Escravidão, resistência e consciência no norte do RS

July 28, 2017 | Autor: Mário Maestri | Categoria: History of Slavery, Escravidão, Rio Grande do Sul, Historiografia, Historiografía
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! por MARIO MAESTRI



Doutor em História pela UCL, Bélgica, e professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF.

  RESENHA DARONCO, Leandro Jorge. À sombra da Cruz: trabalho e resistência servil no noroeste do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2006 (291 p.)

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Escravidão, resistência e consciência no norte do RS A historiografia sulina privilegiou tradicionalmente o estudo do Litoral, da Campanha, da Fronteira, da Depressão Central, secundarizando o norte do RS, voltado no Oitocentos à criação de mulas, à agricultura de subsistência, ao extrativismo de erva-mate. O próprio nordeste colonialcamponês rio-grandense foi objeto de análises sistemáticas apenas a partir de 1975. A marginalização do setentrião sulino quanto à história da escravidão foi ainda mais profunda. Essa realidade deveu-se ao mais tardio e desenvolvimento da metade norte do RS e ao fato de que os principais centros historiográficos sulinos ocuparam-se principalmente do centro e do sul do Estado. Nos últimos anos, diversas investigações contribuem, em forma direta e indireta, para preencher um hiato historiográfico que dificulta uma avaliação geral da história sulina e de sua inserção no Brasil e no Cone Sul da América. Esse avanço muito deve ao fortalecimento dos centros universitários da metade norte do RS, em geral, e à contribuição do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, em especial, que tem como principal campo de atuação a História Regional. Leandro Jorge Daronco defendeu, em 25 de maio de 2006, no PPGH da UPF, a dissertação de mestrado “À sombra da cruz: trabalho e resistência servil no noroeste do Rio Grande do Sul. Segundo os processos criminais. 1840-1888”, que orientamos e, agora, temos o prazer de comentar seu lançamento sob forma de livro, com o mesmo título e sem Página 1 de 5

modificações de forma e conteúdo. Além do orientador, participaram do exame da dissertação as doutoras Beatriz Loner, da (UFPel), e Janaína Rigo Santin (UPF). Escravidão, economia, sociedade O trabalho de Jorge Daronco – À sombra da Cruz: trabalho e resistência servil no noroeste do Rio Grande do Sul – inicia-se com análise sintética da história rio-grandense e de sua metade norte, em especial; da historiografia da escravidão no Brasil e no RS; da importância da escravidão na região no antigo município de Cruz Alta e do amplo silêncio da historiografia sobre ela. Mesmo não sendo o seu objetivo principal, o autor delineia importantes cenários da produção escravizada na região – naturalidade, profissões, idade, etc. dos trabalhadores escravizados. Entre outros importantes fenômenos, Leandro Daronco assinala que os 123 inventários de escravistas estudados registraram a posse de 669 cativos, ou seja, uma média de 5,4 trabalhadores escravizados por propriedade. Uma realidade que reforça a importância da mão de obra escravizada na fazenda pastoril e que não difere, em muito, dos números encontrados para outras regiões do RS, da mesma época. Leandro Daronco registra a forte importância dos cativos crioulos – nascidos na região –, outro indício de reprodução vegetativa do trabalhador escravizado na fazenda pastoril, e os importantes vínculos dessas paragens com Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Comumente, são daquelas províncias os principais personagens do trama social abordado – cativos, escravistas, camaradas, tropeiros, etc. Constitui importante registro o uso mão de obra servil no trabalho da erva-mate. Na sua investigação sobre o escravismo no antigo município de Cruz Alta, Leandro Daronco delimita importantes espaços historiográficos a serem investigados por próximos trabalhos, com destaque para a escravidão urbana, a demografia escrava, o movimento abolicionista nas duas últimas décadas da escravidão. O trabalho sugere que, nos últimos tempos do cativeiro, na luta pela liberdade civil, os cativos começaram a receber o apoio de homens livres, em geral de distinção, sobretudo para a exploração das brechas legais permitidas pela legislação. Violência e resistência O grande escopo de estudo À sombra da Cruz: trabalho e resistência servil no noroeste do Rio Grande do Sul, de Leandro Daronco, é a análise da resistência do cativo e da violência da sociedade escravista no antigo município de Cruz Alta, investigação empreendida sobretudo a partir de detida análise de duzentos inventários post-mortem e 42 processoscrimes, dos anos 1840 a 1888, referentes àqueles territórios . Página 2 de 5

A definição da documentação determina certamente a investigação. Apoiando-se nos casos de violência que, pela gravidade, ensejaram registro judiciário, Leandro Daronco traça cenário que não reflete o mundo escravista da época e região como um todo. Os casos excepcionais que estuda circunscrevem indiscutivelmente a violência habitual com que eram tratadas as classes subalternizadas, com destaque para os cativos. Uma valiosa discussão sobre a Justiça escravista introduz o leitor na análise dos casos exemplares estudados. Leandro Daronco aborda e esmiúça as funções e ações as autoridades judiciárias; as penas em que incorriam os réus; a presença dos cidadãos de destaque como juízes e jurados, etc. Registra os esforços de escravistas em livrar os cativos da Justiça, certamente para não perderem o tempo de trabalho de seus negros e não terem o prestígio pessoal arranhado pela condenação de uma sua propriedade. No registro da violência da Justiça escravista, são exemplares os casos apresentados de prisioneiros livres presos a gargalheiras, literalmente massacrados a sangre frio após tentativas de fuga, e as repetidas condenações à morte de cativos, executadas na região, como praxe. Destaque-se também o singularmente longo período de detenção média dos réus, antes de irem a julgamento, assinalado pelo autor – nove longos meses! A voz dos silenciados Em À sombra da Cruz: trabalho e resistência servil no noroeste do Rio Grande do Sul, Jorge Daronco não empreende discussão pretensamente neutra ou narrativas piedosas e apologéticas. Sobretudo, esforça-se para ler o passado do ponto de vista do trabalhador escravizado, a partir de reflexão e métodos científicos. O que lhe permite contribuir igualmente para a problematização de questões cruciais em discussão pela historiografia especializada. Tem-se proposto a classificação das fugas de trabalhadores escravizados em “fugas rompimento” ou “definitivas” e “fugas temporárias” ou “reivindicativas”. As primeiras, mais raras, objetivariam a ruptura total dos laços escravistas e procurariam, portanto, afastar-se o máximo possível das mãos dos escravizadores. Nesses casos, os fujões embrenhariam-se nos matos, escapariam para regiões distantes, procurariam as fronteiras. As fugas-negociação, mais comuns, constituiriam-se, ao contrário, de ausências temporária que comportariam, desde o início, uma decisão de retorno à escravidão. O cativo fugiria e se esconderia em regiões próximas aos locais de escravização, com o objetivo precípuo de pressionar o escravizador, pela ausência, a conceder melhores condições Página 3 de 5

de existência, “na escravidão”. Seria, assim, uma espécies de greve prémoderna, de um homem só. Os casos estudados por Leandro Daronco registram o rústico planejamento de atos de resistência, que denotariam um comumente profundo hiato entre o ato de ruptura-agressão à sociedade escravista e o prosseguimento dessa iniciativa, sobretudo no que se refere a fugas breves ou a atos de violência extrema contra homens livres, possivelmente impensados, produtos de uma exasperação insuportável. Estrada sem saída O cativo Leandro foge para coxilha próxima ao local de trabalho, atacando gravemente o proprietário quando da captura. Maximiano fere o oficial de Justiça que o encontra em casebre vizinho à moradia do escravizador. Damaso embosca e mata o proprietário a tiros de garrucha, revela o fato a companheiros, permanece na propriedade onde é preso. Felipe mata a machadadas dois tropeiros para roubar-lhes e apresenta as feridas das vítimas como produto do estouro de animais escapados da mangueira! Marcos justiça seu escravizador, carreteiro, e fica perambulando pela região, onde é conhecido, portando o poncho da vítima! Leandro Daronco refere-se a cativos incapazes de nomear os proprietários, de dizer se haviam sido alugados e vendidos, de declinar as profissões. Muitos cativos que fugiam e permaneciam próximos às moradias, resistindo à prisão ou apadrinhando-se para apresentar-se diante do escravista, faziam-no, não porque queriam voltar ao jugo escravista, mas por não saberiam simplesmente aonde ir e o que fazer. Um fato que possivelmente explique a enxurrada de fugas, durante a Guerra Farroupilha, em direção ao Uruguai, onde os cativos encontravam, nesses anos, condições de se inserir naquela sociedade, como soldados, peões, etc. Violentamos a história ao exigir ao cativo níveis de cultura, consciência e resistência qualitativamente superiores aos permitidos pelas condições gerais de existência que conheciam na escravidão colonial. À exceção dos casos singulares, nascidos e crescido na dura labuta escravista, sob o forte arbítrio do negreiro, ao cativo era em geral objetiva e subjetivamente impossível comportamentos próprios a sindicalistas e diplomatas modernos. À sombra da Cruz: trabalho e resistência servil no noroeste do Rio Grande do Sul, de Leandro Daronco, constitui valiosa contribuição ao melhor conhecimento da escravidão rio-grandense, em geral, e do norte do RS, em especial, que apenas agora começa a desvelar seus segredos internos, mantidos cuidadosamente à margem da revelação historiográfica. Página 4 de 5

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