Esboço de uma composição concretista para H.Campos

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Esboço de uma composição concretista para H.Campos Silvio Ferraz

Encontrei com Haroldo de Campos poucas vezes. Uma na fila do consulado francês, quando ainda era necessário visto para entrar na França, isso em 1994 e outra alguns anos antes, em um concerto do Festival Música Nova no Instituto Goethe de São Paulo, isso talvez em 1991 ou 1992. Da segunda vez, apenas o ouvi lendo um de seus longos trechos de Galaxias, da primeira conversamos rapidamente quando falamos algumas vezes no nome de Gilberto Mendes, Willy Correia de Oliveira e Pierre Boulez. Se esses dois encontros pessoais não tiveram significado nenhum, nem para a minha vida, nem para a dele, alguns anos antes, no entanto, um outro tipo de encontro tinha sido mais importante, ao menos para mim, o único que soube deste encontro. Em meados de 1979 me lancei em um projeto composicional, o úiltimo que desenvolvi dentro da estética composicional concretista. Na classe de composição de Willy Correia de Oliveira mais liamos Haroldo e Augusto do que estudavamos as obras importantes de repertório musical do séc.XX. De um modo geral, o paideuma campos-poundiano era letra obrigatória àqueles que pretendiam seguir escrevendo música vinculada à vangüarda paulistana, embora Willy fosse um pouco avesso aos escritos de John Cage que líamos traduzido por Rogério Duprat na revista Através. Muitos dos jovens compositores da época tinham sempre sob o braço um exemplar de Metalinguagem e de O Ideograma. Os dois livros de Haroldo de Campos apresentavam duas dimensões da composição, musical, poética, da prosa, em suma, qualquer tipo de composição. Em Metalinguagem o problema da referencialidade, sintática ou semântica e a questão da tradução intersemiótica; em O Ideograma, o problema da montagem, da contrução, da justaposição de elementos. Em ambos, a importância de se compreender a estrutura daquilo como que se queria trabalhar, e esta estrutura estaria sempre vinculada aos aspectos da materialidade do som e das imagens. Munido desses dois livros e mais alguns artigos esparsos dos irmãos Campos e do próprio Willy Correia de Oliveira, que via um relejoeiro em todo compositor que admirava, encontrei quase que por acaso os Esboços para uma Nekuia de Haroldo de Campos, poema publicado na revista Através 1. Como em muitos dos poemas concretos estavam alí diversos elementos sugestivos para a composição musical: a disposição espacial, a sonoridade sibilante das palavras, as vogais reiteradas, as palavras dispersas e isoladas em pequenas constelações. Tomei por tema as páginas 3 e 4; dois esboços ou um esboço só, ou mais de um esboço – sendo cada constelação um esboço.

dois corpos

o

AMOR

estátua áurea

crisálidas

degolada

ex

nos lençóis

ar pulsam crisólitos jorro!

chuva de ouro

ENSOLARA se encorpam num o CORPO canibal

um foco de vermelhos

Fig. 1- Haroldo de Campos. Esboço para uma Nékuia, 19741

O número de leituras estruturais, é claro, é quase que infindável, todas as contelações se conectam. O poema, sendo espacial, não refere nehuma leitura linear, de tempo linear, e, se há linearidade, deveria ser pensada como sobreposição de linhas, a ponto de a linha se desfazer: “o amor ensolara o corpo canibal”; “dois corpos – estátua áurea degolada nos lençóis – se encorpam num jorro!”; “chuva de ouro, um foco de vermelho”; “ar: pulsam crisólitos”; “crisalidas expulsam crisólitos”; e assim vai. Reduzir tudo a linhas, sobrepô-las em vozes destinadas a cantores, fixar tudo numa partitura tradicional. A tarefa, pensada assim, não parecia difícil. Era só prever algumas boas combinatórias, grafá-las, distinguí-las com grupos de alturas específicas, ou mesmo timbres vocais específicos (vozes femininas para as constelações curtas, vozes maculinas para as constelações longas; sons anasalados, sussurros, vozes ofegantes, voz forte, voz falada etc, serviriam facilmente para distinguir alguns siginificados como “o brilho de ensolara”, “dois corpor pulsam”, “num jorro!”. Uma série de relações fáceis de diretas que rapidamente desfariam o problema, e desfariam a própria graça do poema: a distribuição espacial, a não linearidade, as combinatórias soltas. Uma solução fácil desfaria mais do que rapidamente toda a graça da leitura, de as combinatórias acontecerem ou não, de não apenas as boas combinatórias sobreviverem, mas de sobrevirem também – vez ou outra – aquelas que talvez não tivessem sentido nenhum: “se encorpam ensolara”, “crisálidas ex canibal corpo”.

1

transcrição aproximada do poema publicado em Através 1 (São Paulo: Duas Cidades, s/d, p. 40-41.

Frente a todas essas possibilidades combinatória de palavras, a primeira saída foi a de redesenhar o poema refazendo o quadro de possíveis combinações, não mais no nível das palavras, mas dos fonemas que as compõem. A matriz então foi a dos mesósticos de John Cage, ampliando letras que se repetem, acoplando fonemas paralelos, assim por diante para depois, redesenhar a disposição espacial do poema original e encontrar nela uma possível disposição para a espacialização das vozes do coral. E assim, conforme o poema, ir aproximando cada vez mais a leitura musical da não linearidade espacial contida no poema, ou seja, encontrar uma temporalidade na espacialidade do poema.

Fig.2 – reescritura de Nékuia em mesosticos.

Fig. 3 – leitura espacial do poema

Vale aqui lembrar que a questão do espaço foi, juntamente com a descoberta do som (das sonoridades, dos “objets sonores”conforme definiu o compositor Pierre Schaeffer) lugar das grandes invenções da música do pós-guerras. Tirou-se a música do tempo para lançá-la no espaço, lugar apropriado para transformar a música em em escultura; para tornar sensível uma música de proporções e uma série de invenções mais atadas ao desenho da partitura do que à escuta rítmica ou melódia. O poema de Haroldo tinha das duas dimensões necessárias a este modo de invenção.De um lado as palavras espalhadas pelo papel, de outro as palavras conectadas por suas unidades elementares, os monemas e os fomemas. Tudo relacionado em um forma de eco, de reverberação. Uma palavra ressoando dentro da outra, como um som que projetado em uma sala difunde-se pelos cantos desta sala de modos os mais diversos. A partir daí forjou-se então uma imagem: o jogo do poema poderia ser simplesmente o de uma palavra gritada que teria ecoado ou reverberado de maneiras tão distintas que geraria outras palavras:ecos e reverberações das sonoridades, ecos e reverberações de significados. Submeter todo este mundo de leituras a uma só partitura seria perder quase que toda a potência do poema. Reduzir à partitura seria simplesmente cumprir a determinação do tradutor-traidor, mas do tradutor-redutor. De tornar o encontro com o poema em um mal encontro e de reduzir de um modo drástico toda aquela potência que se revelava nas leituras. Escolher uma pequena linha, seguir esta linha, mas este era o caminho mais fácil e para concretizá-lo bastaria aplicar as fórmulas já empregadas por Willy Correia de

Oliveira e Gilberto Mendes em diversas de suas transduções dos poemas de Augusto, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, e desfazer-se daquilo que era um desafio para se compor. Daí ter optado desde os primeiros rascunhos a compor uma peça que fosse como um móbile. A própria partitura deveria conter uma dimensão de ser remodulável a cada performance, como a leitura se modula a cada vez. Mas mesmo assim, isto não suprimiria a linearidade. Quando a peça está sendo tocada, para quem ouve tanto faz se a partitura é assim ou assado. A saída foi encontrada de certo modo na espacialização da leitura do poema no papel. O poema não foi outrora simplesmente espacializado em Mallarmé, a própria leitura foi espacializada. O próprio encontro com os sinais gráficos tornou-se não linear. A resposta mais simples está na concepção de uma “ars combinatoria” tão aclamada pelos compositores serialistas italianos, ligados a Bruno Maderna e Luigi Nono. Uma “ars combinatoria”da escuta permitiria não apenas traduzir o poema em música, mas resgatar uma potência de leitura poema em uma potência de escuta em uma música. Porém, a partir deste ponto o trabalho tornou-se maior do que se poderia imaginar, razão pela aqual a composição da peça nunca foi concluída. Cada uma das palavras foi analisada segundo seus formantes: seus fonemas e monemas. Posteriormente isoladas em cartelas. Nas cartelas, as palavras foram escritas primeiro isoladas, cada palavra ou fragmento de palavra em uma cartela; depois reunidas em grupos de afinidades ou disparidades, pela sonoridade ou pelo significado (aureaouro; aurea-crisólito; degolada-vermelho; degolada-canibal; lido-lada; lada-lito; aureajorro; ar-outro; canibal-estátua; aurea-canibal; etc). Para cada cartela, duas articulações, ou seja, duas partituras relativas a movimentação dos cantores pelo palco. Junto a indicação de movimento, a velocidade do movimento: rápido, lento. Para cada fonema foi definido um campo de notas musicais (de altura não definida)2 relacionadas à estrutura espectral da vogal correspondente ao fonema segundo um tabela simples extraída de análise das resultantes sonoras obtidas pelas variações da técnica vocal dos cantores da antiga República Popular de Touvan. A tabela para tal transposição foi tomada de empréstimo da partitura de Stimmung de Karlheniz Stockhausen. Um material arbitrário mas com função bem clara dentro da estrutura da música como tradução da estrutura sonora do poema: as passagens melódicas ecoariam entre si, mas como pequenas variáveis, ressoando por sua vez as próprias vogais. Situações distintas de sorteio das cartelas determinariam se o trecho seria intercalado ou não por formas de articulação como: gritado, suspirado forte, ofegante, sussurrado, murmurado, ou um simples canto liso sem alterações.

2

Cada cantos cantaria a frase melódica escrita a partir da altura que lhe viesse no momento da performance; mais grave, mais agudo, muito grave, muito agudo, mas sempre a mesma melodia.

Fig.4 – trechos de cartelas onde se lê a relação intervalar deduzida de leitura espectral das vogais, associadas às palavras e fonemas do poema de Haroldo.

Como todo projeto nunca segue emlinha reta, o espaço do poema foi simplificado em seis pontos pelos quais estariam distribuídas as cartelas, segundo familias de palavras e sonoridades:

Fig. 5 – Famílias de palavras e sua distribuição no espaço de performance.

E como todo projeto toma para si o seu próprio desenvolvimento, as palavras começaram a se agrupar pela possibilidade de movimentação dos cantores no palco. Assim, aquele que saísse do ponto A para ir ao ponto F deveria ter ao menos alguma palavra que se relacionasse por eco ou reverberacão entre as palavras dos dois grupos. Ainda assim, as cartelas deveriam prever o relacionamento das palavras, com o que uma das cartelas relacionaria as palavras AMOR-CORPO-ENSOLARA formando com elas uma grande linha continua a ser cantada concomitantemente por todos os espaços. Cartelas definidas, os espaços definidos, o movimento de um para o outro espaço desenhado, o que seria exatamente a peça e como a escuta estaria prevista nela? O espaço para o espetáculo deveria ser um grande galpão separando público e cantores em dois ou mais pisos de níveis distintos. Os cantores em um nível mais alto - seis tablados interligados por pontes -, e o primeiro piso reservado ao público, que poderia então “ler” a música, transitando livremente por entre os grupos, se posicionando a cada momento de uma maneira distinta. Assim como o poema a peça não teria começo nem fim, seria contínua, estaria aparentemente sempre alí. Não há uma direcionalidade nas cartelas, uma não conduz à outra e a ausência de uma ou outra não altera em nada o resultado geral. O tempo se foi assim como a linha da leitura sobre o papel. Tudo se comportaria como uma grande escultura sonora pela qual o ouvinte-viajante passearia interligando o que bem entendesse, ouvindo ora um grupo, ora outro, ora um movimento; de perto, de longe, andanto junto com um cantor que se locomove de um ponto a outro etc. Tudo como quem lê. Se para os concretistas, afirmava Haroldo de Campos em Metalinguagem3, a tradução seria uma recriação fundada na fisicalidade do texto traduzido, nas suas “propiedades sonoras, de imagética visual […]tudo aquilo que for a a iconicidade do signo estético…”A tradução atingia um outro patamar. Não se dava mais nos espaço dos signos gráficos, ou no das conotações e denotações, mas em um outro lugar: aquele de uma sensação. O trabalho de composição não estava mais diante de um jogo intersemiótico concentrado no plano do material composicional, mas implicava agora na noção de leitura e de escuta, as quais por sua vez chamavam à ação aquela de sensação. Estava agora no campo do que não e traduz. Levar a leitura para escuta seria afastá-la tanto da transposição estrutural quanto da tradução semântica. Naquele momento, um projeto um tanto quanto irrealizável. A peça foi abandonada e jogada em umacaixa que 3

Campos, Haroldo de. Metalinguagem. São Paulo: Cultrix. 1976

tempos depois recebeu a inscrição de “rascunhos para ouvir”. Mas o desafio de tradutor estava ainda em aberto e o projeto não se afastava tanto assim daquele que Haroldo de Campos apontou como ponto crucial da tradução: “…antes de tudo uma vivência interior do mundo e da técnica do traduzido. Como que se desmonta e remonta a máquina de criação, aquela fragílima beleza aparentemente intagível que nos oferece o produto acabado numa língua estranha. E que, no entanto, se revela suscetível de uma vivissecção implacável, que lhe revolve as entranhas, para trazê-la novamente à luz num corpo lingüístico diverso”.

silvio ferraz, sp. 27-07-2004

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