Escarificações no Escuro

Algumas crianças se embalam para dormir comprimindo a cabeça contra um travesseiro, de joelhos, se balançando ritmadamente, criando um invólucro de pressão que lhes atualize o corpo: que lhes atualize o sentimento de terem um corpo. Essas crianças precisam de um reasseguramento do ambiente para poderem ser-no-corpo, existir-no-corpo e com um corpo. Depois, só depois, elas poderão estar no ambiente, sendo pessoas também sós e capazes de vínculo com outros. A questão do dormir é uma forma de auto-apaziguamento, similar àquela de dormirem com um paninho, um bichinho de pelúcia, mas um pouco mais regredida, onde a fronteira corporal precisa ser destacada justamente pelo contato [embalo, fricção, acalento-acalanto] com o outro-como-ambiente. A cama é colo, o embalar-se pede o colo e o reasseguramento de que " ele está ali e existe, porque é embalado " : sou embalado, logo existo. Sou amado, logo existo. Essa equação é básica para todos nós. Sou amado, estou no meu próprio corpo, tenho um corpo e estou nele. Essa sensação de vitalidade, incorporação, integração corpo-psique e " personalização " é gradualmente conquistada. Donald Winnicott nos ensinou isso Então, o bebê se comprime e se sente sendo, enquanto se comprime e se embala. Com alguma sorte, mimetiza o fato de ser-para-alguém-que-o-ame, e esse é o ambiente primário que, por alguma razão nesse caso, precisa ser " evocado " no gesto do auto-embalo para que a criança, sentindo-se menos insegura, possa dormir. Só podemos relaxar quando seguros. Não há outra forma. O ambiente que cuida da criança, pai, mãe, avós, pode se perguntar se a criança tem conseguido nele e dele [= no ambiente] se apropriar de si, pelo amor. Algumas escarificações na adolescência se dão por razões semelhantes, coma complexificação natural relacionada à psique adolescente. Porque o adolescente quer ser só, quer ser ele, com uma ênfase maior. Mas precisa trazer para si o amor, trazer o amor pra dentro, senão o sentimento de ser se esvai, se dissipa, se perde e precisa ser reforçado. Mas aqui, ele se reforça com uma ênfase na distinção: ele precisa ser " distinto ". Vejamos que o ambiente pode estar muito difuso e confuso para este adolescente, com os pais brigando, com o pai pastor jogando a televisão contra a parede, aquela janela para as coisas mundanas. A mãe me chega com a filha toda de preto, preocupada. Essa adolescente é dark, ela é dark por dentro, mas a mãe a prefere asséptica. A mãe a quer clean, com sentimentos claros e límpidos. A menina tem uma camiseta preta e calça jeans, desfiada. Não, ela não consegue ser " gótica " , ela não está num grupo adolescente já formatado para contê-la. Ela está mais só do que preferiria.-Mãe, a senhora me trouxe sua filha para que eu a converta. A mãe está vestida de cristã, os cabelos amarrados, longos, saia, aquela coisa. Ela não quer sua filha de calça jeans, ainda que dê mais trabalho tirar a calça do que levantar a saia.