ESCRITA DE SI: UMA ILUSÃO AUTOBIOGRÁFICA

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1º Encontro Internacional de Estudos Foucaultianos: Governamentalidade e Segurança João Pessoa/PB – 2014 Anexo ESCRITA DE SI: UMA ILUSÃO AUTOBIOGRÁFICA Derek TAVARES1

Nas últimas décadas tem-se visto um forte crescimento de estudos versados sobre autobiografias, principalmente aqueles que se dedicam ao formato e perspectiva de Philippe Lejeune. Contudo, e concomitante a essa abordagem, verifica-se a utilização de diversos sinônimos para representar essa modalidade ou gênero de pesquisa, tal como destaca PACE (2012) ao identificar o uso dos termos “’narrativas de vida’, ‘espaço (auto)biográfico’, ‘auto/biografia’, ‘escritas do eu’, ‘escritas de si’ [...]”. (PACE, 2012, p, 47), relacionados às pesquisas autobiográficas de caráter e estilo lejeuniano, principalmente o termo “escrita de si”, que possui aparição conceitual em Michel Foucault, nos anos de 1974, em seu ensaio, O que é um Autor? Observando esse cenário, verificamos uma problemática quanto ao uso do termo escrita de si, vinculado às pesquisas autobiográficas, já que a utilizam não apenas como sinônimo, mas também como aproximação às considerações foucaultianas de escrita de si, da concepção de autobiografia de Philippe Lejeune. Assim sendo, e acreditando num distanciamento temporal das investigações na qual debruçou Michel Foucault em seus estudos de uma Ética e Cuidado de Si na cultura greco-romana e Philippe Lejeune em seus estudos da autobiografia na modernidade, propomos realizar uma discussão em torno da escrita de si e da autobiografia tentando evidenciar suas aproximações e limites conceituais no que concerne às pesquisas autobiográficas. Desse modo, realizaremos inicialmente uma discussão em torno da escrita de si em seu aspecto mais geral e a seguir em seus aspectos mais específicos, que seja a sua concepção no universo greco-romano e ainda no universo de uma cultura cristã, onde a confissão adquire status de verdade e renúncia de si através da escrita. Em seguida, apontamos para uma reflexão sobre a autobiografia na modernidade, evidenciando suas conceituações e características. Para então apontarmos para uma leitura particular a respeito da relação estabelecida entre a escrita de si e a autobiografia.

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Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba.

A ESCRITA DE SI Antes de adentrarmos no campo conceitual da chamada escrita de si, se faz necessário lembrar que esse tema ganha ênfase com os estudos de Michel Foucault, no livro “O que é um autor” publicado no ano de 1974. Neste ensaio, Foucault (1992) preconiza que o tema da escrita de si, está centrado não somente para revelar os movimentos interiores de um indivíduo que constitui uma prova ao trazer à luz movimentos do pensar, mas, também, para estabelecer uma relação entre o indivíduo e seus documentos. É nesse sentido, que a escrita de si inicialmente articula-se com o cuidado de si, ou seja, com as pesquisas relacionadas ao estudo da Ética2, desenvolvidas por Foucault durante a segunda metade da década de 70 e início da década de 80 do século XX. Isso que ficou chamado no pensamento de Michel Foucault de estudos da Ética surge como uma descoberta ou insight, quando ele, segundo Deleuze (2006) conclui A Vontade de Saber e percebe um impasse: não é devido à sua maneira de pensar o poder, é antes porque ele descobriu o impasse no qual o próprio poder nos coloca, tanto em nossa vida quanto em nosso pensamento, nós que nos chocamos contra ele nas mais ínfimas verdades. (DELEUZE, 2006, p, 103).

Essa descoberta acontecerá, ainda, segundo Eizirik (2005), através das pesquisas sobre a “História da Sexualidade”, especialmente no período que corresponde àquilo que chamaremos de um interstício entre o primeiro livro A Vontade de Saber (1976), e o segundo e terceiro livros, Uso dos Prazeres, e O Cuidado de Si, (publicados, respectivamente, em 1984). Nesse momento, Foucault redescobre os gregos e os romanos da antiguidade clássica, e suas práticas de Governo de Si, instaurando assim uma ruptura no modelo dos estudos da sexualidade já encontrado na Vontade de Saber, aonde o foco eram o saber e o poder relacionado à prática e as ciências sexuais. O que se percebe é que nesse intervalo, Michel Foucault voltará a sua atenção, sobretudo, para os cursos no Collège de France, principalmente naqueles relacionados à prática cristã da Confissão (1979 e 1980) e a prática greco-romana do Cuidado de Si (1981 e 1982). Nessa perspectiva surgem as pesquisas voltadas para a cultura clássica, em especial a análise da prática da Parresía3 enquanto cuidado de si; e as pesquisas voltadas para cultura

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História da Sexualidade (1984); Governo de Si e dos Outros (2010); Hermenêutica do Sujeito (2010). A Parrésia aqui é compreendida por Foucault como uma fala franca que envolve a toda enunciação um custo. Tal como se encontra nos dicionários de língua grega. 3

cristã ocidental e as suas práticas de obediência e confissão enquanto técnica de governo dos vivos. Esse cuidado de si a que se refere Foucault deve ser compreendido a partir de diversos cuidados, tais como com o corpo e a saúde e ainda com os pensamentos. A escrita se insere nessa prática de cuidado voltado para os pensamentos, sendo então um exercício de registro das coisas lidas, ouvidas, sentidas e vividas. Assim, “em torno dos cuidados consigo toda uma atividade de palavra e de escrita se desenvolveu, na qual se ligam o trabalho de si para consigo e a comunicação com outrem” (FOUCAULT, 2009b, p. 57). Nesses termos, essa prática de Cuidado de Si não é somente ou exatamente uma atividade solitária. Consiste, no mais das vezes, da ajuda de um outro que se colocará na condição de guiar, dirigir e/ou conduzir o indivíduo nos seus pensamentos e condutas. Foucault (2009b) aponta ainda que o indivíduo que dirige não necessariamente é um indivíduo técnico, cuja competência e sabedoria sejam conhecidas por muitos, mas apenas um indivíduo a quem se reconhece a boa reputação e franqueza4, e que esteja apto ainda a cuidar de si mesmo diante o ato de direção do outro. Isto configura que “o cuidado de si aparece, portanto, intrinsicamente ligado a um ‘serviço de alma’ que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema de obrigações recíprocas.” (FOUCAULT, 2009b, p. 59). Contudo, é evidente o aspecto pessoal, particular e intimo dessa prática do cuidado consigo mesmo. Ela se volta, sobretudo sob as maneiras da meditação e também da escrita, caracterizando-se como um autoexame. Foucault (2009b) relata esse tipo de atividade através dos exemplos do filósofo Sêneca, que sugere que todas as noites se realize um processo de exame do que foi feito durante o dia5. Porém, não se trata de uma prática punitiva ou de busca necessária dos erros porventura cometidos. Trata-se antes de uma atividade de tomada de experiência através da memorização das atitudes. É nesse aspecto que se insere o artificio da escrita, pois a ela estará atrelada uma dimensão de memória, colocada por Sócrates em diálogo com Fedro como sendo o remédio para rememoração. Entretanto, seu registro não precede de uma necessidade de memória a ser guardada, mas antes, um artefato por onde será possível acessar os pensamentos.

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A franqueza está compreendida nos termos da Parresía a qual Foucault identifica nos textos gregos como sendo o ato de dizer a verdade, de falar francamente e sem temer pela consequência da sua enunciação. (FOUCAULT, 2010). 5 “A partir do momento em que a claridade se retira, quando sua mulher se cala [...]” É nesse momento que se deve realizar o autoexame.

No diálogo, Sócrates faz uso da história do deus Thoth, responsável pela invenção de diversos conhecimentos, tais como dos números, cálculo, geometria e da escrita. Thoth então se apresenta a um monarca egípcio a quem oferecerá as suas invenções. Após ter apresentado cada arte por ele inventada, Thoth então lhe apresenta a arte da escrita: “Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória”. O monarca então se volta para Thoth e com um pessimismo fundamental lhe indaga: Ela tornará os homens mais esquecidos pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração. (PLATÃO, 1986, p. 121).

Essa passagem enseja a grande preocupação que envolve o registro do presente, agora fixado, imutável e responsável pelo estabelecimento da fidelidade dos discursos. Somente agora, através da categoria documento, ou nos termos gregos, das Hyppomenatas, é que será possível definir o que foi dito e feito pelo homem no passado, pois sem exercitar-se da memória o indivíduo acabará por esquecer-se da memória, logo a escrita viria apenas como um justo remédio para a rememoração ou como um exercício, uma estratégia para a meditação e o autoexame. Assim, não se escreve para deixar guardado, ou para uma memória futura; mas se escreve para uma releitura ou para um aconselhamento, ou no máximo para uma memória presente. Fica caracterizado nesses termos, que a prática de escrever para si ou para um outrem constitui o que Foucault chamou de “técnicas de si”. Essas técnicas de si possuem como principal elemento a verdade, a verdade de si enunciada seja como um artificio de cuidado; seja como uma renúncia de si (confissão). Segundo Foucault, a confissão é a prática de poder retomada na modernidade como uma tecnologia política. GRÓS (2006), por sua vez a conceitua como sendo uma técnica de introspecção, ou seja, “uma maneira de submeter o indivíduo, requerendo-se dele uma introspecção indefinida e o enunciado exaustivo de uma verdade sobre ele mesmo”. Diante disso, destacamos que existem dois momentos para a concepção de escrita de si. O primeiro correspondendo a prática greco-romana de um cuidado, aonde o indivíduo que escreve para si ou para outrem, realiza um trabalho de autoexame em busca de sua própria constituição, da sua moral, da sua ética. O segundo momento corresponde à prática da escrita de si voltada para a cultura cristã, aonde a escrita terá a função de revelar os desejos ocultos do indivíduo, na constituição de uma confissão enquanto técnica de si.

ESCRITA DE SI: UMA CONCEPÇÃO GRECO-ROMANA Foucault reconhece na escrita de si dos gregos um tipo de atitude e prática no qual o ato de escrever para si e para outrem estejam vinculados a um cuidado de si. A escrita de si é então uma prática de autoexame, e de autojulgamento que o indivíduo efetua acerca de si mesmo. No entanto, essa escrita de si, conforme observada em Foucault (1992) está no fato ainda de escrever não somente para si, mas também para outrem, cuja função será a de agir parresiasticamente, ou seja, “dizer a verdade, dizer toda a verdade, ou em todo caso dizer toda verdade necessária, e dizê-la de uma certa forma que é precisamente a parresía [...]” (FOUCAULT, 2010, p. 43). A escrita aparece, assim, associada ao exercício da reflexão do próprio autor, o pensar sobre si mesmo, mesmo que por vezes esse pensar recaia sobre um outro. Ela se revela como um exercício pessoal, uma estratégia de luta no combate a si mesmo. A esse respeito, o autor exemplifica, utilizando-se das hypomnêmatas, os livros de apontamento, cadernos de anotações pessoais, que serviriam como uma espécie de memória auxiliar, memória central das coisas lidas, vistas, ouvidas, pensadas e refletidas, uma espécie de tesouro acumulado para releitura e meditações posteriores. No mesmo patamar, ele coloca as correspondências, textos, a princípio produzidos para os outros, mas que abrem espaços também de reflexão e de meditações posteriores, provocando, do mesmo modo, um movimento interior de quem escreve, recebe, guarda e acumula, já que o ato de recolher-se a si mesmo e de se revelar enquanto autoexame e introspecção num ato de escrita para um outro, constitui, ao mesmo tempo, um momento de reflexão pessoal, onde “é preciso aperfeiçoar-se toda a vida e que a ajuda alheia é sempre necessária ao labor da alma sobre si própria”. (FOUCAULT, 1992, 146). Contudo, há que se advertir para o fato de que os hypomnêmatas não se constituem em instrumentos de revelação daquilo que estaria oculto aos pensamentos ao estilo de um diário íntimo, numa escrita confessinonária. Trata-se, pelo contrário, “de captar o já dito; reunir aquilo que se pôde ouvir ou ler, e isto com uma finalidade que não é nada menos que a constituição de si.” (FOUCAULT, 1992, p. 137). Assim a escrita possui três características. A primeira de que ela é uma “maneira de recolher a leitura feita e de nos recolhermos sobre ela” (FOUCAULT, 1992, p. 139), ou seja, é uma atividade de registro, de materialização das coisas ditas, lidas e ouvidas. Assim, ela atua diretamente como uma força ativa contra o esquecimento, conforme apontou Sócrates através do mito de Thamuz, na medida em que ao lê algo torna-se necessário o registro da leitura efetuada, para um posterior encontro com a razão. Daí decorre a segunda característica, de que

esse registro é seletivo, não se importando com a totalidade da compreensão, mas necessariamente importando-se com a sua potência de verdade e o seu valor relativo de uso. Procura-se nessa atividade de escrita, estabelecer uma verdade para aquilo que foi lido, já que se trata de “uma maneira reflectida de combinar a autoridade tradicional da coisa já dita com a singularidade da verdade que nela se afirma e a particularidade das circunstâncias que determinam o seu uso”. (FOUCAULT, 1992, p. 141). Tendo então a escrita sido registrada e selecionada, sua terceira característica será a da unificação enquanto resultado desse processo de constituição da escrita, no estabelecimento de uma nova verdade. Assim, “o papel da escrita é constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um ‘corpo’.” (FOUCAULT, 1992, p. 143). Corpo este que será a própria leitura interiorizada na alma enquanto verdade de si. Percebemos nesse primeiro momento, que a prática da escrita de si apontada por Michel Foucault apresenta contornos e conteúdo que direcionam a interpretação para uma atividade desenvolvida no interior da cultura greco-romana, aonde a escrita funciona como artificio íntimo de registro do pensamento e da conduta do indivíduo.

ESCRITA DE SI: CONCEPÇÃO CRISTÃ – CONFISSÃO A confissão é situada nos estudos de Michel Foucault como uma forma de veridição, na qual o indivíduo é conduzido a fazer de si sobre si mesmo. Foucault buscou investigar no curso de 1979, chamado de Governo dos Vivos (2011) e também no curso de 1980, intitulado Mal Faire Dire Vrai - Fonction de L´Aveu en Justice6, a prática da confissão7, principalmente a partir de uma questão norteadora: ... como se fez para que, na cultura ocidental cristã, o governo dos homens exigiu da parte destes que são dirigidos, além de atos de obediência e submissão, ‘atos de verdade’ que têm a particularidade de que não somente o sujeito é solicitado a dizer a verdade, mas dizer a verdade a propósito dele mesmo, de suas faltas, de seus desejos, do estado de sua alma etc.? Como formou-se um tipo de governo dos homens no qual não se é solicitado simplesmente a obedecer, mas a manifestar, enunciando-o, aquilo que se é? (FOUCAULT, 2000, p. 944).

Para tentar responder essa questão/problema, Foucault propôs um estudo acerca das práticas da confissão. Assim, Foucault interpreta a confissão a partir de um speech act (atos de

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Fazer mal, dizer a verdade: A questão da Confissão na Justiça (tradução nossa). FOUCAULT, M. Mal faire, dire vrai. Fonction de l’aveu en justice – Cours de M. Foucault (Louvain, 1981). Presses universitaires de Louvain, Louvain-la-Neuve, 2012.

fala), concepção dos linguistas ingleses (John Stingo e John Austin)8, que irão dizer que existe nos enunciados uma força performativa, uma força de produção imediata. Alguns enunciados quando são produzidos passam a existir imediatamente na realidade, fazendo com que as coisas que eles enunciam, adquiram forma. Um dos exemplos que Austin nos fornece é quando o padre diz: “eu vos declaro marido e mulher”. Em sua análise, quando o padre enuncia esse ato de fala imediatamente se produz uma performance, de que não só o homem e a mulher vão comportarse como marido e esposa, mas também todos à sua volta vão trata-los como casal, pois esses atos de fala produziu imediatamente uma performatividade. É nesse sentido performativo que Foucault vai tomar a confissão, ou seja, considerala como um ato de fala, na medida em que a confissão produz uma performance na qual o sujeito vai ser levado a realizar sobre ele mesmo. Segundo Foucault (2012), quatro características performáticas da confissão podem ser identificadas, diferenciando-as de qualquer ato informativo. A primeira característica da confissão é o custo, de modo que a confissão sempre vai produzir um esforço na sua enunciação, já que para Foucault a confissão é a passagem de um não dito para um dito, ou seja, a passagem do segredo para a revelação. A segunda característica é a de que a confissão é sempre um ato livre, tendo em vista que o seu objetivo não é o de produzir uma constatação ou uma informação, mas o de produzir um engajamento. Ou seja, um engajamento que o sujeito vai estabelecer por ele mesmo em relação a si mesmo, cujo resultado será o de se engajar ou torna-se sujeito daquilo que ele confessa. Terceira característica. Uma vez que a confissão exige sempre necessariamente a presença de outro, ela implica numa renúncia ou perda de resistência ou relaxamento. Em outros termos, significa dizer que aquele que confessa sempre vai perder diante do seu confessor, perder no sentido de que ele vai renunciar a sua posição de segredo e vai então relaxar para outra posição na qual o confessor (aquele que ouve) se tornará fortalecido. Neste caso, a confissão reforça o poder do confessor, ou seja, o poder que faz com que o indivíduo confesse. Quarta e última característica. Enquanto ato de relação e ligação entre o sujeito que confessa e aquele que ouve, e ainda de engajamento, a confissão produz uma qualificação do sujeito, ou seja, subjetiva-o enquanto confessor, amante, criminoso, etc. (FOUCAULT, 2012, p. 5 - 7). Resume-se que a confissão é um ato de sacrifício de revelação da verdade que se realiza de maneira engajada, intensificando as relações de poder através da renúncia que faz de si mesmo em relação ao seu confessor, produzindo uma qualificação do sujeito enquanto 8

John Austin escreveu um livro chamado Como fazer coisas com palavras (1962), E o John Searle (aluno do Austin) escreveu o livro: Os actos de fala: um ensaio de filosofia da linguagem (1969).

confessante de sua verdade. Logo, a confissão, no momento em que é enunciada, faz existir um modo de ser para o indivíduo, produzindo uma nova condição de sujeito. Isso porque, segundo Foucault, “a confissão passou a ser, no Ocidente, uma das técnicas mais altamente valorizada para produzir a verdade. Deste então nos tornamos uma sociedade singularmente confessanda.” (FOUCAULT, 2009a, p. 59). Tendo sido incorporada a confissão na modernidade como uma Economia Confessional, algumas de suas características, foram internalizadas e constituíram um tipo de sujeito na modernidade onde a prática de falar de si será comum, natural, necessária e sem um custo real. Isso, porque, segundo Foucault, as práticas da confissão foram e continuam sendo entrementes importantes na nossa sociedade, sobretudo, na questão prática que conduz o indivíduo a produzir pelo discurso a verdade sobre si mesmo com a finalidade de constituir a si mesmo como sujeito de uma verdade como é o caso das práticas autobiográficas.

ESCRITA DE SI: UMA ILUSÃO AUTOBIOGRÁFICA Segundo LEJEUNE (2008), a palavra autobiografia foi importada da Alemanha pelos idos do Século XIX, servindo para designar, distintamente, duas coisas: a primeira e mais restrita a escrita de vida de um sujeito por ele próprio, enquanto que a segunda, contrariamente, declara a autobiografia como todo texto e qualquer texto independente de sua forma, cujo teor tenha a intenção secreta ou confessa de contar uma trajetória de vida, por intermédio de um outro ou não. Essa aparição terminológica parece, segundo Lejeune (1971), inaugurar na modernidade uma nova prática de escrita, que se espalha rapidamente sob a forma de “l’usage de raconter et de publier l’histoire de sa propre personnalité9”, assim, a autobiografia “est l’um des signes de la transformation de la notion de personne, et est intimement lié au début de la civilisation industrielle et à l’arrivée au pouvoir de la bourgeoisie10” (LEJEUNE, 1971, p. 10). Deste modo, o pacto autobiográfico se constituí como “una forma de contrato entre autor y lector en el que el autobiógrafo se compromete explícitamente no a una exactitud histórica imposible sino al esfuerzo sincero por vérselas con su vida y por entederla”. (LEJEUNE, 1994, p. 12). Essa prática interpretada como uma autobiografia é vista por Lejune (2008), como

[...]“contar e publicar a história de sua própria personalidade” (tradução nossa). [...] “é um dos sinais da transformação da noção de pessoa e é intimamente ligado ao início do começo da civilização industrial e à chegada da burguesia ao poder” (tradução nossa). 9

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um modo de escrever e também um modo de ler. Nessa perspectiva, o que se coloca com a questão da autobiografia é a busca e divulgação de uma verdade sobre si. Lejeune propõe esse tipo de abordagem, quando afirma que um dos polos da autobiografia é o “compromisso de dizer a verdade sobre si”, (NORONHA, 2002, p, 23)11. Contudo, entende-se que a verdade não é somente uma forma verídica relacionada a algo, mas antes de tudo, um jogo, um regime. Nesse regime situam-se regras que estabelecem formas, seleções, inscrição, discurso e distribuição. Desse modo, a verdade situa-se na mesma lógica dos regimes de veridicção. Veridicção como o termo empregado por Michel Foucault para entender as transformações dos processos que conferem em um determinado momento um estatuto de verdade a determinadas práticas. Destarte, os regimes de verdade se apresentam como sendo “aquilo que constrange os indivíduos a esses atos de verdade, aquilo que define, que determina a forma desses atos; é aquilo que estabelece para esses atos condições, efetuações e efeitos específicos”. (FOUCAULT, 2011, p. 77). A autobiografia pode se constituir ainda como a interpretação do narrador na busca do vivido de outrem, uma forma de entrar intimamente na vida do outro, situando-a no tempo e no espaço, dando-lhe seu lugar na história, informação que provém de diferenciadas fontes, através ainda de estabelecimentos de regimes ou jogos de verdade. A autobiografia parece então constituir na modernidade um estilo novo de escrever sobre si, cujo objetivo não está mais pautado no cuidado consigo mesmo, mas necessariamente em uma escrita que se volte para o campo da representação do eu, de uma demonstração dessa individualidade que se apresenta na escrita biográfica, através de uma verdade que se revela ao estilo confessional das culturas cristãs12, em uma modernidade que, em um determinado momento da nossa história, conduziu os indivíduos no ocidente para além de uma obediência, tendo que retirar a verdade sobre seu ser, ou seja, uma confissão daquilo que se é! Assim trata-se a autobiografia como uma forma de veridicção que trata de subjetivar os sujeitos a partir de uma relação que se estabelece com ele mesmo, ou seja, uma relação de si para consigo, através de práticas de extrospecção, realizadas por meio da escrita autobiográfica. 11

Entrevista com Philippe Lejeune concedida à Jovita Maria Gerheim Noronha e publicada na Revista Ipotese de estudos literários. 12 Foucault a esse respeito indaga “... como se fez para que, na cultura ocidental cristã, o governo dos homens exigiu da parte destes que são dirigidos, além de atos de obediência e submissão, ‘atos de verdade’ que têm a particularidade de que não somente o sujeito é solicitado a dizer a verdade, mas dizer a verdade a propósito dele mesmo, de suas faltas, de seus desejos, do estado de sua alma etc.? Como formou-se um tipo de governo dos homens no qual não se é solicitado simplesmente a obedecer, mas a manifestar, enunciando-o, aquilo que se é?” (FOUCAULT, 2000, p. 944).

A autobiografia não deixa de ser outra coisa, senão um jogo travado entre o eu escritor e o eu leitor de uma autorepresentação que busca a constituição de uma estética de si. Desse modo, a autobiografia apresentada por Lejeune parece não guardar nenhum elemento de uma escrita de si como fora praticada entre os gregos e romanos da antiguidade. Ela se aproxima, no entanto, do segundo momento da escrita de si, aonde a revelação de si para um outro será fundamental nas culturas cristã a partir do modelo da confissão. A autobiografia parece constituir então, um tipo de engajamento no qual o indivíduo que escreve cotidianamente sobre si através de anotações em cadernos, se coloca à disposição do outro, numa espécie de renúncia intima, aonde o que importa não necessariamente é aquilo que o indivíduo é no seu íntimo, mas aquilo que ele escolhe ser, aquilo que está decidido a ser revelado. Igualmente, essa escrita vai se desenvolver a partir de regras estabelecidas pelo próprio autor, que na medida em que escreve não cessa de desaparecer. (FOUCAULT, 2009c, p. 268). Dessa forma, ao escrever não para si mesmo, mas para um outro, ao qual não necessariamente seria preciso conhecer, estaria o sujeito renunciando a si mesmo, como que em suicídio na qual alguma de suas escritas, enunciadas ao estilo de confissão, fará com que o “eu” não mais exista perante a si mesmo, mas somente perante os outros, agora materializados em documento. Dessa forma, A obra que tinha o dever de trazer a imortalidade recebeu agora o direito de matar, de ser assassina do seu autor. (...) o sujeito que escreve despista todos os signos de sua individualidade particular; a marca do escritor não é mais do que a singularidade da sua ausência; é preciso que ele faça o papel de morto no jogo da escrita (FOUCAULT, 2009c, p.269).

Contrariamente à escrita de si postulada pelos clássicos, e aproximadamente relacionada à escrita de si das culturas cristãs, a autobiografia contemporânea pode ser classificada como confissões voluntárias, desejadas e sem custo em uma modernidade, onde o escritor requer do seu leitor, através de uma estética de si, “reconhecimento, aprovação, amor”. (NORONHA, 2002, p. 23), e para isso, realiza sem custo algum, uma renúncia de si mesmo, criando para si mesmo um “outro” sujeito capaz de ser adorado, bem quisto, valorizado, por um outro a quem não se conhece a face.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Após ter apontado considerações sobre a escrita de si, tal como é destacada no pensamento de Michel Foucault, e em seguida abordado a questão da autobiografia,

acreditamos ter alcançado com esse estudo a compreensão de que trata-se por um lado, de uma concepção ética de cuidado de si e de renúncia de si, onde o sujeito que escreve realiza um processo de veridicção de si. E por outro lado, de uma prática de autobiografia, aos moldes confessionais da modernidade, também chamada de escrita de si, conforme já apontamos a partir de PACE (2012), através da multiplicidade de sinônimos empregados com relação ao termo autobiografia, já que o seu uso não é um consenso no seu sentido amplo. Essa multiplicidade reforça a nossa tese de que outros termos, tais como o que é abordado neste artigo, escrita de si, são utilizados apenas como sinônimos, não alterando a essência do sentido do fazer autobiográfico. Neste caso, o uso do termo escrita de si não enseja, significa ou obedece a utilização das concepções conceituais e teóricas apresentadas por Michel Foucault em seu estudo sobre O que um autor?, o que não faz conferir um equívoco ao utilizar o termo escrita de si, quando se tenta realizar estudos autobiográficos, que nesses termos se faz aproximar de uma utilização sinônima, tal como propõe Araújo (2012) ao conceituar a escrita de si em aproximação com os estudos autobiográficos como sendo: A escrita de si – termo que caracteriza a narrativa em que um narrador em primeira pessoa se identifica explicitamente como o autor biográfico, mas vive situações que podem ser ficcionais – se delineia como um exercício literário típico da modernidade. (ARAÚJO, 2012, p. 8).

No entanto, enquanto concepção conceitual apresentada por Michel Foucault, parece um equívoco aproximar a escrita de si foucaultiana de uma autobiografia lejeuniana, já que conforme foi apresentado nos capítulos anteriores, trata-se a escrita de si foucaultiana de uma forma particularizada de um cuidado de si em busca de uma ética. Neste caso, tomar arquivos pessoais, ou no melhor dos termos, os hypommenetas como artifícios de uma pesquisa ou investigação autobiográfica, nos termos de Philippe Lejeune, parece, de certa forma, uma tomada equivocada do termo, já que: Os hypomnemata não deveriam ser encarados como um simples auxiliar de memória, que poderiam consultar-se de vez em quando, se a ocasião se oferecesse. Não são destinados a substituir-se à recordação porventura desvanecida. Antes constituem um material e um enquadramento para exercícios a efectuar frequentemente: ler, reler, meditar, entretar-se a sós ou com outros, etc. (FOUCAULT, 1992, p. 136).

Assim sendo, parece um equívoco aproximar essa concepção aos estudos foucaultianos da escrita de si, já que esse registro não possui a característica biográfica, pois articula-se apenas com os princípios e julgamentos da moral e da ética. Diante disso se faz necessário situar as pesquisas foucaultianas que trata deste tema, num período bastante diferente do atual, onde a prática da escrita de si estava relacionada muito mais a um aspecto de um

cuidado com a alma, cuidado de si, do que necessariamente de uma renúncia de si, de uma composição estética de si tal como se faz na autobiografia contemporânea.

REFERÊNCIAS

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