na história, estão representados na condição econômica e social que ele ocupa. Essa construção de corpo depende de uma inscrição que está ligada a vários elementos, sobre os quais diria Bourdieu: “Assim, o corpo percebido é duplamente determinado socialmente. Por um lado ele é, até naquilo que parece mais natural (seu volume, seu talhe, seu peso, sua musculatura, etc) um produto social, que depende de suas condições sociais de produção, através de diversas mediações, tais como as condições de trabalho (que abrangem as deformações e as doenças profissionais por ele geradas) e os hábitos alimentares.” (BOURDIEU, p. 80, 2007)

E prossegue a reflexão: A definição de um cargo, sobretudo de autoridade, inclui todo tipo de capacitações e aptidões sexualmente conotadas: se tantas posições dificilmente são ocupadas por mulheres é porque elas são talhadas sob medida para homens cuja virilidade mesma se construiu como oposta às mulheres tais como elas são hoje. (BOURDIEU, P. 78, 2007)

Disso poderíamos depreender que a submissão da personagem feminina,

Anastasia,

tem

continuidade

com

sua

posição

social

de

subalternidade em relação a ele, marcando um exemplo da dominação masculina descrita por Bourdieu (2007) e a típica crítica das teóricas do patriarcado como Mary O’Brien (1981). No entanto, entregar-se a uma relação sadomasoquista implica em pautar-se principalmente no prazer e em se ancorar na tríade SSC (são, seguro e consensual), pois para uma relação ser considerada BDSM e, portanto, não abusiva, consentimento é um fator indispensável que marca esse limite. Tais bases continuam relevantes, ainda que esse conceito mereça as devidas ponderações, muito bem pontuadas por Gregori (2014) em um texto no qual busca traçar uma breve bibliografia dos estudos sobre sexualidade na última década. Ela afirma:

Quer dizer, o problemático do consentimento está ancorado na complexidade da definição do sujeito e de sua vulnerabilidade enquanto tal, ou seja, se ele é capaz de externar de modo consciente o seu consentimento. Assim, todos os sujeitos que de algum modo tangenciam posições de vulnerabilidade estão numa situação em que o consentimento (dizem algumas teorias) não

pode ser presumido [...] Ainda que os marcadores de diferença sexual não possam ser considerados como critério para posicionar o dominante ou o submisso nessas relações, é preciso admitir que as tensões de gênero permanecem atuantes. Não se trata de uma operação de inversão que irá garantir a transgressão, como erroneamente imaginou Deleuze ao acentuar que a posição de dominação deveria ser ocupada por uma mulher. Esse não é o elemento inovador, até porque no cenário SM não existe sequer a preponderância de um dos sexos no lugar da submissão. [...] Assim, o que marca em termos de gênero as dissimetrias de poder é acionado, produzindo um efeito quase caricatural. As tensões são escrupulosamente ativadas como para afastar a verossimilhança, expondo a armação contingente que trama o poder. (GREGORI, p. , 2014)

Amplamente associado com uma certa liberação sexual feminina, a Entrevistada 10 declara: Entrevistada 10: Meu, esse filme revolucionou a vida do mundo. O livro já tinha né, por mais que ele seja ruim, muita gente começou a ter mais liberdade sexual por causa dele, eu vi amigas minhas que não falavam de sexo começando a se questionar porque tinham lido o livro e estavam “nossa, você já fez isso aqui?”, são coisas que eu acho bem normais, o filme não retrata nenhum absurdo, mas as pessoas tinham muito pudor, não só de fazer, mas como de falar sobre isso, então ele trouxe muito mais liberdade.

Tal interesse feminino lido como autoconhecimento, valorização do prazer e liberação sexual são já fruto de épocas anteriores. Isso é constatado por Facchini e Machado (2013) ao relatarem a trajetória da autora e jornalista Wilma Azevedo, em um texto sobre sadomasoquismo erótico e BDSM no contexto brasileiro de pós-redemocratização (FACCHINI; MACHADO, 2013)8. Por outro lado, no filme é apresentado um casal heterossexual, branco e de condições sócio-econômicas favorecidas, o que nada traz de transgressor. Do mesmo modo, os produtos vendidos com tal rotulação nem sempre trazem alguma modificação de conteúdo que se adeque ao conceito sadomasoquista, sendo apenas uma embalagem estetizada nesses moldes9. Sobre a heteronormatividade, Preciado (2014) diz: A tecnologia social heteronormativa (esse conjunto de instituições tanto linguísticas como médicas ou domésticas que produzem constantemente corpos-traços e corpos-mulher) pode ser 8 9

Imagem 03. Imagem 04.

caracterizada como uma máquina de produção ontológica que funciona mediante a invocação performativa do sujeito como corpo sexuado (PRECIADO, p. 28, 2014).

Em janeiro de 2015 a Associação aplicou um questionário que teve “50 Tons de Cinza” como tema. Nos resultados, os produtos que possuíam a temática deste filme figuraram com grande destaque nas vendas, sendo o principal motivo para as compras o “apimentar a relação”. Para estes consumidores, a busca é por fetiches e fantasias sexuais afim de aumentar a excitação e o prazer. As vendas dos produtos na temática fetichista e sadomasoquista tiveram crescimento de 50%10. Embora nem todos entrevistados mencionem “sadomasoquismo” ou BDSM, algumas pessoas classificam a história mediante uma gradação de “picante”/ pesado ou leve, comparando a outras literaturas que já tenham feito. Como exemplo, a Entrevistada 06 comparou-o à série de livros populares chamada “Sabrina”. Sendo assim, o discurso sobre o tema aparece mediado pela experiência erótica de cada um(a), seja por práticas, seja por outras leituras e filmes. A Entrevistada 02, por exemplo, é fetichista e praticante de shibari e traz uma visão bastante específica sobre a presença de “50 Tons de Cinza” no evento: Entrevistada 02: “Por um lado, tem um lado positivo de estar presente porque começa a despertar em algumas pessoas o sadomasoquismo, o fetiche, então tem alguns estandes que está focando bem o “50 Tons”, as palestras, o tempo todo estou ouvindo falando que “ah, 50 Tons de Cinza”, “o Christian Gray está na feira”, está bem presente e legal que aborda esta questão que as pessoas possam pelo menos começar a saber o que é, mas eu acho que de uma forma negativa, porque quem leu o livro talvez vai ter uma impressão muito ruim sobre o que é sadomasoquismo e BDSM, mas pelo menos já é alguma coisa, já é um começo.”

Tudo isso compõe a opinião sobre a influência do filme na feira, e mostra, em algumas ocasiões, a vontade por novas situações que remetam às vivenciadas pelas personagens daquele universo. Como diz a Entrevistada 04 quando indagada sobre o conjunto de instrumentos observados no livro como

10

Imagem 05.

chicotes e máscaras: “Vai muito da imaginação, aonde vai e também da expressão que cada um permite ter.”11. Portanto, também fica claro que o desejo depende de uma permissão, de um julgamento moral. A sexualidade, ainda que possa estar no plano da imaginação, é regulada como um dispositivo histórico: A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder (FOUCAULT, p. 116-117, 1989).

As opiniões não são aleatoriamente adquiridas, mas fazem parte de um conjunto, no qual o livro, ou filme, ou produto a ele associado são apenas um elemento. Não esfacelar a condição de fantasia do universo proposto no filme/livro é crucial para compreender de maneira mais abrangente as relações. Portanto, resumir o entendimento ao relaxamento das condições que um filme pornô sadomasoquista traria para tornar palatáveis alguns elementos deles, mesclando romantismo e amenizando a condição estética com erotismo não basta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O que faz querer ver “50 Tons de Cinza”? O conteúdo erótico e abertura de novas possibilidades de se buscar prazer. A opinião sobre a qualidade do filme varia entre os entrevistados, indo de “bom” a “ruim”. Apesar disso, todos consideram que há no filme conteúdo erótico (para alguns, sadomasoquista) e que abre novos caminhos para explorar o prazer, ainda que este esteja muito ligado ao sexo. Neste caso, as mulheres são o principal grupo que buscam experiências, mostrando maior interesse pelo conteúdo do filme e do livro que os homens e a drag queen entrevistados. O gênero aparece nesse caso como o principal agenciador das experiências.

11

Imagem 06.

As práticas sadomasoquistas não são separadas do sexo, mas são consideradas como algo que “apimenta” a relação. Assim, para que se torne palatável ao grande público, são esvaziadas parte das características do sadomasoquismo, que é este prazer descentrado das zonas consideradas erógenas, os genitais, e que busca a erotização total do corpo (PRECIADO, 2014). Neste ponto, pode-se considerar que o sadomasoquismo sai do campo da pornografia hardcore bizarra e se torna erótico, partindo da distinção erotismo e pornografia (ABREU, 1998). Tais constatações remetem a um estudo recente de Leite Jr (2014). Nele, a pornografia é comparada a um zumbi, em que seu corpo é obsceno, e este “devora” temas comuns do cotidiano e transforma seu conteúdo, transformando

em

“zumbi”

(pornografia).

Dando

materialidade

às

considerações, pode-se perguntar: quem devora o “zumbi”? O filme “50 Tons de Cinza” adapta uma temática presente na pornografia bizarra e apazigua seu teor extremista. Mesmo que de um lado o conteúdo extremamente transgressivo do sadomasoquismo seja controlado, por outro, ainda traz a possibilidade de explorar novos prazeres e enfatiza um dos pilares sadomasoquistas, o SSC. Assim, apesar do filme “50 Tons de Cinza” esvaziar certos aspectos que caracterizam o sadomasoquismo enquanto uma sexualidade transgressiva, ele auxilia na legitimação destas práticas, conjugando-as com a ideia do amor romântico, burguês e ocidental (LEITE JR, 2006), fazendo com que esta forma de sentir prazer se torne uma possibilidade para o público explorar e se descobrir. Como discurso político, a citação do contrato de consensualidade é um ponto a favor da legitimação das práticas sadomasoquistas como despatologização de suas práticas12.

12

Importante fazer um adendo: apesar do contrato, em uma das cenas do filme, Grey utiliza o chicote para bater na barriga de Anastasia. Isto não é recomendável no meio sadomasoquista, pois como a barriga é uma região desprotegida por não haver ossos ou muito músculo, um spank nesta região pode ocasionar ferimentos internos, colocando a questão da segurança do submisso em risco. O sadomasoquismo busca utilizar da dor para proporcionar prazer sem causar ferimentos graves que coloquem a vida da pessoa em perigo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABEME. Pressrelease 2015. São Paulo, 2015. ABREU, Nuno César. O Olhar pornô. Campinas: Mercado das Letras, 1996. BOURDIEU, Pierre. A Distinção: critica social do julgamento. Tradução Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007. ________________. A Dominação Masculina. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica Editora, p. 151-172. 2001. DIAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira. Nas redes do sexo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2010. FACCHINI, R.; MACHADO, S. R. Do sadomasoquismo erótico ao BDSM: discursos de legitimação, direitos sexuais e convenções sociais sobre gênero e sexualidade no contexto brasileiro pós-redemocratização. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 10, 2013, Florianópolis. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10: desadios atuais dos feminismos: anais eletrônicos. Florianópolis: UFSC, 2013. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal. 1989. ________________. Sexo, poder e a política da identidade. Entrevista com J. O’Higgins, traduzida por Wanderson Flor do Nascimento a partir de The Advocate, nº 400, p. 26-58, 1984. Disponível em: www.filoesco.unb.br/foucault. GREGORI, M. F. Práticas eróticas e limites da sexualidade: contribuições de estudos recentes. Cadernos Pagu (UNICAMP. Impresso), v. 1, p. 47-74, 2014.

______________. Usos de sex toys: a circulação erótica entre objetos e pessoas. Mana (UFRJ. Impresso), v. 17, p. 313-336, 2011. JAMES, E.L. Cinquenta Tons de Cinza. Pegasus Lançamentos. Disponível em: http://www.pdflivros.com/2014/11/trilogia-50-tons-de-cinza.html. 11 de maio de 2015. LEITE JR, Jorge. A pornografia é um morto-vivo? Crítica Cultural – Critic, Palhoça, SC, v. 9, n. 2, p. 179-195, jul./dez. 2014. ______________. Das maravilhas e prodígios sexuais: A pornografia bizarra como entretenimento. São Paulo: Fapesp-Annablume Editora. 2006. O’BRIEN, Mary. The Politics of Reproduction. London, p. 8-15, 46. 1981. PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014. RUBIN, Gayle. Pensando sobre sexo: Notas para uma teoria radical da política da sexualidade. Tradução de Felipe Bruno Martins Fernandes. Revisão

de

Miriam

Pillar

Grossi.

1984.

Disponível

em:

http://www.miriamgrossi.cfh.prof.ufsc.br/pdf/gaylerubin.pdf SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. (Trad. Christine Rufino Dabat e Maria Betânia Ávila). Recife: SOS Corpo, 1991.

FONTES UTILIZADAS CINQUENTA TONS DE CINZA. Direção: Sam Taylor-Johnson. Fotografia: Seamus McGarvey. 123 minutos, colorido. Acesso em 04 de março de 2015. 'Cinquenta tons de cinza' atrai 500 mil na estreia no Brasil, diz distribuidora.

Disponível

em

http://g1.globo.com/pop-

arte/cinema/noticia/2015/02/cinquenta-tons-de-cinza-atrai-500-mil-na-estreiano-brasil-diz-distribuidora.html. Acesso em 11 de maio de 2015.

ANEXOS

Imagem 01.

Imagem 02.

Imagem 03.

Imagem 04.

Imagem 05.

Imagem 06.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.