Espaços Arquitectónicos em Narrativas Interactivas e Virtuais
Descrição do Produto
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS: Seu papel, condicionamentos e representação Filipa Ribeiro Carrott (Mestrado Integrado em Arquitectura) Dissertação para a obtenção do Grau de Mestre em Arquitectura Orientador Científico: Professor Doutor Carlos Manuel de Almeida Figueiredo
Júri
Presidente:
Professora Doutora Isabel Maria Augusto Sousa Rosa
Vogal:
Professor Doutor Michel Toussaint Alves Pereira
Lisboa, Novembro 2015
RESUMO A Arquitectura é reflexo do Homem e da Sociedade, na medida em que materializa diferentes formas como o Homem individual e colectivo vê o mundo, dos seus condicionamentos cognitivos, éticos e sociais, das suas expectativas, do viver em sociedade e do espaço existencial e expressivo que cria à sua imagem. Se observarmos a arquitectura que surge como cenários dos videojogos, percebemos que ela é mais do que um simples “background” para a acção. Ela vai evocar emoção, conferir personalidade a um ambiente e condicionar a experiência do jogador ao longo do jogo. Os cenários e ambiências dos videojogos são um dos seus aspectos mais importantes, pois as experiências de vida na primeira pessoa (nós somos o jogador), constituem vivências de realidades para o jogador, que por um tempo se situa num mundo virtual que adopta para habitar. Palavras-‐chave: videojogos, narrativas visuais, narrativas interactivas, espaço existencial
I
II
ABSTRACT The architecture is the reflection of Man and Society, to the extent that embodies different ways how individual and collective Man sees the world, his cognitive, ethical and social conditionings, his expectations of living in society and of existential and expressive space that he creates his own image. If we observe architecture that emerges as scenery of videogames, we realize that it is more than just a "background" for action. It will evoke emotion, confer personality to an environment and condition the player experience throughout the game. The scenery and environments in videogames are one of its most important features, since life experiences in the first person by the player constitute experiences of reality. For a while he is in a virtual world that he adopts to inhabit. Keywords: videogames, visual narratives, interactive storytelling, existential space
III
IV
ÍNDICE
RESUM O .......................................................................................................... I ABSTRACT ...................................................................................................... III ÍNDICE . ............................................................................................................ V ÍNDICE DE FIGURAS . ........................................................................................ V II INTRODUÇÃO . ................................................................................................... 1 1 | PERCEPÇÃO VISUAL EM NARRATIVAS CINEM ÁTICAS . ....................................... 3 1.1 PERCEPÇÃO VISUAL ........................................................................................................................... 3 1.1.1 Percepção e Sensação ........................................................................................................... 3 1.1.2 Contexto ................................................................................................................................ 4 1.1.3. Constâncias Perceptuais e Contrastes ................................................................................. 5 1.1.4. Processo de Simplificação (Prägnanz) ................................................................................. 7 1.1.5. Processo de Organização ..................................................................................................... 9 1.1.6. Experiência e Memória ..................................................................................................... 11 1.2. A ATENÇÃO PERCEPTIVA ................................................................................................................ 12 1.2.1. Selectividade da Visão ....................................................................................................... 12 1.2.2. Ritmos e Padrões ............................................................................................................... 13 1.2.3. Monotonia e Variedade .................................................................................................... 14 2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEM ÁTICAS ........................................................... 1 7 2.1. FICÇÃO CINEMÁTICA E ACÇÃO DRAMÁTICA ....................................................................................... 17 2.1.1. Acção Dramática ............................................................................................................... 17 2.1.2. Acção dramática nos Videojogos ...................................................................................... 24 2.2. GAME DESIGN, STORYTELLING E INTERACÇÃO ................................................................................... 30 2.2.1. Introdução ao Gameplay ................................................................................................... 30 2.2.2. Mecânicas de Jogo ............................................................................................................ 31 2.2.3. Controlo Indirecto do Comportamento do Jogador ........................................................ 36 2.2.4. Interfaces e Interacção ..................................................................................................... 39 2.2.5. Fluir do Storytelling e acção no jogador ........................................................................... 40 2.3. CÂMARA E COMPOSIÇÃO ............................................................................................................... 43 2.3.1. A Câmara e o Espectador .................................................................................................. 43 2.3.2. Composição Estática de um plano .................................................................................... 57 2.4. REALIZAÇÃO, CONTINUIDADE E COERÊNCIA DA NARRATIVA ................................................................. 78 2.4.1. As transições entre Planos ................................................................................................ 79 2.4.2. Montagem como construção de significados ................................................................... 85 2.4.3. Continuidade e coerência da acção e do espaço ............................................................. 98 2.4.4. Realização e Montagem em Videojogos ......................................................................... 102 2.5. COR E ILUMINAÇÃO ..................................................................................................................... 114 2.5.1. As características da luz .................................................................................................. 116 2.5.2. Tridimensionalidade e Profundidade .............................................................................. 120
V
2.5.3. O Contributo Dramático .................................................................................................. 122 2.5.4. Na animação 3D .............................................................................................................. 126 3 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS . .............................. 1 29 3.1. O DESIGN DE PRODUÇÃO NO DESENHO DE ESPAÇOS FICCIONAIS EM VIDEOJOGOS ................................ 129 3.2. TRATAMENTO DO ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS ...................................................................... 130 3.2.1. Uma Delimitação Finita em Espaços Ficcionais Infinitos ................................................ 130 3.2.2. Passagem e ligação entre as áreas ................................................................................. 134 3.2.3. Elementos ........................................................................................................................ 138 3.3. CARACTERIZAÇÃO DOS AMBIENTES ................................................................................................ 143 3.4. CONSTRUÇÃO DE AMBIÊNCIAS VISUAIS E FICCIONAIS ........................................................................ 149 3.4.1. Desenhar do Espaço Físico .............................................................................................. 150 3.4.2. Fontes de Inspiração e Referências ................................................................................ 151 3.5. AUTENTICIDADE, COERÊNCIA E CREDIBILIDADE ................................................................................ 154 3.6. O ESPAÇO FICCIONAL E A SUA DIMENSÃO EXISTENCIAL E EXPERIENCIAL .............................................. 156 CONCLUSÃO ................................................................................................. 1 59 BIBLIOGRAFIA . .............................................................................................. 1 61
VI
ÍNDICE DE FIGURAS Figura 1 – Screenshots de diferentes ambiências, não relacionadas com as mecânicas de jogo, em diversos níveis nos jogos Cut The Rope (2010-‐2014). ............................................................................. 26 Figura 2 – Screenshots de diferentes ambiências em Crossy Road (2014) que constroem diferentes storylines ao alterar cenários e personagens, apesar da mecânica de jogo se manter a mesma. ......... 26 Figura 3 – Screenshots do videojogo The Witcher 3 (2015) ilustrando o protagonista-‐jogador percorrendo livremente o espaço virtual definindo ele próprio o seu percurso, e como possui diferentes opções de resposta num diálogo com outro personagem. ................................................... 28 Figura 4 – Screenshots de Dragon Age: Origins (2009), Dragon Age II (2011) e Dragon Age Inquisition (2014), mostrando como certos poderes são relacionados em cadeias, sendo que o jogador só poderá ter acesso a um se tiver escolhido adquirir os poderes de ataque precedentes. Este é um caso em que uma acção ou capacidade está condicionada por regras. ....................................................................... 31 Figura 5 – Screenshot de Dragon Age II (2011), onde nas regras que caracterizam certos objectos e conceitos, encontram-‐se aquelas que definem os atributos (custos de aquisição, XP fornecido, força de ataque, ...) para uma determinada arma, armadura, entre outros dispositivos possíveis de ataque/defesa. .......................................................................................................................................... 32 Figura 6 – Screenshot de Dragon Age: Origins (2009) onde, quando o jogador selecciona o ataque grease, seguido de imediato de qualquer ataque de fogo, a combinação desses dois ataques origina um efeito/ataque inesperado (grease fire), sendo este apenas um exemplo do conjunto de casos possíveis. ................................................................................................................................................... 32 Figura 7 – Screenshots de Dragon Age: Origins (2009) e Dragon age II (2011) mostrando as missões organizadas por categorias. ...................................................................................................................... 33 Figura 8 – Screenshot de Dragon Age Inquisition (2014) ilustrando um dos casos em que quando o jogador derrota um inimigo ganha XP. A quantidade XP que o personagem possui irá condicionar o nível em que este se encontra e os poderes ou ataques a que conseguirá ter acesso. Naturalmente a procura será por conseguir o mais possível. ............................................................................................ 34 Figura 9 – Screenshot de Bioshock (2007) do momento em o jogador deve escolher entre salvar uma Little Sister ou não, decisão que irá condicionar eventos futuros. ......................................................... 36 Figura 10 – Screenshots de Bioshock Infinite (2013) do momento em que Elizabeth escapa da torre e o jogador necessita de a seguir. ............................................................................................................... 38 Figura 11 – Plano geral e plano de conjunto em Brave (2012), estabelecendo as características e carácter do espaço e ambiente onde a acção se irá desenrolar ............................................................. 45 VII
Figura 12– Plano aproximado de tronco e plano aproximado de peito em My Fair Lady (1964) ....... 45 Figura 13 – Grande plano e muito grande plano em Irmandade do Anel (2001) ................................ 45 Figura 14 – Plano picado em Amadeus (1984), plano contrapicado em Amadeus (1984) e plano holandês em Brave (2012) ........................................................................................................................ 47 Figura 15– Screenshots de videojogos com perspectiva primeira-‐pessoa (Bioshock, 2007), perspectiva over-‐the-‐shoulder (Resident Evil 4, 2005) e perspectiva terceira-‐pessoa (Assassin's Creed II, 2009). .................................................................................................................................................... 51 Figura 16 – Screenshots de uma panorâmica acelerada em Brave (2012) .......................................... 52 Figura 17 – Screenshots de panorâmica lenta em Irmandade do Anel (2001) .................................... 52 Figura 18 – Screenshots de um movimento de câmara condutor da atenção em Irmandade do Anel (2001) ........................................................................................................................................................ 53 Figura 19 – Screenshots de um dolly-‐in em Irmandade do Anel (2001) .............................................. 53 Figura 20 – Screenshots de um dolly-‐out em Irmandade do Anel (2001) ........................................... 54 Figura 21 – Screenshots de uma aproximação por zoom em Panda do Kung-‐Fu (2008) .................... 54 Figura 22 – Screenshots de um plano de seguimento em My Fair Lady (1964) .................................. 55 Figura 23 – Screenshots de um movimento composto em Panda do Kung-‐Fu (2008) ....................... 55 Figura 24 – Plano em My Fair Lady (1964) com “ar” na direcção em que a protagonista interage com outra personagem e Plano em Panda do Kung-‐Fu (2008) onde os elementos mais pesados encontram-‐ se na secção inferior do enquadramento. ............................................................................................... 58 Figura 25 – Planos em Irmandade do Anel (2001) onde elementos do espaço cénico – vão e morfologia do terreno -‐ em contraluz criam cercaduras. ........................................................................ 59 Figura 26 – Composição dos três personagens relevantes do plano segundo o princípio do triângulo em My Fair Lady (1964) e Plano em Irmandade do Anel (2001) dispondo os personagens num círculo criando um sentido de unidade do grupo. ............................................................................................... 60 Figura 27 – Plano em Brave (2012) em que a protagonista é colocada a um terço do limite do enquadramento ........................................................................................................................................ 60 Figura 28 -‐ Plano em My Fair Lady (1964) em que a aristocracia é distinguida pelas cores monocromáticas. Plano em Brave (2012) onde os três clãs do enredo são separados e agrupados segundo a proximidade das personagens. Plano em Brave (2012) onde um personagem é destacado ao ser isolado do grupo das restantes personagens. .............................................................................. 62 Figura 29 – Plano low-‐key em Amadeus (1984). Plano em Brave (2012) usando a perspectiva aérea sobre os elementos mais distantes de modo a acentuar a ilusão de profundidade do espaço. Plano em VIII
Brave (2012) em que a sombras de personagens situados no fora-‐de-‐campo induzem a continuidade do espaço cénico para lá dos limites enquadramento. ........................................................................... 63 Figura 30 – Plano em Irmandade do Anel onde a desproporção de entre tamanho personagem e espaço cria a sensação de um espaço pequeno e apertado. Plano em Panda do Kung-‐Fu (2008) onde a repetição de elementos verticais acentua a profundidade. .................................................................... 64 Figura 31 – Plano em Panda do Kung-‐Fu (2008) em que as linhas convergentes criadas pela perspectiva acentuam a profundidade do espaço cénico. Plano em Panda do Kung-‐Fu (2008) onde a textura com a diminuição exponencial dos seus detalhes descreve o espaço em profundidade. ......... 65 Figura 32 – Plano em Panda do Kung-‐Fu (2008) em que os diferentes tamanhos dos personagens no enquadramento indicam a sua distância em si e em relação à câmara. Plano em Irmandade do Anel (2001) onde a técnica da perspectiva forçada cria a ilusão de personagens de diferentes tamanhos à mesma distância da câmara quando na verdade não o estão. ............................................................... 65 Figura 33 – Plano em Amadeus (1984) em que o personagem ao movimentar-‐se pelo espaço indica a profundidade do espaço. .......................................................................................................................... 66 Figura 34 – Plano em Irmandade do Anel (2001) onde a focagem dos personagens e a desfocagem do cenário cria mais distanciamento entre os dois, coloca os personagens em primeiro plano e acentua a profundidade do espaço cénico. ............................................................................................. 67 Figura 35 – Plano em My Fair Lady (1964) filmando o protagonista em ângulo em relação a câmara. Plano com a câmara em angle-‐plus-‐angle em Panda do Kung-‐Fu (2008). .............................................. 68 Figura 36 – Plano em Brave (2012) onde a câmara efectua vários movimentos pelo espaço – tracking shot, rotações, dolly-‐out – revelando a tridimensionalidade e profundidade do espaço cénico. ......... 69 Figura 37 – Planos com equilíbrio formal e equilíbrio informal em Blade Runner (1982) .................. 70 Figura 38 – Plano em My Fair Lady (1964) marcado por um forte contraste entre a protagonista – tema do plano – e o fundo. A personagem domina a composição e o olhar do espectador com cores mais escuras que concentram o maior peso visual da composição deste enquadramento. ................. 70 Figura 39 – Plano em Irmandade do Anel (2001) e Panda do Kung-‐Fu (2008) onde a cor vermelha destaca-‐se da composição criando pontos de maior atenção. ............................................................... 72 Figura 40 – Plano em Irmandade do Anel (2001) onde a personagem mais iluminada sobressai de todas as outras. Plano em Blade Runner (1982) em que as linhas convergentes encaminham a atenção do espectador para o seu ponto de fuga, assinalando os personagens que aí se encontram. .............. 72 Figura 41 – Planos em Irmandade do Anel (2001) onde o tema do plano é assinalado e realçado ao ser posicionado em maior proximidade da câmara. ................................................................................ 73 Figura 42 – Plano em Brave (2012) onde um elemento (vassoura) em movimento no plano de fundo transfere a atenção do espectador da protagonista em primeiro plano para si. ................................... 73
IX
Figura 43 – Planos em Brave (2012) utilizando diferentes técnicas de focagem para enfatizar o tema do plano e conduzir o olhar do espectador. ............................................................................................ 74 Figura 44 – Planos em Panda do Kung-‐Fu (2008) e Irmandade do Anel (2001) .................................. 75 Figura 45 -‐ Screenshots de Assassin's Creed II (2009) onde se observa como o tratamento das áreas mais próximas vs mais distantes sugere a tridimensionalidade e profundidade do espaço. ................. 76 Figura 46 -‐ Screenshot de Bioshock Infinite (2013) de uma plano com uma acentuada separação entre o plano antes e atrás. ...................................................................................................................... 76 Figura 47 -‐ Screenshot de Assassin´s Creed II (2009), mostrando o protagonista centrado no enquadramento e onde surge um personagem com que o jogador deverá interagir claramente identificado ao ser mais luminoso. ........................................................................................................... 77 Figura 48 – Screenshots de uma cena com montagem interna em Brave (2012) ............................... 80 Figura 49 – Planos em Panda do Kung-‐Fu (2008) onde um corte directo faz a transição de um cenário para outro completamente diferente, iniciando uma nova cena. .......................................................... 81 Figura 50 – Screenshots de My Fair Lady (1964) em que a acção da personagem continua sem aparente interrupção de um plano para o outro. .................................................................................... 81 Figura 51 – Screenshots de Brave (2012) em que aproveitam a luz do relâmpago para criar um fade de branco que introduz um flashback. ..................................................................................................... 82 Figura 52 – Planos de abertura e de fecho de Amadeus (1984) efectuados com fade-‐in e fade-‐out . 82 Figura 53 – Screenshots de My Fair Lady (1964) em que utilizam um fade-‐in e fade-‐out a meio da narrativa, mas neste caso a divisão funciona pois é uma transição para uma nova sequência. ............ 82 Figura 54 – Screenshots duma sequência inicial de Brave que utiliza vários encadeados mostrando diferentes ambiências para estabelecer o local e atmosfera da acção e situar o espectador. .............. 83 Figura 55 – Screenshots de um wipe em Star Wars IV: Uma Nova Esperança (1977). ....................... 83 Figura 56 – Screenshots de um wipe combinado com um encadeado em Panda do Kung-‐Fu . ......... 83 Figura 57 – Screenshots de Panda do Kung-‐Fu (2008) onde o abrir e fechar de portas em passagem para um novo espaço é aproveitado para realizar uma transição entre planos e cenas. ...................... 84 Figura 58 – Screenshots de Panda do Kung-‐Fu (2008) onde as colunas, e o passar da câmara por elas, são aproveitadas para efectuar um corte para um flashback. ................................................................ 84 Figura 59 – Screenshots de Panda do Kung-‐Fu (2008) onde usam a silhueta do personagem, e o passar da câmara por ela, para efectuar uma transição. ........................................................................ 84 Figura 60 – Screenshots de Brave (2012) onde é realizado um corte ‘invisível’ na acção. Este não corta a continuidade da acção porque o segundo plano continua exactamente onde cortou a acção no X
primeiro. ................................................................................................................................................... 85 Figura 61 – Screenshots de duas situações em Panda do Kung-‐Fu (2008) onde efectuam um corte simples. No entanto, o espectador compreende que continua a mesma acção e cena devido a outras pistas – como o manterem-‐se as mesmas personagens e o mesmo espaço. ......................................... 85 Figura 62 – Screenshots de reverse shots em Irmandade do Anel (2001) e Brave (2012) .................. 87 Figura 63 – Screenshots de planos de reacção (face ao plano anterior) em Amadeus (1984) e em Ratatui (2007) ........................................................................................................................................... 88 Figura 64 – Screenshots do início de Irmandade do Anel (2001) onde a cena de Bilbo é interrompida por um cut-‐away para uma série de planos de vários Hobbits – que fornece informação ao espectador da ambiência – mas depois retornando para Bilbo. ................................................................................ 89 Figura 65 – Screenshots de um segmento em Ratatui (2007) onde a mudança entre ângulos de câmara é feita cada vez mais aproximando-‐se do tema (forma progressiva). ....................................... 89 Figura 66 – Screenshots de uma cena em Irmandade do Anel (2001) que alterna contrastando planos de conjunto com planos aproximados dos intervenientes (forma contrastante), seguidamente apresentando uma série de planos todos com o mesmo ângulos de câmara (forma repetitiva). ......... 89 Figura 67– Screenshots de Panda do Kung-‐Fu (2008) utilizando um padrão outside-‐in que mostra o cenário exterior, depois levando o espectador (e personagens) para o seu interior e focando-‐se em detalhes deste. .......................................................................................................................................... 90 Figura 68 – Screenshots de Ratatui (2007) onde a composição dos planos cria uma sequência que revela gradualmente mais informação do espaço ao entrar gradualmente mais no seu interior. ........ 90 Figura 69 – Screenshots de Irmandade do Anel (2001) ilustrando um cut-‐in. .................................... 90 Figura 70 – Screenshots do prólogo de Irmandade do Anel (2001), uma cena que mostra primeiro um close-‐up do objecto, só depois recuando para mostrar a personagem e o cenário. ....................... 90 Figura 71 – Esquema da composição de dois planos (com equilíbrio assimétrico) consecutivos em Irmandade do Anel (2001) que pertencem a uma mesma cena e acção. .............................................. 92 Figura 72 – Screenshots de matching shots em Brave (2012) e Panda do Kung-‐Fu (2008) que estabelecem uma ligação visual através da composição circular em ambos os planos apesar de o seu conteúdo narrativo não ter relação. ........................................................................................................ 93 Figura 73 – Screenshots de matching shots, em Brave (2012), apesar de constituírem planos separados no tempo e no espaço, criam uma associação de conteúdo/significado ao mostrarem acções ou personagens, juntamente com composições, idênticas. ....................................................... 93 Figura 74 – Screenshots de match dissolve em Amadeus (1984) que mostrando o mesmo local, com a mesma composição, indica um passar do tempo. ................................................................................ 94
XI
Figura 75 – Screenshots de matching shots em Panda do Kung-‐Fu (2008) para indicar o final de um flashback. .................................................................................................................................................. 94 Figura 76 – Screenshots de uma pequena cena em Ratatui (2007) que condensa a acção em apenas três planos ligados por dissolves. ............................................................................................................. 95 Figura 77 – Screenshots de uma transição para um flashback em Ratatui (2007). ............................. 95 Figura 78 – Screenshots de Irmandade do Anel (2001) em que efectuam um dissolve para o mapa, depois dirigindo a câmara para a localização da próxima cena situando assim o espectador no local ficcional. .................................................................................................................................................... 96 Figura 79 – Screenshots de Brave (2012) onde alternam entre as duas personagens estabelecendo uma ligação, apesar de estarem em locais diferentes. ............................................................................ 97 Figura 80 – Screenshots de Brave (2012) onde alternam entre os dois grupos de personagens que perseguem a mãe-‐ursa para aumentar a tensão dramática. .................................................................. 97 Figura 81 – Screenshots de um flash cut em Panda do Kung-‐Fu (2008). ............................................. 97 Figura 82 – Screenshots de District 9 (2009) de alguns jump-‐cuts que pretendem transmitir sensações de nervosismo e tensão do protagonista. .............................................................................. 98 Figura 83 – Screenshots da cena inicial de Ratatui (2007) onde é feito um freeze frame que adiciona uma qualidade dinâmica e cómica ao início do filme. ............................................................................. 98 Figura 84 – Screenshots de Panda do Kung-‐Fu (2008) onde, apesar de ocorrer um corte, sabemos a posição do objecto em relação à personagem devido ao facto da personagem ter olhado primeiro na sua direcção, criando assim uma linha de acção. .................................................................................... 99 Figura 85 – Screenshot de uma cena em Brave (2012) onde as sombras antecipam-‐se à acção e estabelecem o ponto de ligação espacial (sendo o elemento comum) entre os dois planos, permitindo ao espectador não se perder no espaço quando a câmara muda subitamente de posição. ................. 99 Figura 86 – Screenshots de Ratatui (2007) mostrando com um plano neutro permite estabelecer a ligação entre duas cenas, com personagens e locais diferentes. .......................................................... 100 Figura 87 – Screenshots de My Fair Lady (1964) onde o plano de reacção retira momentaneamente o espectador do meio da acção principal, mas não interrompe a sua leitura da acção enquanto contínua, nem o perde no espaço porque o personagem situa-‐se no mesmo espaço. ....................... 100 Figura 88 – Planos em Brave (2012) e Irmandade do Anel (2001) ilustrando linhas de olhar. ......... 101 Figura 89 – Screenshot de uma cena em Irmandade do Anel (2001) em que o eixo de acção corresponde à trajectória efectuada pela personagem. ....................................................................... 101 Figura 90 – Screenshots de Amadeus (1982), onde o personagem sai do plano pelo lado esquerdo e entra pelo lado direito no plano seguinte de modo a manter uma direcção do movimento direita-‐
XII
esquerda em ambos os planos. .............................................................................................................. 101 Figura 91 – Screenshots de Prince of Persia: The Forgotten Sands (2010), dum momento em que a câmara faz um corte para um diferente ângulo de câmara de modo a melhor mostrar a sequências de acções que o jogador deve fazer. ........................................................................................................... 105 Figura 92 – Screenshots de uma sequência cinematográfica em Prince of Persia: The Forgotten Sands (2010) onde a câmara movimenta-‐se, de modo automático, pelo espaço virtual indicando o percurso que o jogador deve fazer. ....................................................................................................... 105 Figura 93 -‐ Screenshots de uma cena cinematográfica em Assassin’s Creed II (2009) ..................... 107 Figura 94 – Screenshots de uma cena cinematográfica em Assassin’s Creed II (2009) em que a câmara progride em “flyaround” transportando o espectador/jogador pelo espaço. ......................... 107 Figura 95 – Screenshots de uma cena cinematográfica em Assassin’s Creed II (2009) com personagens, enredo, linhas de acção e de continuidade conforme uma narrativa cinematográfica 108 Figura 96 – Screenshots de Bioshock Infinite (2013) .......................................................................... 109 Figura 97 – Screenshots mostrando a alteração do ponto de vista da câmara quando se representa a mudança para a mira de uma arma em Call of Duty 4: Modern Warfare (2007). ................................ 110 Figura 98 – Screenshots de Assassin’s Creed II (2009) ....................................................................... 110 Figura 99 – Screenshots de uma sequência de Assassin’s Creed II (2009) ilustrando um momento da progressão do jogo onde se sucedem diferentes tipos de movimentos da câmara – automáticas e por controlo do jogador. ............................................................................................................................... 111 Figura 100 – Screenshots de um segmento em Prince of Persia: The Forgotten Sands (2010) em que a câmara se move durante o gameplay acompanhando a acção do jogador: a câmara ascende acompanhando o protagonista que sobe no espaço, seguidamente efectuando um rotação e translação para onde ele deve seguir, para depois se voltar a aproximar quando já não é necessário uma visão tão ampla do espaço. ............................................................................................................ 112 Figura 101 – Screenshots de um movimento automático de aproximação da câmara em Tomb Raider (2013) quando a protagonista/jogador atravessa espaços apertados, fazendo o jogador sentir a claustrofobia e dimensões reduzidas da abertura, afastando-‐se de volta após o jogador passar. ...... 112 Figura 102 – Screenshots de um dos momentos em Tomb Raider (2013) em que se dá uma aproximação da câmara quando o jogador pretende utilizar o arco e flecha. ..................................... 113 Figura 103 – Screenshots de alguns momentos onde a câmara adopta pontos de vista distintos em Batman: Arkham Asylum (2009) ............................................................................................................. 113 Figura 104 – Esquema ilustrando o posicionamento das luzes de forma a criar o efeito final (Thompson & Bowen, 2009b). ................................................................................................................ 116
XIII
Figura 105 – Planos ilustrando uma luz lateral sobre a protagonista de Brave (2012) que ajuda a modelar a sua tridimensionalidade; uma iluminação inferior sobre o antagonista em Panda do Kung-‐Fu (2008) que acentua efeitos de tensão, suspense ou terror; e uma iluminação apenas de trás em Irmandade do Anel (2001), criando silhuetas, transmite sensações de mistério e suspense. ............. 117 Figura 106 – Planos ilustrando a utilização de uma luz forte em Irmandade do Anel (2001) e de uma luz difusa em My Fair Lady (1964). ......................................................................................................... 117 Figura 107 – Planos com uma iluminação low-‐key em Blade Runner (1982) e uma iluminação high-‐ key em Amadeus (1984). ........................................................................................................................ 118 Figura 108 – Planos em Irmandade do Anel (2001), onde a iluminação na imagem (a) nitidamente acentua mais as formas que a imagem (b) devido ao maior contraste, no entanto, em ambas se pode notar que a fonte de luz nunca se encontra totalmente frontal. .......................................................... 121 Figura 109 – Planos em Brave (2012), Panda do Kung-‐Fu (2008) e Blade Runner (1982) onde a luz cria efeitos atmosféricos, que contribuem para a representação da tridimensionalidade e profundidade do espaço cénico. ............................................................................................................ 121 Figura 110 – Plano em panda do Kung-‐Fu (2008) que introduz na cena uma nova personagem através da sua sombra, que se projecta dentro do enquadramento. ................................................... 122 Figura 111 – Planos pertencentes ao mesmo filme (Sweeney Todd), mas que no entanto possuem qualidades completamente distintas e representativas do estado de espírito do protagonista. ........ 123 Figura 112 – Comparação das características da iluminação em Os fantasmas de Goya (2007) e um auto-‐ retrato de Francisco Goya: o filme é marcado por uma paleta de cores pouco variada e tons mais escurecidos como as obras do pintor. ................................................................................................... 124 Figura 113 – Comparação das características da iluminação em A Rapariga do Brinco de Pérola (2003) e Senhora escrevendo carta com sua criada (1670) de Johannes Vermeer: o filme é marcado por uma iluminação low-‐key e ambientes luminosos tal como as obras do pintor. ............................. 124 Figura 114 – Planos em Amadeus (1984) com uma iluminação low-‐key que o torna mais pesado e dramático, enquanto que as cenas em high-‐key tendem a ser alegres e joviais. ................................. 125 Figura 115 – Plano em Irmandade do Anel (2001) onde a cena possui uma calma e frieza acentuada pelos tons azuis predominantes. Plano em Brave (2012) onde os tons quentes não só provenientes da lareira mas predominantes em todo plano conferem uma sensação calorosa e acolhedora à cena e ao cenário. ................................................................................................................................................... 125 Figura 116 – Plano de Irmandade do Anel (2001) onde a luz cénica se relaciona apenas com a narrativa surgindo como um foco que aponta para um elemento específico do cenário e relevante na acção dramática. Plano de Brave (2012) onde a luz e a sombra mantêm um dos personagens escondido assinalando-‐o assim como um antagonista e envolvendo-‐o em mistério. ......................... 126 Figura 117 – Processo de desenvolvimento de Monstros Universidade (2013) – storyboard, concept
XIV
art, modelação, layout, animação inicial (simulação) até render final com iluminação – divulgado pelo site CG MeetUp que mostra a importância da iluminação para o filme ............................................... 127 Figura 118 – Mapas de Dragon Age: Origins (2009) com indicação das três formas de espaços não existentes mas que pertencem conceptualmente à totalidade ficcional do mundo do jogo. ............. 131 Figura 119 -‐ Diversos mapa da área total e sub-‐áreas de Dragon Age: Origins (200) e a relação espacial entre eles. ................................................................................................................................. 132 Figura 120 -‐ Screenshots de Dragon Age: Origins (2009) mostrando uma vista na progressão do jogo de um espaço interior e uma vista aérea do modelo tridimensional desse espaço em que se observa como estas sub-‐áreas são “construídas” em unidades segregadas. ..................................................... 132 Figura 121 -‐ Mapa da área geral (Itália) de Assassin's Creed II e mapa de uma das áreas principais percorríveis pelo jogador (Veneza). ....................................................................................................... 133 Figura 122 -‐ Screenshots de Assassin's Creed II (2009) dum segmento duma cena cinematográfica seguido dum transição para um novo locaç, a câmara fluindo depois para o “modo jogador”. ......... 135 Figura 123 -‐ Screenshots de Bioshock Infinite (2013) de algumas lojas que apresentam placas informando que estão fechadas como justificação visual para a impossibilidade de o jogador aceder ao seu interior. ............................................................................................................................................. 136 Figura 124 -‐ Screenshots de Dragon Age: Origins (2009), Bioshock Infinite (2013) e Assassin's Creed II (2009), assinalados os ambientes distantes que são apenas visíveis mas não acessíveis. ................... 137 Figura 125 -‐ Mapa de Templar's Nightmare em Dragon Age:Origins (2009) com indicação das ligações e direcção entre os diferentes tipos de dispositivos de passagem. ........................................ 138 Figura 126 – Screenshots de diferentes tipos de limites do espaço em Dragon Age: Origins (2009) 140 Figura 127 -‐ Screenshots de Assassin's Creed II (2009) mostrando como é indicado visualmente ao jogador a chegada a um limite do espaço ficcional do videojogo. ........................................................ 140 Figura 128 -‐ Screenshots de Bioshock Infinite (2013) dos limites de algumas áreas no videojogo. . 141 Figura 129 -‐ Screenshots de Dragon Age: Origins (2009) mostrando obstáculos dramáticos e obstáculos físicos à progressão do jogador. .......................................................................................... 142 Figura 130 -‐ Screenshots de Bioshock Infinite (2013) mostrando obstáculos dramáticos, fronteiras, e obstáculo físico à progressão do jogador. .............................................................................................. 142 Figura 131 -‐ Screenshots de Assassin's Creed II (2009) mostrando dois tipos de obstáculos físicos e obstáculos dramáticos à progressão do jogador. .................................................................................. 142 Figura 132 -‐ Screenshots de Assassin's Creed II (2009) de algumas situações em que a configuração do espaço obriga o jogador a progredir por formas alternativas. ......................................................... 143 Figura 133 -‐ Screenshots de Bioshock Infinite (2013) mostrando como as moedas são exageradas em XV
tamanho de modo a serem mais visíveis pelo jogador. ......................................................................... 144 Figura 134 -‐ Screenshots de Dragon Age: Origins (2009) de alguns locais cujo interior possui uma escala monumental. ............................................................................................................................... 145 Figura 135 -‐ Screenshots de Bioshock Infinite (2013) de alguns locais cujo interior possui uma escala monumental. .......................................................................................................................................... 145 Figura 136 -‐ Screenshots do interior do templo de Haven e do interior das ruínas de Brecilina em Dragon Age: Origins (2009) .................................................................................................................... 146 Figura 137 -‐ Screenshots da entrada em Columbia em Bioshock Infinite (2013), onde se pode verificar uma ambiência agradável com a iluminação high-‐key e cores vibrantes. .............................. 146 Figura 138 -‐ Screenshots de algumas ambiências em Bioshock Infinite (2013), marcadas por uma iluminação low-‐key e/ou cores frias ou vermelhas criando ambiências obscuras e/ou de conflito. ... 147 Figura 139 -‐ Screenshots de Bioshock Infinite (2013) mostrando alguns elementos e personagens que possuem um forte simbolismo com elementos da cultura americana. ......................................... 147 Figura 140 -‐ Screenshots de algumas de ambiências em Bioshock Infinite (2013) onde, através da iluminação, cor, texturas, arquitectura e escala, o espaço ganha efeitos dramáticos e emocionais muitos distintos. ..................................................................................................................................... 148 Figura 141 -‐ Screenshots de Dragon Age: Origins (2009) onde aspectos como a escala, Iluminação e perspectiva atmosférica reforçam a sensação mística e imponente destes espaços. ......................... 148 Figura 142 -‐ Screenshots de Assassin’s Creed II (2009) onde a Arquitectura, vestuário das personagens, objectos, entre outros, tudo remete para o período renascentista sendo esse o contexto cultural do videojogo. ............................................................................................................................. 149 Figura 143 -‐ Concept art e modelo no jogo da cidade de Denerim em Dragon Age: Origins (2009). 150 Figura 144 -‐ Heráldica de Denerim e algumas situações nessa cidade onde o mesmo símbolo aparece, em Dragon Age: Origins (2009). .............................................................................................. 150 Figura 145 -‐ Diversos exemplos de Concept Art de Assassin’s Creed II (2009) e respectivos modelos no jogo. ................................................................................................................................................... 151 Figura 147 -‐ Catedral de Santa Maria del Fiori e respectivo modelo virtual em Assassin’s Creed II (2009) ...................................................................................................................................................... 152 Figura 148 -‐ Exposição Universal (Feira Mundial de Chicago) de 1893 e screenshot da entrada de Columbia em Bioshock Infinite (2013). .................................................................................................. 152 Figura 149 -‐ Propaganda americana durante a 2ª guerra mundial e propaganda em Bioshock Infinite (2013). ..................................................................................................................................................... 153 Figura 150 -‐ Screenshots de Dragon Age: Origins (2009) de alguns casos em que elementos XVI
arquitectónicos são utilizados apenas de forma decorativa e com um papel dramático. ................... 153 Figura 151 – Screenshots de Assassin’s Creed II (2009), ilustrando a criação de credibilidade através de imitação duma época histórica e cultural, neste caso é criado uma vivência única pelo plot. ....... 155 Figura 152 – Screenshots de Bioshock Infinite (2013), ilustrando a criação de credibilidade através de elementos de inspirações de diferentes épocas e culturas criando assim uma identidade própria e única. ....................................................................................................................................................... 156
XVII
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
XVIII
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO A Arquitectura é reflexo do Homem e da Sociedade, na medida em que materializa diferentes formas como o Homem individual e colectivo vê o mundo, dos seus condicionamentos cognitivos, éticos e sociais, das suas expectativas, do viver em sociedade e do espaço existencial e expressivo que cria à sua imagem. “... a relação do Homem com o espaço tem raízes existenciais: deriva de uma necessidade de adquirir relações visuais com o ambiente que o rodeia para dar sentido e ordem a um mundo de acontecimentos e acções, ou seja, para lhe dar sentido.” (Norberg-‐Schulz, 1975, p. 9) Se observarmos a Arquitectura que surge como cenários dos videojogos, percebemos que ela é mais do que um simples “background” para a acção. Ela vai evocar emoção, conferir personalidade a um ambiente e condicionar a experiência do jogador ao longo do jogo. Os cenários e ambiências dos videojogos são um dos seus aspectos mais importantes, pois as experiências de vida na primeira pessoa (nós somos o jogador), constituem vivências de realidades para o jogador, que por um tempo se situa num mundo virtual que adopta para habitar. Não só as narrativas são influenciadas, determinadas e condicionadas por esta sociedade e a sua forma de olhar o mundo, mas também aquelas possuem influência sobre os valores, personalidade, sociabilidade e adaptação (ou não) do espectador/jogador que as visualizam e/ou interagem, situando-‐os em relação à sociedade e aos outros. Estas narrativas ficcionais têm o potencial de fazer o espectador apreender, pensar e situar perante novas perspectivas, ideias, valores e conceitos. Tanto o cinema como os videojogos são dispositivos visuais, imersivos, narrativos e emotivos com potencial para criar e impor conceitos e valores aos utilizadores, quer ao nível consciente como subconsciente – de alguns destes o espectador/jogador apercebe-‐se, de outros não, criando nele um efeito de alienação, quando imerso nessas novas e diferentes realidades, espaços e enredos ficcionais. A acção do jogador e dos seus oponentes sobre este, a fruição do espaço, enredo e emoções (no
1
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
sentido de usar e de sentir) e a apropriação (no sentido de configurar a mim) desenvolvidas nos videojogos são o suporte para estas situações experienciais. Estas vivências baseiam-‐se numa relação entre o mundo (gameworld), os protagonistas (personagens) e a acção, estando assentes num enredo (plot), ou seja, numa ficção e estrutura dramática, que constituem o motor da acção. Enquanto sujeitos, não podemos conceber a existência de uma “acção” se não existir um espaço onde esta decorra. As narrativas visuais têm sempre este efeito sobre o observador – sejam estas cinematográficas (portanto com enredos, composições e montagens pré-‐determinados e em que o espectador é totalmente conduzido), ou interactivas (com livre arbítrio do jogador, agindo sobre o mundo ficcional). Ambas contribuem sempre para informar e formar o individuo. Este processo poderá resultar positivo ou negativo para uma boa formação do individuo e a sua integração a sociedade. Em qualquer dos casos, as Narrativas Visuais Cinemáticas nunca possuem um papel ou influência neutro sobre aqueles que a elas assistem e participam. Tudo acontece e existe no espaço. Enquanto sujeitos, não podemos conceber a existência de uma “acção” sem haver um espaço onde a mesma decorra. Assim a Arquitectura desempenha desde logo um papel central, determinante em todos os aspectos da narrativa e da representação. Para melhor estudarmos e compreendermos o papel que a Arquitectura assume neste contexto, torna-‐se necessário o seu estudo e análise em diversas áreas, como sejam a percepção e cognição, os arquétipos, memórias e imaginário colectivo, a comunicação e representação visual, o espaço e sua simulação, a arquitectura e seus significados, bem como a interactividade do jogador com mundos de actuação virtuais. São estes aspectos que nos mostram de que forma a arquitectura nos videojogos tem um papel fundamental enquanto agente de uma sensação de imersão, que induz o jogador, por um momento, a conduzir-‐se, vivenciar e agir nesses mundo e enredos como se de realidades se tratassem, embora tenha a noção de que estas são ficções, e não o seu mundo “real”. Pode-‐se considerar que os videojogos utilizam sempre referências arquitectónicas da cultura e história humanas, constituídas pelo repositório material ou imaterial da sociedade e das idiossincrasias do próprio individuo, únicas referências que nós portanto conseguimos reconhecer e interpretar. 2
1 | PERCEPÇÃO VISUAL EM NARRATIVAS CINEMÁTICAS 1.1 Percepção Visual 1.1.1 Percepção e Sensação Uma das características do ser humano é a sua capacidade de aprender através da relação com o seu ambiente. Segundo alguns o homem possui um comportamento que decorre apenas da influência do seu ambiente, enquanto outros defendem que o seu comportamento é revelador de padrões inatos. De qualquer modo, analisando indivíduos pertencendo a sociedades e culturas distintas, encontram-‐se inúmeras diferenças comportamentais, como igualmente muitas semelhanças (Morris, 2002). Pode-‐se então concluir que algumas acções humanas são aprendidas e outras inatas. É nesta última “categoria” que se enquadram as questões da Percepção. A percepção é instantânea e obedece a algo de inerente ao indivíduo, funcionando sem qualquer acção consciente da sua parte – não constitui portanto um acto cognitivo (Ward, 2003). Serve para fornecer ao indivíduo informações sobre as características do mundo em seu redor e dos objectos nele existentes (Wade & Swanston, 2013). São estes dados e informações que lhe permitem reconhecer, identificar e interagir com o mundo – ou seja, a sua função não será fornecer impressões subjectivas da envolvente e dos objectos, mas sim antes fornecer uma base de informação sobre a qual cognição irá trabalhar (Wade & Swanston, 2001). Uma vez que essas mesmas informações são processadas através do sistema sensorial constituído pelos diversos sentidos, a Percepção pode ser descrita também como um processo inato e inconsciente de organizar e interpretar informação sensorial (Myers, 2014), já que o ser humano entra em contacto com o mundo e todas as coisas que nele existem, antes de mais, através de processos perceptivos. Então, a percepção e suas sensações constituem o meio através do qual se apreende o mundo, uma vez que o que obtém sobre as coisas em primeiro lugar é a sua aparência, toque, cheiro ou ruído, sob um fluxo de sensações que o sistema perceptivo irá ordenar e organizar (Arnheim, 1997). A experiência do indivíduo do mundo que o rodeia assenta, desta forma, num processo onde sensação e percepção trabalham em conjunto para que o indivíduo consiga descodificar o mundo 3
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
que o rodeia (Myers, 2014). Os sentidos são aqui referidos de acordo com a sua função de informar do meio ambiente -‐ através deles -‐ e não como “ter uma sensação”. A percepção faz-‐se valer das sensações segundo um meio através do qual se conseguem obter informações sobre os objectos sem a intervenção consciente de um processo intelectual (Gibson, 1986). A visão ganha maior relevo, pois é o sentido humano mais rico, no que concerne à informação que se consegue extrair dos objectos, constituindo um dos sentidos que Arnheim descreve como “sentidos de distância”1 (Arnheim, 1997), sendo o único que possibilita a apreender a totalidade do espaço tridimensional de uma vez. De outra forma, o tacto, não sendo um sentido de distância, depende do contacto imediato e directo para uma avaliação gradual dos objectos (Arnheim, 1997). Conseguir percepcionar à distância, para além do sentido imediato, permite ao sujeito observar os objectos de um modo mais objectivo e conceptual. 1.1.2 Contexto A forma como o indivíduo percepciona a representação dos objectos torna-‐se bastante relativa, pois tal não implica a existência de valores ou de características absolutas. Assim, um objecto parecerá grande em relação a outro mais pequeno ou parecerá brilhante em relação a outro mais obscurecido, entre tantos exemplos que se poderiam seleccionar. Quando é observado um objecto, os mecanismos da percepção tendem a estabelecer um qualquer tipo de relação (Arnheim, 1997). É quase impossível caracterizar um objecto atribuindo-‐lhe aspectos com carácter absoluto, significando isto que as suas características possuem diferentes graus de intensidade: a percepção não possui um valor único e universal de “grande” ou “pequeno”, pois não identifica quaisquer propriedades métricas exactas dos objectos2. Ao invés, o homem identifica características generalizadas dos objectos, considerando simultaneamente a forma como os mesmos interagem com outros e os efeitos que produzem entre si (Arnheim, 1997). O contexto em que os objectos se encontram é assim um dos aspectos que molda a percepção que o indivíduo estabelece relativamente àqueles, sendo que em cada contexto diferente cria variações perceptivas de um mesmo objecto. Assim, é formada a percepção relativa a um objecto, num determinado contexto, diferente da obtida se o mesmo for percepcionado noutro contexto. 1
Arnheim considera a visão, a audição e o cheiro todos sentidos de distância, pois permitem um maior alcance na Este é um dos aspectos em que difere de um computador, com o qual desencadeou alguns estudos interessantes sobre a representação digital/virtual do mundo (Myers, 2014) 2
4
1 | PERCEPÇÃO VISUAL EM NARRATIVAS CINEMÁTICAS
Uma situação em que este caso ocorrerá será quando a realidade envolvente contribuía ou dificulte que um determinado objecto em questão se destaque relativamente à mesma (Arnheim, 1997). A importância do contexto contribui igualmente para tornar mais claro o significado de um determinado objecto ou da sua imagem, podendo um objecto poderá possuir uma dada carga simbólica numa determinada situação específica, mas não em outra. Tal será o caso de imagens estilizadas, tal como os pictogramas ou os sinais de trânsito: elas beneficiam muito da influência do contexto, pois isoladamente poderão proporcionar diversas leituras por parte do observador. Apenas o facto de um sinal se encontrar num contexto rodoviário é que permitirá ao observador perceber o seu significado da forma mais adequada (Arnheim, 1997). Os contextos poderão reportar-‐se a situações por nós associados a determinados aspectos culturais. Como exemplos, podemos considerar os casos da imagem da cruz latina, que são imediatamente associadas ao Cristianismo ou o da imagem-‐símbolo da cruz suástica, imediatamente associado ao Regime Nazi3 (Arnheim, 1997). 1.1.3. Constâncias Perceptuais e Contrastes As constâncias perceptuais consistem em “percepcionar os objectos como imutáveis, tendo a sua cor, iluminação, forma e tamanho constantes, mesmo quando a iluminação e imagens retinais mudam” (Myers, 2014) pois, conforme atrás referimos, a percepção destes aspectos é relativa. 1.1.3.1 Percepção da luz e da cor A luz que é percepcionada ao olharmos para um objecto considerado branco – como uma folha de papel ou uma escultura de mármore – depende dos valores mais claros e mais escuros presentes na totalidade do campo visual, na mesma situação lumínica, tendo em consideração o valor da luz numa escala e tendo esses dois valores como extremos. Tais valores de claro-‐escuro4 variam ao longo de uma escala estabelecida pelo contexto envolvente, por isso uma luz parecerá mais luminosa num ambiente escuro, uma vez que o contraste é maior (Arnheim, 1997). Relativamente à cor de um objecto, a mesma só é ‘vista’ quando o mesmo estiver iluminado por uma fonte de luz, a qual terá uma determinada cor, ou um comprimento de onda a ela associado, o 3
A suástica é na verdade um símbolo antigo que provém da cultura védica “Chiaroscuro” é a expressão utilizada em termos clássicos para designar em termos de representação os valores de luz, sombra e penumbra, com todos os valores intermédios e inclui as questões de valores tonais 4
5
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
que significa que a percepção de uma cor depende e varia relativamente à própria luz de origem que permite vê-‐la (Arnheim, 1997). Tal facto poderá conduzir, em certos casos, a que a percepção de uma determinada cor seja manipulada, levando o observador a percepcionar a cor de um objecto diferentemente, consoante a luz incidente e a cor resultante da incidência da mesma sobre ele. No entanto, habitualmente, o indivíduo possui igualmente a capacidade de identificar qual a ‘verdadeira’ cor do objecto que observa, pois a sua percepção consegue identificar e excluir a influência do contexto, ou seja, factores exteriores aos objectos que actuam sobre o mesmo. Na percepção existe a tendência para minimizar ou eliminar a diferença. Por isso, apesar de a própria luz fazer com que a percepção das cores não seja sempre constante, a percepção tende homogeneizá-‐la como tal; se for observada de forma analítica a imagem recebida de um objecto colorido sob uma luz incidente, verifica-‐se que a sua cor não é homogénea e constante. De acordo com a luz incidente, são geradas áreas com tonalidades diferentes, sendo que se formará uma mais clara, onde a luz esteja a incidir. No entanto, a percepção do indivíduo efectua a leitura de que o objecto como possuindo uma única cor (Arnheim, 1997), compreendendo a gradação de tonalidade como influência do contexto e não pertencendo ao próprio objecto. Em alguns casos, Isto acontece também quando são colocados lado a lado elementos coloridos de cor muito semelhantes – por vezes, o indivíduo não distingue a diferença de cor quando estas são muito próximas devido a esta tendência para eliminar as diferenças. 1.1.3.2. Contrastes de Cor Verifica-‐se que uma cor sobressai mais ou menos, consoante as cores que lhe estão próximas. Tal acontece devido à forma como os objectos se comportam em relação aos objectos próximos. Arnheim desenvolve a ideia de que as partes da imagem de um objecto “podem mudar a sua aparência a favor da relação”, abandonando “a sua própria simplicidade de forma para aumentar a simplicidade da relação entre eles” (Arnheim, 1997, p.60). Se um vermelho primário estiver na imediata adjacência a um amarelo puro, o vermelho pode tornar-‐se arroxeado e o amarelo esverdeado, devido à interacção gerada quando duas cores diferentes se encontram adjacentes5. O mesmo poderá acontecer quando são apreciados dois quadros distintos, disposto lado a lado – uma imagem poderá parecer mais “vibrante” se a adjacente for mais “monótona”, ou poderá 5
Vejam-‐se as Leis dos Contrastes de J. Itten.
6
1 | PERCEPÇÃO VISUAL EM NARRATIVAS CINEMÁTICAS
aparentar menos apelativa se a segunda for muito mais estimulante (Arnheim, 1997). 1.1.3.3. Constância Perceptual de Tamanho O tamanho que se admite relativamente a um objecto é também relativo, como consequência da análise das várias relações propiciadas, pois não corresponde literalmente à dimensão da imagem que é projectada na retina. Ele depende e irá variar em consonância com a distância a que o observador se encontra dos objectos, percepcionando a sua imagem como muito pequena, caso o objecto esteja longe ou muito grande, se estiver próximo (Arnheim, 1997). Tal é o princípio de base que conduz a que o indivíduo consiga entender os efeitos da perspectiva linear e, consequentemente, a que se faça uma adequada leitura do espaço nas três dimensões. Para além disto, se o tamanho das imagens dos objectos for determinado pela distância do observador ao objecto, o indivíduo ao mover-‐se no espaço vai registando uma variação do tamanho (aumento ou diminuição) das imagens dos próprios objectos. Não obstante, o observador possuirá a percepção de um tamanho estável para o objecto, pois na percepção do mesmo abstrai-‐se de toda essa variedade de tamanhos observados para o mesmo objecto, estimando um único tamanho, o “verdadeiro” (Arnheim, 1997). 1.1.4. Processo de Simplificação (Prägnanz) Revendo os aspectos mencionados, a imagem dos objectos será, então, composta por uma multiplicidade de aspectos, que se alteram constantemente em função de factores externos, que surgem em função da existência de inúmeras características ou situações diversas em que o objecto possa ser percepcionado. Tal significará que as imagens que se formam dos objectos se apresentam verdadeiramente complexas e variáveis para o olhar humano, uma vez que o organismo recebe todas estas informações, que o cérebro humano necessita de condensar, transformando-‐a em algo simples e constante, tal como a ‘dedução’ de um único tamanho ou cor verdadeiros dos objectos. Isto porque a “orientação biológica [do indivíduo] requer um mundo estável em que os objectos preservam a sua identidade” (Arnheim, 1997, p.38). Assim sendo, o sistema perceptivo de um indivíduo tende invariavelmente a simplificar e homogeneizar as imagens dos objectos, agrupando-‐as em unidades simples (Ward, 2003) organizadas de acordo com simplificações das características que observa nos objectos (Arnheim,
7
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
1997). A mente tende a agrupar os elementos percepcionados de acordo com padrões, procurando encontrar e estabelecer algum tipo de regularidade, de ritmo e procurando alcançar alguma forma de ‘ordem’ e ‘sentido’ naquilo que percepciona (Gombrich, 2002). “Na procura da melhor interpretação da informação visual disponível utilizamos um número de técnicas de ‘abreviação’ perceptivas que incluem organização de formas semelhantes e tamanhos semelhantes. Formas que são semelhantes são agrupadas e formam um padrão” (Ward, 2003, p. 31). Quando o observador percepciona uma forma, procura reduzi-‐la a uma estrutura de certo modo mais básica. Tal consistirá em criar um número de categorias de formas simples e gerais que se podem denominar de “conceitos visuais”, ou seja, é feita uma redução das formas a um determinado número de simplificações que constituem categorias. Apenas com o intuito de ilustrar, muitas imagens consideradas como circulares, poderão não ser exactamente percepcionadas como tal. Um observador consegue facilmente aperceber-‐se de que um círculo e uma elipse são no limite semelhantes, pois generalizando-‐se compreende-‐se que derivam de uma forma redonda, ao abstrair “as características que as formas arredondadas possuem em comum, daquelas em que diferem" (Arnheim, 1997, p.67). Por isto, segundo esse mesmo autor, “ver um objecto é sempre realizar uma abstracção” pois são sempre captados, numa primeira aproximação, “os aspectos estruturais em vez do registo indiscriminado de detalhes" pois “a percepção da forma é o agarrar das características estruturais encontradas, ou impostas, no material de estímulo” (Arnheim, 1997, p.68). Tal se verifica precisamente porque a percepção visual naturalmente não apreende réplicas das coisas, mas antes “apreende” a sua forma significativa, captando o significado e as características essenciais dos objectos, embora não todos os seus pormenores6. Quando o indivíduo recorda uma imagem, não lhe surge uma imagem estática e completa com todos os detalhes, como uma fotografia. Pelo contrário, são lembrados os seus aspectos como uma noção generalizada do seu tamanho, cor, forma, entre outros atributos (Arnheim, 1997). Esta busca automática de simplificação e significação é um processo relativo à percepção visual que lhe permite “descodificar” as representações de objectos e espaços, tendendo a ler sempre a “resposta” conforme o caminho mais simples para ser entendida, sendo neste mesmo processo que 6
Uma vez que a percepção é um processo inato e automático no organismo, estes “ajustamentos” são registados natural e inconscientemente. Até porque acompanham a própria variação do observador – a dimensão, como se viu, não varia enquanto o observador se encontra parado, mas antes varia consoante a sua posição no espaço, acompanhando o movimento do indivíduo – é então algo em sintonia com ele (Arnheim, 1997). 8
1 | PERCEPÇÃO VISUAL EM NARRATIVAS CINEMÁTICAS
assenta um dos princípios fundamentais em que assenta a Psicologia Gestalt, a lei da Pregnância7. “(...) Uma ‘boa’ forma, uma que é impressionante e fácil de percepcionar, é simples, regular, simétrica e poderá ter continuidade no tempo. Uma ‘má’ forma, sem estas qualidades, é modificada pelo observador para se conformar às qualidades da ‘boa’ forma” (Ward, 2003, p. 31) 1.1.5. Processo de Organização 1.1.5.1 Agrupamentos (Proximidade e Semelhança) As obras de arte pictóricas podem ser consideradas objectos que implicam que a visão demonstre o seu poder de organização ao máximo. Tal ocorre não apenas no acto de criação, no qual quando o pintor escolhe o tema para representar, seleccionando e reorganizando o que vê na Natureza, no Homem e na Sociedade, como também no acto de apreciação final, em que o observador começa por observar o todo, orientando-‐se primeiramente na estrutura principal da obra e só de seguida empreende o esforço de procurar contrastes e pormenores (Arnheim, 1997). Uma das relações mais imediatas realizadas através da percepção visual é a associação de objectos (ou imagens dos mesmos), de acordo com o seu grau de semelhança em termos de cor, forma, textura, tamanho ou distância8. O Princípio da Semelhança implica que a semelhança cria um agrupamento perceptivo (Arnheim, 1997). No entanto, a relação de semelhança entre dois objectos depende tanto de características formais idênticas como também da sua proximidade, princípio segundo o qual o observador tende a agrupar elementos que se encontram próximos uns dos outros. Assim sendo, elementos próximos e a igual distância são lidos como um grupo, enquanto um elemento que se encontre a uma maior distância será lido como isolado e exterior ao grupo. Um caso em que este princípio é aplicado encontra-‐se em certos métodos de impressão, sendo realizados por agrupamentos de vários pequenos pontos de diversas cores que, quando vistos a uma certa distância são lidos pela percepção com uma única cor, ou um gradiente de cor, conforme a disposição dos pontos. A razão para essa leitura deve-‐se à proximidade e relação que se estabelece entre esses pontos (Arnheim, 1997). 7
Nesta procura de organizar a experiência perceptiva do indivíduo segundo um processo de ordem e simplificação, surgem as leis gestalticas de agrupamento (proximidade, semelhança, clausura, simetria ou boa continuidade). 8 E se as imagens são agrupadas segundo características idênticas, também se destacam aquelas que possuem características diferentes.
9
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
1.1.5.2 Completando o Incompleto (Clausura e Boa continuidade) Outro aspecto da percepção visual é que esta consegue reconstituir as imagens que surgem incompletas ao observador. Sempre que uma figura não se apresenta ‘fechada’, podendo tal ocorrer porque se encontra parcialmente oculta por outra ou por possuir contornos incompletos, há uma tendência para a fechar ou completá-‐la visualmente – princípio Gestáltico da Clausura. Nestes casos, a percepção humana completa a imagem apreendendo o objecto como completo, apesar de na realidade não o ver como tal – a figura é completada com algo que, na verdade, a verdadeira representação visual, por si só, não pode propiciar (Arnheim, 1997). Este processo surge igualmente na leitura do ‘vazio’. Sobre isto, Arnheim refere que "ver o vazio significa colocar num preceito algo que pertence aí mas está ausente” (Arnheim, 1997, p.89). Isto significa que a percepção humana também ‘preenche’ superfícies que sabe que não existem. Este acto automático é visível especialmente no desenho bidimensional de geometrias e formas onde a percepção do indivíduo, ao fechar as arestas da forma, apreende a face da geometria como uma superfície imaterial (Arnheim, 1997). Um dos aspectos que permitem esta leitura, como Gurtwitsch defende, deve-‐se aos objectos terem "referências que apontam para além do aspecto dado” (citado por Arnheim, 1997, p.47), como acontece quando um "retrato a três quartos aponta para a continuação da forma para lá das suas fronteiras visíveis" ou quando as esculturas serpenteadas de Miguel Ângelo enfatizam a convexidade das formas (Arnheim, 1997, p.47). Apesar do olho humano nunca conseguir observar a totalidade de um objecto tridimensional – pois a imagem que é projectada na retina se encontra sempre inevitavelmente incompleta – a sua percepção possui certas “referências” que lhe permitem saber aquilo que não vê. Este processo deve-‐se ao facto de que a percepção visual tender a “extrapolar” e “continuar” a representação dos objectos para lá da imagem bidimensional que vê (Arnheim, 1997). Isto porque o indivíduo tende a ver as coisas com sentido e pelo menor esforço, procurando sempre neste sentido encontrar a melhor forma para a apreensão do mundo representado (Gombrich, 2002). Estes aspectos perceptivos são possíveis por derivarem do conhecimento visual e cognitivo que o indivíduo possui dos objectos. É por possuir este conhecimento prévio do objecto que, ao vê-‐lo incompleto ou oculto, tem a capacidade de o “completar” do ponto de vista da percepção (Arnheim, 1997), vendo-‐o para lá do que lhe é apresentado.
10
1 | PERCEPÇÃO VISUAL EM NARRATIVAS CINEMÁTICAS
1.1.6. Experiência e Memória “A visão não é uma transferência na direcção do olho para o cérebro. Há também uma troca entre as 30 áreas conhecidas do cérebro visual e o uso de informação visual armazenada. A nossa percepção do mundo é muito do que nós esperamos que seja tanto como é sobre o que efectivamente vemos” (Ward, 2003, p. 35) O indivíduo aplica ao presente aquilo que aprendeu sobre as coisas no passado – memórias, conceitos, experiências: "vemos as coisas como as vemos por causa do que esperamos que elas pareçam" (Arnheim, 1997, p.80). A percepção construída dos objectos, espaços e eventos encontra-‐se dependente de aspectos cognitivos e de memória sobre aqueles, com base em experiências passadas semelhantes. Desta forma, quanto maior a verificação de aspectos da nossa experiência num objecto representado, maior a credibilidade que lhe será conferida. Os objectos, a um nível perceptivo, não são imutáveis: eles movem-‐se, dobram-‐se, encolhem, mudam de cor, existem em determinados ambientes, são protagonistas em determinadas acções. O indivíduo sabe que os objectos possuem uma identidade e uma forma permanente (Ward, 2003), pelo que todas as mudanças da representação de um objecto, sejam consequência de mudança de ponto de vista, deformação do objecto, da sua acção, uso ou interacção com os envolventes, será sempre aceite como credível e autêntica se mantiver a identidade e coerência para com o conceito, bem concreto, que se tenha desse objecto. Esta intersecção entre percepção e memória constitui assim a base do reconhecimento das coisas que o ser humano observa à sua volta (Arnheim, 1997). Arnheim refere que é preciso "ver as mudanças físicas do objecto como desvios de uma forma de norma"(Arnheim, 1997, p.52). Neste processo são criadas “imagens de norma”. Estas funcionam como a base que auxilia à percepção dos objectos, sendo que todas as variações observadas na sua imagem correspondem a desvios da ‘norma’. Um objecto pode ter um segundo significado, para além dele próprio: metáforas e símbolos. A experiência e conhecimento prévios ajudam efectivamente a estabelecer relações e significados numa imagem, pois constituem a base que permite ao indivíduo compreender e interpretar um objecto e contexto – tal é o caso de alguns símbolos ou sinais que assentam muito sobre o seu contexto para auxiliar o seu entendimento. 11
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
1.1.7. O Tempo de Percepcionar De forma genérica, imagens mais complexas levarão um maior tempo até o indivíduo apreender a sua totalidade: quanto mais complexa for a forma do objecto, mais difícil será a tarefa perceptiva de extrair a sua forma e significado (Arnheim, 1997). Mas tal não constitui o único motivo, nem este se aplica de forma tão linear. Uma das características da espécie humana é o facto de cada indivíduo ser diferente, não só em termos físicos exteriores, mas mais relevantemente, em termos dos seus interesses, de culturas, sociedades e valores, conduzindo a que os conhecimentos que cada indivíduo possui sejam igualmente variados e distintos. Por isso, o tempo que um observador leva a completar a percepção dos objectos varia inevitavelmente, como também poderá variar o seu significado, dependendo não só da complexidade da imagem, mas também consoante a espécie, o grupo cultural, a experiência ou o treino do observador (Arnheim, 1997). Tal acarreta a que certas imagens e objectos possam ser percepcionados e compreendidos mais fácil e rapidamente, e de forma diferenciada. Isto porque “a quantidade de tempo mínima necessária para reconhecer um objecto (...) irá depender na familiaridade e expectativa dessa imagem específica” (Ward, 2003, p.31), pelo que um observador poderá percepcionar uma imagem complexa mais rapidamente do que seria de esperar, se esta for algo habitual ou se já possuir uma determinada experiência prévia. Isto também porque a apreensão de uma imagem nem sempre ocorre de forma instantânea e imediata -‐ caso especialmente ilustrado no caso de obras de artes. A observação e análise de um quadro não se processa instantaneamente, mas sim por fases em que o observador começa primeiramente por identificar aspectos e relações gerais – como os referentes à composição – e apenas após isso começa a identificar e apreender os detalhes (Arnheim, 1997).
1.2. A Atenção Perceptiva 1.2.1. Selectividade da Visão “A percepção está dependente da atenção. Se a atenção estiver concentrada numa pequena parte do campo visual, pouco será percepcionado do resto da cena. Se a atenção estiver espalhada sobre uma grande área, nenhuma parte será muito clara e precisamente percepcionada. A quantidade total que pode ser atendida a qualquer um momento é constante” (Ward, 2003, p. 33).
12
1 | PERCEPÇÃO VISUAL EM NARRATIVAS CINEMÁTICAS
A percepção visual não consegue apreender tudo o que está abrangido pelo campo de visão, ao mesmo tempo e de igual forma9, pois a visão e consequentemente a nossa percepção cognitiva, é altamente selectiva (Arnheim, 1997), levando a que o olhar humano apenas consiga concentrar-‐se numa área ou elemento de cada vez (Gombrich, 2002). A sensibilidade da retina é relativamente limitada, por isso o olho deverá isolar um ponto específico que se torna dominante, central (Arnheim, 1997). O campo visual geralmente encontra-‐se muito sobrecarregado e, tipicamente, o observador concentra-‐se em algumas áreas seleccionadas, ficando a leitura do restante mais impreciso. Esta selectividade “facilita a prática inteligente de se concentrar num objecto de interesse e negligenciar o que há para além do ponto de atenção” (Arnheim, 1997, p.25), ou seja, focar-‐se puramente no que interessa e negligenciar o que não motiva. Não obstante, diversas formas e técnicas conseguem contribuir para recentrar o olhar, alterando aquilo em que a visão se fixa. Esta finalidade pode ser ilustrada pelas técnicas de destacar pelo movimento ou pelo uso de cores saturadas, claras ou focos luminosos nos objectos. A acuidade visual perde-‐se com a distância. Leonardo da Vinci investigou sobre as questões ligadas à “perspectiva di perdimenti”10 e observou que, com o incremento da distância se perde primeiro a forma, seguidamente a cor e por último a massa do objecto. Por isso, quando se vê uma pessoa desaparecer na distância, o observador deixa inicialmente de conseguir distinguir quem ela é, depois deixa de identificar as suas cores até se descortinar apenas um ponto à distância (Gombrich, 2002). 1.2.2. Ritmos e Padrões O ser humano necessita de uma noção de ordem no mundo à sua volta, encontrando um sentido de regularidade em todos os aspectos do mundo bem como da sua existência. Necessita de percepcionar o mundo de forma constante, organizada e com sentido. Na natureza podem-‐se isolar e identificar ritmos e padrões nas mais diversas coisas. Os ritmos que se encontram na Natureza ou no Espaço Humanizado surgem tanto da forma visual (estática), como no tempo (movimentos), como o ritmo dos movimentos pendulares (Gombrich, 2002). Os movimentos de um ser humano podem-‐se encontrar no andar, nos gestos, nas expressões, no 9
Sendo claramente distinta da fotografia neste aspecto que consegue focar perfeitamente tudo quanto se encontra no seu campo visual. 10 “perspectiva de desaparecimentos” 13
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
dançar ao ritmo da música, sendo estes normalmente inconscientes. O homem tem uma enorme empatia com o ritmo (Gombrich, 2002). No ser humano, a tendência para estabelecer padrões é sempre realizada de modo controlado e com busca de significados (Gombrich, 2002), porque o Homem sempre transformou o seu reconhecimento de padrões e a sua capacidade de movimento em propósitos úteis e funcionais (Gombrich, 2002). Daqui nasceu a linguagem, a filosofia e a matemática, tendo operacionalizado esses processos de pensamento abstracto, dirigindo-‐os a diversos tipos de artefactos, fossem eles máquinas, utensílios ou mesmo obras de arte. Assim, na sua evolução, artefacto e abstracção passaram a dominar a sua vida (Morris, 2002). O ‘sentido de ordem’ humano que Gombrich (2002) refere é algo inerente à sobrevivência, pois o mesmo reconhece e responde a desvios, distinguindo as diferentes coisas do mundo, precisamente porque tem a capacidade e tendência para criar ordens. Apenas reconhecemos elementos distintos quando temos um grupo de elementos regulares por base para comparar (Gombrich, 2002). A procura da ‘ordem’, de um sentido de regularidade, é algo de inato e imprescindível ao ser humano para que apreenda o mundo constituindo, em parte, também a base da percepção visual. Relacionando este sentido de ordem com a percepção, dá-‐se uma simplificação e organização dos conceitos que presidem à mesma. Quando uma ordem ou padrão não se torne de imediato identificável, a percepção simplificá-‐la-‐á ao ponto de a conseguir reduzir a aspectos gerais e essenciais, que já permitam estabelecer uma ordem plausível. 1.2.3. Monotonia e Variedade Apesar do Homem procurar ‘ordem’ na sua experiência e percepção do mundo, os ritmos constantes e invariáveis provocam uma reacção negativa na sua percepção. Tudo quanto se torne demasiado repetitivo, pode tornar-‐se monótono ou até causar desconforto, ao ponto da percepção visual rejeitar ou deixar de percepcionar o que está a ver. Por vezes alguns padrões e ritmos podem causar estranheza, tonturas, cansaço visual, entre outros efeitos. É fácil perceber que um indivíduo pára de responder, ao fim de um certo tempo, a certos estímulos, como barulhos ou cheiros, se estes forem persistentes e constantes. Quando o observador fixa uma figura durante um certo período de tempo, pode tender para começar a alterar aquilo que percepciona, desvanecendo-‐se as cores, desaparecendo os padrões ou acentuando-‐se os contornos (Arnheim, 1997). Tal consiste numa reacção natural do sistema perceptual à monotonia,
14
1 | PERCEPÇÃO VISUAL EM NARRATIVAS CINEMÁTICAS
seja ela considerada em termos de os padrões serem demasiados repetitivos ou de existir falta de contraste. Torna-‐se fácil para a percepção apreender um padrão repetitivo, mas é especialmente notório em imagens com forte contraste, como nos padrões a preto e branco, que tal repetição e contraste podem causar sensações de cansaço e desconforto visual (Gombrich, 2002). A repetição simplista, sem um elevado grau de complexidade, não desperta qualquer interesse visual ou mesmo estímulo intelectual no indivíduo, sem que este o consiga apenas ignorar, gerando-‐ se frequentes vezes reacções de desconforto ou de ansiedade perante tais situações. Estas sensações de desconforto aumentam com o número de repetições, ou seja, crescem exponencial e não linearmente (Salingaros, 2011). A introdução de variedade evita este estado de coisas, pois desta forma, a percepção do indivíduo é estimulada e tende a uma reacção automática a mudanças de ambiente. Assim, ele reage mais a estímulos de mudança com contrastes de natureza visual ou de movimento, do que a algo imóvel e estático11 (Arnheim, 1997). O sistema visual do ser humano obedece a um sentido de “economia”, identificando mudanças e ignorando o que é estático e imutável (Ramachandran & Gregory, 1991). Torna-‐se então quase inevitável não se redireccionar a atenção, quando subitamente se introduz algo móvel num ambiente estático. A introdução ou criação de demasiada variedade também confunde e causa dificuldades em percepcionar e distinguir as imagens. O deleite visual12 encontrar-‐se-‐á numa espécie de estado de equilíbrio homeostático entre a monotonia e a complexidade em grau “excessivo”13 (Gombrich, 2002). Tal poderá ocorrer quando existe uma “variação estruturada e ritmos espaciais complexos” à sua volta (Salingaros, 2011), mas não uma variedade e complexidade exagerada e aleatória pois apenas causaria confusão e dificultaria a percepção do mundo – o indivíduo responde de modo mais positivo a uma “living geometry”, ou seja, a uma complexidade particular incorporando coerência (Salingaros, 2011).
11
Os aspectos que a percepção considera ‘imutáveis’ poderão referir-‐se não só a padrões repetitivos ou objectos estáticos, mas também a fracos contraste entre cores, texturas ou formas – como acontece em imagens com cores demasiado idênticas que levam a que as cores se misturem e o contraste desapareça – isto porque, novamente, a percepção visual simplifica toda a informação que recebe dos objectos. 12 A expressão ‘variatio delectat’, que se traduz por ‘a variedade deleita’ (Gombrich, 2002) exprime este conceito. 13 Segundo Gombrich, a informação é medida pelo seu grau de ‘inesperado’, enquanto o ‘esperado se torna redundante ́ (Gombrich, 2002). 15
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
16
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS 2.1. Ficção Cinemática e Acção Dramática Os videojogos destacam-‐se de outros meios de entretenimento pela sua característica interactiva mas, tal como o cinema, constituem igualmente uma narrativa visual construída através de uma acção dramática. Quer estejamos a falar de narrativas cinematográficas ou narrativas interactivas, qualquer uma delas tem como começo “contar uma história”. Por serem meios de entretenimento, ambos procuram na sua finalidade entreter, relatando um conjunto de acontecimentos fictícios através de imagens e efeitos visuais. Neste sentido, as características essenciais da dramatização (construção dramática) que evoluíram primeiro com o teatro e depois com o cinema foram absorvidas também pelas narrativas visuais interactivas. O cinema e os videojogos possuem várias práticas, abordagens e conceitos que partilham, em grande parte, porque os videojogos na sua evolução absorveram e retiraram muitas características do cinema e dos filmes de animação 2D e 3D, na procura de criar maior realismo, maior imersividade e maior resposta emocional no espectador/jogador. Nem todos os videojogos são narrativos. No entanto a grande maioria – e aqueles que se pretendem considerar neste trabalho – contem também de personagens e conflitos num mundo ‘diegético’ virtual (Wolf, 2001a), tendo em relação às narrativas fílmicas uma fundamental diferença: num videojogo o espectador a quem é narrado o argumento e seu(s) enredo(s), é também personagem actuante nestes, determinando portanto em parte a própria narrativa, eventos, espaços, acção e evolução da ficção. 2.1.1. Acção Dramática 2.1.1.1. Ideia e Tema A escrita e desenvolvimento de qualquer “história” começa sempre naturalmente com uma ideia 17
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
e sua sinopse, um tema e enredo que se irá dramatizar a um nível mais profundo, detalhado, concreto e emocional. O tema possui uma relação inevitável com as personagens visto que serão estas que irão propiciar a acção e o fluxo dramático – à acção veiculada pela personagem, ou transmitida e por ela revelada, pois uma pessoa é o que faz, não o que diz (Field, 2005). Um tema desenvolve-‐se à volta da história e da acção, mas a acção está intrinsecamente ligada às personagens. A escrita e desenvolvimento de qualquer “história” começa sempre naturalmente com uma ideia e sua sinopse, um tema e enredo que se irá dramatizar a um nível mais profundo, detalhado, concreto e emocional. Uma ideia pode vir de várias fontes: a maioria dos autores retira ideia da sua memória ou experiência pessoal (ideia seleccionada), mas poderá também surgir de algo (comentário, história, evento) que alguém lhe conta (ideia verbalizada); poderá ser retirada de um jornal, revista ou livro (ideia lida ou gratuita); poderá ser retirada de uma outra ficção, seja ela filme, livro, teatro, sendo depois manipulada (ideia transformada). A ideia poderá também ser imposta ou encomendada ao autor (ideia proposta) ou ser encontrada depois de um estudo sobre o mercado: algo que ainda não foi abordado ou que agrada a uma grande maioria e portanto com elevada procura/probabilidade de sucesso (ideia procurada) (Comparato, 2009), podendo a origem da ideia do guião na verdade ser mais do que de um só tipo. 2.1.1.2. Storyline, Sinopse e Argumento Em Guionismo, definido o tema, segue-‐se a criação do storyline, a partir da qual se constrói a sinopse14 e o argumento15. Um argumento dramático necessita de quatro conteúdos essenciais: temporalidade, localização, personagens e conflito – ou seja, o quando, o onde, o quem e o qual (Comparato, 2009). A storyline é a síntese ou resumo da história, descrevendo o conflito matriz e o essencial da acção, mencionando os três pontos-‐chave da história: exposição (quando acontece alguma coisa), enredo(s) (alguma coisa é ou deve ser feita) e desenlace (alguma coisa se faz e se resolve) (Comparato, 2009). 14
Ao contrário do que acontece numa storyline, uma sinopse já especifica de maneira clara e concreta os acontecimentos da história – numa sinopse o objectivo do protagonista está claro, indica o clímax da história e descreve as acções principais do protagonista (Comparato, 2009). 15 O argumento corresponde genericamente a uma sinopse estendida, onde se poderão inclusive incluir alguns fragmentos de diálogo. 18
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Uma vez que descreve apenas o conflito central, não inclui o tempo, o espaço ou a composição das personagens (Comparato, 2009). Qualquer ficção precisa de um tempo e local, visto que qualquer acontecimento deles necessitar para ocorrer. O quem e o qual são os dois conteúdos de maior peso numa narrativa, pois são eles que maioritariamente a constroem e permitem o desenrolar do drama. 2.1.1.3. Personagens As personagens e a acção/conflito são aspectos interligados, pois um não existe sem o outro, nem se consegue separar “o que se passa de quem o faz ou a quem isso sucede” (Comparato, 2009, capítulo 5) – a história ajuda a definir as personagens através das suas acções e dá-‐lhes motivação, conflito e um caminho de acção (Maestri, 2002). Por sua vez são as personagens -‐ nomeadamente o protagonista e antagonista -‐ e as suas acções -‐ que vão desenvolver o conflito (Comparato, 2009). Uma narrativa possui diversos tipos de personagens: os Protagonista(s) -‐ que são aqueles que se encontram no centro da acção e que por isso são também os mais trabalhados e caracterizados, os Antagonista(s) -‐ que são o oposto, oponentes dos protagonistas, as Personagens Secundárias -‐ servem para suportar e sublinhar a centralidade dos protagonistas e componentes dramáticos, sendo elementos complementares de união, explicação ou solução (Comparato, 2009). Uma personagem, nomeadamente os protagonistas, apesar de ser uma criatura fictícia, pode ter uma personalidade com actos conscientes e inconsciente, impulsos involuntários como a expressão de um olhar, um tique nervoso ou um gesto violento, entre outros (Comparato, 2009), ter um pensar, sentir e expectativas, pontos de vista e atitudes. Os seus actos irão despertar tensões e conflitos que impulsionarão a acção (Comparato, 2009). As personagens têm motivações – muitas vezes, justificadas ou explicadas através de uma backstory – e força de vontade que impulsionam e desenvolvem a acção e o conflito. Ao longo do enredo existe também nos protagonistas um crescimento interno e uma mudança de atitude, que cria maior interesse do que uma personagem “plana”, havendo no espectador um gosto particular no acompanhar da evolução do ser e pensar das personagens (Comparato, 2009). As necessidades da personagem – a necessidade dramática – ou seja, o que a personagem quer ganhar ou alcançar, irão determinar a estrutura dramática do guião. Elas determinam as escolhas que ela faz ao longo da acção (Field, 2005). É portanto importante definir a necessidade dramática da personagem – o que ela quer, qual a 19
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
sua necessidade, o que a motiva ou impulsiona – para justificar e definir a resolução da história, que lhe irá dar um objectivo, um destino e um final. Como e se irá a personagem central alcançar ou não os seus objectivos torna-‐se a acção central da história (Field, 2005). Estando a falar de narrativas visuais, todos estes aspectos da personagem – o que a motiva, o que sente, o que pensa para que o espectador os vejam e entenda – têm de ser transpostos para o ecrã através da acção: são as suas acções que definem e que “contam a história” (Maestri, 2002). Este aspecto é especialmente evidenciado na animação (quer 2D, quer 3D), onde tipicamente os movimentos dos personagens são exagerados e muito mais expressivos e dramáticos. 2.1.1.4. Personagens nos Videojogos Tal como no cinema, nos videojogos as personagem podem ser categorizadas pela função que elas servem (Wolf, 2001a). Nas narrativas interactivas, a personagem principal é naturalmente a personagem-‐jogador. Esta é o agente principal, aquela que possui um objectivo e que funciona como substituto do espectador-‐ jogador no mundo diegético do jogo. Mas existem depois diversos personagens, cuja actuação é pré-‐definida pelo computador, com diversos papéis no âmbito da narrativa e acção do jogo. Ao longo do jogo o jogador encontra personagens que o ajudam a completar o objectivo ou missão dando pistas e informações ou podendo até participar como sidekicks, outros surgem como oponentes e obstáculos do personagem-‐jogador, ou existem apenas para o jogador ajudar ou salvar. Existem ainda encontra personagens neutros, aqueles que surgem apenas no plano de fundo para criar atmosfera e ambiente como figurantes (Wolf, 2001a). Claro que nem sempre é óbvio qual o papel algumas personagens têm. Se uma personagem é um aliado ou não pode apenas vir-‐se a descobrir mais tarde no jogo. 2.1.1.5. Conflito Sem conflito não existe o drama. Ele é essencial numa acção dramática e, como já se mencionou, ele encontra-‐se intrinsecamente ligado com a criação das personagens principais – sem conflito não há acção, sem acção não há personagem, sem personagem não há história (Field, 2005). O conflito nasce do confronto de opostos (forças e personagens) e de uma relação de causa-‐
20
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
efeito, pelo meio dos quais a acção se organiza e se desenvolve. Uma acção não surge sozinha, sem ser o resultado de outra coisa, por isso a acção é tão importante como os factores que para ela concorreram (Egri, 1960) – que podem ser de origem interna ou externa, e neste último caso podendo ser com uma força humana ou não humana, divina, mítica ou da natureza (Comparato, 2009). Pode também ter diferentes focos: intrapessoal, interpessoal, situacional, social ou relacional. (Hicks, 1999). A acção dramática é no fundo o conflito ordenado, ou seja “é o conjunto de acontecimentos inter-‐ relacionados que irão se resolvendo por meio das personagens até o desenlace final” (Comparato, 2009, capítulo 5) – são os eventos, o seu porquê e o seu resultado ou consequência. O conflito possui duas qualidades essenciais incorporadas que atraem publico e o fazem reagir emocionalmente. A principal razão é a sua motivação: qualquer que seja o conflito principal do drama ele tem igualmente de ter uma motivação, uma razão que o despolete e que o crie. Quando o conflito tem uma razão de ser faz o espectador entrar em correspondência com ele. Esta é a segunda qualidade essencial pois procura-‐se sempre que o espectador se projecte na personagem, e que o problema da personagem “surja” também no espectador. A correspondência e motivação, juntas, levam a um ponto de identificação entre o público e a história (Comparato, 2009). Portanto núcleo dramático – o conjunto que cria a acção dramática – é composto pelo “conjunto das personagens unidas pela mesma acção dramática, que se organiza num plot” (Comparato, 2009, capítulo 6). O plot é a parte central da acção dramática, é a forma dramática que melhor conta a história, obedecendo aos princípios chave da totalidade e unidade, ou seja, todas as partes que a compõem são igualmente importantes em relação ao todo, tudo estando harmoniosamente ligado e funcionando em conjunto (Comparato, 2009). 2.1.1.6. Construção Dramática No entanto, a construção da acção dramática segue sempre uma determinada estrutura. A estrutura é o elemento que “tem por função apresentar o drama, manter e aumentar o interesse do espectador” (Comparato, 2009, capítulo 6). A estrutura implica uma fragmentação da acção – em cenas e sequências – mas que é depois organizada de forma a construir e apresentar o drama como se pretende e de forma a criar o máximo de tensão dramática (Comparato, 2009). A estrutura dramática clássica é dividida em três momentos que são princípio, meio e um fim,
21
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
como qualquer estrutura narrativa clássica. Estes momentos correspondem ao primeiro acto, segundo acto e terceiro acto, sendo que cada acto também tem um começo, um meio e um fim. Genericamente, no primeiro acto é exposto o problema e o conflito emerge. No segundo acto dá-‐ se a complicação e tentativa de resolução do problema, a acção é levada ao limite e desenvolve-‐ se a crise. No terceiro acto é onde se dá o clímax e onde o conflito é resolvido (Comparato, 2009). Existem claro sempre cenas essenciais que contém informação fundamental para o desenrolar da acção dramática – são as cenas de exposição – onde o motivo para o drama ou o problema é exposto e apresentado ao público, cenas de preparação – que informam e preparam o espectador para as complicações que hão-‐de vir, cenas de complicação – onde se desenrolam os problemas e complicações, preparando o espectador para as cenas de clímax – o ponto mais alto do conflito, e as cenas de resolução -‐ onde se chega naturalmente à conclusão (Comparato, 2009). Entre estas é necessário que surjam cenas de transição, quer sejam de passagem do tempo, por vezes cenas de flashbacks ou flashforwards, cenas de localização – planos de cidades, casas, ambientes, que “integram o espectador dentro da acção”, cenas oníricas (sonhos) e cenas de inserto, entre outras. Na construção dramática surgem dois incidentes transpostos visualmente para o ecrã em cenas específicas: o inciting incident e o key incident (Field, 2005). O inciting incident serve para captar a atenção da audiência e despoletar o conflito (Field, 2005), por isso muitas vezes este surge logo no início da narrativa – como em Irmandade do Anel (2001) em que a primeira cena (quando Bilbo encontra o anel) é o incidente que despoleta toda a trilogia. Nos videojogos, do tipo que estamos a trabalhar, isto também é frequentemente feito. A sua maioria começa sempre com uma cena cinematográfica, que serve para situar o espectador na história, ao mesmo tempo que despoleta o conflito central da narrativa. O inciting incident conduz sempre ao key incident. O key incident é o incidente central da acção, a partir do qual todo o conflito se desenvolve, é a cena que corresponde à visualização dramática do conflito central da história (Field, 2005) – para ilustrar, em Irmandade do Anel (2001) o key incident acontece quando Frodo herda o anel. Condensando todos os factores chave da construção dramática, esta genericamente se desenvolve a partir de uma sequência introdutória ou backstory, que estabelece as circunstâncias para a história e nos apresenta o protagonista, seguida de um inciting incident que apresenta ao protagonista um problema para resolver e ultrapassar, fazendo-‐o focar-‐se num objectivo externo. 22
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
No entanto, para se criar drama tem que surgir oposição, uma força externa que tente impedir o protagonista de atingir o objectivo. A acção desenvolve-‐se na procura de resolução desse problema, eventualmente existindo um ponto de auto-‐revelação pelo protagonista (no ponto mais baixo do drama quando o protagonista sofre mudanças significativas por causa da pressão do conflito dramático externo), posteriormente seguido de uma fase de obsessão em que o protagonista passa a focar-‐se mais intensivamente no objectivo. Finalmente vem a batalha – não necessariamente uma confrontação física – ou seja, o confronto entre o protagonista e o antagonista ou força oposta, e a sua resolução em que o protagonista resolve o conflito (Hicks, 1999). 2.1.1.7. Controlo emocional da Audiência No final, o objectivo de qualquer meio de entretenimento é suscitar e controlar as emoções do espectador. Sempre que se conta uma “história” pretende-‐se despertar o interesse na audiência. Procura-‐se sempre emocionar e criar antecipação e expectativas no espectador – por vezes até inverter essas expectativas para o surpreender – até à satisfação final. Por isso a generalidade das narrativas cinemáticas seguem genericamente o processo de transformar o princípio, meio e fim (os três actos que se mencionaram anteriormente) em atracção, antecipação e satisfação (Hicks, 1999). No início (acto I) atrai-‐se a atenção do espectador quando se apresenta o protagonista juntamente com o problema e o objectivo. A atracção do espectador na verdade não é tanto pelo personagem mas pelo problema. É o problema que o personagem encara que atrai a atenção da audiência (Hicks, 1999) Claro que este passo é o primeiro passo importante para garantir que o espectador segue e mantem o interesse na “história” pois nenhum espectador continua a ver a narrativa apenas numa procura de encontrar algo de interessante – até porque ele não sabe como o drama se vai desenrolar, é para isso que vêem e acompanham estas “histórias” até ao final. Por isso as personagens e o conflito apresentados logo o início têm de conseguir logo atrair o interesse do espectador. Quando se sobe a tensão dramática no acto II é quando a antecipação da audiência também aumenta, à medida que mais eventos interessantes acontecem – eventos relacionados com o sucesso ou falhanço do motivo do drama, se criam obstáculos, se cria suspense, dúvida, surpresa, ... (Comparato, 2009). Todos estes recursos, entre outros, interferem com as emoções do espectador mantendo-‐o interessado no drama e acção dramática – depois de ser apresentar o problema, não se procura imediatamente saltar para o clímax e resolução, pois não é isso que o espectador procura 23
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
quando segue uma narrativa. É o drama, os problemas e a sua resolução que o impulsionam a continuar a segui-‐la, é isso que tem a capacidade de emocionar e interessar o espectador (e é isso que procura). Por isso, em termos emocionais. Esta é a parte central (e maior) da narrativa. No final (acto III) quando os problemas e obstáculos são resolvidos e o protagonista atinge o seu objectivo dá-‐se o momento de satisfação do espectador, sendo a tensão criada no acto II é aliviada (Hicks, 1999). 2.1.2. Acção dramática nos Videojogos As narrativas interactivas distinguem-‐se por envolverem a audiência de uma maneira directa, tornando o espectador num participante e permitindo-‐lhe controlar a(s) personagem(s) na sua progressão pela narrativa do jogo (Wolf, 2001a). A característica da interactividade parece contrariar o processo da construção dramática – como poderá a acção chegar a uma resolução pretendida se o jogador tem a possibilidade de interferir e tomar decisões? Nem todos os videojogos possuem uma narrativa muito desenvolvida, alguns possuem apenas uma linha narrativa muito simples. No entanto, outros incluem diversos momentos de decisão pelo jogador ramificando a narrativa em diversas direcções, consequências e resultados. Isto apenas implica que não existe um único e predefinido final mas vários e qual destes acabará a narrativa depende do jogador (Wolf, 2001a). Mas isto não implica que uma narrativa e uma acção dramática sejam impossíveis de construir. A interactividade não funciona necessariamente contra a existência de uma narrativa, simplesmente requer que estejam presentes múltiplas linhas de acção ou o potencial para uma variedade de possibilidades narrativas (Wolf, 2001a). Colocar a acção de uma videojogo num contexto narrativo também dá ao mundo do jogo uma maior ilusão de profundidade e riqueza, e ao jogador (enquanto personagem principal da história) dá-‐lhe motivação quando se coloca este em risco, quando tem de reagir perante acções que têm origem no enredo do jogo. A não existir, a acção num jogo seria apenas um exercício aleatório e sem significado. Deste modo, jogar o jogo significa participar numa história e lutar por uma causa, em vez de ser apenas um exercício de coordenação motora ou de resolução de um puzzle. A narrativa unifica a acção do jogo e ajuda a criar uma sensação de participação da parte do jogador em vez de este simplesmente interagir (Wolf, 2001a). 24
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Os objectivos, obstáculos, escolhas, consequências, meios e finais dados ao jogador são as ferramentas que moldam a experiência narrativa (Wolf, 2001a). A acção dramática no caso dos videojogos desenrola-‐se de uma forma particular e variada através dos diferentes géneros e exemplos. Nem todos os videojogos possuem um enredo. Alguns não possuem quaisquer elementos narrativos de todo, como os de lógica ou puzzle puros (jogos como Sudoku, Tetris ou Bejeweled, entre outros). Mas muitos deles criam uma ficção – podendo esta ser mais ou menos detalhada – onde o jogo se insere. Alguns desenvolvem essa ficção num enredo concreto, outros deixam-‐se ficar pela definição de um storyline ou por apenas estabelecer uma ambiência visual. Cada um destes tipos de videojogos possuem características e dispositivos próprios que despertam e mantém o interesse da sua audiência, sendo que cada qualquer um destes tipos possui um tipo de audiência próprio: alguns jogos captam a audiência sem necessitarem de progredir segundo um enredo – uma vez que certos jogadores apreciam simplesmente as mecânicas do jogo e a sensação de evoluir a nível pessoal; outros captam o interesse e atenção dos jogadores através das histórias que narram, alguns até de forma muito emocional (como Final Fantasy VII, 1997). Os videojogos para os quais se cria uma ficção, não desenvolvida num enredo, consideram-‐se ter uma “história” associada no sentido em que é criado e desenvolvido visualmente um mundo ficcional onde o jogo e suas personagens se inserem – é desenvolvido apenas o concept art visual. A motivação e objectivo do jogador nestes casos coloca-‐se em termos de uma simples progressão por obstáculos ou níveis – uma superação pessoal do jogador sobre as suas próprias capacidades – ou apenas curiosidade sobre como se irá constituir o próximo nível, o próximo mundo, os novos personagens ou recompensas conquistadas. Em muitos destes casos é principalmente o trabalho visual (concept art) que mantém e impulsiona o interesse e curiosidade do jogador. Alguns estabelecem apenas um espaço ficcional visualmente transmitido ao jogador – um cenário e por vezes uma ou mais personagens, como nos vários Cut the Rope (2010-‐2014) – mas sem mais nenhum elemento narrativo utilizado ou desenvolvido, ou seja em termos de Gameplay mantém-‐se um jogo de lógica ou puzzle, e não um Gameplay que progrida ao longo de um enredo (Figura 1). Outros chegam a criar algo como uma premissa ou um storyline, que por vezes é completo, por outras não: Jogos como Crossy Road (2014) ou Plants vs Zombies (2009) criam um storyline muito 25
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
básico, estabelecendo cenário, personagens e um objectivo final (Figura 2). Jogos como The Sims (2000) ou género God Games, criam uma espécie de premissa – criar famílias e controlar as suas vidas, ou construir e desenvolver um império através de mais conquista, mais construção, entre outras ideias – mas não criam um storyline completo, uma vez que não existe uma resolução, não há um game over, um fechar e conclusão de um acontecimento, problema ou conflito.
Figura 1 – Screenshots de diferentes ambiências, não relacionadas com as mecânicas de jogo, em diversos níveis nos jogos Cut The Rope (2010-‐2014).
Figura 2 – Screenshots de diferentes ambiências em Crossy Road (2014) que constroem diferentes storylines ao alterar cenários e personagens, apesar da mecânica de jogo se manter a mesma.
Mas como se mencionou, alguns videojogos são desenvolvidos integrando uma narrativa – ou enredo – com o seu gameplay. São jogos em que a progressão dos eventos bem como a passagem das personagens por eles, e por vezes o seu crescimento interno16 está intrinsecamente ligada com as mecânicas do jogo, sendo muito difícil separar um do outro. 16
Em verdade, nem todos os videojogos revelam um trabalho cuidado pelo crescimento interno das personagens, ou uma mais profunda caracterização destas, mas verifica-‐se que alguns bons exemplos actuais e que marcaram uma grande número de jogadores (como The Last of Us, 2013) revelam um trabalho neste aspecto. 26
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Se estes videojogos utilizam a estrutura clássica dos três actos – e se esta se adequa ao game design – é um assunto que tem sido muito discutido, mas depende muito do videojogo que se pretende criar ou que se opte analisar. No entanto, a maioria dos videojogos narrativos, para além da progressão central da sua narrativa e gameplay, possuem frequentemente alguma fase, momento ou dispositivo onde o mundo, as personagens e o enredo são dados a conhecer ao jogador no início do jogo. Tal pode ser feito de variadas formas, como com cenas cinematográficas introdutórias, ou integrando o gameplay através da interacção do protagonista-‐jogador com outras personagens e adereços que introduzem a narrativa e os objectivos e, no final, uma fase de resolução de todo o enredo que se foi desenvolvendo. Estas três fases podem ser equiparadas aos três actos da estrutura clássica. Dentro destes videojogos que possuem um enredo, existem uns mais complexos que outros, mas todos possuem uma linha central da acção – narrativa principal – onde se encontra um número de eventos-‐chave que o jogador têm de ultrapassar. Se estes eventos têm de ser ultrapassados segundo uma sequência fixa e pré-‐determinada, ou se o jogador possui um controlo e liberdade de configurar a sequência dos eventos, depende do videojogo em questão. A maioria destes videojogos com enredo, para além da linha principal da acção que necessita sempre de existir, acrescentam frequentemente enredos ou eventos secundários pelos quais o jogador pode escolher progredir, se quiser. Estes são opcionais pois por definição não possuem qualquer influência para a linha central de acção, nem interferem directamente com a resolução final do jogo. Mas apesar de a maioria dos casos criar estas missões secundárias apenas como complementos adicionais, outros desenvolvem-‐nas com maior complexidade podendo até por vezes ter influência para a linha de acção principal. Estas mini narrativas ou objectivos opcionais contribuem não só para uma maior complexidade do enredo do jogo, como também lhe acrescentam maior interesse e dinamismo, despertando em muitos jogadores maior curiosidade e procura pela exploração tanto do mundo como da narrativa do jogo. Por vezes é ainda incluída a possibilidade das escolhas do jogador poderem afectar o enredo e o final do jogo, até certa medida, em termos da narrativa. Isto cria a possibilidade de um enredo que é relativamente configurável e construído pelo próprio jogador, e não um enredo rígido, pré-‐definido à priori como surge nas narrativas fílmicas.
27
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Esta manipulação e construção do enredo – ou seja, esta “liberdade” relativa do jogador – é no entanto sempre limitada pois um jogo necessita de ter sempre um conjunto mínimo de regras e pré-‐ determinantes estabelecidas para existir e funcionar. Igualmente, estes casos possuem sempre um storyline estabelecido e uma estrutura narrativa central, por isso as diferentes “versões” de enredo que poderão ser criadas são variadas apenas dentro de um número reduzido de opções e nunca tão variadas ao ponto de originarem storylines totalmente distintos. Adicionalmente, a maioria destes videojogos possuem a possibilidade do jogador percorrer livremente o espaço virtual, levando a que a narrativa visual seja construída de uma forma mais personalizada pelo jogador. É ele que determina o papel e movimento da câmara, o movimento do protagonista pelo espaço, a linha de acção, no fundo quase todo o processo de montagem e realização, bem como certos discursos, diálogos, interacções entre personagens e aspectos do enredo através das suas escolhas (Figura 3).
Figura 3 – Screenshots do videojogo The Witcher 3 (2015) ilustrando o protagonista-‐jogador percorrendo livremente o espaço virtual definindo ele próprio o seu percurso, e como possui diferentes opções de resposta num diálogo com outro personagem.
Todas estas possibilidades permitem a criação de videojogos – em termos de storytelling – muito mais complexos, quando se combina a interactividade do jogador, um enredo que adopta sub-‐plots e missões opcionais, as diferentes possibilidades de escolhas pelo jogador e, consequentemente, as diferentes possibilidades de progressão e resolução do enredo. O olhar sobre o papel da narrativa no contexto dos videojogos não pode ser feito sem ter em conta a interactividade e todos os elementos, técnicas e dispositivos de game design. Transpor literalmente para os videojogos as características da narrativa, enredo e contracção dramática, tal como estas funcionam nas obras cinematográficas não irá considerar a experiência do jogador, a sua participação e imersão nessa mesma história enquanto elemento participante, activo e contributivo para ela. A narrativa e a acção dramática de um videojogo não pode ser olhado como algo que o jogador 28
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
apenas segue de uma posição externa, pois ele necessita de sentir que contribui, necessita de sentir que as suas acções e escolhas são significativas para o enredo – e tendo em conta que é um meio interactivo, a sua acção efectivamente tem esse poder e potencialidade de contribuição. Em Síntese: Os jogos trabalham a narrativa, ou seja, a relação entre o gameplay e a narrativa e mundo ficcional, de três formas diferentes: – Jogos sem plot: lógica e puzzles – Jogos com uma narrativa visual coerente de um mundo ficcional: é criada e desenvolvida com um suporte visual onde a dinâmica do jogo e as suas personagens ou acções ganham alguma coerência por essa via. É desenvolvido apenas o concept art visual, mas a acção principal não tem a lógica de um enredo ou storyline, tentando ganhá-‐la em parte com essa narrativa visual. – Jogos com storyline e enredo cujo espaço pode ser percorrido e em que espaço e história são indissociáveis Neste trabalho foi aprofundado o terceiro vector, em que a progressão dos eventos bem como a relação das personagens com estes está intrinsecamente ligado com as mecânicas do jogo. Estes videojogos podem ter apenas uma linha narrativa muito simples e sequencial ou ter diversos momentos de decisão do jogador em que a narrativa se ramifica em várias direcções possíveis, com diferentes consequências e resultados. No entanto, todos possuem um plot central – narrativa principal – onde se encontra um número de eventos-‐chave que o jogador têm de ultrapassar. Existem por vezes enredos ou eventos secundários pelos quais o jogador pode optar progredir e que por definição não interferem directamente com a resolução final do jogo. Um videojogo -‐ dentro deste vector -‐ é uma sequência de progressões abaixo discriminadas, podendo existir partes em que há divergência ou paralelismo: -‐ Progressão sem livre arbítrio, à imagem do cinema, com sequências cinematográficas. São enredos totalmente imutáveis, pré-‐definidos, a priori à semelhança dos enredos das narrativas fílmicas -‐ Progressão com livre-‐arbítrio do enredo, que pode ser de duas formas, podendo estas coexistir num mesmo videojogo:
29
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
a) Sequência dos eventos ordenáveis e portanto em parte parcialmente construídos pelo próprio jogador, sem por em causa a conclusão do jogo. É uma característica quase sempre presente nos videojogos. b) Plots paralelos e alternativos que se irão encontrar num ponto adiante do enredo. Em qualquer dos casos tem de haver sempre pontos de convergência e reencontro num argumento. O jogo pode ser construído como uma sucessão de divergências e convergências de enredos. Olhando para Interacção do jogador com a ficção do jogo, a exploração do jogador pelo espaço virtual, juntamente com o seu poder de controlo sobre a câmara e realização bem como os efeitos das suas escolhas, constroem uma narrativa visual personalizada pelo próprio utilizador (jogador) destas narrativas interactivas, ao contrário do que se sucede nas narrativas cinematográficas não-‐ interactivas.
2.2. Game Design, Storytelling e Interacção 2.2.1. Introdução ao Gameplay O gameplay, ou jogabilidade, é um termo recorrente mas também complexo e ambíguo sendo definido de várias formas segundo diferentes autores. Adams (2010) define que a essência do gameplay assenta na relação entre desafios que o jogador tem de ultrapassar e as acções que lhe permitirão ultrapassá-‐los. No entanto, apesar de considerar correctamente os desafios conjuntamente com o modo e contexto como são apresentados ao jogador, como Martinho, Santos & Prada (2014) observam, esta linha de ideias não tem em consideração a importância da “experiência subjectiva que emerge da interacção entre jogo e jogador” (Adams, 2010, p. 151). Todos estes aspectos pertencem e caracterizam o que é gameplay (jogabilidade). Jogabilidade têm um carácter dual pois implica, conjuntamente, os aspectos qualitativos emergentes da interacção, bem como os elementos do jogo que a promovem, criam e contribuem para ela. Estes elementos são constituídos pelos desafios e acções para a sua resolução, como Adams defende, atendendo que estes desafios devem ser considerados no seu contexto, bem como com o contexto das escolhas do jogador e impacto destas na experiência (Martinho, Santos, & Prada, 2014). 30
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
2.2.2. Mecânicas de Jogo As mecânicas principais de um videojogo são aquelas que geram o gameplay (jogabilidade). Determinam os procedimentos e as regras de um jogo, bem como o seu objectivo, as condições para o atingir e as consequências de o conseguir ou não. Também definem os desafios que ele oferece, tal como as acções do jogador para responder a estes, e os efeitos das suas acções sobre o mundo ficcional do jogo (Adams, 2010). São, no fundo, as mecânicas que geram os eventos do jogo quando elas e o jogador interagem (Sylvester, 2013). Consideram-‐se então mecânicas principais as regras, os objectivos, os desafios, os obstáculos, bem como as consequências e recompensas dependentes das acções do jogador. Todas estas mecânicas funcionam em conjunto, pois cada uma depende se relacionam com as outras. 2.2.2.1. Regras Como se sabe, qualquer jogo tem regras. São estas que tornam possível todas as mecânicas de jogo. Elas definem o espaço do jogo, as acções possíveis dos jogadores, objectos e personagens, bem como as consequências e constrangimentos dessas acções (Schell, 2015). Schell (2015) considera três tipos de regras: as que definem propriedades e condições de objectos e conceitos no jogo (Figura 4); as que restringem acções no jogo (Figura 5); e as de condicionam o aparecimento de certos efeitos no jogo, dependentes de se verificarem determinadas condições (Figura 6)
Figura 4 – Screenshots de Dragon Age: Origins (2009), Dragon Age II (2011) e Dragon Age Inquisition (2014), mostrando como certos poderes são relacionados em cadeias, sendo que o jogador só poderá ter acesso a um se tiver escolhido adquirir os poderes de ataque precedentes. Este é um caso em que uma acção ou capacidade está condicionada por regras.
31
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Figura 5 – Screenshot de Dragon Age II (2011), onde nas regras que caracterizam certos objectos e conceitos, encontram-‐se aquelas que definem os atributos (custos de aquisição, XP fornecido, força de ataque, ...) para uma determinada arma, armadura, entre outros dispositivos possíveis de ataque/defesa.
Figura 6 – Screenshot de Dragon Age: Origins (2009) onde, quando o jogador selecciona o ataque grease, seguido de imediato de qualquer ataque de fogo, a combinação desses dois ataques origina um efeito/ataque inesperado (grease fire), sendo este apenas um exemplo do conjunto de casos possíveis.
2.2.2.2. Objectivo A segunda mecânica principal é o objectivo do jogo. Este é um aspecto tão intrínseco a um jogo que é quase inconcebível pensar num jogo que não tenha um objectivo. Qualquer jogo possui naturalmente um objectivo final, pois o jogador necessita sempre de ter algo a alcançar, dentro das regras definidas. Sem um objectivo, o jogador dificilmente se manterá interessado no jogo. Sem um objectivo, o jogo também não terá um final, uma conclusão. Algo com um final aberto, que não é concluído, não fornece ao jogador um total sentimento de satisfação. Muitos videojogos com ambientes tridimensionais possuem um grande foco na exploração. Observa-‐se isso em vários videojogos, como nas séries Assassin’s Creed ou Dragon Age, onde os jogadores por vezes passam horas a explorar os mundos ficcionais apenas por puro prazer, pois as tarefas/missão que têm de completar nem sempre possuem um tempo delimitado para a fazer, 32
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
permitindo que o jogador possa por momentos “distrair-‐se”. No entanto inevitavelmente chegam a um ponto de saturação e eventualmente regressam à missão e propósito da narrativa central do jogo, de modo a completar o objectivo final do jogo e finalizá-‐lo. 2.2.2.3. Desafios e Obstáculos Uma vez que os videojogos são um meio que procura entreter, outra mecânica essencial são os Desafios e Obstáculos. Estes são um dos elementos principais para criar e manter interesse e emoção no jogador. Os obstáculos introduzidos em videojogos podem ser de várias naturezas, desde elementos físicos a personagens oponentes. Em quase qualquer videojogo, os desafios apresentados possuem uma hierarquia, ou seja, o jogador poderá encontrar desafios principais que por sua vez possuem vários desafios menores dentro de si e que o jogador terá de completar para completar o desafio principal (Adams, 2010). A série de Dragon Age, como vários RPG, é um dos muitos casos que ilustra esta hierarquia de desafios (Figura 7).
Figura 7 – Screenshots de Dragon Age: Origins (2009) e Dragon age II (2011) mostrando as missões organizadas por categorias.
2.2.2.4. Consequências e Recompensas Outra mecânica necessária é um sistema de Consequências e Recompensas das acções do jogador. Como já foi dito o jogador necessita de um objectivo, e para criar interesse na sua procura são introduzido obstáculos. Mas é necessário suscitar também uma motivação no jogador para tal. Neste sentido a introdução de recompensas são o dispositivo mais perceptível. Para o jogador é 33
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
importante que este sinta que ganha algo com as suas acções no jogo e com o acto de jogar no geral. A forma como os videojogos trabalham com este sistema de recompensas é muito variado, desde algo importante para alcançar o objectivo final ou simplesmente items especiais ou únicos que poderão ser utilizados no jogo. Poderá ser algo que é introduzido dentro da progressão do jogo, como acontece em certas missões de Dragon Age (ou muitos outros RPG) onde a conclusão de uma missão poderá no final oferecer ao jogador um item único (arma, armadura, ...) que não conseguirá encontrar noutro local, e que possui atributos atractivos (como um poder de ataque muito superior a outros items). Outros tipos de recompensas é a atribuição de XP, que permitem ao jogador avançar no jogo ou ter acesso a mais ataques, armas, entre tantas outras opções (Figura 8).
Figura 8 – Screenshot de Dragon Age Inquisition (2014) ilustrando um dos casos em que quando o jogador derrota um inimigo ganha XP. A quantidade XP que o personagem possui irá condicionar o nível em que este se encontra e os poderes ou ataques a que conseguirá ter acesso. Naturalmente a procura será por conseguir o mais possível.
As consequências são igualmente importantes pois o risco é também um aspecto que causa apelo e emoção no jogador. Se o jogador puder realizar qualquer acção sem risco de consequências, isso elimina grande parte o desafio. O próprio acto de ganhar, implica a possibilidade de falhar. É a perspectiva de possivelmente falhar que leva o jogador a preocupar-‐se com a escolha das suas acções no jogo. 2.2.2.5. Narrativa Outra mecânica possível é a Narrativa, ou a “história”. “Possível” porque como se mencionou no ponto 2.1 nem todos os jogos possuem um argumento. No entanto, no âmbito dos videojogos com guião, plot e narrativa, ela possui um forte peso no seu design visual, constituindo assim outra mecânica de jogo. 34
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Muitos videojogos actualmente compreendem um forte componente de storytelling. Como já se viu no capítulo 2.1, os fundamentos da construção dramática criam emoções e interesse no espectador, o que os videojogos procuram conseguir também. Como se irá ver mais à frente neste capítulo, a emoção e empatia num videojogo contribuem grandemente para a imersão do jogador nele. Adicionalmente, a narrativa num videojogo é uma forma de o jogador compreender as situações de jogo (Nitsche, 2008). Ela auxilia o jogador a interpretar significados, relações entre eventos e o caminho correcto de escolhas e acções dentro do jogo. Ao fazer o jogador participar numa ‘história’, a narrativa unifica a acção do jogo, ajudando igualmente o espectador a sentir-‐se mais imerso e orientado nesse universo, em vez de ser apenas um exercício de coordenação motora ou resolução analítica de um puzzle (Wolf, 2001). A narrativa nos videojogos surge em três âmbitos diferentes: – Em primeiro lugar, encontra-‐se a narrativa no sentido de guião ou argumento, ou seja a “história” pré-‐escrita, uma sucessão de eventos já definidos e embutidos no jogo, e que portanto acontecem sempre de igual maneira a qualquer jogador (Sylvester, 2013). Esta é a narrativa falada no capítulo 2.1. – Outro âmbito considerado respeita à narrativa do mundo, ou seja, a história dos lugares no mundo do jogo, o seu passado e as pessoas que os habitam. Esta história é “contada” pelos objectos, arquitectura, personagens, espaço ficcional, referências ao imaginário colectivo e culturais, entre outros. (Sylvester, 2013), como se irá ver no capítulo III.3. – Por fim, surge ainda a narrativa emergente. Esta não é explícita ou pré-‐definida no design do jogo, mas antes emerge durante o jogo, sendo criada pelo jogador e as outras mecânicas do jogo (Sylvester, 2013). Ela resulta da interacção, acções, escolhas e, no fundo, de toda a progressão pelo jogo realizada por cada jogador individual. 2.2.2.6. Espaço Por último, a mecânica final de jogo é o Espaço onde o jogo decorre. Este é naturalmente o elemento de maior interesse neste trabalho e que por isso irá ser abordado individualmente e em maior detalhe no capítulo3.
35
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Em síntese: – As acções que o jogador pode fazer estão então primeiramente dependentes (e definidas) pelas regras, pois elas definem quais as acções permitidas (e não permitidas) de o jogador efectuar e os seus resultados e consequências. – Também são condicionadas e determinadas pelo objectivo (que induz quais as acções que o jogador deverá fazer) – Os obstáculos condicionam no momento as acção passíveis que o jogador efectuar. – Por associação, as recompensas e consequências afectam igualmente as acções do jogador pois a escolha do jogador sobre que acções efectuar irá ser condicionada e feita com base também nesses dois aspectos. – O espaço impõe igualmente constrangimentos sobre as acções que o jogador poderá realizar, como se irá ver no capítulo seguinte. – No caso dos videojogos em estudo, acrescenta-‐se ainda a narrativa como condicionante igualmente das acções do jogador. 2.2.3. Controlo Indirecto do Comportamento do Jogador O aspecto que distingue os videojogos de outros meios de entretenimento é a interactividade e a possibilidade de o jogador intervir directamente sobre os eventos, moldando e condicionando a narrativa. Para ilustrar, Bioshock (2007) é um dos muitos casos em que existem momentos em que é dado ao jogador a hipótese de escolher entre dois percursos de acção que irão afectar a narrativa e eventos futuros (Figura 9).
Figura 9 – Screenshot de Bioshock (2007) do momento em o jogador deve escolher entre salvar uma Little Sister ou não, decisão que irá condicionar eventos futuros. 36
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Esta “liberdade” apela muito ao jogador e também permite uma maior imersão no universo do jogo, pois facilita a projecção da sua imaginação sobre esse mundo e eventos que ele próprio molda (Schell, 2015) Mas apesar do designer do jogo não ter controlo total de tudo o que o jogador faz (como se falou antes, existem narrativas e gameplay emergentes), é preciso que haja algum controlo e estrutura das narrativas interactivas. Mas de modo a manter esse sentimento de liberdade do jogo, esse controlo é feito de forma subtil e indirecta através de várias formas. Schell (2015) identifica seis métodos de controlo indirecto do comportamento do jogador: Constrangimentos, Objectivos, Interfaces, Design visual, Personagens e Música. Como se falou, o jogo não fornece ao jogador uma total liberdade de escolhas, mas dando-‐lhe um número possível destas – ou seja impondo-‐lhe um constrangimento, limitando-‐lhe a escolha entre a opções oferecidas – consegue dar-‐lhe na mesma um sentimento de liberdade ao mesmo tempo que que o está a condicionar. A definição de um objectivo é naturalmente o método comum usado (Schell, 2015). A imposição de um objectivo final no jogador condiciona imediatamente o seu comportamento ao longo do jogo, pois tudo o que ele fizer irá ser em função de atingir esse objectivo. As diversas interfaces do jogo condicionam também à partida que acções o jogador irá realizar. Um videojogo que assenta na utilização de um comando específico (como os jogos de guitar hero que precisam de uma guitarra) ou que utiliza outro método com que o jogador interage com o videojogo (como um avatar) alteram substancialmente as acções do jogador (Schell, 2015). Um comando com uma guitarra não permite uma exploração por mundos virtuais como um avatar permite. Os elementos visuais, em termos de composição visual, iluminação e cor, entre outros já vistos, igualmente manipulam o comportamento do jogador. O jogador naturalmente move-‐se em direcção ao que lhe chama a atenção (Schell, 2015). No cinema estes aspectos apenas podem mover o olhar do espectador, mas num meio interactivo como os videojogo direccionar o olhar conduz para o direccionamento do seu percurso de acção também. Controlando para onde o jogador olha, controla-‐se indirectamente para onde ele se irá mover (Schell, 2015). Os personagens do videojogo (que não o jogador) são muitas vezes utilizados igualmente para manipular o comportamento do jogador. Frequentemente os personagens secundários (por vezes 37
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
são personagens que encontram pelo mundo do jogo, outras vezes são personagens que acompanha o jogador ao longo de todo ou quase todo o jogo) interagem com o personagem-‐jogador através de diálogo, oferecendo informações sobre a missão em curso ou por vezes até instruções directas sobre para onde o jogador se deverá dirigir. Um caso, entre muitos, é a personagem de Elizabeth em Bioshock Infinite (2013), que acompanha Booker (jogador) ao longo de todo o jogo, por vezes dizendo-‐lhe informação por meio de diálogo, e em certos momentos (Figura 10) chegando mesmo a conduzi-‐lo por um percurso, em que o jogador não tem outra opção senão segui-‐la. Nestes momentos – como quando ambos fogem da torre logo após ao primeiro encontro – Elizabeth em vez de ser apenas um personagem-‐companheiro que segue Booker, adquire uma autoridade maior controlando indirectamente o comportamento e acção do jogador. Este tipo de casos jogam muito com a importância da empatia, pois fazendo o jogador preocupar-‐ se com um outro personagem imaginário inspira a sua acção para o seguir e/ou proteger (Schell, 2015).
Figura 10 – Screenshots de Bioshock Infinite (2013) do momento em que Elizabeth escapa da torre e o jogador necessita de a seguir.
Por último, um método que não pode deixar se estar presente é o poder da música. Em videojogos, tal como no cinema, a banda sonora não serve apenas para atribuir um mood à cena (Schell, 2015). Qualquer jogador já se apercebeu como a música altera significativamente consoante o local ou momento do jogo, e já todo experienciaram a sensação de antecipação de que algo importante irá acontecer num local, ainda antes de lá chegar, apenas pela mudança da música. Locais onde não existe conflito imediato e onde portanto o jogador poderá explorar o espaço possuem uma música de fundo mais calma e menos intensa, enquanto quando se dá um conflito a música torna-‐se mais dramática, mais alta e mais acelerada.
38
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
2.2.4. Interfaces e Interacção 2.2.4.1. Interfaces As interfaces são aquilo que torna o jogo visível, audível e jogável, criando assim a experiência do jogador (Adams, 2010). A primeira interface com que o jogador se depara são as shell menus. Estas são no fundo o menu inicial, onde o jogador começa e configura o jogo (Adams, 2010). O modelo de interacção é outro tipo de interface. Este diz respeito à forma como o jogador interage com o universo do videojogo, através de um avatar ou múltiplos, entre outros (Adams, 2010). O modelo de câmara é outra interface muito significativa, como se viu no ponto 2.2.1., pois ela caracteriza o género do jogo bem como a forma como o jogador olha para o mundo do jogo, influenciando assim também a maneira como ele interage com ele e se sente imerso nele. Os vários elementos visuais utilizados, desde o aspecto da vista principal do jogo, elementos de feedback como indicadores, mapas e cores, a indicação do retrato do personagem, botões, menus e por vezes textos, são outra das interfaces que comunicam informação ao jogador dentro do jogo (Adams, 2010). Acrescentam-‐se a esta lista igualmente o elementos sonoros, como efeitos sonoros, sons ambiente, música, diálogo e em certos casos narração voiceover, e os input devices, ou seja, se o jogador dá os comandos para a acção para interagir através de teclado, joysticks, ou outros (Adams, 2010). 2.2.4.2. Interactividade O aspecto essencial que distingue o meio dos videojogos de todos os outros meios de entretenimento é a interactividade. Num videojogo, o individuo é simultaneamente jogador (interveniente) e espectador na medida em que ele tanto recebe e observa as informações da narrativa de uma posição exterior, como também contribui para elas. Ele “não só entra nos mundos dos jogos como também os altera e os seus ingredientes” (Nitsche, 2008, p. 40). Qualquer jogo implica interactividade, pois jogar implica interagir com o objecto do jogo, implica efectuar escolhas que se destinam a suportar acções e resultados de maneiras significantes (Salen & Zimmerman, 2003).
39
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Salen & Zimmerman (2003) analisam esta relação entre interacção e “escolha”, desenvolvendo o que eles chama de “molécula” de escolha, explicando como os significados num jogo surgem da interacção do jogador, a partir da sua possibilidade de escolha e emergindo do princípio de que a acção deverá conduzir a um resultado (significante). Toda a estrutura interactiva se constrói-‐se em torno deste processo (Salen & Zimmerman, 2003). A interactividade que surge neste meio processa-‐se em várias dimensões, desde interactividade explícita com um objecto concreto no mundo do videojogo, à interactividade emocional e experiencial com o seu mundo ficcional. Zangalo (2009) distingue estes tipos de interactividade entre interactividade como manipulação e interactividade como participação, enquanto que Salen & Zimmerman (2003) distinguem entre interactividade cognitiva, interactividade funcional, interactividade explícita e interactividade para-‐ lá-‐do-‐objecto. 2.2.4.3. Navegabilidade No âmbito deste trabalho, o olhar sobre a interacção do jogador que mais nos interessa é aquele que compreende o aspecto da navegabilidade. Zangalo (2009) define navegabilidade enquanto “a forma como o utilizador se move no ambiente, cognitivamente, o que tem de saber e fazer, para se deslocar uma vez aí dentro e ao nível comportamental, como se configuram os movimentos, como se expressam” (Zangalo, 2009, p. 194). Compreender e analisar a navegabilidade depende de um olhar sobre vários aspectos, nomeadamente a forma como o jogador acede e lhe é apresentado a representação do mundo ficcional (ou seja, os aspectos já vistos nos pontos 2.2. e 2.3.), os modos como ele acede a esse mundo, se move nele e realiza acções, bem como todos os aspectos que manipulam o seu percurso e acção (desde os já falados sobre controlo indirecto, composição, cor, iluminação, como também os aspectos referentes à morfologia do terreno, limites, obstáculos). 2.2.5. Fluir do Storytelling e acção no jogador O principal objectivo do design de um jogo é conceber experiências (Martinho, Santos, & Prada, 2014). As mecânicas de jogo, bem como as questões sobre interactividade e Gameplay faladas anteriormente contribuem para a construção dessas experiências. No entanto, estas experiências querem-‐se também imersivas e causadoras de emoção. 40
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
2.2.5.1. Imersão A imersão ocorre quando se estreita a divisão entre o eu real do jogador e o seu avatar no jogo. Quando isto acontece os eventos que ocorrem ao avatar (personagem) tornam-‐se significante como se estivessem a ocorrer ao próprio jogador (Sylvester, 2013). A imersão pode no entanto ocorrer a níveis diferentes. Zangalo (2009) distingue dois níveis de imersão: física e cognitivo-‐emocional. A imersão física envolve um “sentido de presença”, mas num sentido assente nas implicações sobre a visão e audição do individuo. Assim sendo, depende do médium em que o mundo virtual é representado. Neste contexto/nível um sistema HMD – que “consiste num capacete que contém um visor, que pode envolver todo o campo de visão” (Zangalo, 2009, p. 201) – será o meio muito mais imersivo do que os ecrãs de televisão ou computador em que os videojogos são visualizados. Wolf (2012) no entanto considera imersão física de modo diferente, e que nos parece mais correcta. Ele considera imersão física quando o individuo é fisicamente cercado pela experiência. Este é o caso de parques temáticos, e portanto um ambiente virtual nunca poderá oferecer este tipo de imersão. Um segundo nível que ele distingue é imersão sensual, este sim corresponde de certo modo a imersão física de Zangalo. Imersão sensual definida por Wolf diz respeito a uma imersão numa experiencia através dos sentidos da visão e audição e não do corpo inteiro fisicamente. A um terceiro nível ele considera ainda imersão conceptual, que assenta na imaginação, pois é uma imersão na ficção de um mundo imaginário. Este possui correlações com a segunda perspectiva sobre a imersão que Zangalo faz. O nível cognitivo-‐emocional descrito por Zangalo constitui o envolvimento emocional do jogador ou espectador com a ficção. É onde assenta o fenómeno da “suspensão da descrença” (suspension of disbelief), ou seja, quando o jogador ou espectador aceita as premissas da ficção como sendo verdadeiras (Zangalo, 2009) – é um estado em que o jogador encara a ficção como uma realidade, envolvendo-‐se e tornando-‐se imerso nesse universo. 2.2.5.2. Equilíbrio, Focus e Flow O acto imersivo implica também um focus. Implica que o jogador esteja completamente focado no universo ficcional do jogo.
41
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Os videojogos procuram sempre, naturalmente, criar uma experiência interessante o suficiente que consiga manter a atenção – focus -‐ do jogador o mais possível (Schell, 2015). Este estado de concentração numa actividade particular, em que o indivíduo simultaneamente retira um alto nível de prazer, entretenimento e satisfação constitui o chamado estado de “flow” (Schell, 2015). Os videojogos conseguem colocar o jogador neste estado de flow e focus ao possuírem um objectivo final claro (fornece algo concreto em que se focar), ao envolver tanto um trabalho motor (jogador usa sempre as mãos para jogar) como mental (pois existe sempre um processo de analisar a situação, tomada de decisões e resolução de problemas), impedindo-‐o de subconscientemente se distrair, tendo um feedback imediato (momentos de espera entre comado da acção e representação do resultado conduzem a que o jogador perca o concentração), e através de um equilíbrio de desafios constantes (Schell, 2015). Este ponto intermédio entre desafios demasiados fáceis (que causam aborrecimento e desinteresse) e desafios demasiado difíceis (que causam ansiedade e frustração) é essencial para a criação do flow (Schell, 2015). Ambos estes extremos conduzem à perca de interesse e atenção (focus) e portanto não criam imersão. A ideia de focus e flow são então importantes para a (boa) experiência de jogo e imersão do espectador. 2.2.5.3. Emoção A qualidade da experiência depende de que “o jogador tenha interesse nos elementos promovidos pela experiência, e que esteja empenhado em agir de forma a avançar e a viver a experiência”. Para isto é importante “captar e manter a atenção do jogador (para promover o interesse) e gerir a sua motivação (para promover o empenho)”. Sendo que “o desejo de sentir emoções é um dos motivadores do comportamento humano” (Martinho, Santos, & Prada, 2014, p. 119). Isto quer dizer que os eventos do jogo têm de provocar emoção (Sylvester, 2013), pois esse é um aspecto essencial que captam a atenção no jogador mantendo-‐o envolvido no jogo. Também as emoções geradas pelo jogo constituem uma das motivações que o mantém imerso e empenhado no desenvolvimento do jogo. Existe um número que emotional triggers (Sylvester, 2013) que são usados para gerar respostas emotivas: aprendizagem de novas informações, desenvolvimento e crescimento interno dos personagens, desafios, ameaças, interacções sociais, aquisição, música, espectáculo, beleza,
42
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
ambientes, para nomear apenas os mais comuns. Imersão implica um sentimento de relação com objecto/artefacto, que surge através da emoção, mas também principalmente da empatia. 2.2.5.4. Empatia O ser humano tem a capacidade de se projectar no lugar do outro, o que constitui um dos factores que lhe permite entender outros indivíduos. Isto é a empatia, e é também uma parte integral do gameplay (Schell, 2015). Nos videojogos em estudo, a empatia é um fenómeno essencial e inerente uma vez que estes envolvem a projecção do jogador num personagem, através do qual ele interage com esse mundo. Sem criar empatia com o personagem, projectando-‐se nele, não conseguiria experienciar verdadeiramente o jogo nem tornar-‐se totalmente imerso nele. Projecção empática é também um método de resolução de problemas, coisa que os jogos possuem. Quando o jogador se projecta no personagem, projecta também toda a sua (processo ou capacidade de) tomada de decisões para essa personagem (Schell, 2015).
2.3. Câmara e Composição 2.3.1. A Câmara e o Espectador 2.3.1.1. Os Ângulos de Câmara A colocação, quer seja na posição, altura ou inclinação, da câmara – o ângulo de câmara – influencia a leitura que o espectador tem da acção e do espaço onde esta se desenrola. A câmara é o elemento responsável por aquilo que o sujeito vê, e consequentemente de como vê, tendo um papel significante na estrutura dramática da narrativa (Marner, 2013) e contribuindo para a criação dos efeitos visuais dramáticos e psicológicos (Boggs & Petrie, 2008). No âmbito cinematográfico, ela é responsável por descrever visualmente as suas personagens, exaltar as suas inter-‐relações, estados de espírito e intenções (Marner, 2013), conseguindo manipular as respostas emocionais e afectivas do sujeito e contribuir para uma adequada compreensão da narrativa da ficção. O enquadramento de um plano tem um enorme impacto em como este se percebe e sente (Ablan, 2002), tendo a câmara a capacidade de conduzir a atenção do sujeito, dirigindo-‐a 43
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
exactamente como se pretende. O enquadramento que é estabelecido pode trazer as personagens mais próximos ou mais distantes, criando maior ou menor envolvimento e intimidade com as personagens, sendo que cada tipo de plano mostra as porções significativas de cenário e intervenientes que são essenciais para a narrativa (Mascelli, 1998). As diferentes interpretações emocionais e narrativas que o sujeito faz do que vê na cena são então condicionadas, em primeira instância, consoante o grau de aproximação da câmara ao tema que filma. O grau de aproximação da câmara resulta em diferentes tamanhos e secções do espaço que esta apresenta no enquadramento do plano (Mascelli, 1998), tendo cada um potencialidades dramáticas distintas. No entanto, o tamanho da imagem a enquadrar é também determinado pelo campo visual, pelo formato do plano, da lente a utilizar e pela sua distância focal (Mascelli, 1998). Estas variáveis podem levar a diferentes percepções dimensionais, cinemáticas e espaciais entre temas presentes no plano, bem como a diferentes leituras psicológicas de personagens e ambientes. Tudo isto, na linguagem cinematográfica, resulta em diferentes tipos de planos – plano geral, plano de conjunto, planos médios como o plano aproximado de tronco e plano aproximado de peito, grande plano, muito grande plano, bem como planos de pormenor e planos de inserto. – Tamanhos de Planos Nos planos mais afastados, como o plano geral e plano de conjunto17, o observador descobre o mundo ficcional onde se desenvolve a acção (Marner, 2013). É nestes planos que o espaço e ambiente geral da cena é estabelecido, em que o espectador identifica as personagens e o ambiente envolvente (Ablan, 2002), bem como a sua posição e a dos objectos com que interage (Beane, 2012), mas não ainda o desenrolar da acção e do enredo. Estes planos permitem ao espectador estabelecer uma referência espacial onde irá ocorrer a acção nos planos subsequentes, bem como sentir emocionalmente a matriz dos ambientes do mundo ficcional habitado pelas personagens (Figura 11). A aproximação emocional aos protagonistas dá-‐se nos planos mais aproximados onde, ao reduzir a área do espaço cénico exposto, as personagens, juntamente com as suas expressões e acções, adquirem maior impacto e leitura (Marner, 2013). Repare-‐se como nos planos médios dos intervenientes da acção – desde o plano aproximado de tronco ao plano aproximado de peito (Figura 12) – estes se tornam o centro da atenção, em detrimento do cenário, permitindo no entanto ainda 17
Enquanto o plano geral fornece uma perspectiva mais ampla do mundo ficcional, o plano de conjunto apenas mostra o espaço onde a acção se vai desenvolver (Marner, 2013). 44
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
estabelecer uma relação da personagem com o espaço ficcional. No entanto, uma maior intensidade dramática é conseguida com os grandes planos e os muito grandes planos18 (Figura 13), em que o espectador é literalmente invadido pelas emoções, intensões e carácter da personagem (Marner, 2013). Outro tipo de planos são os planos de pormenor19 e os planos de inserto20, fornecendo informação sobre o enredo e a própria acção. São planos muito aproximados, que mostram um tema em detalhe, isolando-‐o do contexto espacial.
Figura 11 – Plano geral e plano de conjunto em Brave (2012), estabelecendo as características e carácter do espaço e ambiente onde a acção se irá desenrolar
Figura 12– Plano aproximado de tronco e plano aproximado de peito em My Fair Lady (1964)
Figura 13 – Grande plano e muito grande plano em Irmandade do Anel (2001)
18
Os muito grande planos especialmente sendo aqueles que mais conduzem a atenção do espectador para a personagem e conferindo um dramatismo superior ao plano ao estabelecer uma identificação mais intensa entre espectador e personagem. 19 Os planos de pormenor fornecem informação do enquadrar, numa cena, um detalhe muito aproximado de adereços nela existentes, podendo estes estarem a ser utilizados, ou não, na acção veiculada pelos protagonistas. De qualquer modo, fornecem sempre ao espectador informação adicional sobre o enredo, podendo ser também uma parte da narrativa da acção principal na cena. 20 Os Planos de inserto são planos aproximados, de detalhe, fornecendo sempre informação pela via textual, relevante para ao enredo ou acção da cena. Pode constituir planos objetivos ou subjectivos. 45
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Como se irá ver no ponto seguinte, em videojogos, pela característica interactiva dependente do jogador, o avançar da acção exige uma certa amplitude de visão do espaço ficcional virtual onde essa decorre. Devido a isto, planos demasiado aproximados – grande plano e muito grande plano -‐ não surgem na progressão da acção uma vez que não permitem visualizar o espaço em extensão. A utilização de um tamanho de um plano maior ou menor, entre tamanhos comparáveis a planos de conjunto, ou a plano aproximados de tronco e de peito, pelas suas especificidades de contributos dramáticos e representação do espaço já apontadas, encontra-‐se condicionada ao género de jogo. Isto quer devido ao tipo de acção (gameplay) que possuem – que podem exigir um campo de visão maior ou menor – quer devido a intensões ao nível da experiência emocional do jogador que pretendem criar. – Nível e Inclinação da câmara Nas narrativas cinematográficas, a câmara é tipicamente colocada a uma altura equivalente à altura do olhar do tema que filma (Mascelli, 1998) – level angle – o que resulta em planos passivos, estáticos e pouco dramáticos ou dinâmicos só por si (Marner, 2013). No entanto, é o nível da câmara mais comum para relatar a acção, recorrente ao longo da progressão da narrativa. Alterando este nível de altura da câmara, criam-‐se planos de maior qualidade dramática visual (Marner, 2013) – como descendo a câmara, colocando-‐a à altura dos joelhos -‐ causando um acréscimo do relevo e presença do tema filmado pela enfatização da perspectiva, fazendo o tema parecer maior e mais imponente. Também se pode colocar a câmara nivelada acima das personagens e figurantes, descrevendo em profundidade e em direcção ao infinito o espaço e os que nele se encontram. Adicionalmente, o inclinar da câmara segundo um eixo horizontal e paralelo à cena resulta em planos fixos dinâmicos – planos picados e planos contrapicados – que conferem leituras distintas do espaço e das personagens, devido à distorção criada nas linhas verticais. Os planos picados (Figura 14.a) – quando a câmara encara o tema de uma posição superior, apontada para baixo – causam no espaço filmado uma sua óptima descrição em profundidade em relação a objectos e personagens que nele se situem, bem como conotações de inferioridade, vulnerabilidade ou opressão nestas, retirando-‐lhes força e importância (Marner, 2013). Os planos contrapicados (Figura 14.b) – em que a câmara fita a personagem de uma posição inferior, olhando para cima – conferem ao espaço uma enorme monumentalidade, imponência e 46
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
destaque, tendo um impacto acrescido e dominante sobre o espectador (Marner, 2013). Quando o tema central são personagens, o espectador sente-‐os como importantes, superiores e poderosos, sendo quem domina na cena (Mascelli, 1998). É aumentada a sua estatura pela perspectiva, dominando o campo visual. No âmbito de uma abordagem psicológica ao tema do plano e à cena, é enorme o papel da inclinação da câmara, tendo esta um fundamental papel dramático porque afinal é por ela que o espectador vê a ficção cinemática, os seus personagens e o seu mundo. Efeitos com intuitos dramáticos são igualmente criados inclinando a câmara relativamente ao enquadramento do plano, criando planos diagonais, inclinados, em que as linhas da composição e representação do espaço passam de verticais e horizontais a diagonais – planos “holandeses” (Figura 14.c). Pela sensação de desequilíbrio que induzem ou sugerem, estes planos realçam situações de estados emocionais ou psicológicos extremos, ou de estados de mentais alterados (Mascelli, 1998), causando no espectador uma sensação incómoda de inquietação, desorientação, desequilíbrio ou pânico. É frequente a utilização destes planos em pares de inclinação oposta e simétrica, transmitindo não só desequilíbrio ou inquietação, mas também um sentido de equilíbrio da própria narrativa visual, visto o conjunto dos planos inclinados se anularem. Deste modo o desequilíbrio do enredo e da acção não se transmite à narrativa visual da peça cinemática. Podem ser também utilizados a inclinação da câmara e do enquadramento em simultâneo num plano, fornecendo um ênfase adicional ao significado dramático, com grande impacto sobre o espectador.
Figura 14 – Plano picado em Amadeus (1984), plano contrapicado em Amadeus (1984) e plano holandês em Brave (2012)
Nos videojogos, o nível de altura e inclinação da câmara encontra-‐se semelhante e fundamentalmente associada ao género e ponto de vista do videojogo. Em videojogos de género acção ou acção-‐aventura, que requerem um visualizar em maior extensão do espaço ficcional virtual captado pelo ecrã, a câmara tipicamente encontra-‐se acima da 47
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
linha de olhar do personagem, e por vezes em ligeiro picado. No entanto por vezes estes, quando apresentam uma vista over-‐the-‐shoulder, possuem a câmara colocada ao nível do olhar dos personagens, que é uma das razões que contribui para a qualidade imersiva deste tipo de jogos. 2.3.1.2. O Olhar da Câmara – No cinema: Planos Objectivos, Subjectivos e POV John Ford considera a câmara como uma janela de onde a audiência vê de fora as pessoas e eventos (Boggs & Petrie, 2008), mas a forma como a audiência vê a acção pode assumir diferentes abordagens. No universo cinematográfico, o ponto de vista que a câmara assume por vezes alterna entre o objectivo, o subjectivo e o POV. O ponto de vista mais comum é o Objectivo (por vezes também chamado de ponto de vista da audiência), sendo este um ponto de vista impessoal, pois não mostra o evento pelos olhos de algum interveniente da cena. Neste ângulo de câmara a câmara comporta-‐se como sendo um observador passivo e invisível, não envolvido na acção, mas no entanto situado no espaço ficcional onde decorre a cena (Mascelli, 1998). De modo a manter a ilusão imersiva destes pontos de vista, as personagens agem como não estando conscientes da existência da câmara ou do espectador, e portanto nunca olhando directamente para estes (Thompson & Bowen, 2009). O ponto de vista Subjectivo é utilizado quando se pretende mostrar o espaço cénico e a acção que nele decorre do ponto de vista de uma personagem. Neste, o espectador é situado dentro desse personagem, olhando pelos seus olhos (Mascelli, 1998), e as outras personagens olham directamente para a câmara quando se dirigem ao personagem em que foi situado o espectador (Thompson & Bowen, 2009). Este dispositivo fornece “o ponto de vista visual e a intensidade emocional sentidos pela personagem participante na acção” (Boggs & Petrie, 2008, p. 128), ao colocar o observador dentro da personagem. Deste modo, envolve o espectador na acção e no enredo de uma forma directa e activa, criando no espectador uma noção de proximidade e partilha de identidade com o personagem que “ocupa”, por vezes até criando sensações de desconforto ou inquietação ao forçar o sujeito a subitamente mudar de posição e pelo envolvimento na acção (Mascelli, 1998). Existe ainda um outro plano de filmagem – objectivo – em que se permite ao espectador ver o que uma personagem olha, denominado POV (Point of View). Este constitui um ponto de vista muito próximo dessa personagem, mas mantendo-‐se exterior a ela (Mascelli, 1998). Assim permite 48
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
aproximar o espectador à acção sem no entanto o envolver directamente nela, ou seja, ele mantém-‐ se fora da trama, dos personagens e imperceptível por esses. É então o mais próximo que um plano objectivo pode estar das personagens e do que estas vêem. Na prática, o espectador (ou seja, a câmara) é situado ao lado ou atrás de uma personagem, com um ângulo de câmara muito próximo, sendo dado ver (quase) o mesmo que essa vê, mas continuando a ser-‐lhe exterior, uma vez que o espectador não vê pelos olhos daquela (Mascelli, 1998). O espectador mantem um ponto de vista impessoal que muitas vezes é tornado explícito ao incluir nos limites do enquadramento uma parte da personagem cuja visão partilhamos – como nos planos “over-‐the-‐shoulder” . – Nos videojogos: perspectivas terceira-‐pessoa e primeira-‐pessoa No âmbito dos videojogos, os diferentes olhares da câmara também se encontram. No entanto, não surgem apenas de acordo com as suas qualidades dramáticas que conferem à narrativa visual, aparecendo alternadamente consoante o que melhor se adequa à cena. Na generalidade, o tipo de ponto de vista da câmara mantêm-‐se constante, salvo certas situações que se irão apontar e analisar no capítulo de Realização. Este facto, adicionalmente, caracteriza o género do jogo e o tipo de experiência emocional por parte do jogador (Anhut, 2011). Este trabalho foca-‐se selectivamente nos videojogos 3D21, cuja câmara visualiza o espaço da acção situando-‐se dentro deste, fornecendo ao espectador uma experiência mais imersiva do espaço virtual. Esta poderá ser posicionada mais próxima ou mais distante, ou até mesmo no lugar, do protagonista dependendo do género de jogo. Neste âmbito consideram-‐se então os jogos em terceira-‐pessoa e em primeira-‐pessoa. A perspectiva na terceira pessoa, caracteriza-‐se por um ponto de vista exterior à personagem, seguindo-‐a, a uma certa distância e ligeiramente acima da sua linha de visão (Fullerton, 2008). Este ponto de vista pode ser equiparado à filmagem objectiva que se encontra na linguagem cinematográfica, no sentido em que observa e relata a uma determinada distância. No entanto, no caso dos videojogos, mesmo na vista em terceira-‐pessoa, este olhar da câmara encontra-‐se de um certo modo mais envolvida na acção do que se sucede no cinema. 21
Neste sentido excluiu-‐se a análise de jogos considerados 2D, que englobam os jogos de perspectiva aérea (Top-‐down, também denominados de god’s view, ou isométrica) e de perspectiva lateral. 49
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
As características desta perspectiva permitem um campo de visão amplo do espaço onde a acção decorre e por isso também um maior controlo sobre as acções da personagem uma vez que apresenta uma visualização total desta. Esta amplitude do seu campo de visão implica igualmente que o jogador consegue visualizar um pouco mais do espaço que envolve a personagem – lateralmente e um pouco atrás – dando-‐lhe um melhor conhecimento do espaço ficcional virtual e assim uma maior percepção e consciência espacial. Por isso este é o ponto de vista tipicamente seleccionado em jogos de acção e acção-‐aventura, que “dependem de um controlo mais detalhado das acções do personagem” (Fullerton, 2008, p. 223) e onde o protagonista poderá ser cercado pelas forças opostas (Figura 15.a). Mas tal como no cinema existe um subtipo de filmagem objectiva – o POV (Point of View) – alguns jogos em terceira-‐pessoa apresentam um ponto de vista over-‐the-‐shoulder, muito popular em géneros survival horror , tendo sido introduzido e popularizado por Resident Evil 4 (2005), e também em alguns action e shooters (na terceira pessoa) devido à sua qualidade imersiva (Figura 15.b). O ponto de vista over-‐the-‐shoulder corresponde a uma vista na terceira pessoa, mas neste a câmara é posicionada ao nível dos olhos do protagonista e ao seu lado. À semelhança dos planos POV vistos no cinema, este ponto de vista fornece ao espectador a visão aproximada do que a personagem vê, criando assim uma maior sensação de presença e imersão no espaço e na acção, pois acompanha o protagonista lado a lado. Neste ponto de vista “o jogador é enganado a sentir-‐se quase próximo o suficiente do agente para realmente ser ele ou pelo menos estar preso na mesma situação com ele”, e quando o protagonista se mexe, o jogador mexe-‐se com dele (Anhut, 2011). Deste modo o jogador é introduzido mais activamente na acção, sendo colocado no mesmo espaço e nível que os personagens que habitam o espaço ficcional virtual, ao contrário da vista tradicional em terceira-‐pessoa onde o espectador se encontra a uma certa distância e num ponto ligeiramente acima destas. Assim, aproxima-‐se muito da perspectiva em primeira-‐pessoa, sem se colocar na visão da personagem, tal como os planos POV se aproximam da filmagem subjectiva. No entanto, estando a câmara posicionada mais próxima, retira um pouco da amplitude do campo visual do jogador que caracteriza a vista em terceira-‐pessoa. Por último, a perspectiva em primeira-‐pessoa é o ponto de vista mais próximo da visão real do espaço, pois o jogador vê como que pelos olhos do protagonista (Figura 15.c). Este ponto de vista “cria imediatismo e empatia com a personagem principal, literalmente pondo o jogador nos sapatos 50
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
da personagem” (Fullerton, 2008, p. 233). Corresponde então a um constante plano subjectivo, que se mantém ao longo de toda a acção. No entanto, esta perspectiva possui um amplitude do campo de visão muito menor, comparativamente a vista em terceira-‐pessoa, deixando o jogador de conseguir ter uma conhecimento muito abrangente do espaço envolvente e consequentemente levando a uma menor consciência espacial. Isto “limita o conhecimento geral do jogador, permitindo momentos dramáticos de tensão e surpresa uma vez que inimigos podem esconder-‐se em qualquer sombra ou até aproximar-‐se de trás” (Fullerton, 2008, p. 233). A limitação visual deste ponto de vista pode ser considerado por uns como uma desvantagem mas por outros como uma “potencialidade” dramática, pois não conseguindo ver tudo, aumenta a tensão do jogador em relação ao desconhecido e favorece o impacto de momentos surpresa.
Figura 15 – Screenshots de videojogos com perspectiva primeira-‐pessoa (Bioshock, 2007), perspectiva over-‐ the-‐shoulder (Resident Evil 4, 2005) e perspectiva terceira-‐pessoa (Assassin's Creed II, 2009).
Há ainda que referir que um videojogo nem sempre se encontra condicionado a um único ponto de vista da câmara. Como se irá ver no capítulo da Realização, em alguns casos o jogador pode optar por utilizar uma câmara em terceira ou em primeira pessoa conforme as suas preferências (como em The Elder Scroll V: Skyrim, 2011), ou pode alternar o ângulo da câmara para diversos pontos de vista consoante o gameplay do momento, seja de forma automática (como em Batman: Arkham Asylum, 2009), seja de forma controlada pelo jogador (como em Tomb Raider, 2013). 2.3.1.3. Os Movimentos de Câmara – Tipos de Movimentos: Rotações, Translações e em profundidade No universo cinematográfico existe um conjunto de tipos de movimentos que a câmara pode efectuar durante a filmagem de um plano. Estes movimentos de câmara, sejam eles rotações, translações, em profundidade, ou todos estes em simultâneo, permitem leituras com finalidades muito diversas – como o revelar da espacialidade de um espaço cénico ou da construção de uma coerência e modelo espacial a percepcionar pelo espectador, ou o criar e revelar continuidade 51
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
espacial na acção, induzir espectativa ou ansiedade no espectador, entre tantas outras. Quando a câmara executa uma rotação, horizontal ou vertical, origina planos panorâmicos. Planos panorâmicos horizontais (pan) ocorrem quando a câmara se mantém numa posição fixa e roda em torno do seu eixo vertical, originando um plano que se movimenta da esquerda para a direita ou vice-‐versa, varrendo o espaço na horizontal. Planos panorâmicos verticais (tilt) correspondem a quando a câmara roda em torno do seu eixo horizontal criando um plano que se move de cima para baixo ou vice-‐versa, revelando o espaço ao longo da vertical do enquadramento (Ablan, 2002). De modo geral, o uso mais comum dos movimentos de câmara é seguir o movimento do tema, podendo igualmente servir para mudar de um tema para outro, ou para simplesmente estabelecer a distância relativa entre duas personagens. Qualquer dos movimentos de câmara pode ter um cariz dramático ou puramente descritivo, sendo sempre importante a sua velocidade e sua progressão, aspecto que induz leituras premeditadas nos movimentos de câmara (Marner, 2013) – uma panorâmica acelerada introduz dinamismo e animação (Figura 16), enquanto um movimento lento pode revelar uma personagem, intensificando o suspense e criando antecipação (Figura 17). Estes planos podem assumir-‐se como descritivos, quando pretendem apenas apresentar a generalidade do espaço, suas dimensões e adereços, ou como condutores da atenção (Figura 18), quando possuem um ponto de interesse específico, conduzindo a atenção do observador para algo que terá um papel acrescido na acção subsequente ou que possua informação relativa à acção (Marner, 2013). Outro movimento de câmara por vezes utilizado é a rotação segundo o seu eixo de profundidade – denominado de roll ou yaw. Este movimento é utilizado em situações como para revelar estados mentais intensos ou alterados de personagens, simular o voo de aviões ou ave, de um ponto de vista subjectivo, entre outros.
Figura 16 – Screenshots de uma panorâmica acelerada em Brave (2012)
Figura 17 – Screenshots de panorâmica lenta em Irmandade do Anel (2001)
52
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Figura 18 – Screenshots de um movimento de câmara condutor da atenção em Irmandade do Anel (2001)
Por vezes os movimentos de rotação da câmara são usados também quando a narrativa e acção do tema é em si monótona e sem dinâmica, havendo apenas o uso da câmara como recurso à criação de variedade, movimento e ritmo (interesse). Nestes casos, é necessário criar movimento plástico com esta, que nada tem a ver com o enredo ou com a acção narrada, como com movimentos de câmara que rodam sobre o tema, isolando-‐o da envolvente que roda e não permanece no enquadramento, levando a atenção do espectador a ser captada apenas pelo tema. Existem ainda movimentos de translação como os horizontais paralelos à acção (denominados de Planos de Paralaxe) e os verticais (também referidos como Boom) – que possuem intenções semelhantes aos movimentos panorâmicos, relativamente à sua velocidade e efeitos dramáticos – e os movimentos horizontais em profundidade, avançando ou recuando segundo esse eixo da câmara. Os movimentos horizontais em profundidade consistem em planos dolly, que são planos de avanço (dolly in) ou recuo (dolly out) sobre o tema e o espaço ficcional, transmitindo ao espectador a sensação de entrar no espaço ou dele se retirar (Ablan, 2002). Estes planos – ao contrário da utilização do Zoom da câmara22 – não distorcem a perspectiva da imagem, mas criam igualmente efeitos visuais dramáticos. Os planos de dolly in trazem o espectador para dentro do espaço, aproximando-‐o dos personagens (Figura 19), enquanto que os planos de dolly out recuam neste para revelar o espaço existente atrás do observador invisível (Figura 20). Estes movimentos de câmara são assim os que melhor acentuam a profundidade do espaço numa narrativa ficcional.
Figura 19 – Screenshots de um dolly-‐in em Irmandade do Anel (2001)
22
O Zoom origina efeitos de distorção do espaço pela distorção da perspectiva (Ablan, 2002), alterando as distâncias relativas percepcionadas, podendo expandir o espaço e tornar mais lenta a acção, ou acelerá-‐la ao contrair o espaço. 53
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Figura 20 – Screenshots de um dolly-‐out em Irmandade do Anel (2001)
O uso de lentes de diferentes aberturas proporciona expansão do espaço e movimentos aparentes mais lentos e distanciamento psicológico entre personagens – uso de grandes-‐angulares – ou uma compressão do espaço, movimentos aparentes acelerados e proximidade psicológica ou sentimental – uso de teleobjectivas (Marner, 2013). As distorções do espaço podem criar leituras dramáticas e plásticas durante o plano, quando a lente varia ao longo do tempo num plano em movimentos de aproximação ou afastamento por Zoom (Figura 21). Com estes, o espaço vai-‐se expandindo ou comprimindo ao longo do plano23, tal como o efeito de perspectiva se vai acentuando ou diminuindo, provocando uma deformação do espaço não homogénea. Este efeito, que nega a coerência do espaço como o espectador a concebe, torna este dispositivo num plano adequado para situações onde ocorrem acontecimentos dramáticos ou em que a realidade coerente parece posta em causa aos protagonistas.
Figura 21 – Screenshots de uma aproximação por zoom em Panda do Kung-‐Fu (2008)
A câmara pode ainda movimentar-‐se seguindo, a uma distância fixa, um tema, seja ele uma personagem, um veículo ou outro. Estes tratam-‐se de planos de seguimento (tracking shots ou follow shots) que seguem uma personagem e as suas acções (Ablan, 2002), podendo esta mover-‐se livremente pelo espaço ficcional e conduzindo para si, inevitavelmente, a constante atenção do espectador (Figura 22). Por vezes, estes são igualmente utilizados para ligar dois espaços consecutivos, seguindo um personagem enquanto este se desloca entre eles. Claro que todos estes movimentos da câmara podem ser usados em várias combinações e em simultâneo, de forma criar efeitos mais intensos, como acontece em Panda do Kung-‐Fu (2008) onde se utilizaram inúmeras vezes movimentos compostos para acrescentar dinamismo ao filme – tais 23
Sendo a expansão dos objectos nele colocados tanto maior quanto mais longe se encontrem da câmara.
54
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
momentos, nesse mesmo filme, incluem um boom acelerado percorrendo a escadaria, transformando-‐se numa rotação seguida de zoom-‐in até se centrar no protagonista, criando um plano incrivelmente dinâmico e dramático (Figura 23).
Figura 22 – Screenshots de um plano de seguimento em My Fair Lady (1964)
Figura 23 – Screenshots de um movimento composto em Panda do Kung-‐Fu (2008)
– Movimentos de câmara nos videojogos Olhando para a câmara nos videojogos, observa-‐se que movimentos de rotação, translação, em profundidade, ou de seguimento também se utilizam. Tal como no cinema, os movimentos da câmara possuem uma grande importância para a experiência dramática da narrativa visual, mas também para o conhecimento espacial que o jogador adquire destas e da sua acção24. Neste sentido, os movimentos possibilitados pela câmara constituem um beneficio significativo para que o jogador consiga estabelecer relações espaciais e recolher informações do espaço envolvente que lhe permitem construir cognitivamente um espaço coerente e continuo da e para a acção, bem como construir, interpretar e planear a sua linha de acção, no espaço, para a progressão no videojogo. No entanto, estes movimentos dependem muito do ponto de vista da câmara, pois a forma como a acção é representado e mostrada condiciona (num âmbito de coerência e realismo) que movimentos a câmara poderá efectuar no espaço virtual. Uma vez que a câmara, quer apresente um olhar subjectivo do protagonista em primeira-‐pessoa, quer se encontre exterior a este, encontra-‐se relacionada à maneira como este visualiza o espaço (pois encontra-‐se sempre agarrada à personagem), não é comum ocorrerem movimento de 24
Existem no entanto, certos videojogos que não apresentam qualquer movimento de câmara – como alguns jogos em perspectiva aérea (god’s view), cuja gameplay assenta num controlo e domínio total sobre um espaço e que não necessita de um movimentar pelo espaço. 55
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
translações com ela no ecrã. Os movimentos mais característicos, dinâmicos e variados, são no entanto proporcionados com a possibilidade de rotação da câmara. O mais comum é realizando panorâmicas horizontais e verticais, pois simulam o movimento natural do indivíduo em olhar o espaço em seu redor e deste modo surgem na interacção com este tipo de narrativas como um dispositivo praticamente natural. Mas, em certos casos, quando em perspectiva de terceira-‐pessoa, a câmara também poderá rodar em torno no personagem. Nestes casos de videojogos, no entanto, os efeitos e propósitos deste tipo de rotações funcionam de forma oposta do que se sucede nas narrativas cinematográficas – ou seja, não para destacar e isolar o protagonista em deterioramento do espaço envolvente, mas sim precisamente para o jogador melhor observar esse espaço em torno do personagem. Os movimentos de profundidade (os dolly, na linguagem cinematográfica) constituem o movimento constante da câmara, que caracteriza o envolvimento do jogador com a ficção interactiva. Nestes a câmara efectua um constante dolly, controlado pelo jogador, pois como a câmara está ‘agarrada à personagem’ sempre que ela avança ou recua no espaço virtual, naturalmente também a câmara o faz. Especificamente na perspectiva em terceira-‐pessoa, estes movimentos em profundidade correspondem igualmente a planos de seguimento, uma vez que a câmara se mantêm sempre agarrada ao personagem, seguindo-‐o a uma determinada distância. Certos casos permitem igualmente efeitos de zoom-‐ins e zoom-‐outs, aproximando-‐se ou distanciando mais do personagem, consoante o que o jogador entende melhorar a sua leitura do espaço virtual para a progressão da acção. Até aqui falou-‐se dos movimentos manipulados por acção do jogador. No entanto, em muitos casos, a própria interface do videojogo poderá atribuir comportamentos de IA (inteligência artificial) na movimentação automática da câmara de modo a proporcionar uma melhor jogabilidade e acompanhamento dinâmico da acção. Jogos como Prince of Persia: the Forgotten Sands (2010) ou Assassin’s Creed II (2009), bem como os restantes da mesma série, utilizam frequentemente estes segmentos cinemáticos onde a câmara movimenta-‐se pelo espaço, com rotações e dolly, seguindo o percurso que o jogador deverá seguir até ao ponto final do objectivo. Estes movimentos auxiliam especialmente o jogador em sequências que requerem um percurso específico pelo espaço, que de outra forma poderia não ser claramente 56
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
perceptível – este aspecto irá ser desenvolvido em mais detalhe no ponto 2.3.5. Em resumo, como se viu, a posição da câmara, juntamente com os seus movimentos, condiciona o que é enquadrado e representado nos planos, afectando a percepção do espaço da ficção e do que este contém, manipulando a experiência emocional e perceptiva do espectador e do jogador, já que toda a informação que este tem do enredo, mundo e personagens da ficção lhe chegam apenas pela câmara. 2.3.2. Composição Estática de um plano As questões da imagem e da percepção visual são relevantes para a problemática do espaço e como o indivíduo o percepciona, se move nele e o experiencia, uma vez que a exploração do ambiente envolve não só o movimento do corpo pelo espaço, como também o movimento ocular e o campo-‐de-‐visão (Gibson, 1986). Na composição estática de um plano, entram em consideração diversos aspectos perceptuais que no seu conjunto irão afectar o equilíbrio da imagem e a condução da atenção do espectador, bem como a sua leitura do espaço cénico. 2.3.2.1. Alinhamentos e Geometria No que respeita ao posicionamento do tema no enquadramento do plano, muito raramente este é centrado (Mascelli, 1998), pois produz imagens estáticas – sendo por isso feito apenas quando se pretende centrar a atenção totalmente nesse único elemento. Quando o tema não é centrado, o equilíbrio do plano joga não apenas pelo espaço preenchido mas também por aquele que é deixado vazio – como inserir “ar” no enquadramento, ou lookroom, que corresponde ao espaço deixado entre os olhos do personagem e o limite do enquadramento do lado oposto (Thompson & Bowen, 2009b). Tal ocorre quando essa personagem interage com uma outra situada nessa direcção (Figura 24.a) ou quando ela se desloca nessa direcção, pois um tema em movimento deve ter espaço na direcção em que se desloca e um tema estático deve ter espaço na direcção em que olha ou interage com algo (Mascelli, 1998). Este “ar” simboliza assim a acção e seus protagonistas que estão fora do enquadramento, indicando a sua direcção e presença. O “ar” coloca-‐se entre o personagem visível no plano e aqueles que se situam, na mesma linha de acção, para lá do enquadramento (off-‐screen). 57
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Geralmente o tema principal é posicionado no lado direito do enquadramento, sendo que este é o lado mais dominante. Quando é posicionado no lado esquerdo recebe normalmente um tratamento mais cuidado como melhor iluminação ou contraste, entre outros métodos (Mascelli, 1998) Igualmente, os elementos com maior peso visual são tipicamente colocados na parte inferior da imagem (Figura 24.b), levando a uma sua leitura que o espectador sente como tranquila e equilibrada. Isto porque temas posicionados na parte inferior da imagem ganham atributos de pesado, no sentido de imóvel, lento, ancorado e estável. Devido à noção da força da gravidade que o espectador tem, é espectável e lido com mais conforto quando estes elementos se localizam na zona inferior do enquadramento. Se a parte superior da imagem for mais pesada que a inferior, cria no espectador sensações de tensão e desequilíbrio – que podem em certos casos até serem pretendidas – levando-‐o a sentir-‐se incomodado e ansioso, estando à espera que o elemento caia.
Figura 24 – Plano em My Fair Lady (1964) com “ar” na direcção em que a protagonista interage com outra personagem e Plano em Panda do Kung-‐Fu (2008) onde os elementos mais pesados encontram-‐se na secção inferior do enquadramento.
Os elementos do enquadramento podem também por vezes formar “molduras” – Cercaduras – que contêm e envolvem a acção parcial ou completamente (Figura 25). Sendo geralmente centradas, fazem convergir o olhar do espectador para o tema que enquadram (Mascelli, 1998). Estes elementos que as compõem podem ser arcos, janelas, ombreiras, candeeiros, sinais, partes de objectos ou edifícios, vegetação ou até figurantes. São no entanto sempre elementos estáticos e pouco elaborados, pois de contrário desviariam a atenção do espectador para elas, competindo com o elemento principal ao invés de o enquadrar e enfatizar (Mascelli, 1998). De modo a que este dispositivo funcione adequadamente, existe sempre uma separação clara entre cercadura, tema principal e plano de fundo. Esta separação é conseguida sendo estas bem 58
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
delimitadas, com contornos bem definidos, e existindo um forte contraste de iluminação entre o plano da cercadura e o plano da acção. Por isso, frequentemente as cercaduras surgem em contraluz ou muito em sombra, assinalando apenas (ou quase) a sua silhueta – ou seja, não sendo filmadas com uma luz frontal, de modo a não terem os mesmos valores de iluminação que o plano da acção principal, uma vez que cores, tons e iluminação semelhantes causam uma fusão dos planos de profundidade (Mascelli, 1998).
Figura 25 – Planos em Irmandade do Anel (2001) onde elementos do espaço cénico – vão e morfologia do terreno -‐ em contraluz criam cercaduras.
Para a composição estática de um plano, existem duas regras importantes e frequentemente utilizadas – o Princípio do Triângulo e a Regra dos Terços. O princípio do triângulo é utilizado quando surgem no plano três temas dominantes na acção, que são colocados nos vértices de um triângulo (Figura 26.a), normalmente fechando a atenção do espectador na relação dessa forma (Ablan, 2002). Este triângulo pode ser ascendente ou descendente, sendo o personagem central dominante ou dominado, de acordo se o ápex onde ele se situa no triângulo estiver em cima ou em baixo, respectivamente (Mascelli, 1998). Geralmente isto é realizado com duas personagens em pé e uma sentada no meio, estando assim esta última subjugada pelas outras, ou com a personagem situada no meio, encontrando-‐se mais alta que as restantes e indicando assim que detém domínio sobre as outras. Estes triângulos formados pela composição dos elementos podem ser altos ou baixos, esguios ou largos, dando efeitos diferentes (Mascelli, 1998). De um modo geral a geometria triangular sugere força, estabilidade, solidez. Mas mais especificamente, triângulos largos e baixos relacionam-‐se com horizontalidade, enfatizando a largura do plano e conferindo-‐lhe estabilidade (Mascelli, 1998) – esta estabilidade só é, no entanto, transmitida com um triângulo normal (com o ápex para cima), e não com um triângulo invertido (Mascelli, 1998). Os triângulos esguios e altos, por seu lado, relacionam-‐se com verticalidade,
59
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
simbolizando força e altura (Mascelli, 1998). Para além do triângulo, é também muitas vezes utilizada a forma circular, organizando a posição dos elementos do plano de modo a formar um círculo visual (Figura 26.b). Esta geometria converge a atenção do espectador para os elementos que o criam – ou o seu centro – originando assim um ponto focal e segurando a atenção do observador nele (Ablan, 2002). Cria-‐se igualmente uma noção de agrupamento e coesão, levando o observador a ler os elementos como um grupo ou unidade.
Figura 26 – Composição dos três personagens relevantes do plano segundo o princípio do triângulo em My Fair Lady (1964) e Plano em Irmandade do Anel (2001) dispondo os personagens num círculo criando um sentido de unidade do grupo.
A regra dos terços consiste na divisão do enquadramento em três partes iguais, horizontal e verticalmente, criando quatro pontos mais fortes da composição nas intersecções destas linhas de terço (Mascelli, 1998). Estes pontos coincidem normalmente com os pontos de maior interesse da composição onde os elementos principais da acção são posicionados (Figura 27). Um caso usual é quando se enquadra uma personagem em que se posiciona os olhos desta a um terço do limite superior (Thompson & Bowen, 2009b; Ablan, 2002). Esta regra produz imagens mais dinâmicas que as imagens centradas, principalmente se os pontos de maior interesse – podendo ser objectos, personagens ou “ar” – surgirem em pares situados em pontos diagonalmente opostos. No entanto, quando composição é criada com uma personagem e “ar” (look room), este “ar” pode por vezes ser colocado na horizontal oposta, e não diagonalmente, dependendo da continuidade da acção.
Figura 27 – Plano em Brave (2012) em que a protagonista é colocada a um terço do limite do enquadramento
60
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
O posicionamento final de todos os elementos do enquadramento muitas vezes gera alinhamentos acentuados em determinadas direcções, que conferem diferentes sugestões ao plano. Alinhamentos verticais criam sugestões de força, dignidade e autoridade, enquanto alinhamentos horizontais sugerem estabilidade, horizonte e tranquilidade. Alinhamentos diagonais são dinâmicos, sugerindo instabilidade ou acção e movimento (Boggs & Petrie, 2008). Ainda, quando são criadas fortes linhas convergentes, estas sugerem profundidade e velocidade (Ablan, 2002). Independentemente da direcção, na generalidade, linhas rectas sugerem masculinidade, força e dignidade, enquanto se forem curvas passam a denotar fluidez e sensualidade, podendo por um lado sugerir feminidade e qualidades delicadas se forem suavemente curvas, ou por outro lado sugerir acção e diversão se acentuadamente curvas (Mascelli, 1998; Boggs & Petrie, 2008). O significado transmitido por estes tipos de alinhamentos é em parte influenciado pelo efeito da gravidade e forças a natureza (Mascelli, 1998) – as diagonais são dinâmicas e sugerem instabilidade porque parecem verticais a cair, as linhas rectas dão a impressão de velocidade porque a distância mais curta entre dois pontos é uma recta e por isso as curvas induzem uma diminuição de velocidade sugerindo um passo mais lento (Mascelli, 1998). Por último, quando no enquadramento surge uma acentuada linha composicional (que não faça parte de um padrão ritmado) – como uma linha diagonal criada pelo lado de uma montanha ou a linha do horizonte – esta nunca é centrada pois ao dividir o enquadramento em dois cria-‐se uma imagem quebrada e desequilibrada (Ablan, 2002). 2.3.2.2. A Percepção Visual na Composição Estática de um plano Quando o espectador recebe informação visual, a sua percepção organiza os elementos em unidades simples segundo aspectos semelhantes. Este processo de agrupamento permite uma fácil e mais rápida leitura da imagem por parte da sua percepção (Ward, 2003). Agrupar determinados elementos poderá fazê-‐los sobressair de um fundo confuso ou permitir ao espectador distinguir o tema e acção principal da acção de fundo ou para onde o seu olhar se deve focar (Ward, 2003). Um caso mais imediato é quando o espectador identifica uma multidão como uma unidade pelo tamanho e proximidade dos indivíduos, ou é atribuído uma mesma conotação ou inter-‐relação entre elementos que tenham a mesma cor (Ward, 2003) (Figura 28.a e 28.b). Por isso organizar elementos segundo uma determinada geometria auxilia a leitura imediata das 61
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
relações entre elementos da imagem. Porque formas geométricas são facilmente reconhecíveis, recorre-‐se a estas para que agrupamentos de pessoas, mobiliário, objectos, veículos ou estruturas apresentem imagens harmoniosas (Mascelli, 1998) – e porque a mente completa o incompleto, estas formas não necessitam de ser bem definidas e fechadas -‐ como linhas curvas que quase se unem serão mentalmente completadas num circulo. É mais confortável para o espectador se existirem estas relações de semelhança e continuidade entre elementos. Este aspecto leva inevitavelmente a que sempre que exista um agrupamento e surja um elemento isolado deste, é imediatamente enfatizado e irá sobressai no plano – como destacar uma personagem ao tê-‐la a uma maior distância de um grupo (Figura 28.c).
Figura 28 -‐ Plano em My Fair Lady (1964) em que a aristocracia é distinguida pelas cores monocromáticas. Plano em Brave (2012) onde os três clãs do enredo são separados e agrupados segundo a proximidade das personagens. Plano em Brave (2012) onde um personagem é destacado ao ser isolado do grupo das restantes personagens.
2.3.2.3. Ilusão de Tridimensionalidade e Profundidade Um filme é uma arte representada através de um meio bidimensional, mas deve criar uma sensação de realismo e credibilidade fazendo o sujeito acreditar no que está a ver como “real” e tridimensional. O desafio surge em como combater esta bidimensionalidade do ecrã e evidenciar a tridimensionalidade e profundidade do espaço cénico e dos seus elementos. Os contrastes de cor têm uma forte influência como indicadores da profundidade do espaço cénico (Ward, 2003), uma vez que, perceptualmente, as cores quentes e muito saturadas parecem avançar, enquanto as cores frias e pouco saturadas parecem recuadas. A iluminação igualmente manipula a leitura da imagem e do espaço cénico, sendo que perceptualmente zonas mais claras parecem avançar, enquanto as mais escuras recuam em profundidade. Não é possível criar profundidade com uma luz plana e uniforme, pois é com ângulo, direcção,
62
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
intensidade e qualidade da iluminação – como luzes laterais ou low-‐key (Figura 29.a) – que se criam diversos planos de sombras conferindo tridimensionalidade às figuras e objectos e se confere profundidade ao espaço cénico (Mascelli, 1998). Porque o espectador interpreta objectos menos nítidos e menos saturados como estando mais distantes, a criação de uma neblina sobre a área mais distante – perspectiva aérea – estabelece uma separação entre o plano de fundo e o primeiro plano, criando assim diferentes planos de profundidade no enquadramento (Mascelli, 1998). Principalmente em animação, é frequente recorrer ao uso da perspectiva aérea para enfatizar a profundidade, ao ver-‐se na distância paisagens cobertas por uma bruma e com cores pouco vibrantes. Isto cria a ilusão que o espaço cénico continua em profundidade e que não se esgota apenas no plano mais próximo, combatendo a bidimensionalidade da imagem (Figura 29.b). Adicionalmente, a luz contribui para revelar a textura dos elementos: uma luz dura, preferencialmente lateral, modela e realça o seu padrão, enquanto que uma luz suave ou demasiado frontal e ampla tende a destruir a textura (Ward, 2003) , logo constituindo-‐se num outro indicador de profundidade, pelos efeitos perspécticos. Ainda por vezes, a adição de reflexos ou sombras de elementos situados fora do enquadramento (Figura 29.c) comprime informação que precisaria de dois planos num só, adicionando sensação de profundidade ao mostrar que o espaço cénico continua para lá dos limites do enquadramento (Boggs & Petrie, 2008).
Figura 29 – Plano low-‐key em Amadeus (1984). Plano em Brave (2012) usando a perspectiva aérea sobre os elementos mais distantes de modo a acentuar a ilusão de profundidade do espaço. Plano em Brave (2012) em que a sombras de personagens situados no fora-‐de-‐campo induzem a continuidade do espaço cénico para lá dos limites enquadramento.
As narrativas cinemáticas utilizam adicionalmente a constância perceptual e a noção das distâncias relativas, jogando com o tamanho e proximidade do tema à câmara, juntamente com os efeitos perspécticos, para manipular a leitura do espaço e o tamanho dos elementos que nele existem. O observador reconhece muitos dos elementos e a relação entre eles devido a constâncias 63
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
perceptuais de tamanho, forma ou cor vindas da sua experiência, previamente adquirida. Porque o espectador tem noção de qual o tamanho real de um objecto que conhece, uma narrativa visual pode utilizar elementos reconhecíveis para estabelecer relações de tamanhos ou até manipular certos efeitos – no caso em que as dimensões das aberturas do espaço sejam bastante mais pequenas que o personagem cria a ideia que o espaço é muito pequeno ou que o personagem é demasiado grande (Figura 30.a). Permite-‐lhe igualmente ler correctamente os efeitos de perspectiva e o espaço em profundidade – principalmente se for criado um ritmo pela repetição dos elementos que acentua estes efeitos (Figura 30.b) – bem como estabelecer uma noção de escala entre personagens, objectos e espaço.
Figura 30 – Plano em Irmandade do Anel onde a desproporção de entre tamanho personagem e espaço cria a sensação de um espaço pequeno e apertado. Plano em Panda do Kung-‐Fu (2008) onde a repetição de elementos verticais acentua a profundidade.
A perspectiva é um elemento significativo para a narrativa do espaço, pois a convergência das linhas paralelas que cria enfatiza a profundidade do espaço cénico (Figura 31.a). Estas linhas constituem guias pelas quais o sujeito estabelece relações espaciais de distâncias e tamanhos dos objectos pois nos efeitos perspécticos verifica-‐se uma diminuição do tamanho das figuras à medida que a distância aumenta e vice versa (Mascelli, 1998) – por isso se numa imagem surgem dois elementos idênticos, mas em que um surge maior que o outro, o elemento menor é visto ou entendido como estando mais distante (Gallardo, 2001). O efeito de profundidade do espaço pela diminuição gradual de tamanhos é especialmente notório com a textura (Figura 31.b) – a fusão de pequeno detalhes que se repetem desde o primeiro plano até ao fundo à medida que se aproxima do horizonte, é lido como uma continuação em profundidade (Gallardo, 2001).
64
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Figura 31 – Plano em Panda do Kung-‐Fu (2008) em que as linhas convergentes criadas pela perspectiva acentuam a profundidade do espaço cénico. Plano em Panda do Kung-‐Fu (2008) onde a textura com a diminuição exponencial dos seus detalhes descreve o espaço em profundidade.
Como se falou anteriormente, o tamanho da imagem dos objectos é também um dos factores que determina a percepção do observador em profundidade. Deste modo, quando os elementos do enquadramento são colocados em primeiro plano, por serem sempre maiores (ocupando mais área do enquadramento), são entendidos como estando mais próximos (Figura 32.a). Pelo contrário, elementos do enquadramento que comparativamente ao primeiro estejam mais acima no enquadramento, e portanto sejam mais pequenos, são entendidos como estando mais longe (Ward, 2003). Quanto mais próximo um tema estiver da câmara, maior profundidade aparente irá existir nos elementos por detrás dele, embora a distância da câmara àqueles não varie (Ablan, 2002). Com todos estes aspectos falados, o olhar pode ser facilmente enganado pelo tamanho aparente dos objectos (Mascelli, 1998), pois este pode ser distorcido ou exagerado, jogando com o posicionamento em diferentes planos em profundidade – como foi feito em A Irmandade do Anel (2001), em que se utilizou a perspectiva forçada, com uma câmara estática, colocando personagens em planos de profundidade diferentes com os personagens mais baixos colocados a uma distância maior da câmara para criar a diferença de tamanhos entre determinados personagens sem recorrer a efeitos digitais (Figura 32.b).
Figura 32 – Plano em Panda do Kung-‐Fu (2008) em que os diferentes tamanhos dos personagens no enquadramento indicam a sua distância em si e em relação à câmara. Plano em Irmandade do Anel (2001) onde a técnica da perspectiva forçada cria a ilusão de personagens de diferentes tamanhos à mesma distância da câmara quando na verdade não o estão.
65
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Estas relações espaciais são igualmente transmitidas pela sobreposição de elementos no plano. Figuras isoladas podem estar a qualquer distância da câmara mas tendo umas em frente de outras já indica à percepção do espectador que umas estão mais próximas e outras mais distantes (Mascelli, 1998), pois qualquer elemento que pareça parcialmente ocultar outro é percepcionado como estando mais perto da lente da câmara (Ward, 2003). Mesmo que na realidade estejam à mesma distância da câmara, se aparentarem estar sobrepostas, a imagem é sempre percepcionada como tendo profundidade (Gallardo, 2001) – a sobreposição mostra relações espaciais entre primeiro plano e fundo (Ward, 2003). A sobreposição pode ser feita pela composição estática de elementos do plano e jogando com os ângulos da câmara, ou pode sendo feita pelo movimento do tema (Figura 33), pois este ao mover-‐se pelo espaço vai se sobrepondo em determinados intervalos a diferentes objectos ou figurantes. Esta sobreposição em movimento introduz motion parallax25 e vai transmitindo a posição e distância em profundidade dos vários intervenientes e objectos no cenário (Mascelli, 1998). O movimento do tema realça ainda mais a profundidade do espaço se for feito aproximando-‐se ou afastando-‐se da câmara (Ward, 2003). Isto porque se o tema se deslocar lateralmente, evidenciar-‐ se-‐á a bidimensionalidade do plano (Boggs & Petrie, 2008), enquanto que que se mover perpendicularmente à câmara, em vez de atravessar o ecrã, aumentam os efeitos de perspectiva e consequentemente de profundidade (Mascelli, 1998).
Figura 33 – Plano em Amadeus (1984) em que o personagem ao movimentar-‐se pelo espaço indica a profundidade do espaço.
As narrativas cinemáticas utilizam igualmente diversas técnicas de focagem, quer para destacar e isolar um tema, quer para criar profundidade no espaço. Quando tal é feito, a percepção do espectador lê os elementos nítidos como estando mais próximos e os objectos desfocados como mais distantes, criando assim a ilusão de profundidade do espaço (Figura 34). Quanto mais desfocado estiver o ambiente envolvente, maior a ilusão de profundidade (Ablan, 2002).
25
Quando existe movimento, o deslocamento dos elementos nos diferentes planos de profundidade não é sempre igual. Quando mais distante estiver o elemento, menor é a velocidade a que ele aparenta se deslocar. 66
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Figura 34 – Plano em Irmandade do Anel (2001) onde a focagem dos personagens e a desfocagem do cenário cria mais distanciamento entre os dois, coloca os personagens em primeiro plano e acentua a profundidade do espaço cénico.
A separação figura-‐fundo é igualmente relevante para criar profundidade no espaço cénico, uma vez que a figura é sempre lida como em primeiro plano – o fundo apenas define a forma ao dar-‐lhe um contexto (Ward, 2003). A figura é sempre identificada do fundo por ter contornos fechados, mas nem sempre é assim tão simples. Porque a figura é sempre lida em primeiro plano, técnicas e aspectos perceptuais que coloquem o tema em primeiro plano contra o fundo e que originem contrastes (quer seja cor, iluminação, focagem ou movimento como foi visto) criam esta distinção entre figura e fundo. Como foi então visto, a cor, iluminação, tamanho e proximidade dos elementos, sobreposição, movimento, focagem e a distinção entre figura e fundo, funcionam como indicadores de profundidade devido aos aspectos de percepção visual que trazem determinados elementos para o primeiro plano e outros para o fundo. Tal como a constância perceptual de tamanho nos efeitos da perspectiva e da textura, descrevem a profundidade do espaço devido à percepção do espectador de que os tamanhos das imagens de um objecto diminui com a distância. Mas como a câmara vê o tema, pode também aumentar ou diminuir a profundidade dum plano (Ablan, 2002), sendo que os ângulos de câmara “são o factor mais importante em produzir a ilusão de profundidade cénica” (Mascelli, 1998, p. 34). Para que a profundidade do espaço cénico seja enfatizada, e a tridimensionalidade dos seus elementos revela, são necessários ângulos de câmara e objectivas que produzam maior convergência de linhas de perspectiva e que mostrem maior número de faces (Mascelli, 1998). Quando apenas se vê uma superfície, a profundidade e tridimensionalidade dos objectos não é aparente. Por isso a câmara é geralmente posicionada de forma a mostrar duas ou mais faces dos objectos ou personagens. O que se verifica mais frequentemente é a colocação a câmara num ângulo de 45o em relação ao tema, mostrando os personagens a três quartos (Figura 35.a). 67
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Pode-‐se realçar ainda mais a tridimensionalidade do tema com a câmara em angle-‐plus-‐angle – posicionando a câmara simultaneamente em ângulo em relação ao tema e inclinada em relação a este, com um plano picado ou contrapicado (Figura 35.b). Esta dupla inclinação permite um maior número de faces filmadas, pois filma não só a frente e a lateral mas (porque é inclinada) filma também as áreas superiores ou inferiores, e segundo uma perspectiva linear (Mascelli, 1998). Também o uso de lentes grandes-‐angulares permite mostrar ou exagerar a ilusão de profundidade ao distorcer o espaço – expandindo-‐o e desse modo alterando as distâncias relativas fazendo-‐as parecer maiores, aumentando os efeitos de perspectiva, enquanto o uso de teleobjectivas comprime o espaço, encurtando as distâncias e espalmando a imagem.
Figura 35 – Plano em My Fair Lady (1964) filmando o protagonista em ângulo em relação a câmara. Plano com a câmara em angle-‐plus-‐angle em Panda do Kung-‐Fu (2008).
Representar a profundidade no espaço cénico pela câmara pode ser conseguido igualmente com o seu movimento – como se falou com os dolly e o zoom: os seus movimentos ao penetrar e percorrer o espaço em profundidade ou dele emergindo revelam a sua espacialidade (Figura 36). Mover a câmara, seja por rotação ou translação, aumenta a ilusão de profundidade (Ablan, 2002), tal como uma imagem que aumenta e diminui -‐ seja por dolly ou por zoom: ao se alterar o tamanho dos objectos no plano, transmite-‐se uma sensação de profundidade espacial e distância (Mascelli, 1998). Também se falou anteriormente que o movimento dos elementos não se mantém igual consoante a distância à câmara. Estas diferentes velocidades separam e determinam vários planos de profundidade. No caso do Zoom, o seu efeito de distorção do espaço (expansão ou compressão) enfatiza a profundidade do espaço ao acentuar os efeitos de perspectiva, bem como cria um movimento aparente da câmara – apesar de ser a lente simplesmente aumentar a imagem – dando a sensação ao espectador de se mover para mais próximo ou mais longe do tema (Boggs & Petrie, 2008). Adicionalmente, Allan Dwan menciona que, para se sentir o efeito do movimento da câmara, esta 68
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
tem que se passar por algo do cenário (Ablan, 2002). Ao fazer a câmara mover-‐se e passar pelos objectos, muda-‐se também o ângulo em que ela os vê mostrando mais faces do objectos e assim a sua tridimensionalidade.
Figura 36 – Plano em Brave (2012) onde a câmara efectua vários movimentos pelo espaço – tracking shot, rotações, dolly-‐out – revelando a tridimensionalidade e profundidade do espaço cénico.
2.3.2.4. Equilíbrio da Composição e Enfatização do Tema – Equilíbrio Numa composição, os dois lados do enquadramento devem geralmente estar equilibrados para que não causem sensações de estranheza ou desconforto no espectador. No entanto, isto não significa que nunca se deve incomodar os sentidos. Um filme é uma peça dramática que desafia a constância emocional do espectador. Pelo intento de intensidade dramática, dinamismo e interesse, por vezes, as composições são criadas propositadamente desequilibradas de modo a suscitar determinadas reacções e emoções no espectador -‐ porque vão depois ser equilibradas com os planos seguintes (equilíbrio na montagem) e assim têm-‐se sequências equilibradas e leituras correctas da narrativa, mesmo que a composição estática de um plano isolado esteja desequilibrada. O equilíbrio da composição poderá ser feito de duas formas. Pode-‐se ter as duas metades da composição simétricas em termos de peso visual – equilíbrio formal, ou tê-‐las assimétricas – equilíbrio informal (Figura 37). Um equilíbrio simétrico ou formal tem as duas metades da composição simétricas em termos de elementos, sendo sempre planos centrados. Estabelecendo um equilíbrio formal produzem-‐se planos mais estáticos, sem contraste ou conflito, consequentemente sendo mais pacíficos e tranquilos, mas mais monótonos. (Mascelli, 1998). Contrariamente, o equilíbrio informal, ou assimétrico, não tem iguais elementos de cada lado do enquadramento. A assimetria no enquadramento é criada por um binómio de elementos opostos, que pode ser de tamanho, cor, tom, forma, textura, posição no espaço ou ponto focal – uma personagem pode ser maior que outro, pode estar mais à frente e outro mais atrás, um pode ter 69
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
cores vibrantes e o outro menos, um pode estar melhor iluminado que outro ou um pode estar focado e o outro desfocado, entre outras possibilidades. Estes jogos de composição originam imagens mais dinâmicas ao jogar com elementos opostos e contrastantes (Mascelli, 1998).
Figura 37 – Planos com equilíbrio formal e equilíbrio informal em Blade Runner (1982)
É, no entanto, mantido o equilíbrio ao igualar o peso visual dos dois lados do enquadramento: o peso visual de um lado compensa o peso visual do outro. A cor é um dos aspectos que é percepcionado como tendo peso e densidade, podendo alterar a percepção visual do tamanho aparente dum objecto e influenciando o equilíbrio da composição. De modo geral, os tons escuros são lidos como sendo mais pesados, fazendo os elementos parecer mais densos e pequenos, enquanto os tons claros fazem os elementos parecer mais leves e maiores. Tal como as cores quentes têm maior peso que as cores frias, e as cores mais saturadas têm maior peso que as menos saturadas (Gallardo, 2001). Por estas razões, cores percepcionadas como tendo mais peso concentram-‐se muitas vezes mais na zona inferior da imagem para criar uma imagem estável, e frequentemente o tema do plano possui cores mais vibrantes ou mais escuras em contraste com o fundo (Figura 38).
Figura 38 – Plano em My Fair Lady (1964) marcado por um forte contraste entre a protagonista – tema do plano – e o fundo. A personagem domina a composição e o olhar do espectador com cores mais escuras que concentram o maior peso visual da composição deste enquadramento.
Algumas maneiras de se criar este equilíbrio assimétrico são: tendo os elementos que são visualmente mais pesados ocupando uma área menor da imagem que os elementos mais leves; ou no caso de existir um personagem isolado num lado do enquadramento com vários personagens do 70
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
outros, esse terá melhor iluminação ou cores mais vibrantes para que o seu peso visual único seja semelhante ao peso visual do conjunto do outro lado; ou tendo os elementos mais pesados na metade inferior da imagem e não na superior, entre outras formas. – Enfatização Em última análise, tudo o que é criado e feito numa narrativa cinemática procura captar a atenção, interesse do espectador e orientá-‐la. Todas as técnicas conjugadas, no final, são percepcionadas pela raw data do seu olhar – eye scan (Mascelli, 1998). Um filme é feito de partes – sequência, cena, plano, elementos – e é a sua inter-‐relação que forma a peça cinemática, ou seja, é a combinação de todas estas partes, elementos e dispositivos, que conduzem não só ao que o espectador sente e interpreta mas também para onde olha, em que direcção e em que ordem – o que influência a leitura das relações desses elementos e consequentemente a interpretação que ele faz de toda a peça fílmica. Num plano cinemático, os intervenientes e a acção devem ser sempre destacados do plano de fundo (Mascelli, 1998). A criação desta separação entre figura e fundo é extremamente importante, para controlar a atenção do espectador e realçar o tema e a acção, visto que uma figura tem mais força se estiver separada do fundo e contrastando com ele de alguma forma (Mascelli, 1998). Portanto, apesar de se manter equilíbrio da composição, a atenção do espectador é sempre direccionada para um ponto ou um elemento que é enfatizado. A imagem geralmente deve ter apenas um centro de interesse – mesmo nos two-‐shots em que existe sempre uma das personagens que domina a outra. Se a imagem tiver duas ou mais figuras igualmente dominantes elas competem pela atenção do observador e enfraquecem a eficácia da imagem26 (Mascelli, 1998). Esta enfatização é conseguida principalmente por contraste, que pode ser de tamanho, isolamento (vs agrupamento), movimento, cor, iluminação, forma, textura, focagem ou até pela perspectiva (Mascelli, 1998). Os contrastes de cor têm uma forte influência na condução da atenção do espectador porque um elemento com uma matiz distinta da envolvente, principalmente se for uma cor quente e saturada como o vermelho, imediatamente direcciona o olhar (Figura 39). 26
Apesar de por vezes existirem casos em que se justificam vários centros de atenção, como cenas de batalha ou de catástrofes (Mascelli, 1998). 71
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Figura 39 – Plano em Irmandade do Anel (2001) e Panda do Kung-‐Fu (2008) onde a cor vermelha destaca-‐se da composição criando pontos de maior atenção.
Um elemento é também realçado ao ser mais iluminado, porque o olhar do espectador é imediatamente atraído para o que está mais iluminado e mais claro (Mascelli, 1998) – áreas de alto-‐ contraste de luz e sombra distinguem imediatamente quais os centros de interesse (Boggs & Petrie, 2008) uma vez que zonas ou objectos mais iluminados sobressaem do resto da composição (Figura 40.a). As linhas convergentes, resultantes dos efeitos da perspectiva, convergem igualmente o olhar do espectador num ponto focal, dirigindo a atenção para o elemento que aí se situar (Figura 40.b). A perspectiva linear é “um dispositivo de contenção e fixação do olhar” causando “um recentramento que é forçado pela convergência das linhas paralelas no ponto de fuga” (Nogueira, 2008, p. 253).
Figura 40 – Plano em Irmandade do Anel (2001) onde a personagem mais iluminada sobressai de todas as outras. Plano em Blade Runner (1982) em que as linhas convergentes encaminham a atenção do espectador para o seu ponto de fuga, assinalando os personagens que aí se encontram.
Por outro lado, o tamanho e proximidade do tema no enquadramento – juntamente com o posicionamento dos elementos em relação uns aos outros – torna-‐se assim um dos métodos mais usados para conduzir a atenção do espectador ao enquadrar o elemento de maior importância no primeiro plano (Figura 41.a), uma vez que o olhar do sujeito é naturalmente atraído para os objectos maiores e mais próximos (Boggs & Petrie, 2008). Um dos casos mais evidentes acontece nos grandes planos (Figura 41.b) e muito grandes planos onde o tema, ao encher quase a totalidade do ecrã com enorme impacto e quase invadindo o espaço pessoal do espectador, não permite ao olhar distrair-‐se com qualquer outro elemento (Boggs & 72
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Petrie, 2008).
Figura 41 – Planos em Irmandade do Anel (2001) onde o tema do plano é assinalado e realçado ao ser posicionado em maior proximidade da câmara.
O movimento de um tema tem igualmente a capacidade de imediatamente fixar ou redireccionar a atenção do sujeito (Marner, 2013), pois algo em movimento sobressai sempre de uma envolvente estática – na cena em que Mérida (Brave, 2012) investiga a cabana pitoresca, a atenção do espectador fixa-‐se inevitavelmente numa vassoura quando subtilmente esta se desloca sobre o plano de fundo (Figura 42), mostrando como um elemento inconspícuo consegue captar a atenção pelo seu movimento, rivalizando com a protagonista não só maior e mais próxima no plano, como melhor iluminada, mais expressiva e colorida.
Figura 42 – Plano em Brave (2012) onde um elemento (vassoura) em movimento no plano de fundo transfere a atenção do espectador da protagonista em primeiro plano para si.
O olhar do espectador é também imediatamente atraído para o que vê melhor no plano, mesmo que não seja algo no primeiro plano (Figura 43.a), porque a sua percepção rejeita olhar para o que está desfocado ou ilegível, que apenas percepciona com a visão periférica, levando a unicamente se concentrar num ponto ou faixa de cada vez (Arnheim, 1997). Deste modo, o uso da Focagem Selectiva permite destacar o tema na composição (Ablan, 2002). Esta técnica mantém uma faixa de profundidade nítida -‐ profundidade de campo -‐ aquela onde se encontra o ponto de interesse desejado (Mascelli, 1998), impedindo assim o espectador de olhar para outros elementos no plano (Figura 43.b). A focagem pode também alterar-‐se durante do plano para mudar onde se quer que o observador
73
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
olhe (Ablan, 2002). Quando a focagem muda de um tema para o outro dentro do plano, o olhar e atenção do público são transportados para se fixarem no novo tema (Figura 43.c e 43.d) – pois uma vez que o olhar assinala o que está nítido como o ponto de interesse (Boggs & Petrie, 2008), mudando o elemento focado, transporta igualmente a atenção (Marner, 2013).
Figura 43 – Planos em Brave (2012) utilizando diferentes técnicas de focagem para enfatizar o tema do plano e conduzir o olhar do espectador.
Numa peça cinemática, todos estes factores de enfatização trabalham frequentemente em conjunto. Uma composição pode por vezes jogar apenas com um elemento de cor quente e saturada, ou um elemento focado, ou um elemento iluminado para centrar a atenção. No entanto, muitas vezes são utilizados vários em simultâneo – geralmente os grandes planos têm sempre o fundo desfocado, utilizando o tamanho e proximidade do tema em conjunto com a focagem selectiva. Como ilustra a Figura 44.a, pode-‐se ainda adicionar contrastes de cor, como uma luz vermelha incidindo estrategicamente em certas áreas contra um tom frio e azulado geral da imagem, maior detalhes de pormenores como a textura e criar convergência do olhar através de linhas convergentes pelos efeitos de perspectiva linear. No caso da Figura 44.b, a cor vermelha do vestuário da personagem juntamente com a forma central e circular de um vão no cenário, convergem a atenção nele e assinalam-‐no imediatamente como o elemento principal da acção.
74
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Figura 44 – Planos em Panda do Kung-‐Fu (2008) e Irmandade do Anel (2001)
2.3.2.5. A Composição Estática nos Videojogos A composição estática num plano não é possível de concretizar no caso de uma narrativa interactiva, pois os criativos que a produzem não têm modo de prever como a câmara se irá movimentar, uma vez que o seu posicionamento depende em parte das acções do jogador, e portanto planear os que planos irão ocorrer durante a progressão do videojogo é impossível. É o jogador que efectua ou vai condicionar as sequências de ângulos de câmara. Por isso, nos aspectos mencionados neste ponto 2.3.2., aqueles que se poderão analisar num videojogo dizem respeito à sugestão da tridimensionalidade e profundidade no plano e alguns métodos de enfatização e condução do olhar do jogador. – Sugestão da tridimensionalidade e profundidade Em ambas as imagens da Figura 45, observa-‐se a perca de nitidez em profundidade, causada pela neblina (perspectiva aérea) e pela diminuição de detalhe. Também as zonas mais distantes são mais claras, possuem menos saturação e menos contraste, quer se trate de luz ou de cor. Verifica-‐se igualmente uma perca de volume das formas com a profundidade. No caso particular da segunda imagem da Figura 45, salienta-‐se adicionalmente a perspectiva da forma, ritmo e escala, relatando o espaço e a sua profundidade, para o que concorre a perspectiva da textura do pavimento. Este tratamento do espaço diferenciado ao longo da profundidade estabelece uma separação entre as áreas mais próximas da câmara e as mais distantes, criando assim uma ilusão de profundidade do espaço e a sua enfatização, numa representação que é na verdade bidimensional.
75
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Figura 45 -‐ Screenshots de Assassin's Creed II (2009) onde se observa como o tratamento das áreas mais próximas vs mais distantes sugere a tridimensionalidade e profundidade do espaço.
A Figura 46 ilustra um plano particular na progressão de Bioshock Infinite (2013), onde se observa uma separação de espaços: espaço antes e atrás. É criada uma cercadura que delimita e conduz o jogador para um espaço atrás. Este espaço é representado no plano como teatral, sendo anulado o seu volume e profundidade – enquanto no espaço da frente estes são enfatizados. Adicionalmente os contrastes e a convergência de linhas (perspectiva) conduzem o olhar para esse outro espaço atrás.
Figura 46 -‐ Screenshot de Bioshock Infinite (2013) de uma plano com uma acentuada separação entre o plano antes e atrás. 76
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
– Equilíbrio A representação num videojogo recai mais sobre o espaço do que sobre a composição do enquadramento, embora na escolha da autora dos frames para o ilustrar haja uma natural tendência para escolher enquadramentos consonantes com as representações cinematográficas, de narrativa única, que favorecem a representação do espaço em função do enquadramento e da sua composição. Nas várias imagens apresentadas é patente que se opta sempre por enquadramentos com melhor equilíbrio e composição. No entanto estes não predominam num videojogo, uma vez que dependem da vontade contínua do que o jogador quer ver e fazer. – Enfatização Sobre a questão da enfatização num plano, o que predominantemente se verifica nos videojogos é o enfatizar da personagem que corresponde ao jogador – ou que ele controla – normalmente o protagonista, pois o jogador é sempre centrado no enquadramento. São enfatizadas ainda as personagens, adereços, objectos ou porções do espaço com quem o protagonista-‐jogador deve falar ou interagir. Estes objectos ou personagens com que o jogador interage surgem manifestamente mais iluminados (Figura 47).
Figura 47 -‐ Screenshot de Assassin´s Creed II (2009), mostrando o protagonista centrado no enquadramento e onde surge um personagem com que o jogador deverá interagir claramente identificado ao ser mais luminoso.
77
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
2.4. Realização, Continuidade e Coerência da Narrativa ”Um filme não é filmado, mas construído, construído a partir de tiras separadas (...) que são o seu material em bruto” (Boggs & Petrie, 2008, p. 187) As características do olhar da câmara permitiram a multiplicação dos pontos de vista e a variedade de modos de ver, dedicando-‐se “a rastrear o mais ínfimo pormenor, para nos devolver as partes integradas num todo através da montagem” (Nogueira, 2008, p. 257). Mas o olhar cinemático, ao multiplicar os pontos de vista do espectador, paradoxalmente também limitou o seu olhar (Nogueira, 2008) – porque enquanto no teatro se obtinha a visão total da acção, no cinema, com a introdução de planos mais próximos e de detalhes, são seleccionados e realçados alguns pormenores, rejeitando outros. Assim, “cessou de contemplar uma acção na sua integridade temporal, espacial e causal através do plano panorâmico e único” (Nogueira, 2008, p. 257). Ao invés, está-‐se condicionado pelo que o realizador o deixa ver e vêem-‐se os eventos da maneira que ele quer que os vejamos, sendo assim a visão da acção dramática muito selectiva e controlada. Representar uma acção de forma dramática nem sempre é possível numa única cena ou num único plano – pelo menos não de forma tão dinâmica como se consegue com a montagem de diversos planos – pois uma vez que cada tipo de plano tem especificidades dramáticas e utilidades próprias, estes não conseguem transmitir individualmente a totalidade dramática da narrativa (Thompson & Bowen, 2009b). Por isso os acontecimentos do filme são fragmentados, reorganizados, religados ou hierarquizados dramática e narrativamente (Nogueira, 2008). Pode-‐se dizer que a “construção” de um filme se assemelha-‐se um puzzle com as suas diversas peças devidamente interligadas. Portanto um filme nem sempre corre de forma contínua – a acção é fragmentada – no entanto a audiência recebe a impressão de que está a ver o evento na íntegra. É aqui que entra a importância de uma montagem bem conseguida – A ideia de montagem consiste em “unidades mínimas organizadas sequencial e consequentemente para oferecer totalidades de sentido complexas” (Nogueira, 2008, p. 258). Enquanto que o corte decompõe a acção, a montagem recompõe as imagens numa totalidade narrativa (Nogueira, 2008). As diversas alterações de ângulos de câmara (cortes, mudanças de direcção) ao longo de uma narrativa visual, não só são interessantes, como também são necessárias, pois “um fluir contínuo de imagens de um extremo ao outro do ecrã pode resultar fastidioso e provocar desinteresse no público” 78
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
(Marner, 2013). No entanto, a montagem implica que a junção desses planos visualmente diferentes seja feita de forma a manter uma continuidade e coerência da acção e da narrativa. Isto implica considerar não apenas os elementos que se encontram no plano isolado mas também como os elementos e acções nos diversos planos correspondam, se completem ou continuem entre si quando vistos sequencialmente. Isto também contribui para criar determinados significados em termos do narrar contínuo e coerente da acção dramática, da construção da tensão dramática e em termos da manipulação e controlo da experiência e resposta emocional do espectador. A montagem guia “os nossos pensamentos, associações, e respostas emocionais eficazmente de uma imagem para a outra, ou de um som para outro, para que a inter-‐relações de imagens e sons separados sejam claras e as transições entre cenas e sequências fluídas” (Boggs & Petrie, 2008, p. 190), considerando os efeitos estéticos, dramáticos e psicológicos que induz no espectador. Este âmbito engloba vários elementos e técnicas: é necessário considerar se a transição entre planos é efectuada com cortes directos, fusões, encadeados ou wipes; se é uma transição criando matching shots, campo e contra campo ou planos de reacção; se a acção dramática exige um padrão de montagem outside-‐in ou inside-‐out, com cut-‐in ou cut-‐away; se é necessário, ou se pretende, uma manipulação o tempo da acção com flashbacks, flash-‐forwards ou sequências-‐síntese; para além de efeitos dramáticos e dinâmicos como intercuts, uso propositado de jump-‐cuts, freeze frames, entre outros, mantendo presente a continuidade direccional quando os elementos passam de um plano para outro, bem como permitindo ao espectador uma leitura continua e coerente do espaço cénico. 2.4.1. As transições entre Planos 2.4.1.1. Plano, Cena e Sequência No âmbito da realização cinematográfica, a unidade básica com que se trabalha é o plano – um plano corresponde a uma vista contínua filmada por uma câmara sem interrupção. Juntando ou separando uma série de planos de forma a comunicar uma acção unida ocorrendo num lugar e tempo cria-‐se uma cena. Esta define o lugar ou cenário onde a acção ocorre, portanto, sempre que se muda de cenário, muda-‐se de cena. Pode ser composta por um ou vários planos, desde que mostre sempre um evento contínuo (Mascelli, 1998). Unindo as cenas origina-‐se uma sequência que constitui uma parte significativa da estrutura dramática do filme (Boggs & Petrie, 2008). Esta corresponde então a uma série de cenas ou planos, 79
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
que mostram uma mesma acção, podendo no entanto ocorrer num cenário ou em vários (Mascelli, 1998). 2.4.1.2. Tipos de Transições As transições – efeitos ou técnicas usadas na ligação de dois planos – podem ser várias, consoante a escolha criativa do realizador. Em certos casos, a transição é simplesmente efectuada através de montagem interna, em que o próprio movimento da câmara no plano conduz o espectador de um plano para outro (Figura 48), geralmente tirando partido do movimento de um elemento em cena – movimento com “pretexto” visual – mantendo assim uma clara continuidade da acção. Esta montagem interna não evita apenas cortes directos entre planos. Ao transportar o espectador pelo espaço, contribui para a descrição do mesmo, pois a filmagem contínua permite mais claramente estabelecer relações espaciais entre as secções do espaço ficcional que a câmara vai mostrando, não deixando que o espectador se sinta perdido no espaço onde decorre a acção.
Figura 48 – Screenshots de uma cena com montagem interna em Brave (2012)
No entanto, a transição mais utilizada é o corte simples27 de um plano para outro (Figura 49), em parte porque, sendo a ferramenta mais recorrente na montagem da acção, já é automaticamente aceite pelo espectador na sua leitura da narrativa (Thompson & Bowen, 2009). Estes cortes juntam sempre planos com diferenças notórias. Se tal não acontecer – quando se salta para um novo plano, visualmente demasiado semelhante ao anterior – originam os chamados jump-‐cuts (Beane, 2012), que causam uma leitura estranha da narrativa visual, como se um erro ou salto não pretendido tenha surgido na sua exibição28. Podem contudo, apesar de não ser muito 27
O corte simples ou corte directo corresponde a uma mudança abrupta e directa de uma imagem para outra. Para evitar isto, surgiu a regra dos 30º estipulando que planos consecutivos deverão ter, pelo menos, uma diferença de 30º no ângulo da câmara em relação ao tema. Isto garante planos “suficientemente diferentes” de modo a não criar a 28
80
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
comum, ser inseridos propositadamente em determinadas situações por razões dramáticas, como se irá mais adiante.
Figura 49 – Planos em Panda do Kung-‐Fu (2008) onde um corte directo faz a transição de um cenário para outro completamente diferente, iniciando uma nova cena.
Os cortes podem transportar directamente a acção para uma cena com uma acção, local ou tempo distintos da anterior, ou podem apenas cortar para um diferente ponto de vista da mesma acção. Os cortes na acção (corte americano ou transparente) são a forma mais imperceptível de montagem (Figura 50). Isto porque o corte é feito de modo a que o movimento seja mantido de forma contínua, ou seja, o segundo plano continua exactamente a acção do primeiro plano (mas através de um ângulo de câmara diferente). Deste modo, o corte, no decorrer da leitura da acção, não é percepcionado pois a acção continua a ser interpretada fluindo continuamente e o tempo não é quebrado (Thompson & Bowen, 2009).
Figura 50 – Screenshots de My Fair Lady (1964) em que a acção da personagem continua sem aparente interrupção de um plano para o outro.
Mas os cortes directos podem por vezes ser demasiado abruptos, podendo até causar confusão na passagem entre planos com conteúdos demasiado distintos. Nestes casos as transições através de fusões (fade-‐in ou fade-‐out) ou encadeados são visualmente mais agradáveis e mais claros. As transições por fusão (fades) constituem uma passagem gradual do plano para uma cor (fade-‐ in) e vice-‐versa (fade-‐out) (Marner, 2013). O mais comum é a transição de e para preto, no entanto podem ser realizadas com qualquer cor – muitas vezes quando a transição é para um plano de sensação de um glitch ou um “salto” (não pretendido) no filme (Thompson & Bowen, 2009). 81
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
flashback ou de um sonho é mais comum criar a passagem para branco, ou por vezes até para outra cor. Em termos de uma abordagem mais criativa, e/ou com intuito de associações de significados, estas fusões são intercaladas com efeitos visuais utilizados na acção da cena, como clarões ou relâmpagos (Figura 51). No entanto, colocar uma sequência entre duas fusões segrega-‐a numa unidade narrativa individual, por isso este tipo de transição é mais utilizado no início e final da narrativa total (Figura 52) ou, ocasionalmente, para delimitar intervalos narrativamente separados no espaço ou no tempo (Figura 53). Muitas vezes surgem igualmente para a inserção de memórias e imaginações, pois em termos de uma abordagem psicológica as fusões agem como transições para um estado de sonho ou mental. Usadas de forma abusiva, no entanto, criaria um efeito episódico, quebrando o fluxo narrativo (Mascelli, 1998).
Figura 51 – Screenshots de Brave (2012) em que aproveitam a luz do relâmpago para criar um fade de branco que introduz um flashback.
Figura 52 – Planos de abertura e de fecho de Amadeus (1984) efectuados com fade-‐in e fade-‐out
Figura 53 – Screenshots de My Fair Lady (1964) em que utilizam um fade-‐in e fade-‐out a meio da narrativa, mas neste caso a divisão funciona pois é uma transição para uma nova sequência.
82
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
As transições por encadeado (dissolve) por sua vez são criadas pela “dissolução” duma imagem noutra (Marner, 2013) (Figura 54). Estas são encontradas nas mais variadas situações – quer seja uma simples transição de cenas distintas em que não se deseja um corte, ou uma transição de planos relacionados em termos visuais ou de acção, como match dissolves ou em sequências-‐síntese, ou para simbolizar descontinuidades no tempo (elipses).
Figura 54 – Screenshots duma sequência inicial de Brave (2012) que utiliza vários encadeados mostrando diferentes ambiências para estabelecer o local e atmosfera da acção e situar o espectador.
Por último existem ainda os wipes, amplamente utilizados em Star Wars (Figura 55), no entanto este tipo de transição é actualmente muito raramente encontrado, apesar de Panda do Kung-‐Fu (2008) ter utilizado este tipo de transição – no entanto, com algumas alterações combinando o wipe com um encadeado (Figura 56). Estas transições encontram-‐se entre o corte e o encadeado, sendo efeitos móveis, em que uma cena parece empurrar outra cena para fora (Mascelli, 1998), quer seja se forma horizontal, vertical, angular ou até giratória, em espiral ou zig-‐zag, deste modo vendo-‐se as duas imagens ao mesmo tempo sem haver sobreposições (Thompson & Bowen, 2009).
Figura 55 – Screenshots de um wipe em Star Wars IV: Uma Nova Esperança (1977).
Figura 56 – Screenshots de um wipe combinado com um encadeado em Panda do Kung-‐Fu (2008).
83
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Mas o cinema é uma arte criativa, por isso existem muitas outras formas de fazer transição entre planos para além destas técnicas-‐base. Uma outra forma visualmente interessante, que por vezes é usada, consiste em utilizar os próprios elementos do cenário ou até personagens (em silhueta) como pretexto (visual) na transição dos planos – o filme Panda do Kung-‐Fu (2008) é um caso que tirou partido em vários momentos de transições deste tipo (Figuras 57, 58 e 59).
Figura 57 – Screenshots de Panda do Kung-‐Fu (2008) onde o abrir e fechar de portas em passagem para um novo espaço é aproveitado para realizar uma transição entre planos e cenas.
Figura 58 – Screenshots de Panda do Kung-‐Fu (2008) onde as colunas, e o passar da câmara por elas, são aproveitadas para efectuar um corte para um flashback.
Figura 59 – Screenshots de Panda do Kung-‐Fu (2008) onde usam a silhueta do personagem, e o passar da câmara por ela, para efectuar uma transição.
Independentemente do género ou abordagem criativa, a montagem, se feita correctamente, não é conscientemente apercebida pelo espectador (mesmo quando não se trata de montagem interna), permitindo à história fluir confortavelmente do início ao fim – porque de contrário o espectador irá registar que existe algo de incorrecto na sequência de imagens que visualizou levando-‐o mentalmente a tentar justificar o facto, causando problemas na sua habilidade de absorver nova informação que venha seguida e consequentemente quebrando a imersão na narrativa (Thompson & Bowen, 2009). 84
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Isto não implica no entanto que os cortes entre planos não possam ser visualmente dramáticos, ou que o espectador objectivamente não consiga assinalar os momentos de corte. Mas a evolução das narrativas cinematográficas conduziu a que o espectador absorvesse as diversas técnicas que esse meio utiliza, levando-‐o a aceitar os variados cortes e efeitos de transição como parte da linguagem visual intrínseca à apreciação desta arte e assim não destruindo a sua capacidade de ler a narrativa de forma coerente e lógica (Figura 60 e 61).
Figura 60 – Screenshots de Brave (2012) onde é realizado um corte ‘invisível’ na acção. Este não corta a continuidade da acção porque o segundo plano continua exactamente onde cortou a acção no primeiro.
Figura 61 – Screenshots de duas situações em Panda do Kung-‐Fu (2008) onde efectuam um corte simples. No entanto, o espectador compreende que continua a mesma acção e cena devido a outras pistas – como o manterem-‐se as mesmas personagens e o mesmo espaço.
Seja como for, a montagem envolve a combinação criativa de vários elementos pictóricos e sonoros de modo a que o conjunto final dê à audiência um fluxo de informação que entretenha ou inspire e, no fundo, que impacta o espectador da maneira pretendida. Tudo num filme é feito com a audiência em mente, atendendo às suas expectativas e necessidades, sendo obviamente que diferentes géneros de narrativas possuem diferentes conteúdos e audiência, consequentemente requerendo diferentes abordagens de montagem, com diferentes estilos, técnicas e efeitos (Thompson & Bowen, 2009). 2.4.2. Montagem como construção de significados A capacidade da câmara e montagem de revelarem diversos pontos de vista da acção criou 85
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
diversas possibilidades expressivas da narrativa, tendo determinados contributos para a experiência do espectador. A possibilidade dos ângulos de câmara (e consequentemente dos pontos de vista da audiência29) se irem alterando permite ir construindo uma progressão da tensão dramática dinâmica, em mudança, com diferentes cadências de drama e emoções ao longo da narrativa. “A grande funcionalidade da edição enquanto arte” pode “ser definida como motor de emoção” (Zangalo, 2009, p. 174), ou seja, suscitar e manipular reacções e experiências emocionais do espectador. De uma perspectiva afectiva, a “montagem pode contribuir para o envolvimento emocional com que o espectador enfrenta um determinado acontecimento: o mistério, o suspense (...)” (Nogueira, 2008, p. 258). Na sua interpretação e perspectiva sobre a narrativa, o espectador é conduzido e manipulado ao longo de toda ela, sem qualquer controlo sobre o que vê ou a sua totalidade. É a montagem (com as suas especificidades, possibilidades, dispositivos e elementos) que constrói “um imaginário e um ideário para o espectador, isto é, para lhe proporcionar diversas perspectivas sobre os acontecimentos, quer cognitiva quer afectivamente” (Nogueira, 2008, p. 258). 2.4.2.1 Planos na Realização A alternância entre vários ângulos de câmara não só adiciona dinamismo visual à narrativa como, mais importantemente, contribui para a melhor compreensão e leitura da narrativa por parte do espectador, quer ao nível do conteúdo narrativo (história) quer ao nível da construção dramática (controlo emocional). A utilização de diferentes pontos de vista e posições da câmara em relação ao tema face a uma mesma acção contribui para melhor a explicar ao espectador. É neste contexto que se vão articulando insertos entre a acção de uma cena, que fornecem ao espectador informação adicional ou mais detalhada da acção auxiliando-‐o a melhor a compreender, e que surgem reverse shots (contra-‐campos) – principalmente entre diálogos/acção entre duas personagens (Figura 62), que permitem mostrar as diferentes perspectivas da acção. Um inserto30 numa cena é uma personagem que observa a acção, mostrando a sua reacção a 29
Existe uma relação entre a audiência e o posicionamento ou ângulos em que a câmara é colocada. Sempre que a câmara muda, a audiência é reposicionada, consequentemente vemos o evento de um ponto de vista diferente (Mascelli, 1998) 30 Distinto de ‘plano de inserto’. Um plano de inserto mostra uma visão aproximada do plano anterior, mantendo-‐se na 86
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
esta, fornecendo informações ao espectador sobre o seu juízos sobre os acontecimentos e atitudes dos protagonistas da cena. Pode ainda ser usado para juntar dois planos que não observam a coerência (raccord) ou para apresentar personagens que irão ser relevantes no enredo mais adiante. Permite intercalar com a acção principal planos mostrando outros personagens que não fazem parte da acção principal, apenas a testemunhando, e a ela reagindo – plano de reacção – acrescentando um juízo de valor sobre os eventos narrados que o espectador eventualmente adopta. Os planos de reacção (Figura 63) são planos silenciosos de um interveniente reagindo ao que outro personagem está a dizer ou a fazer. Estes planos não dão o ponto de vista dum participante, mas ao mostrar-‐nos uma reacção emocional leva o espectador mais próximo da acção de modo a que se sinta intimamente envolvido, por vezes também ajudando a indicar ao observador como se deve sentir a uma determinada acção ou momento do filme (Marner, 2013). A eficácia dramática e emocional destes planos reside na proximidade com a acção, pois apesar de o espectador não ser identificado com um personagem (como num plano subjectivo), é atraído para o sentimento que observa, dando-‐lhe uma sensação de participação na acção (Marner, 2013).
Figura 62 – Screenshots de reverse shots em Irmandade do Anel (2001) e Brave (2012)
mesma acção. Um inserto numa cena corresponde a uma mudança de visão para outro personagem que se encontra na cena, mas que não está a participar na acção principal, apenas a testemunha. 87
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Figura 63 – Screenshots de planos de reacção (face ao plano anterior) em Amadeus (1984) e em Ratatui (2007)
2.4.2.2. Padrões de compor a acção da cena e seus efeitos no espectador Independentemente dos tipos de transições utilizadas, existem diversas opções de composição da narrativa visual entre os vários planos e ângulos de câmara existentes. Tal pode ocorrer quer quando a câmara se mantem sempre dentro da acção principal da cena, quer quando se afasta da acção principal (cut-‐away) ou para uma nova cena ou apenas momentaneamente para um evento ou elemento secundário – algo que ocorra no mesmo local ou um plano de reacção – retornando depois à acção principal (Ablan, 2002) (Figura 64). O efeito da montagem no contar da narrativa e na manipulação emocional do espectador relaciona-‐se tanto com a ordem ou padrão em que os planos estão montados, como o tempo que cada plano ocupa na narrativa e a velocidade do ritmo criado pelo cortes – cortes rápidos e planos curtos criam um ritmo mais acelerados que é transmitido à audiência e se torna mais dinâmico.
88
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Figura 64 – Screenshots do início de Irmandade do Anel (2001) onde a cena de Bilbo é interrompida por um cut-‐away para uma série de planos de vários Hobbits – que fornece informação ao espectador da ambiência – mas depois retornando para Bilbo.
Dentro de uma cena, a ordem pela qual os planos são montados e apresentados tem a capacidade de relatar o conteúdo narrativo da sequência de modo a construir diferentes estilos de progressão da acção. A montagem dos planos pode relatar a acção de diversas formas, sendo que, consoante as intenções dramáticas e plásticas que se desejam, os planos poderão compor uma cena de maneira progressiva (ou regressiva), contrastante ou repetitiva31 (Mascelli, 1998) (Figuras 65 e 66)
Figura 65 – Screenshots de um segmento em Ratatui (2007) onde a mudança entre ângulos de câmara é feita cada vez mais aproximando-‐se do tema (forma progressiva).
Figura 66 – Screenshots de uma cena em Irmandade do Anel (2001) que alterna contrastando planos de conjunto com planos aproximados dos intervenientes (forma contrastante), seguidamente apresentando uma série de planos todos com o mesmo ângulos de câmara (forma repetitiva).
A leitura e efeitos dramáticos que o espectador retira da cena não são os mesmos quando os eventos lhe são apresentados a partir de um establishing shot que progressivamente entra no cenário gradualmente revelando um seu pormenor – padrão de montagem outside-‐in – que quando 31
De forma progressiva (ou regressiva) implica uma série de planos compondo pontos de vista exponencialmente mais próximos (ou mais distantes) – não implicando, no entanto, planos necessariamente idênticos em termos de composição e ângulo em relação ao tema. De forma contrastante constitui uma composição com planos opostos como um plano geral contrastando com um grande plano. De forma repetitiva implica uma série de imagens do mesmo tamanho ou sempre o mesmo tipo de ângulo de câmara (Mascelli, 1998). 89
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
a acção transita imediatamente para um detalhe só depois dele se afasta para revelar a situação em que se insere – padrão inside-‐out (Boggs & Petrie, 2008). Um padrão outside-‐in constitui a forma mais tradicional de apresentar a acção, no entanto é possível criar uma cena dramática desta forma pois o aproximar gradual do olhar da câmara também transporta o espectador cada vez mais para o íntimo da acção e do espaço cénico (Figuras 67 e 68). Um padrão outside-‐in também poderá revelar-‐se mais dramático ou intenso se criado com um corte directo para uma porção mais pequena (e ampliada) do plano anterior (cut-‐in), como um detalhe ou personagem (Figura 69), pois estes cut-‐ins transportam subitamente o espectador para uma relação muito mais íntima com a personagem ou detalhe ao subitamente aproximá-‐lo muito destes. O oposto (inside-‐out) adiciona antecipação, ou por vezes até suspense (Boggs & Petrie, 2008), uma vez que o espectador é confrontado com algo cujo contexto (inicialmente) desconhece (Figura 70).
Figura 67– Screenshots de Panda do Kung-‐Fu (2008) utilizando um padrão outside-‐in que mostra o cenário exterior, depois levando o espectador (e personagens) para o seu interior e focando-‐se em detalhes deste.
Figura 68 – Screenshots de Ratatui (2007) onde a composição dos planos cria uma sequência que revela gradualmente mais informação do espaço ao entrar gradualmente mais no seu interior.
Figura 69 – Screenshots de Irmandade do Anel (2001) ilustrando um cut-‐in.
Figura 70 – Screenshots do prólogo de Irmandade do Anel (2001), uma cena que mostra primeiro um close-‐ 90
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
up do objecto, só depois recuando para mostrar a personagem e o cenário.
2.4.2.3. Acção no fora-‐de-‐campo do plano Como mencionado, no que respeita à realização e o processo final de montagem é tudo pensado como um conjunto, pois os planos devem ser apresentados sequencialmente de modo a apresentar uma acção contínua e coerente, para além de simultaneamente serem apresentados de uma forma que manipule a resposta emocional do espectador face à acção. Se os planos forem trabalhados apenas isoladamente pode existir equilíbrio de composição e do enquadramento, mas paradoxalmente quando forem ‘montados’ juntos poderão não criar uma narrativa visual interessante e dinâmica ou até criar numa sequência com sentimentos de suspense, descontinuidades ou claustrofobia não pretendidos – no entanto, estes sentimentos negativos não são sempre necessariamente errados. Por vezes pretende-‐se propositadamente criar estes efeitos e nesse caso nem sempre a composição formal e equilibrada é aquela que se adequa. Um plano isolado poderá ter uma composição e enquadramento desequilibrados, mas resultar numa sequência equilibrada e coerente. É por isto que planos com uma grande área de look-‐room se poderão considerar equilibrados (equilíbrio assimétrico) com o que não se vê no plano. O conjunto completo (que o espectador não vê) é composto por uma primeira personagem juntamente com outra personagem e o espaço entre eles (Figura 71) – espaço off-‐screen que é intuído através dos elementos, composição e acção nos planos. Quando é apresentado um dos planos isoladamente, este é uma fracção do conjunto que se escolheu salientar, e o seu equilíbrio é tido em consideração no plano seguinte – ou seja, não é o plano em si que cria este equilíbrio, mas a montagem. É a perspectiva sequencial, característica da linguagem cinematográfica – operacionalizada com a montagem – que permite que o espectador perceba o que acontece no fora-‐de-‐campo (Nogueira, 2008). Por isto, nem sempre é necessário (ou adequado) compor planos que se encontrem equilibrados tendo em conta apenas esse plano isoladamente. Pode-‐se ter enquadramentos desequilibrados (isoladamente) mas que proporcionam sequências de planos equilibrados e com significados correctos quando visualizados sequencialmente.
91
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Espaço
Figura 71 – Esquema da composição de dois planos (com equilíbrio assimétrico) consecutivos em Irmandade do Anel (2001) que pertencem a uma mesma cena e acção.
2.4.2.4 Associação de significados através de composições plásticas Como já mencionado, a montagem não liga apenas planos mostrando sempre a mesma acção contínua. Por vezes uma cena transita para outra mostrando outra acção particular diferente. No entanto, feita uma transição para um segundo plano que tenha uma forma, cor, dimensão ou som idêntico ao primeiro estabelece-‐se um ligação, não originando um corte demasiado brusco mas antes criando um passar mais fluido de uma imagem para a outra (Thompson & Bowen, 2009). Deste modo, essa acção particular continua a surgir dentro da totalidade da peça como coerente e fluída, sem dar a sensação ao espectador que saltou subitamente para uma peça totalmente desconexa do que viu antes. Planos consequentes que mostrem conteúdos semelhantes em termos de enquadramento, tamanho e ângulo de câmara – matching shots (Thompson & Bowen, 2009b) – criam uma coerência visual dentro da variação. Podendo ser ligados com cortes simples ou com encadeados32, esta montagem de forma pode ser usada apenas criar para uma transição mais gradual entre planos de conteúdos distintos (de modo a criar uma transição menos abrupta), (Figuras 72) mas também poder construir associações de significados em termos de acção e narrativa (Figura 73) ou uma passagem de tempo.
32
Os encadeados de forma (ou matched dissolves) são transições em que dois planos consecutivos surgem com formas, movimentos, conteúdos ou composições semelhantes (Mascelli, 1998). Os cortes de forma (ou form cut ou match cut) constituem a mesma lógica apenas fazendo a transição entre planos com um cortes simples em vez de um encadeado. No entanto, os encadeados permitem uma transição mais suave, melhor realçando as semelhanças, pois esta transição dá mais tempo para o espectador para identificar e estabelecer a relação de semelhança (Thompson & Bowen, 2009). Os cortes directos, por seu lado, ao serem mais bruscos, contribuem para efeitos mais intensos. 92
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Figura 72 – Screenshots de matching shots em Brave (2012) e Panda do Kung-‐Fu (2008) que estabelecem uma ligação visual através da composição circular em ambos os planos apesar de o seu conteúdo narrativo não ter relação.
Figura 73 – Screenshots de matching shots, em Brave (2012), apesar de constituírem planos separados no tempo e no espaço, criam uma associação de conteúdo/significado ao mostrarem acções ou personagens, juntamente com composições, idênticas.
2.4.2.5 Manipulação do tempo da acção O tempo que se desenrola nas narrativas visuais cinematográficas, tal como nas interactivas, não equivale ao tempo real. Filmes podem mostrar-‐nos o decorrer do tempo de um mês, um ano, milhares de anos, sem ser preciso ao espectador assistir aos eventos durante um igual período de tempo. O tempo da narrativa não corresponde ao tempo “real” (Boggs & Petrie, 2008). Geralmente é sugerido um decorrer de tempo maior do que aquele que é efectivamente visualizado, mas de forma a manter um fluir e encadear da história em que isso seja implícito e não crie confusão no espectador – é um tempo que é condensado mas tal é feito de forma a que o espectador não sinta falhas de coerência ou de lógica ou que sinta “irreal”. Isto só é possível devido à montagem, recorrendo a técnicas de permitem a manipulação do tempo da acção, de modo a conseguir condensar uma narrativa que poderá abranger vários dias ou anos, num segmento de apenas algumas horas. A indicação de uma maior passagem do tempo pode ser conseguida através de processos tão simples como passar de uma cena de dia, para outra de noite, ou a mudança de vestuário dos personagens. Estes pormenores comunicam imediatamente à
93
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
nossa percepção que o tempo passou. Bem como a inclusão de determinada informação no próprio diálogo que leva imediatamente o espectador a perceber o salto do tempo (Marner, 2013). Isto é conseguido porque a mente do espectador tem a capacidade de estabelecer associações e leituras de significados entre planos que não são contínuos. Por isso, quando o espectador observa planos ligados por encadeados, combinados em sequências-‐síntese, cenas editadas com montagem paralela e a inclusão de cenas de flashbacks ou flash-‐forwards, ele compreende a acção como contínua, sem se perder na lógica e seguimento da narrativa no seu todo. Transições com encadeados geralmente indicam alguma passagem de tempo, especialmente se compondo matching shots (mas também entre planos com conteúdos diferentes), quer sejam transições entre o mesmo local mantendo a mesma composição (Figura 74) ou planos com a mesma personagem, apenas com idades diferentes (Figura 75).
Figura 74 – Screenshots de match dissolve em Amadeus (1984) que mostrando o mesmo local, com a mesma composição, indica um passar do tempo.
Figura 75 – Screenshots de matching shots em Panda do Kung-‐Fu (2008) para indicar o final de um flashback.
Criando uma série de cortes rápidos – Sequência Síntese ou Montage33 que geralmente é acompanhada de música – quer seja com cortes simples ou encadeados, mostra-‐se uma versão condensada da acção ao longo do tempo (Thompson & Bowen, Grammar of the Edit, 2009). Assim, permite reduzir a duração de acções que de outro modo desenvolver-‐se-‐iam ao longo de um longo período de tempo. No entanto, ao seleccionar os seus pontos significativos, o espectador não perde a leitura completa e correcta dessa acção (Figura 76). 33
A palavra montage possui também outros significados: em francês, descreve o acto de juntar o filme, ou seja a montagem em geral; no cinema silencioso soviético de 1920s surgiu a teoria de montage de edição, que crê que duas imagens não relacionadas podem ser editadas juntas para gerar um novo pensamento, ideia ou emoção na mente do observador (Thompson & Bowen, 2009) 94
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Esta forma é muitas vezes emocionante e fornece rapidamente uma ideia geral bastante precisa da acção, podendo facilmente transmitir o ambiente geral dum cenário, período ou momento ao espectador.
Figura 76 – Screenshots de uma pequena cena em Ratatui (2007) que condensa a acção em apenas três planos ligados por dissolves.
Mencionou-‐se anteriormente que cenas colocadas entre fusões originam uma segregação da acção. Mas no caso de elipses temporais – flashbacks e flash-‐forwards – bem como em cenas de sonhos ou imaginações, essa consequência é propositada – uma vez que segrega a acção. O espectador percebe que esse segmento entre as transições constitui algo isolado do resto da acção principal. Por isso este tipo de cenas são frequentemente introduzidas entre fusões (por vezes também por encadeados), muitas vezes acompanhadas de iluminação e cores diferentes para destacar da linha de acção principal bem como conferir determinados efeitos emotivos. No entanto, esta não é técnica obrigatória para estes casos. Qualquer realizador é livre de combinar os variados recursos da linguagem fílmica disponíveis – um destes exemplos é em Ratatui (2007) em que utiliza um zoom out bastante acelerado para um wipe através do contorno do olho do personagem que é também utilizado como elemento de ligação entre o personagem adulto e a versão mais nova este (Figura 77).
Figura 77 – Screenshots de uma transição para um flashback em Ratatui (2007).
Mas quando existem grandes saltos de tempo e/ou local – quer sejam elipses temporais ou não – por vezes é necessário introduzir essa informação de forma mais clara ao espectador. Situações em que exista uma grande e abrupta alteração em termos de tempo ou local (dando inicio a uma nova cena), por forma a não perder o espectador, por vezes o corte é efectuado para um plano que introduza essa nova situação. Estes podem constituir simplesmente a adição de texto informando uma data ou local específico – títulos introdutórios – mas essa informação pode ser igualmente fornecida de forma mais subtil – como filmando a chegada a uma estação ou mostrando 95
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
um jornal focando a data (Marner, 2013), ou até um mapa, como acontece após o prólogo de Irmandade do Anel (2001) (Figura 78).
Figura 78 – Screenshots de Irmandade do Anel (2001) em que efectuam um dissolve para o mapa, depois dirigindo a câmara para a localização da próxima cena situando assim o espectador no local ficcional.
Adicionalmente, por vezes, o enredo engloba também duas acções dramáticas que ocorrem em simultâneo, em locais diferentes. Nestes casos a montagem paralela (ou intercut) – apresentar planos das duas acções alternadamente (Thompson & Bowen, 2009) – cria uma narrativa visual mais dinâmica e cativante, conseguindo o espectador no entanto inferir correctamente a sua ocorrência temporalmente sobreposta. Esta montagem paralela surge quer sejam cenas simples – como uma conversa telefónica, em que porque se deseja mostrar ambos os lados do diálogo, se alterna entra um interveniente e outro – ou cenas com uma abordagem dramática – contrapondo duas acções opostas ou personagens rivais, introduzindo conflito na cena que alimenta a experiência emocional do espectador (Thompson & Bowen, 2009) – Brave (2012) é um caso que utiliza esta abordagem em mais do que uma ocasião (Figuras 79 e 80). A montagem paralela é algo que ajuda a criar e acentuar tensão dramática, pois sempre que se opõem duas coisas diferentes (personagens, eventos) cria-‐se sempre uma ligeira tensão e alternar entre duas acções opostas cria muitas vezes suspense e antecipação (Boggs & Petrie, 2008) – especialmente se mostrando planos cada vez mais curtos em duração, o que torna o ritmo da cena mais frenético à medida que as duas linhas de enredo se desenrolam, transferindo essa energia para o espectador que sente a urgência desse ‘passo’ (Thompson & Bowen, 2009). Este último caso poderá conduzir a flashcuts – vários planos consecutivos muitos curtos, geralmente de apenas alguns segundos que podem constituir montagem paralela ou não – que pela sua montagem muito rápida adicionam dinamismo e torna a cena intensa (Figura 81).
96
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Figura 79 – Screenshots de Brave (2012) onde alternam entre as duas personagens estabelecendo uma ligação, apesar de estarem em locais diferentes.
Figura 80 – Screenshots de Brave (2012) onde alternam entre os dois grupos de personagens que perseguem a mãe-‐ursa para aumentar a tensão dramática.
Figura 81 – Screenshots de um flash cut em Panda do Kung-‐Fu (2008).
97
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Apesar de se ter anteriormente apresentado os jump-‐cuts, de certo modo, como um aparente erro técnico, estes são por vezes – muito raramente – utilizados de forma propositada, pois funcionam na criação de cenas tensas, estados mentais alterados e sensações de alienação – um caso encontra-‐se em alguns planos iniciais de District 9 (2009) (Figura 82).
Figura 82 – Screenshots de District 9 (2009) de alguns jump-‐cuts que pretendem transmitir sensações de nervosismo e tensão do protagonista.
Efeitos de freeze frames, igualmente, são ocasionalmente utilizados para efeitos dramáticos, pois se usados esporadicamente contribuem para uma narrativa visual dinâmica (Figura 83). Apesar destes serem efeitos visuais que não correspondem ao seguimento real do tempo – aliás momentaneamente parando-‐o de todo, o que poderá parecer paradoxal com o objectivo de um fluir contínuo da acção – não interferem com a compreensão do espectador da narrativa total (até porque muitas vezes, a narrativa contínua pelo som com algum personagem a narrar em voz off34).
Figura 83 – Screenshots da cena inicial de Ratatui (2007) onde é feito um freeze frame que adiciona uma qualidade dinâmica e cómica ao início do filme.
2.4.3. Continuidade e coerência da acção e do espaço A montagem dos planos deve ser feita de modo a relatar o espaço ao espectador para que este não se sinta perdido e que consiga entender correctamente o posicionamento e organização espacial dos vários espaços entre si. Isto implica que os padrões de movimento e da acção se mantenham contínuos, coerentes e lógicos (Mascelli, 1998) – quer quando um personagem caminha de um plano para outro, mantendo-‐ se a mesma acção ou quando a acção do plano salte de um tema para outro, sendo necessário assegurar que o espectador entenda as posições dos objectos entre estes e o espaço, ou mesmo 34
voz que narra os acontecimento mas que não aparece (personagem) no plano.
98
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
quando a acção salta para um local diferente, numa nova cena. Certas técnicas de transição – em especial os encadeados e montagem de forma – como já se falou anteriormente, permite estabelecer associações de significados que permitem ao espectador entender a mudança de local (e de tempo). Mas mesmo os corte simples, quando transitam para um cenário totalmente diferente é suficientemente claro a mudança de espaço e o espectador não interrompe a sua imersividade na narrativa pois simplesmente aceita que se dá um inicio de uma nova cena com uma nova acção. As maiores preocupações dão-‐se em espaços interiores e espaço contíguos, quando a acção se desenvolve continuamente entre eles. 2.4.3.1. Continuidade Espacial A continuidade espacial do mundo ficcional da narrativa é também induzida e aludida através de aspectos da composição (plástica do plano) com linhas de perspectiva e pontos de fuga que convergem o olhar em profundidade. Uma vez que o espectador estabelece muito facilmente associações de significados e de relações, por vezes o fora-‐de-‐campo falado anteriormente – não-‐visto mas induzido (através das linhas de olhar) ou parcialmente aludido (como com sombras) – estabelecem-‐se relações espaciais entre personagens e/ou objectos, evitando que o espectador se perca quando se dão cortes entre planos para outra secção do cenário, como se ilustra nas Figuras 84 e 85.
Figura 84 – Screenshots de Panda do Kung-‐Fu (2008) onde, apesar de ocorrer um corte, sabemos a posição do objecto em relação à personagem devido ao facto da personagem ter olhado primeiro na sua direcção, criando assim uma linha de acção.
Figura 85 – Screenshot de uma cena em Brave (2012) onde as sombras antecipam-‐se à acção e estabelecem o ponto de ligação espacial (sendo o elemento comum) entre os dois planos, permitindo ao espectador não se perder no espaço quando a câmara muda subitamente de posição.
99
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Outros elementos da linguagem fílmica, como planos neutros35, cut-‐aways ou planos de reacção, também constituem um recurso para se introduzir na narrativa mudanças direccionais (Figuras 86 e 87) – quer seja para disfarçar descontinuidades, fazer uma pausa da acção ou apenas alterar o posicionamento da câmara em relação ao eixo de acção – sem que se crie uma quebra na coerência da acção (Marner, 2013).
Figura 86 – Screenshots de Ratatui (2007) mostrando com um plano neutro permite estabelecer a ligação entre duas cenas, com personagens e locais diferentes.
Figura 87 – Screenshots de My Fair Lady (1964) onde o plano de reacção retira momentaneamente o espectador do meio da acção principal, mas não interrompe a sua leitura da acção enquanto contínua, nem o perde no espaço porque o personagem situa-‐se no mesmo espaço.
2.4.3.2. Eixo de Acção e Continuidade Direccional Muitos dos movimentos que surgem no ecrã estabelecem ‘pistas’ para a continuidade da acção, dos movimentos e do espaço. A trajectória criada pelo movimento da acção – pode ser criada pelo deslocamento dos personagens, ou algo mais subtil como relação de olhares (linha do olhar) em cenas de diálogos (Marner, 2013) cria o eixo da acção (Figuras 88 e 89). A direccionalidade e progressão deste no espaço e entre planos mantem-‐se contínua e perceptível para o espectador pois auxilia-‐o em ter uma leitura coerente do espaço. Isto implica que os movimentos vistos no ecrã se mantenham coerentes e consistes em termos de direcção quando eles se prolongam de um plano para outro36 (Figura 90) – por isso quando um personagem se desloca da esquerda para a direita e sai do plano por esse lado direito, no plano seguinte ele entra no plano do lado esquerdo de forma a manter a direccionalidade do seu 35
planos com um sentido direccional indeterminado, colocando a câmara no próprio eixo de acção, com o personagem aproximando ou afastando-‐se na direcção da câmara. 36 Em termos práticos, a filmagem correcta é assegurada ao manter a câmara posicionada sempre do mesmo lado do eixo de acção (Mascelli, 1998). 100
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
movimento esquerda-‐direita (Marner, 2013)
Figura 88 – Planos em Brave (2012) e Irmandade do Anel (2001) ilustrando linhas de olhar.
Figura 89 – Screenshot de uma cena em Irmandade do Anel (2001) em que o eixo de acção corresponde à trajectória efectuada pela personagem.
Figura 90 – Screenshots de Amadeus (1982), onde o personagem sai do plano pelo lado esquerdo e entra pelo lado direito no plano seguinte de modo a manter uma direcção do movimento direita-‐esquerda em ambos os planos.
2.4.3.3. Construção do Espaço Ficcional Sintético O indivíduo ao movimentar-‐se no espaço, explorando pelo caminho ruas, casas, divisões áreas – e recolhendo informação que armazena na memória – constrói um mapa cognitivo37 na sua mente, desse espaço (Gibson, 1986). As narrativas cinemáticas têm a capacidade de fazer o mesmo, com as várias perspectivas e pontos de vista que são mostradas do espaço ficcional. A utilização de vários ângulos de câmara diferentes, entre os quais a câmara alternada, contribui para descrever o espaço ao mostrar ao espectador diversos pontos de vista, vistas gerais e detalhes desse espaço, que constroem na sua mente uma sua “maquete mental”. Apesar de nunca ver o espaço cénico na sua totalidade, numa só imagem, o espectador consegue juntar as várias fracções do espaço que a câmara lhe vai mostrando, mesmo depois de saírem do ecrã -‐ desde que sejam apresentadas numa continuidade coerente através da montagem -‐ e deste modo construir mentalmente uma ideia do espaço ficcional sintético onde a acção decorre. Isto é possível devido à qualidade “persistente” do ambiente na sua consciência — o indivíduo 37
Conceito introduzido pela primeira vez em 1948 por Edward Tolman no artigo "Cognitive maps in rats and men” 101
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
têm consciência do espaço que não está directamente na sua linha visão, por isso tem interiorizado a “persistência” do ambiente. Os objectos vão surgindo e saindo da sua linha visão á medida que ele se movimenta pelo mundo, e movimenta a cabeça, mas esses objectos persistem mesmo quando saem do campo de visão. Esta percepção da persistência dos objectos que deixam de ser vistos, conduz também a uma percepção de coexistência desse objectos com os que são vistos, criando uma continuidade, uma ligação, entre o que é visto e o que deixou de o ser (Gibson, 1986). Isto deste que a montagem seja feita de modo a ser perceptível a relação especial entre esses vários pontos de vista – quer seja através de um establishing shot, de um plano geral ou plano de conjunto que apresente a totalidade do espaço, para depois saltar para um plano aproximado ou de detalhe. Deste modo o espectador sabe onde encaixa essa porção na totalidade do cenário. O contributo da câmara mais directo, para a descrição do espaço cénico, é com os seus movimentos por este (tracking shots, dollys, rotações). Esses movimentos facilitam muito a fácil descrição e compreensão do espaço pelo espectador, pois ao criarem o olhar contínuo pelo espaço o espectador imediatamente identifica as relações espaciais das várias áreas. Mas quando a cena é constituída por vários planos, e portanto diversos cortes para diferentes ângulos de câmara, o espectador entende a organização espacial do espaço cénico graças a continuidades direccionais e linhas de acção, bem como a muitos outros aspectos da montagem enquanto construtora de significados. 2.4.4. Realização e Montagem em Videojogos A realização e montagem no cinema é algo essencial na construção dramática. No entanto, em videojogos, este não é um processo tão fácil de ser controlado, uma vez que o espectador-‐jogador tem a possibilidade de controlar -‐ até certo ponto -‐ os planos e a sua duração no ecrã. O “estilo” dos videojogos encontra-‐se algures entre as duas principias perspectivas de pensamento cinematográfico – o Formalismo de Eisenstein, assente na montagem e no corte como elemento principal) e o Realismo de Bazin (assente mais no long shot, filmagem não interrompida (Jones, 2005). O estilo de montagem e realização também depende dos jogos. Alguns são mais cinematográficos, recorrendo a muitas cut-‐scenes, jogando com a montagem entre cenas cinemáticas e cenas interactivas, para criar uma narrativa visual mais dramática. Outros por seu lado têm uma abordagem mais semelhante do long-‐shot (do realismo) preferindo utilizar poucas ou 102
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
nenhumas cenas animadas e mantendo a narrativa visual mais contínua (Jones, 2005). A maioria a sua progressão assemelha-‐se naturalmente ao long-‐take de Bazin um vez que a progressão normal do Gameplay é sempre contínua – não existem saltos nem cortes na acção – excepto quando o jogador faz pausa. Apenas em momentos de transição na mudança de espaços, ou quando se interage com personagens, e quando inicia um novo segmento da acção é que existem cortes e nestes podem-‐se inserir comparações com as técnicas da montagem cinematográfica. Mas a acção dentro de cada um dos segmentos é naturalmente contínua. Muito jogos na primeira pessoa preferem esta última abordagem, enquanto que jogos na terceira pessoa, principalmente os RPG38, tipicamente criam um envolvimento e interacção com outros personagens juntamente com uma determinada forma de contar e de experienciar a ficção que leva à utilização de uma maior alternância de planos cinemáticos e portanto a uma abordagem mais semelhante à montagem. Os jogos em terceira pessoa tendem a ser mais cinemáticos, pois também tendem a ter um maior olhar sobre uma construção dramática e a ter um argumento mais desenvolvido, com vários cut-‐ scenes – tanto que geralmente se iniciam logo com uma sequência animada que introduz a backstory. Ao longo do jogo vão surgindo cenas animadas para fazer a transição entre certos momentos ou utilizando pequenas mudanças no ângulo de câmara, quando a personagem-‐jogador interage com outros personagens do jogo. 2.4.4.1. Construção do Espaço Ficcional Sintético em Videojogos Há que estabelecer um paralelismo entre a exploração lógica do espaço por parte do jogador como sendo idêntica à exploração por parte da que um transeunte faz de um espaço urbano, que não conhece e de que não tem mapa – isto quando este o está a conhecer pela sua experiência directa e imediata. Existe a criação de um espaço sintético num jogo pelo jogador, tal como num espaço urbano pelo transeunte. Também a exploração do espaço é idêntica quando, havendo uma experiência do espaço prévia, existe um seu completar com o tempo, à medida que o espaço é percorrido de novo, tanto no caso dum espaço dum videojogo como de um espaço real – o espaço tipológico começa a transformar-‐se num espaço da experiencia existencial. 38
Role Playing Games 103
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
O indivíduo ao movimentar-‐se num espaço, vai explorando pelo caminho ruas, casas, divisões, áreas, como vai recolhendo informação que armazena, memorizando a sua síntese. Constrói desta forma um mapa cognitivo desse espaço na sua mente, que é reutilizável e que permanece. São aspectos comuns a estes três casos -‐ cinema, videojogos e espaço urbano: – Em todos os casos o observador usa várias fracções de espaço. – Em todos os casos o observador usa informação off-‐screen, que não vê mas em que assume o espaço como continuando. – Em todos os casos o observador faz a síntese dos espaço pela junção de informação parcial, que sintetiza num todo. – Em todos os casos diferentes vistas são utilizadas, equivalentes aos tamanhos de planos, desde uma visão mais geral que mostra o território até enquadramentos de detalhe/pormenor que mostram porções ou detalhes dos seus espaços. Esta informação vai ser integrada procurando coerência numa síntese espacial. – Pistas, dentro do enquadramento, de objectos ou iluminação que se encontram fora dele, dão ao observador um sinal da sua existência que leva ao seu conhecimento parcial mas que deixa sempre em aberto e por revelar parte da sua informação. São anunciados sem serem revelados completamente. 2.4.4.2. Comportamento da câmara ao longo da acção No jogo, o espaço é mais importante que no cinema porque o jogador é que controla o seu olhar, enquanto no cinema esse olhar é controlado pela realização. Analisando como a câmara se comporta na progressão da acção, e como contribui para a narrativa visual e experiência, esta nem sempre se mantém constante apenas seguindo o protagonista a uma distância fixa sem se envolver na acção. Em muitos casos, a câmara não segue a personagem de forma constante, aproximando-‐se e afastando-‐se em certos momentos, de modo a conseguir criar uma melhor animação, por vezes até mudando o ângulo de câmara se for necessário, para visualizar melhor a acção (Figura 91). Este cortes se equiparam sempre aos ‘cortes na acção’ da linguagem cinematográfica, uma vez que a acção tem de seguir continuamente de um plano para o outro, senão prejudicaria a interactividade do jogador.
104
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Figura 91 – Screenshots de Prince of Persia: The Forgotten Sands (2010), dum momento em que a câmara faz um corte para um diferente ângulo de câmara de modo a melhor mostrar a sequências de acções que o jogador deve fazer.
Também, em certas sequências específicas de jogos na terceira-‐pessoa, de acção e/ou aventura – como os das séries Prince da Persia (Figura 92) ou Assassin’s Creed – este movimentos (automáticos AI pelo espaço) transportam o jogador pelo espaço, adicionando informação para a construção da mencionada maquete mental ou mapa cognitivo do espaço, e o movimento constante (sem cortes) permite-‐lhe perceber melhor as relações espaciais e de distancia. Estes movimentos geralmente nunca seguem uma linha recta o que não só é devido a uma preocupação de um gameplay e disposição de obstáculos interessante, como estes segmentos criam em termos visuais curtas cenas dinâmicas, que revelam os espaços de forma um pouco mais dramática.
Figura 92 – Screenshots de uma sequência cinematográfica em Prince of Persia: The Forgotten Sands (2010) onde a câmara movimenta-‐se, de modo automático, pelo espaço virtual indicando o percurso que o jogador deve fazer.
105
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
A câmara adapta-‐se às situações do momentos, procurando o melhor ângulo e proximidade do tema para construir um olhar sobre a acção e animação dinâmica que as acompanha, por forma a conseguir uma melhor visualização destas (Zangalo, 2009). No entanto, também poderão ocorrer mudanças de planos e de aproximações por controlo do jogador. Num videojogo encontram-‐se então dois tipos de abordagens do comportamento da câmara -‐ uma cinematográfica e uma específica da progressão do videojogo, com livre arbítrio do jogador: – Primeira abordagem: Cinematográfica Na abordagem cinematográfica, a montagem e o que a câmara mostra no enquadramento são determinados não pelo espectador/jogador mas pelos agentes que montam a narrativa dramática da acção e determinam em absoluto, através da composição e representação do espaço e da montagem, o que o espectador vê, sendo este totalmente condicionado no seu percurso exploratório do espaço. Nas ficções cinematográficas, a posição da câmara, juntamente com os seus movimentos, determina o que é enquadrado e representado nos planos, condicionando a percepção do espaço da ficção e do que este contém, manipulando a experiência emocional e perceptiva do espectador/jogador, já que toda a informação que este tem do enredo, mundo e personagens da ficção lhe chegam por um seu enquadramento manipulado. Nestas cenas cinematográficas de animação existe: – Determinação dos ângulos de câmara e respectivos enquadramentos que mostram o espaço e acção com diferentes proximidades, com diferentes inclinações e com diferentes lentes de câmara. – Determinação do que vê e como vê pela composição, bem como o fechar ou abrir do enquadramento para o espaço off-‐screen. – Determinação da ordem porque vê pela montagem, sendo este elemento que determina a sequência das porções vistas pelo espectador. Através da orientação por eixos de acção e continuidade do movimento de acção, da colocação da câmara ao longo dos vários planos numa montagem e do olhar para fora do enquadramento anunciando um espaço fora de cena (cut-‐away), no cinema é possível criar uma noção de orientação do espaço no espectador (criação de um espaço sintético), independente da realidade do espaço retratado.
106
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Para ilustrar, a Figura 86 apresenta uma cena de animação que surge num determinado momento da progressão de Assassin’s Creed II (2009). Nesta cena é feita uma introdução a um espaço interior da acção, que é apresentado, passando a ser conhecido de antemão, antes de nele ocorrerem acções relacionadas com o guião. Tal como em qualquer outra narrativa cinematográfica não-‐interactiva, aqui o espectador/jogador é conduzido pelo espaço, não podendo intervir na escolha do que vê.
Figura 93 -‐ Screenshots de uma cena cinematográfica em Assassin’s Creed II (2009)
Nesta cena verificam-‐se duas situações: Situação 1 (Figura 94):
Figura 94 – Screenshots de uma cena cinematográfica em Assassin’s Creed II (2009) em que a câmara progride em “flyaround” transportando o espectador/jogador pelo espaço.
Neste movimento da câmara o jogador é transportado pelo espaço, sendo-‐lhe fornecida informação para que possa construir a síntese cognitiva daquele. A montagem interna utilizada no cinema permite ao jogador ter uma melhor percepção do espaço como um todo, uma vez que em vez de porções separadas que tem de integrar num todo, lhe é fornecida uma filmagem continua que percorre os vários espaços, que assim ficam naturalmente 107
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
interligados. A câmara progride em “voo de pássaro” (flyaround), progredindo no sentido do seu eixo de filmagem (roll) seguindo trajectórias em curvas complexas, à imagem do voo de um pássaro. Provoca um viajar pelo espaço livre, percorrido de forma sequencial, aleatória e dinâmica, passando o jogador pelos seus diversos subespaços sem interrupção. É dada uma noção global e unificada de todo o espaço. Situação 2 (Figura 95):
Figura 95 – Screenshots de uma cena cinematográfica em Assassin’s Creed II (2009) com personagens, enredo, linhas de acção e de continuidade conforme uma narrativa cinematográfica
Outra abordagem cinematográfica, presente neste exemplo, é a de surgir um momento em que a interactividade do jogador é igualmente suspensa sem aviso, sendo o espaço e as personagens conformes a uma narrativa cinematográfica. São usadas as linhas de acção e de continuidade, predomina a composição e respectivos enquadramentos e ângulos de câmara determinados pelo realizador e não pelo jogador. É direccionada e controlada a atenção do jogador para o que é mostrado. Conta-‐se assim uma história que vai comunicar um contexto, uma informação, personagens ou outros elementos que o jogador deve saber antes de poder agir sobre o jogo. Não só se apresenta o espaço onde irá decorrer a acção principal, como também se privilegia o tratamento e a chamada de atenção, destacando neste porções com maior relevância para a acção e argumento. – Segunda Abordagem: Livre arbítrio Considerando agora a segunda abordagem – progressão com livre-‐arbítrio (interacção) do jogador – esta pode ser feita por plano subjectivo ou por tracking shot, efectuando a câmara movimentos na primeira-‐pessoa ou na terceira-‐pessoa, respectivamente.
108
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Primeira-‐Pessoa: Em videojogos na primeira-‐pessoa, o olhar da câmara é um olhar subjectivo, representando o olhar da própria personagem. É também o ponto de vista mais próximo da visão real do espaço, uma vez que o jogador vê como que pelos olhos do protagonista. Criam no jogador uma noção de proximidade e partilha de identidade com o personagem que “ocupa”. A primeira-‐pessoa “permite o acesso ao fio contínuo da realidade” (Zangalo, 2009, p. 199), uma vez que o movimento da câmara aqui é sempre linear (Figura 96). Estes videojogos possuem igualmente uma maior limitação de movimentos de câmara, e não ocorre um processo pré-‐definido de montagem, existindo apenas um único enquadramento possível, na progressão da acção (Zangalo, 2009).
Figura 96 – Screenshots de Bioshock Infinite (2013)
Também possuem uma amplitude do campo de visão pequena, não permitindo ao jogador um conhecimento muito abrangente do espaço envolvente nem da sua localização nele, dificultando consequentemente a sua noção de orientação espacial. Nestes videojogos na primeira-‐pessoa, o comportamento da câmara para apresentação da acção e do espaço, está maioritariamente dependente do jogador – pois a câmara apenas possui a possibilidade de movimentação em termos de rotação (panorâmicas) que são totalmente controladas pelo jogador. É assim simulado o movimento natural do olhar de um indivíduo, privilegiando panorâmicas horizontais e verticais, baseadas em rotações. Também privilegia o avanço em profundidade (dolly-‐in). Só haverá zoom quando este for justificado por próteses (como binóculos, miras) para manter o realismo do olhar do jogador (Figura 97). Os videojogos na primeira pessoa tendem a criar uma noção mais imersiva no jogador, intensificando as sensações e as emoções, tais como ansiedade ou suspense.
109
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
A limitação visual deste ponto de vista pode ser uma “potencialidade” dramática, pois não conseguindo o jogador ter amplitude para apreender num todo o que o rodeia, aumenta a sua tensão em relação ao desconhecido e é favorecido o impacto de momentos surpresa.
Figura 97 – Screenshots mostrando a alteração do ponto de vista da câmara quando se representa a mudança para a mira de uma arma em Call of Duty 4: Modern Warfare (2007).
Terceira-‐Pessoa: O movimento da câmara num videojogo na terceira-‐pessoa corresponde a um tracking shot (ou follow shot) do jogador seguindo-‐o na sua progressão – os movimentos em profundidade da câmara correspondem a planos de seguimento, uma vez que a câmara se mantêm sempre a uma distância fixa no jogador, filmando por trás, e mostrando simultaneamente o espaço por onde este irá progredir (Figura 98). A câmara efectua um dolly-‐in constante, penetrando no espaço com o jogador, sendo portanto um movimento de câmara extremamente imersivo no espaço. Os movimentos dolly são os que melhor possibilitam a progressão no sentido da profundidade do espaço e mais a enfatizam. Corresponde igualmente a um plano POV (point of view), pois é um ângulo de câmara que mostra o que a personagem vê, sem no entanto situar o jogador na própria personagem, sendo tão informativo como o plano subjectivo em termos do que o jogador vê em cada momento. Permite assim um distanciamento em relação à própria personagem, numa visão mais táctica e racional do jogo.
Figura 98 – Screenshots de Assassin’s Creed II (2009)
110
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Videojogos na terceira pessoa são mais ricos em termos das possibilidades de movimentação da câmara – “a câmara pode assumir qualquer posicionamento no espaço, podendo inclusive ocorrer mudança de plano durante a navegação” (Zangalo, 2009, p. 198) e permite ao jogador explorar o espaço da forma que deseja, bem como controlar os ângulos de câmara, e tempo de visualização destes que necessita (Zangalo, 2009). É então em videojogos, na terceira-‐pessoa, que a câmara se torna dinâmica, em constante movimento, mudando e adaptando-‐se à acção. A câmara não segue a personagem de forma sempre constante, mas aproxima-‐se e afasta-‐se em diferentes momentos, de modo a conseguir criar uma melhor dinâmica, por vezes até mudando o ângulo de câmara – seja de modo contínuo ou com um corte – permitindo melhor perceber a acção, o espaço e objectos que envolvem o jogador e o percurso possível para sua progressão. Estes movimentos de câmara podem ser automáticos ou controlados pelo próprio jogador. A Figura 99 ilustra alguns diferentes movimentos de câmara possíveis mencionados e como eles se poderão conjugar e suceder-‐se. Neste caso ocorre um corte para um ângulo de câmara diferente, seguido de um movimento de câmara fluido e contínuo (ambos movimentos automáticos) para um outro ângulo de câmara em que o jogador passa a ter controlo sobre a movimentação da câmara.
Figura 99 – Screenshots de uma sequência de Assassin’s Creed II (2009) ilustrando um momento da progressão do jogo onde se sucedem diferentes tipos de movimentos da câmara – automáticas e por controlo do jogador.
111
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
-‐ Movimentos Automáticos (em terceira-‐pessoa) A interface do videojogo poderá atribuir comportamentos de IA (inteligência artificial) à movimentação da câmara, seguindo princípios cinematográficos, de modo a proporcionar uma melhor jogabilidade e acompanhamento dinâmico da acção de uma forma não aleatória e fluida. A câmara adapta-‐se automaticamente, alterando planos para mais distantes ou mais próximos, de acordo com a acção e do espaço onde ela decorre (Figura 100). Elementos cénicos do espaço que obstruam a progressão do jogador no espaço ou a sua visão deste são contornados por esta abordagem automática, mantendo a visibilidade do todo. Em certos casos, a câmara antecipa-‐se à acção efectuando rotações, translações e afastamentos que permitem ao jogador obter mais visibilidade do caminho a percorrer (Figura 101).
Figura 100 – Screenshots de um segmento em Prince of Persia: The Forgotten Sands (2010) em que a câmara se move durante o gameplay acompanhando a acção do jogador: a câmara ascende acompanhando o protagonista que sobe no espaço, seguidamente efectuando um rotação e translação para onde ele deve seguir, para depois se voltar a aproximar quando já não é necessário uma visão tão ampla do espaço.
Figura 101 – Screenshots de um movimento automático de aproximação da câmara em Tomb Raider (2013) quando a protagonista/jogador atravessa espaços apertados, fazendo o jogador sentir a claustrofobia e dimensões reduzidas da abertura, afastando-‐se de volta após o jogador passar.
-‐ Controlo da câmara pelo jogador (em terceira-‐pessoa) A câmara poderá rodar em torno da personagem – de modo controlado pelo jogador – não para destacar e isolar o protagonista em deterioramento do espaço envolvente (como ocorre no cinema), mas antes para o jogador melhor conseguir observar esse espaço em torno do personagem. Certos casos permitem igualmente efeitos de zoom-‐in e zoom-‐out, aproximando ou distanciando-‐ se mais da personagem, para que o jogador possa perceber melhor a sua leitura do espaço envolvente na sua progressão da acção. Tal como na primeira-‐pessoa, por vezes o jogador encontra a possibilidade de alternar (como se um corte para um novo plano) para um tipo de “plano” diferente quando ocorre uma mudança da 112
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
sua perspectiva e acção exploratória do espaço para a utilização de uma arma – por vezes a câmara realiza uma simples aproximação (Figura 102) ou dependendo das características da arma que o personagem carrega, é possível simular a acção de olhar pela mira, quando se pretende maior acuracia de disparo.
Figura 102 – Screenshots de um dos momentos em Tomb Raider (2013) em que se dá uma aproximação da câmara quando o jogador pretende utilizar o arco e flecha.
Certos jogos, no entanto, oferecem ao jogador alternância entre vários pontos de vista, como em Batman: Arkham Asylum, onde estas mudanças mais acontecem, desde “vista na primeira pessoa, sobre o ombro, 2D side scrolling, clássica terceira pessoa, o que quer que faça qualquer momento do Gameplay mais cativante e ofereça maior usabilidade” (Anhut, 2011). A exploração pelo jogo é mostrada em vista sobre o ombro. No entanto em cenas de combate afastam-‐se para a tradicional terceira-‐pessoa de modo a ter melhor percepção espacial. Ainda há momentos onde a câmara passa a vista na primeira-‐pessoa (quando passa pela condutas de ar fazendo o jogador sentar-‐se claustrofóbico ou até para perspectiva lateral (Figura 103).
Figura 103 – Screenshots de alguns momentos onde a câmara adopta pontos de vista distintos em Batman: Arkham Asylum (2009)
2.4.4.3. Perspectiva Exploratória e Personalizada da acção Do ponto de vista do jogador e da sua acção, a questão da interactividade trás também novas questões sobre a percepção espacial e temporal do jogador-‐espectador sobre a acção (Nogueira, 2008). Apesar de os videojogos manterem características da perspectiva do espectador que se observa no cinema – como o facto de existir apenas um ponto de vista da acção, o espectador ocupa um lugar fixo face à visualização dessa acção e os acontecimentos são apresentados de uma maneira 113
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
sequencial: introduzem uma nova maneira de ver e experienciar a acção, segundo uma perspectiva exploratória (Nogueira, 2008). Esta nova perspectiva permite ao espectador (jogador) determinar o tipo de exploração que faz, apesar de o design do jogo pré-‐determinar algumas dessas possibilidades, e o tipo de percepção que tem do espaço. Esta possibilidade de explorar o espaço, até certa medida, potencia também a imersão do espectador-‐jogador no mundo da narrativa (Nogueira, 2008). Nestes casos, a narrativa visual pode ser relatada de forma muito mais contínua, tendo o jogador a possibilidade de efectuar algum controlo sobre a “montagem” da acção, alternando um pouco o seu ponto de vista sobre a acção, efectuando pausas ou controlando saltos entre localizações (Nogueira, 2008). Neste sentido, ele possui uma perspectiva personalizada da narrativa (Zangalo, 2009). Como já se viu, a amplitude desta personalização depende também do tipo de videojogos que se considerar: videojogos na primeira-‐pessoa possuem uma maior limitação de movimentos de câmara, podendo apenas executar manipulações em termos de aproximação ou distanciamento em profundidade, e tendem assim a ter apenas a possibilidade de um único enquadramento e ponto de vista da câmara (Zangalo, 2009). Mas apesar do controlo do jogador sobre a câmara, nos videojogos, tal como geralmente acontece nos filmes, em momentos de exploração, a câmara não muda muito drasticamente -‐ no geral mantem-‐se os tracking shots. Em momentos de acção já é realizada uma montagem mais dinâmica – principalmente em videojogos RPG: muitas vezes o jogador alterna entre as personagens para definir as suas estratégias de ataque, efectuam rotações de câmara, zoom-‐in, zoom-‐out, com movimentos mais dinâmicos.
2.5. Cor e Iluminação A iluminação do espaço cénico e das personagens é um dos recursos mais poderosos para conferir efeitos dramáticos às imagens que o representem. A iluminação de uma cena ou de uma ambiência, não funciona apenas para representar a altura o dia e as condições atmosféricas do tempo e local da acção, ou permitir que o espectador consiga ver os elementos todos em cena. Trabalhando com as suas várias determinantes – a sua intensidade, direcção, tamanho, cor,
114
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
contrastes – a iluminação é primordial para a construção dramática, controlando a informação narrativa, dramática, do tempo e local da cena, condicionando a percepção de maior ou menor profundidade e tridimensionalidade dos espaços, conduzindo a atenção do espectador, construindo ambiências e significados, manipulando a representação, modelação e percepção de espaço, objectos e personagens, contribuindo para a narrativa e desenvolvimento dramático da acção bem como das respostas emotivas e sensitivas do espectador. Do mesmo modo, a cor, pelos seus atributos simbólicos e emotivos, juntamente com a iluminação, é factor essencial na criação da visualização perceptiva e dramática das narrativas cinemáticas. Este trabalho de luz e cor, na realidade, confere uma certa qualidade coerente ao longo de toda a narrativa visual, pois como Scorcese disse “cor no filme é importante porque reflecte o drama...e um certo estilo”39 (Boggs & Petrie, 2008, p. 252). – Three-‐Point Method Num plano, a iluminação é um dos factores que mais contribui para que o tema seja bem visualizado pelo espectador, quer destacando-‐se do fundo, quer para o assinalar enquanto elemento importante da cena ou para lhe conferir a profundidade e tridimensionalidade pretendidas. Tal implica muitas vezes um trabalho cuidado de desenho de luz, com recurso a múltiplas fonte de luz relacionadas, de forma a modelar formas e texturas. O resultado final pretende-‐se com um aspecto natural, que não revele o posicionamento artificial das diversas fontes de luz. Na verdade os efeitos de iluminação que o espectador observa são tipicamente criados por uma luz chave (key light) -‐ que fornece a principal fonte de iluminação à cena, uma luz de enchimento (fill light) – luz(es) mais suave(s), opostas à principal, colocada(s) para controlar o contraste entre as zonas iluminadas e em sombra, e uma luz de trás (back, kicker ou rim light) (Figura 104) que ilumina o contorno do tema de forma a separá-‐lo do fundo e assim contribuindo para a ilusão de profundidade, criando uma separação de planos40 (Thompson & 39
Este “estilo” não implica que a iluminação numa narrativa cinemática seja sempre dramática. Ela varia consoante o realizador e o estilo pretendido para a narrativa – por vezes a iluminação procura ser mais realista mas outras é assumidamente cénica e dramática, preocupando-‐se maioritariamente com as conotações emocionais e psicológicas que consegue criar e sendo caracterizada mais por fortes contrastes e cores dramáticas. 40 Este é o método mais utilizado de iluminação de personagens (no cinema), chamado three-‐point method. Não é o único (nem obrigatório) método. Consoante as intenções dramáticas da cena, por vezes utiliza-‐se igualmente uma iluminação com dois pontos de luz (exclui-‐se a back light) ou até apenas um ponto de luz (que cria um efeito dramático extremo pois o contraste entre luz e sombra, sem o recurso da luz de enchimento, é imensamente acentuado) 115
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Bowen, 2009b).
Figura 104 – Esquema ilustrando o posicionamento das luzes de forma a criar o efeito final (Thompson & Bowen, 2009b).
– Luz Motivada e Prática Apesar deste trabalho complexo de luzes, em narrativas cinematográficas procura-‐se que a luz seja motivada, que a noção de iluminar a cena ou seja vinda uma de fonte de luz conhecida e definida – do sol, de candeeiros na rua, entrando por uma janela, porta, clarabóia, ou comunicação de um espaço com o exterior. A luz motivada pretende justificar a entrada de uma luz na cena, vinda do exterior. Características idênticas a esta iluminação é a luz prática, sendo fontes de luz situadas na cena, visível no enquadramento (Thompson & Bowen, 2009b). Estes dois tipos de iluminação são mais vezes pretextos para a luz que vemos iluminar os elementos em cena do que as suas verdadeiras fontes de luz. Na prática funcionam como pretexto para modelar a luz como pretendido pela acção e ambiente, funcionando como adereços, mas sendo imprescindíveis para conferir credibilidade à iluminação criada numa cena. 2.5.1. As características da luz 2.5.1.1. Direcção, intensidade e contraste da luz Mas os efeitos dramáticos criados pela iluminação dependem naturalmente muito das suas características, e não apenas do seu posicionamento. As diferentes possibilidades de direcção, ou ângulo em relação ao tema, criam efeitos totalmente diferentes: iluminando lateralmente os objectos consegue-‐se uma maior modelação das superfícies do que com uma luz frontal, e luzes 116
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
superiores, laterias ou inferiores, ou luz de trás, iluminam diferentes planos da superfície do tema levando a que se criem diferentes efeitos dramáticos (Figura 105).
Figura 105 – Planos ilustrando: uma luz lateral sobre a protagonista de Brave (2012) que ajuda a modelar a sua tridimensionalidade; uma iluminação inferior sobre o antagonista em Panda do Kung-‐Fu (2008) que acentua efeitos de tensão, suspense ou terror; e uma iluminação apenas de trás em Irmandade do Anel (2001), criando silhuetas, transmite sensações de mistério e suspense.
Tal como a direccionalidade, a intensidade da fonte de luz e o seu grau de difusão -‐ luz dura ou macia – leva a uma maior ou menor modelação das formas bem como a efeitos dramáticos, emocionais e psicológicos muito diversos. Uma luz forte cria maior contaste e acentua formas angulares e texturas, tendo sombras mais demarcadas que uma luz suave e difusa, que vai criar uma iluminação mais uniforme e progressiva, sem sombras opacas e com um contraste entre áreas de luz e sombra menos acentuado (Figura 106).
Figura 106 – Planos ilustrando a utilização de uma luz forte em Irmandade do Anel (2001) e de uma luz difusa em My Fair Lady (1964).
Estes factores criaram dois estilos de iluminação, ambos comuns no cinema, de acordo com o contraste gerado entre luz e sombras (Figura 107): uma iluminação low-‐key, de maior contraste, em que a maioria do cenário se encontra em sombras opacas com algumas áreas fortemente iluminadas para identificar o tema, um contraste violento; ou uma iluminação high-‐key, com menos contraste e mais zonas iluminadas, com uma luz difusa banhando toda a cena, obtendo-‐se mais tonalidades de cinzas médios e áreas de sombras que deixam ver materiais e formas (Boggs & Petrie, 2008). Cada um destes tipos de iluminação surge de acordo com a ambiência, estilo e tom emocional da cena.
117
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Figura 107 – Planos com uma iluminação low-‐key em Blade Runner (1982) e uma iluminação high-‐key em Amadeus (1984).
2.5.1.2. Tamanho da fonte de luz As fontes de luz poderão também variar em termos de tamanho – fontes de luz pequenas, médias, ou grandes geram igualmente diferentes efeitos de iluminação. Uma fonte de luz pequena – como o sol num dia limpo e sem nuvens, um foco de luz brilhante mas distante ou uma tocha numa caverna escura – encontra-‐se longe e desobstruída, sendo identificável a sua origem ou direcção. Esta gera sombras duras, muito escuras e com mínimos detalhes, enquanto os brilhos são muito luminosos e pequenos não tendo tons médios pois a área de separação luz-‐sombra nestes casos possui uma mudança muito abrupta das áreas iluminadas para as sombreadas (Gallardo, 2001). Uma fonte de luz média – que correspondem à maioria das fontes de luz é sempre direccional, gerando brilhos suaves e difusos e sombras escuras com forma e detalhes. Nestes casos a área de separação já possui tons médios claros fazendo uma gradação suave entre as áreas iluminadas e as sombreadas (Gallardo, 2001). As fontes de luz grandes – como um céu muito nublado – não geram quase nenhumas sombras bem definidas, tendo portanto uma área de separação quase muito indefinida, quase inexistente. Estas, ao contrário das luzes pequenas e médias, não são direccionais mas difusas com sombras muito claras tornando-‐se quase imperceptíveis, criando uma predominância de tons médios em toda a imagem (Gallardo, 2001). 2.5.1.3. Luz e tempo atmosférico Considerando também a cor da luz juntamente com estas determinantes faladas, a iluminação contribui para a representação da altura do dia ou das condições atmosféricas, que incluem as múltiplas conotações de significados e sensações relacionadas. 118
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Desde o primeiro raio de sol que surge no céu que a iluminação do ambiente se vai alterando. Com o nascer do sol, a cor passa de um branco de baixa intensidade a um amarelo-‐laranja para amarelo até chegar a um branco amarelado quatro horas antes do meio-‐dia (Marner, 2013). Mas ao meio-‐dia a luz já possui uma cor do branco ao branco amarelado e uma vez que “a luz está directamente acima, a distância que a luz tem para viajar através da atmosfera é minimizada”, o que significa que é menos espalhada tornando-‐a mais brilhante e intensa (Gallardo, 2001, p. 293). Uma vez que esta luz tem uma qualidade muito dura e contrastante, num dia limpo, pode-‐se comparar a uma fonte de luz pequena pois também gera sombras muito escuras -‐ uma vez que a luz não está a ser muito espalhada (Gallardo, 2001). Quando os dias estão enevoados, a luz ambiente é muito difusa, sem reflexos nem sombras marcantes, significando que os objectos são uniformemente iluminados, independentemente da sua distância à fonte de luz principal, e com fracos contrastes devido à falta de áreas sombreadas escuras e distintas. No entanto a gama de tons é pouco abrangente, centrando-‐se esta na área dos cinzentos médios. Os azuis não têm influência, os verdes e vermelhos parecem mais ricos e os amarelos mais vibrantes. Sem nuvens, a luz reflectida pelo céu, a meio do dia, é predominantemente azul clara, tingindo com esta cor toda a luz e objectos iluminados, sendo designada de skylight. É mais notada quando a luz é zenital (Gallardo, 2001). 2.5.1.4. Luzes artificiais e fogo Para além das fontes de luz natural mencionadas, há que considerar também a iluminação gerada por fontes de luz artificial ou por uma chama. As luzes artificiais variam muito em qualidade e cor da luz – sendo umas desde o branco ao branco azulado, como as luzes fluorescentes ou halogenetos metálicos, outras mais luminosas com uma matiz amarelo-‐laranja ou rosada, como as lâmpadas de vapor de sódio (Gallardo, 2001). O fogo, ou a iluminação fornecida por uma chama, é um dos tipos de iluminação que mais gera efeitos dramáticos pela sua qualidade volátil – a chama não é estática quer em termos de posição, movimento, aparência ou até a própria cor, podendo ser utilizado numa variedade de situações, desde controladas – como fogueiras, lareiras ou tochas – a não-‐controladas – como os incêndios. Esta luz altera a cor de todos os objectos que ilumina para amarelos e vermelhos – mesmo objectos brancos parecem avermelhados ou amarelados (Gallardo, 2001). Sob este tipo de luz, as superfícies obstruídas são muito escuras e os tons médios tendem para o
119
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
cinzento. São precisamente os tons médios e os brilhos que caracterizam esta luz, por isso são estes os parâmetros que são tidos mais em atenção quando se simula uma cena iluminada por este tipo de luz em CG (Gallardo, 2001). Este tipo de luz é universalmente percepcionado com uma qualidade quente e acolhedora. Tanto em CG como em cinema, é importante que as cenas consigam transmitir estas sensações de calor e intimidade. “Quando as cenas são iluminadas com velas, elas parecem convidativas e sensuais; o uso de luz das velas em cinema é sempre uma decisão consciente para evocar estas emoções” (Gallardo, 2001, p. 261). – Componente ‘local’ No mundo real, diferentes locais possuem determinadas características atmosféricas distintas, por isso quando as narrativas ocorrem e retratam locais reais, a iluminação assemelha-‐se a (e revela) essas mesmas características, o que aumenta a sensação de imersão e confere uma sensação de “presença”. 2.5.2. Tridimensionalidade e Profundidade Mas em qualquer dos casos, contrastes entre zonas iluminadas e zonas em sombras são o que permite criar uma imagem tridimensional e uma maior ou menor profundidade do espaço revelado no plano. Devido aos aspectos perceptivos da mente do ser humano, um espaço aparenta ser mais profundo se tiver fortes contraste de luz com áreas mais afastadas da câmara fortemente escurecidas, do que se for iluminado mais uniformemente e/ou com uma luz mais difusa e suave. Tal como objectos iluminados contra um plano de fundo mais obscurecido, não servem apenas para centrar a atenção do espectador nesse mesmo elemento mas também criam uma sensação de profundidade pois as diferenças de iluminação nos diferentes planos de profundidade criam uma separação entre eles41. Igualmente, o posicionamento da fonte de luz principal (key light) em relação à câmara e ao tema tem um forte contributo para a ilusão de profundidade e tridimensionalidade, nomeadamente se for 41
Como já foi visto no ponto 2.2.2., perceptivamente zonas mais iluminadas parecem avançar, enquanto que zonas em sombra recuam. Igualmente, certas cores, como visto no capitulo de composição, também avançam (cores de valores mais claros ou mais saturadas) e recuam criando esta ilusão de profundidade. 120
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
colocada num alinhamento diferente do eixo da câmara (Jackman, 2010). A volumetria de uma personagem poderá parecer mais plana, se não for iluminada com luzes posicionadas de um ângulo rasante e afastado do eixo da câmara (kick light, rim light – luzes de modelação), revelando o jogo de luz e sombra segundo esta abordagem, o volume, a forma e a textura dos objectos, espaços e personagens. Por isso raramente se utilizam luzes frontais, sendo preferíveis as luzes laterais ou a 45º, que mais favorecem este efeito (Figura 108).
Figura 108 – Planos em Irmandade do Anel (2001), onde a iluminação na imagem (a) nitidamente acentua mais as formas que a imagem (b) devido ao maior contraste, no entanto, em ambas se pode notar que a fonte de luz nunca se encontra totalmente frontal.
De modo geral, imagens de maior contraste criam mais profundidade e tridimensionalidade, enquanto imagens de contraste muito baixo – ou seja, quando as diferentes superfícies possuem valores lumínicos próximos – parecem ‘planas’, pois é pelo contraste de luz que se cria a separação em profundidade no espaço. Para além destes aspectos, já foi visto no capítulo de composição como diversos efeitos atmosféricos – como efeitos de perspectiva aérea, neblinas e iluminação de partículas no ar – criam uma sensação de profundidade e de espaço no plano (Figura 109).
Figura 109 – Planos em Brave (2012), Panda do Kung-‐Fu (2008) e Blade Runner (1982) onde a luz cria efeitos atmosféricos, que contribuem para a representação da tridimensionalidade e profundidade do espaço cénico.
Neste âmbito, não é apenas a qualidade da luz que é relevante, mas também as sombras que cria. As sombras numa imagem também estabelecem relações espaciais e de profundidade entre os objectos. Sem elas não é perceptível a localização de um objecto em relação a uma superfície – se está assente nela ou não, e a distância relativa (Birn, 2000). As sombras, no entanto, não têm de ser sempre apenas dos objectos visto no plano (Figura 110). Por vezes elas surgem de elementos que se encontram fora do plano, criando uma sensação de
121
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
profundidade do espaço cénico ao trazer para o ecrã indicadores do que se encontra fora do enquadramento – off-‐ screen (Birn, 2000).
Figura 110 – Plano em panda do Kung-‐Fu (2008) que introduz na cena uma nova personagem através da sua sombra, que se projecta dentro do enquadramento.
2.5.3. O Contributo Dramático 2.5.3.1. Caracterização de personagens e espaços A iluminação e cor têm igualmente um contributo relevante em termos de construção de significados, caracterizando personagens e espaços. O carácter da luz poderá sugerir determinadas qualidade das personagens (Boggs & Petrie, 2008) – uma personagem mais misteriosa poderá ter uma iluminação mais low-‐key, enquanto que uma personagem mais animada ou cómica será mais iluminada. Do mesmo modo, genericamente, personagens masculinas são iluminadas com luzes mais duras fazendo com que traços faciais sejam mais acentuados, enquanto personagens femininas são iluminadas com luzes mais suaves e difusas, que contribuem para um efeito de suavização da textura e ângulos da face. As cores das personagens e do cenário também possuem muitas vezes uma forte conotação associativa (Boggs & Petrie, 2008) – certas personagens são muito caracterizadas pelas cores que vestem, como o Joker no mundo de Batman, ou por vezes assinalam o estado de espírito destas, como em Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street (2007) em que a paleta mais monocromática ao longo da maioria do filme revela o estado soturno e deprimente da personagem principal, mas os momentos em flashback que retratam uma altura feliz deste são mostrados com cores vibrantes e quentes e uma iluminação difusa que lhe conferem um tom mais romântico (Figura 111).
122
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
Figura 111 – Planos pertencentes ao mesmo filme (Sweeney Todd, 2007), mas que no entanto possuem qualidades completamente distintas e representativas do estado de espírito do protagonista.
2.5.3.2. Criação de ambiências Mas porque em narrativas cinemáticas se pretende entreter e emocionar, um dos contributos da iluminação e da cor mais importantes a considerar são os seus efeitos dramáticos, gerando ambiências, estados de espírito (moods) e emoções. Estes efeitos acompanham a construção dramática da narrativa, alternando e criando cenas mais sombrias ou mais descontraídas consoante a necessidade da acção, enredo e espaço ficcional. Mas a um nível mais subtil também criam uma atmosfera geral de toda a narrativa visual – os filmes de terror, mistério ou suspense em geral mantêm uma iluminação e cores mais sóbrias do que filmes românticos e de comédia. Por isso, o tipo de iluminação e de cores usadas diz muito sobre a acção e género da narrativa. Quando em narrativas históricas, muitas vezes o estilo de iluminação retira influências de arte (geralmente pintura) da época (Boggs & Petrie, 2008) – como em Os Fantasmas de Goya (2007) ou A rapariga do brinco de pérola (2003) (Figuras 112 e 113) em que a iluminação dos planos se assemelha à técnica do pintor Vermeer – pois conferem uma maior sensação de verosimilhança, uma vez que o espectador associa a imagem em ecrã com as imagens artística da época.
123
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Figura 112 – Comparação das características da iluminação em Os fantasmas de Goya (2007) e um auto-‐ retrato de Francisco Goya: o filme é marcado por uma paleta de cores pouco variada e tons mais escurecidos como as obras do pintor.
Figura 113 – Comparação das características da iluminação em A Rapariga do Brinco de Pérola (2003) e Senhora escrevendo carta com sua criada (1670) de Johannes Vermeer: o filme é marcado por uma iluminação low-‐key e ambientes luminosos tal como as obras do pintor.
Para além de criar para uma representação mais realista do cenário, os efeitos de iluminação contribuem para as necessidades dramáticas da cena, criando ambiências mais misteriosas, pesadas e obscuras ou românticas, agradáveis e cómicas, pelo uso de luzes mais duras ou mais suaves, high-‐ keys ou low-‐keys e jogando também com os aspectos simbólicos e emotivos das cores. Imagens com uma iluminação low-‐key criam ambientes mais sombrios e aumentam o suspense, enquanto que a iluminação high-‐key cria uma imagem mais animada e descontraída (Boggs & Petrie, 2008) (Figura 114), tal como uma iluminação representativa de uma particular altura do dia ou condição atmosférica poderá induzir determinados estados de espírito – como ambientes enevoados, que possuem um forte peso emocional associado a melancolia, desespero e sensação de
124
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
indefesa (Gallardo, 2001).
Figura 114 – Planos em Amadeus (1984) com uma iluminação low-‐key que o torna mais pesado e dramático, enquanto que as cenas em high-‐key tendem a ser alegres e joviais.
A cor tem um contributo especialmente forte neste contexto, pois desde há muito tempo que as cores sempre foram associadas a determinados significados. Gallardo refere que “é importante para artistas de computação gráfica saberem o significado e associação de cada cor para que o seu conteúdo emocional possa ser aplicado numa cena” (Gallardo, 2001, p.88). A cor, então, tem grandes influências emocionais no espectador – considerando factores como associações de cores frias a calma, frescura ou temperaturas frias e de cores quentes a energia, exaltação ou calor, consegue-‐se conferir essas mesmas associações de significados à cena e consequentemente à acção, personagens e espaços (Figura 115).
Figura 115 – Plano em Irmandade do Anel (2001) onde a cena possui uma calma e frieza acentuada pelos tons azuis predominantes. Plano em Brave (2012) onde os tons quentes não só provenientes da lareira mas predominantes em todo plano conferem uma sensação calorosa e acolhedora à cena e ao cenário.
2.5.3.3. Condução da atenção e contributo para a narrativa Estes significados e associações da cor e da luz mencionados são também elementos narrativos, uma vez que na sua alternância e adequação à acção da cena e espaços acompanham a apresentação e desenvolvimento da narrativa. Ao iluminar os elementos principais do plano, para onde se pretende centrar o olhar do espectador, juntamente com a sua utilização para revelar ou esconder áreas do cenário, personagens ou detalhes possui uma relação directa com a narrativa e desenvolvimento dramático da acção – a
125
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
iluminação ilumina sempre o tema do plano e assim transporta com ela a mensagem (Ward, 2003) e a acção. Tal iluminação é feita consoante os propósitos dramáticos da acção e da narrativa, bem como da criação de ambiências dramáticas e emocionais do espaço e na cena. O papel da iluminação no controlo da informação da narrativa pode surgir de diversas formas. Muitas vezes serve maioritariamente para indicar o elemento principal da acção, mas a sua relação com a acção não é necessariamente sempre a mesma – por vezes ela acompanha a acção surgindo onde esta decorre, outras adianta-‐se à acção criando antecipação e assim também contribuindo para o controlo emocional e da atenção do espectador. Outro efeito emocional poderá também ser criando quando a luz propositadamente obscurece e esconde certos elementos do cenário criando mistério e suspense (Figura 116). Porque uma narrativa se pretende seja relatada de forma dramática, susceptível de evocar emoções no espectador, estas mesmas qualidades presentes nos efeitos criados pelos jogos de luz e cor também funcionam para transportar visualmente essas sensações, ideias e significados da narrativa para o ecrã.
Figura 116 – Plano de Irmandade do Anel (2001) onde a luz cénica se relaciona apenas com a narrativa surgindo como um foco que aponta para um elemento específico do cenário e relevante na acção dramática. Plano de Brave (2012) onde a luz e a sombra mantêm um dos personagens escondido assinalando-‐o assim como um antagonista e envolvendo-‐o em mistério.
2.5.3.4. Texturas e Materiais Os brilhos e reflexos provocados pela iluminação também revelam texturas e materiais -‐ criam indicadores visuais que permitem ao espectador interpretar profundidade e textura. Neste sentido contribuem para um maior realismo na modelação digital dos objectos: é através destes que entende se uma superfície é de um material brilhante ou baço, liso ou rugoso (Jackman, 2010). 2.5.4. Na animação 3D Claro que seja em cinema ou na vida real, é mais simples controlar e ajustar a iluminação que em
126
2 | NARRATIVAS E ACÇÃO CINEMÁTICAS
animações 3D. Parecendo a iluminação em Animação 3D semelhante ao que se sucede em cinema e fotografia (Beane, 2012), este torna-‐se no entanto um processo muito mais complexo, pois a iluminação tem de se preocupar sobre todos os efeitos dramáticos, como em criar e representar realisticamente as características lumínicas da localização, tempo e condições atmosféricas – aspectos que em cinema não precisam de ser simulados, pois se pode recorrer à realidade (Beane, 2012). Tudo se torna mais complexo tanto quanto é necessário definir muito mais parâmetros, recorrer a combinações de fontes de luz diferentes e simular aspectos como a luz a ser espalhada e filtrada pela atmosfera e a mudança gradual na intensidade percepcionada da luz, sendo todo o processo algorítmico e virtual (Gallardo, 2001). Portanto, não só todas as luzes têm de ser criadas do zero, como os criativos 3D de iluminação têm ao seu dispor uma enorme amplitude de parâmetros para escolher na manipulação da luz, precisando de controlar não só o ângulo, tamanho, posição, intensidade, qualidade da luz como também das próprias sombras, e ainda o efeito conjugado de todas as fontes, em cada parte do espaço virtual (Beane, 2012). Viu-‐se antes como a iluminação e cor contribuem para determinar atmosferas e ambiências em termos dramáticos, mas no caso da animação 3D, a iluminação é também aquilo que trás “vida” aos objectos, personagens, e ambiências. Na animação 3D é principalmente a luz que contribui tanto para um maior realismo dos objectos, personagens e texturas, como para criar as ambiências e efeitos que constroem o ‘dramatismo’ nestas narrativas visuais (Figura 117).
Figura 117 – Processo de desenvolvimento de Monstros Universidade (2013) – storyboard, concept art, modelação, layout, animação inicial (simulação) até render final com iluminação – divulgado pelo site CG MeetUp que mostra a importância da iluminação para o filme
127
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
128
3 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS 3.1. O Design de Produção no desenho de Espaços Ficcionais em Videojogos “A peça cinematográfica (...) é sempre um objecto de comunicação. Transmite uma mensagem, visa um público-‐alvo e a sua eficácia depende de uma intensa análise do guião e uso intencional de significados visuais.” (Carpinteira, 2011, p. i) O Design de Produção interpreta o enredo, acção e narrativa da ficção de um videojogo, transferindo-‐o visualmente para um universo e personagens ficcionais, a que procura conferir coesão, credibilidade e autenticidade, devendo o espaço ficcional acolher e suportar visual e espacialmente o argumento e a sua narrativa. Ele surge como interpretação visual do guião, plot e acção, transmitindo informações sobre a narrativa em termos de argumento e o seu ponto de vista (LoBrutto, 2002). No Design de Produção, o Concept Art vai interpretar e materializar o guião e o Game Design, criando o universo da ficção – os seus espaços, personagens, ambiências e adereços – preparado para acolher o jogador, o enredo e a narrativa da ficção (LoBrutto, 2002). Este mundo ficcional deve criar uma identidade visual, vivencial, cultural e social que compreende o espaço urbano e natural, humanizado ou não: a arquitectura, objectos e adereços que tornam os espaços habitáveis, a caracterização das personagens que habitam esse mundo. Este mundo ficcional, os seus personagens e as acções que nele vão ocorrer têm que criar no espectador uma noção de coerência, autenticidade, credibilidade, imersão e identidade. O espaço cénico possui também uma componente emocional, pois situa o espectador num contexto a partir da leitura que dele faz (Barsacq, 1976). Juntamente com a forma de realização e a interpretação da narrativa que faz, o espaço ficcional transmite e concorre para a construção e representação de estados psicológicos, criando emoção e significado no espectador, neste caso também jogador. Para este ponto, escolheram-‐se três videojogos de carácter distinto, para ilustrar os aspectos abordados neste subcapítulo: 129
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
-‐ Dragon Age: Origins (2009): um videojogo em terceira pessoa, rico em diferentes referências culturais distintas para cada uma das localizações dentro do seu mundo ficcional. Estas são assim individualmente caracterizadas com uma identidade própria. -‐ Assassin’s Creed II (2009): um videojogo também em terceira pessoa, mas colocado num contexto cultural quase todo historicamente correcto. Este caso possui apenas uma única referência cultural de inspiração. A exploração e a interacção com o seu espaço, em certos momentos, são realizadas de um modo que privilegia mais o papel do espaço e a sua relação com a acção, do acontece em outros casos. -‐ Bioshock Infinite (2013): um videojogo em primeira-‐pessoa, escolhido para observar as diferenças proporcionadas por pontos de vista da câmara diferentes. Este caso possui ambientes muitos ricos em detalhes e conjugação de diferentes referências culturais, criando um universo ficcional com uma identidade muito própria e visualmente muito interessante.
3.2. Tratamento do espaço ficcional em videojogos 3.2.1. Uma Delimitação Finita em Espaços Ficcionais Infinitos Um mundo ficcional virtual não é infinito. O Game Design, Autores e Computadores não suportam um tempo ou espaço infinitos num Videojogo, pelo que é necessário que o espaço do um jogo esteja delimitado e circunscrito. É um requisito do Gameplay, pois constrangir o espaço navegável a uma área finita e definida é necessário para orientar o jogador nesse espaço, ajudando-‐o a perceber os objectivos do jogo (Zangalo, 2009). O espaço navegável num videojogo tem de ser reduzido a segmentos segregados e finitos, podendo ser delimitados segundo dois níveis: -‐ Por uma delimitação do mundo total do jogo representada de forma esquemática e codificada, portanto indirecta, como por exemplo através de mapas. -‐ Por uma delimitação de diversos espaços dentro do mundo total do jogo, cada um destes bem definidos e navegáveis. Em termos do modelo estes espaços são “construídos” como unidades separadas, criando no universo conceptualmente contínuo uma realidade espacial efectivamente descontinua. Na realidade, os espaços existentes constituem-‐se em “ilhas”, sendo impossível ao jogador percorrer o espaço entre elas, simplesmente porque este não existe. Esta delimitação permite uma diferenciação e demarcação de localizações e níveis de dificuldade, permitindo ao jogador “conceptualizar o jogo em fragmentos”, dando uma “sensação de progresso e 130
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS realização à medida que cada espaço é conquistado, completado ou adicionado” (Wolf, 2011, p.23). Estando estes espaços, ou “ilhas”, de tal forma circunscritos e separados – e sendo apenas um pequena parte da totalidade ficcional desses mundos – que existe um grande espaço implícito, que o jogador não pode aceder, visualizar ou explorar. Surgem assim três formas de negação do espaço, ou seja de espaços não existentes: -‐ O espaço fora de uma representação esquemática e codificada como a de um mapa (Figura 118.1) -‐ O espaço que embora representado esquematicamente não existe materialmente, mas apenas ao nível conceptual (Figura 118.2) -‐ Os espaços na malha urbana ou interior de alguns edifícios, dentro de um espaço “ilha”, que não são acessíveis, podendo ou não ser representados visualmente (Figura 118.3). No entanto, o jogador assume estes espaços como existentes e navegáveis, uma vez que se situam dentro de um espaço delimitados assumido como continuo e tridimensional.
Figura 118 – Mapas de Dragon Age: Origins (2009) com indicação das três formas de espaços não existentes mas que pertencem conceptualmente à totalidade ficcional do mundo do jogo.
Olhando para o caso de Dragon Age: Origins (2009), o espaço é definido através de vários mapas que indicam não só as áreas a que o jogador tem acesso mas também apresenta muito espaço (implícito) entre elas. O jogador não percorre este espaço implícito mas constrói com esse espaço um mundo ficcional mais complexo e com mais conteúdo. Este é um caso em que o espaço ficcional é bastante definido e de uma grande dimensão. Este caso apresenta um mapa geral da área total do jogo, bem como depois vários sub-‐mapas representando sub-‐áreas específicas dentro dessa área total. Em cada uma destas sub-‐áreas
131
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
representadas existem depois várias áreas interiores às quais o jogador tem acesso (Figura 119). Porque em termos do modelo estas sub-‐áreas e áreas interiores são “construídas” como unidades separadas (Figura 120), a entrada do jogador para um destes espaços interiores implica sempre uma transição (neste caso um fade) e não um passar contínuo de um espaço para outro.
Figura 119 -‐ Diversos mapa da área total e sub-‐áreas de Dragon Age: Origins (200) e a relação espacial entre eles.
Figura 120 -‐ Screenshots de Dragon Age: Origins (2009) mostrando uma vista na progressão do jogo de um espaço interior e uma vista aérea do modelo tridimensional desse espaço em que se observa como estas sub-‐ áreas são “construídas” em unidades segregadas.
No caso de Assassin’s Creed II (2009), este apresenta menos mapas (Figura 121). Este jogo explora cinco áreas principais e delimitadas: Florença, Veneza, Forli, Monteriggioni e Roma. Não existe um mapa geral e sub-‐mapas que mostrem a relação espacial entre estes diferentes espaços. Cada uma das áreas principais assume-‐se como uma área segregada e independente. Para reforçar esta ideia, cada cidade possui muralhas que delimitam a sua área. No entanto, o jogador sabe que existe alguma relação espacial entre elas pois a transição entre elas é sempre feita pelos portões de cada uma. Neste caso, uma vez que os locais não são na verdade fictícios, não existe uma necessidade tão grande de explicitamente indicar como é que eles se situam em relação um ou outro (como acontece
132
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS em Dragon Age: Origins, 2009). Em cada uma das áreas principais existem também edifícios onde o jogador pode entrar e percorrer, mas não é apresentado o mapa do espaço interior. Tal como acontece em Dragon Age: Origins (2009), a passagem para estes novos espaços implica uma transição. Neste videojogo, na maioria dos casos, insere uma curta cena de animação entre “interagir” com a porta (ou outro meio de entrada) para transportar o protagonista para o outro lado, presumivelmente para tentar dar um pequeno toque mais realista. Este facto sugere igualmente que o espaço cénico deste videojogo também é criado como zonas construídas separadas.
Figura 121 -‐ Mapa da área geral (Itália) de Assassin's Creed II e mapa de uma das áreas principais percorríveis pelo jogador (Veneza).
Bioshock Infinite (2013), por seu lado, não apresenta mapas pois a narrativa e gameplay é mais linear e menos livre que os outros dois casos – o jogador nem sempre pode voltar atrás para explorar outra vez um sítio. Adicionalmente, a área total do jogo é muito mais pequena e este espaço é modelado de forma muito mais contínua do que os outros videojogos mencionados. Neste caso, a circunscrição do espaço é muito mais fácil de se fazer devido à própria configuração espacial da cidade – ela é composta por várias zonas edificadas “aéreas” que se ligam em certos sítios, havendo inclusive a possibilidade de saltar pelos céus de uma área para a outra. Nem todas as zonas são acessíveis, pelo que existe algum edificado que é apenas visto e por isso modelado e representado apenas o seu exterior – constituindo portanto a terceira forma de “negação do espaço” mencionada anteriormente. Apenas a passagem para os espaços interiores se processa à semelhança dos outros videojogos mencionados, ou seja, com um efeito de transição por fade.
133
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
O espaço sintético em Dragon Age: Origins (2009) e Assassin’s Creed II (2009) é muito mais construído do que em Bioshock Infinite (2013). Neste último o espaço sintético é quase inexistente, pois é mais difícil construir a maquete mental do espaço. Isto é paradoxo porque em Dragon Age: Origins (2009) e Assassin’s Creed II (2009) o jogador não tem acesso à totalidade do espaço ficcional, apenas a alguns fragmentos. No entanto, através dos mapas e das formas de ligação e transição entre as áreas, ele consegue construir uma ideia de todo o mundo ficcional do videojogo (cria uma maquete mental). Em Bioshock Infinite (2013), apesar de o jogador andar mais continuamente pelo espaço, a inexistência de mapas com a existência, em vez disso, de setas que indicam o caminho a seguir para o objectivo, bem como a possibilidade de andar e saltar pelos céus de uma área para a outra, dificulta ao jogador a sua orientação espacial e a percepção de como esses espaço estão organizados – e consequentemente a construção do espaço sintético. 3.2.2. Passagem e ligação entre as áreas A ligação entre áreas que o jogador explora tem de ser feita de tal forma a que permita uma leitura coerente do espaço como um todo, apesar de na verdade o jogador nem sempre o percorrer de forma contínua. O mais comum é ter pontos específicos no espaço ou num mapa, ou portas que, quando jogador acede a eles, saltam para a nova área, com um efeito de transição. Mesmo que o jogo efectue um corte entre os espaços, o jogador sabe a relação espacial entre os dois espaços, porque pode ver a localização num mapa, ou porque constitui uma passagem de um espaço exterior para um interior. A passagem de uma área para outra é feita de forma semelhante em quase todos os casos, apenas com algumas variações. Em alguns jogos existem mapas onde o jogador pode clicar no local de destino, surge uma cena de transição (um fade e/ou um loading screen) e é depois transportado para lá. Outros não permitem usar os mapas para deslocação (ou não têm mapas) obrigando o jogador a caminhar efectivamente para lá ou para locais de acesso (portas ou portões de saída da cidade, entre outras possibilidades), onde o jogo realiza depois também um fade ou apresenta algum loading screen. Alguns utilizam apenas um efeito de transição (geralmente um corte ou um fade), outros introduzem uma cena cinematográfica que estabeleça a ligação entre os dois espaços.
Para ilustrar, em Dragon Age: Origins (2009) e Bioshock Infinite (2013) o jogador poderá aceder a 134
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS uma nova área directamente através da porta de entrada – em que o jogo faz então um corte para um loading screen e depois o jogador e personagens são directamente “transferidos” para esse novo local. Adicionalmente, em Dragon Age: Origins (2009), outra forma também por vezes possível de ocorrer neste jogo é seleccionando no próprio mapa o local para o qual o jogador pretende “viajar” sendo depois transportado directamente para lá. Esta situação, no entanto, nem sempre é possível. Em Assassin’s Creed II (2013), como já se mencionou, efectua-‐se quase sempre um corte para uma pequena cena cinematográfica, e de seguida ocorre um corte para o novo espaço ou a câmara realiza uma montagem interna dessa cena cinematográfica para o “modo jogador” (Figura 122).
Figura 122 -‐ Screenshots de Assassin's Creed II (2009) dum segmento duma cena cinematográfica seguido dum transição para um novo locaç, a câmara fluindo depois para o “modo jogador”.
Existem, no entanto, vários outros aspectos a olhar sobre a forma como as diferentes áreas a explorar pelo jogador e que compõem o mundo do videojogo se interligam e relacionam. Wolf (2011) denomina as áreas como “células espaciais” e analisa estas ligações segundo os aspectos de transponibilidade e visibilidade42, que por sua vez podem ser analisados segundo a sua natureza aberta ou fechada, bem como a sua reversibilidade ou contingência43. Estes aspectos 42
Passibility e Visibilty no original Reversibility e contingency no original
43
135
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
afectam a capacidade do jogador de aprender o layout espacial do jogo e de conseguir navegá-‐lo. Transponibilidade diz respeito a se uma ligação entre células espaciais adjacentes permite ao personagem-‐jogador passar de uma para outra, ou não. Muitos destes mundos, nomeadamente os escolhidos como casos de estudo, são mundos de grande escala e dimensão. Mas por questões técnicas, e também porque se tornaria demasiado extensivo poder aceder a todos os edifícios, nem todos eles possuem um espaço interior navegável – apenas possuem a fachada, criando espaços implícitos. Estas são células espaciais que não são transponíveis, ou seja, a que o jogador não pode aceder. Geralmente, o jogador acede a um local porque lhe é dada indicação para tal, e por conseguinte, não se apercebe do facto de não poder entrar em todos os sítios, pelo simples facto de que no contexto da narrativa não necessita. Por vezes, alguns videojogos procuram visualmente justificar este aspecto – Bioshock Infinite (2013) é um destes casos, caracterizando geralmente estes espaço como sendo lojas fechadas ou abandonadas através de elementos como sinais (Figura 123).
Figura 123 -‐ Screenshots de Bioshock Infinite (2013) de algumas lojas que apresentam placas informando que estão fechadas como justificação visual para a impossibilidade de o jogador aceder ao seu interior.
Visibilidade, como o nome indica, diz respeito a se a ligação entre as células permite ver – quer seja total ou parcialmente – de uma para a outra, ou não. Nos ambientes encontrados nestas narrativas interactivas, existem sempre espaços que o jogador consegue avistar, mas que não são acessíveis. Estas ambiências distantes, que funcionam como ambientes de fundo (Figura 124), contribuem para a extensão do mundo do jogo, dando-‐lhe continuidade, profundidade e, também, maior realismo. Por outro lado, muitas das áreas a que o jogador pode aceder, quando são espaços interiores, nem sempre lhe são visíveis.
136
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS
Figura 124 -‐ Screenshots de Dragon Age: Origins (2009), Bioshock Infinite (2013) e Assassin's Creed II (2009), assinalados os ambientes distantes que são apenas visíveis mas não acessíveis.
Estes aspectos de transponibilidade e visibilidade podem ser de natureza aberta ou fechada (Wolf, 2011), ou seja se esses aspectos são possíveis ou não. No entanto, esta condição pode por vezes ser alterada pelo jogador, pela sua acção ou quando a narrativa assim o indica – o simples abrir de uma porta é uma destas possíveis alterações de condição das passagens ou por vezes, de modo a acrescentar mais conteúdo, torna-‐se necessário o uso de uma chave ou palavra-‐passe que o jogador terá de descobrir, entre outras possibilidades (Wolf, 2011). O facto de, então, a condição das passagem não ser fixa (de muitas vezes ser possível alterar) permite “esconder a natureza impassável da ligação”, pois quando o jogador se depara com uma porta de natureza fechada, ele poderá assumir que talvez na progressão do jogo exista uma chave ou outro elemento que permita abri-‐la (Wolf, 2011). A Reversibilidade refere-‐se a se a ligação entre as células é apenas num sentido ou dois, ou seja, se é possível ao jogador depois de transpor uma dessas ligações passar de volta, ou não. Esta reversibilidade da passagem de um local para outro muitas vezes não é previamente indicada ao jogador, sendo apenas após a passagem que este descobre se poderá voltar atrás ou não (Wolf, 2011). Contingência, por sua vez, refere-‐se a se a ligação liga sempre ao mesmo sítio ou não. Geralmente, uma passagem dá sempre para o mesmo local, mas em certos casos o destino da passagem poderá ser variável dependendo de determinadas variáveis no jogo (Wolf, 2011). Dragon Age: Origins (2009) é um caso, que possui uma certa área – Templar’s Nightmare na missão The Fade: Lost in Dreams – em que alguns portais nem sempre dão acesso de volta ao mesmo sítio de onde o jogador veio (Figura 125).
137
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Figura 125 -‐ Mapa de Templar's Nightmare em Dragon Age:Origins (2009) com indicação das ligações e direcção entre os diferentes tipos de dispositivos de passagem.
O espaço off-‐screen num videojogo difere do cinema: como é um meio interactivo, o espaço off-‐ screen oferece ao jogador algum controlo sobre o ponto de vista, permitindo-‐lhe escolher quais os espaços que aparecem on-‐screen – por isso o espaço off-‐screen pode muitas vezes ser activamente investigado e explorado pelo jogador (Wolf, 2001b). No cinema o espaço para além do enquadramento não pode se acedido pelo observador, a ficção e a sua narrativa decidem que espaço mostrar em cada plano. No final, pode-‐se então verificar que estes aspectos de análise das ligações entre “células espaciais” podem claramente ser facilmente provadas no caso de serem transponíveis, visíveis, reversíveis e/ou contingentes. No entanto, dado a sua natureza de por vezes estes aspectos apenas de confirmarem futuramente na progressão do jogo, as ligações não podem ser provadas como intransponíveis, invisíveis, irreversíveis e/ou não-‐contingentes (Wolf, 2011). 3.2.3. Elementos Existem certos elementos constituintes dos espaços dos videojogos que diferem da construção do espaço noutros meios como o cinema, nomeadamente os limites, os obstáculos e a escala. 3.2.3.1. Limites Uma das considerações importantes na criação de um ambiente virtual diz respeito aos seus limites. Considerando que o Espaço é uma das circunstâncias que determina a intervenção do jogador, tanto os limites como os obstáculos são constrangimentos da acção do jogador (Nogueira,
138
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS 2008). Zangalo utiliza o termo metáforas de orla, “baseado em algumas discussões on-‐line com pessoas da indústria dos videojogos”, onde as definem como “uma razão perceptivamente lógica pela qual o jogador não pode abandonar determinado espaço do mundo” (Zangalo, 2009, p.196). É o facto destes limites serem criados como constrangimentos aparentemente naturais, incorporados na própria morfologia do espaço, que ajuda na imersividade no espaço (e é também por isso que as chamam de “metáforas”). Em espaços interiores (edifícios, divisões) esta preocupação naturalmente não se coloca, pois a delimitação criada pelas próprias paredes criam uma delimitação natural, lógica e aceite pelo jogador. Mas em espaço exteriores, as suas delimitações poderão pôr em causa o realismo e verosimilhança desse ambiente, e consequentemente, a imersão do espectador-‐jogador nesses – “quanto melhor for a metáfora, mais credível será o cenário (ambiente virtual) e, como consequência, mais credível será o artefacto ficcional (narrativa) ” (Zangalo, 2009, p.196). Para manter a imersividade no mundo e ambiente do jogo, e criar a ilusão de um mundo realista e amplo, os seus limites são geralmente criados como constrangimentos aparentemente naturais, incorporados na própria morfologia do espaço. Estes limites são criados por montanhas, penhascos, rios, pântanos, e outros elementos naturais dificilmente transpostos (no caso destes ambientes, tornam-‐se mesmo intransponíveis). Estes elementos são limites credíveis de o jogador não conseguir passar (Adams, 2010). Para ilustrar, em Dragon Age: Origins (2009) são usados elementos naturais – montanhas e penhascos – ou, ocasionalmente, muralhas da cidade para delimitar e constrangir as áreas navegáveis (Figura 126). Os limites sólidos – montanhas e muralhas – como constituem uma barreira sólida, são limites totalmente credíveis. Os penhascos no entanto, neste jogo, poderão relembrar o jogador de que se encontra num mundo virtual, uma vez que por vezes a personagem parece ir de encontro a um “barreira invisível”. Mas é pouco comum que o jogador experiencie isso pois, estando imerso no mundo, não terá motivos para se aproximar demasiado desses limites, já que subconscientemente antecipa que será impossível sobreviver à queda ou “andar pelo ar” tal como o é no mundo real. Geralmente, os limites são formados por muralhas (que cercam toda a cidade), edificado ou morfologia do terreno. Também são criados por zonas aquáticas, como rios. Quando o jogador tenta 139
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
caminhar sobre elas vai contra uma “barreira invisível”. No entanto, geralmente não existem motivos para tal, bem como também existem outros caminhos marcados, por isso esta situação poderá muitas vezes não acontecer, ou ser encontrada pelo jogador. Também em alguns casos de espaços exteriores abertos o jogador encontra a “barreira invisível”. No entanto, estes geralmente correspondem a pontos que activam o acto de viajar para outro local no jogo.
Figura 126 – Screenshots de diferentes tipos de limites do espaço em Dragon Age: Origins (2009)
Assassin’s Creed II (2009) usa um método menos subtil para indicar a chegada dos limites da área navegável, mas que se torna igualmente credível quando se tem em conta que esse mundo que a personagem está a percorrer é também um mundo virtual – criada pela tecnologia animus – dentro da própria ficção do jogo. Neste caso o jogo assume directamente a impossibilidade de continuar para lá desses limites, não através de uma “barreira invisível”, mas uma mensagem directa a avisar do risco de “dessincronização” (Figura 127). Visualmente, também é assumido que os espaços para lá desse limite não são possíveis de percorrer e não estão modelados pois observa-‐se um desaparecimento gradual dos espaços e edifícios.
Figura 127 -‐ Screenshots de Assassin's Creed II (2009) mostrando como é indicado visualmente ao jogador a chegada a um limite do espaço ficcional do videojogo. 140
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS Bioshock Infinite (2013) define as suas “metáfora de orla” da forma mais comum, como acontece em Dragon Age: Origins (2009). Neste caso, no entanto, solucionou-‐se a questão da “barreira invisível”. Uma vez que o mundo destes jogos corresponde a uma cidade aérea – e composta por várias áreas segregadas – os limites das áreas navegáveis são logo definidos pelo final físico dessas áreas (Figura 128). Quando o jogador tenta continuar – tal como aconteceria no mundo real – a sua personagem cai no abismo entre as nuvens e não sobrevive à queda. Tal como se mencionou em relação aos limites em Dragon Age: Origins (2009), esta situação é rara de acontecer sem ser por acidente, pois o jogador inerentemente não espera que a personagem sobreviva duma queda dessas logo, à partida, tem o cuidado automático de não se aproximar demasiado e de tentar não cair.
Figura 128 -‐ Screenshots de Bioshock Infinite (2013) dos limites de algumas áreas no videojogo.
3.2.3.2. Obstáculos Como foi mencionado anteriormente, os obstáculos surgem como outro tipo de constrangimento da acção do jogador (Nogueira, 2008). Por vezes confunde-‐se obstáculos e limites, juntando-‐os na mesma categoria, pois elementos que delimitam a área do mundo do jogo impedido o jogador de transpor, no fundo constituem também obstáculos à sua acção. Mas no sentido de obstáculos enquanto elementos que influenciam a acção do jogador em relação à acção dramática e progressão do gameplay, estes implicam todas a variadas forças opostas (oponentes), ou elementos que dificultem a acção do jogador mas em casos de dispositivos como puzzles, objectos e outros que imponham um constrangimento ao movimento do jogador pelo espaço ou à sua progressão pela narrativa (enredo). Na progressão da narrativa interactiva, os obstáculos surgem como criadores de dificuldades à progressão e acção do jogador. São elementos que criam interesse no jogador e o motivam a evoluir para orientar, progredir no jogo e chegar à sua conclusão. Os obstáculos também podem funcionar como sinais de orientação no espaço. Podem-‐se considerar obstáculos à progressão do jogador elementos dramáticos como sejam personagens oponentes que impeçam ou dificultem essa progressão. Estes obstáculos dramáticos 141
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
também podem assinalar locais de progressão num jogo e que requerem tomada de acção pelo jogador. Na progressão da narrativa interactiva (e interacção do jogador nela), os obstáculos surgem como criadores de dificuldades na acção do jogador que no fundo são o que criam o interesse pela parte do jogador e que o motivam a desenvolver o jogo para chegar à sua conclusão (ponto de vista teleológico), consequentemente possuindo igualmente implicações emocionais sobre o jogador pelo interesse e motivação que despertam nele (ponto de vista dramático) (Nogueira, 2008). Os obstáculos poderão então ser de três tipos. Poderão constituir fronteiras que impedem a progressão do jogador, obstáculos físicos que dificultam a progressão, ou obstáculos dramáticos (oponentes) que também dificultam a progressão mas requerendo no jogador a acção para a sua progressão (Figuras 129, 130 e 131).
Figura 129 -‐ Screenshots de Dragon Age: Origins (2009) mostrando obstáculos dramáticos e obstáculos físicos à progressão do jogador.
Figura 130 -‐ Screenshots de Bioshock Infinite (2013) mostrando obstáculos dramáticos, fronteiras, e obstáculo físico à progressão do jogador.
Figura 131 -‐ Screenshots de Assassin's Creed II (2009) mostrando dois tipos de obstáculos físicos e obstáculos dramáticos à progressão do jogador.
Assassin’s Creed II (2009), bem como os restantes videojogos da série, é um caso específico onde 142
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS Arquitectura e a configuração espacial criam também um obstáculo. O obstáculo aqui é o espaço não permitir acesso ou uma passagem directa ao objectivo. Criam-‐se assim momentos onde o jogador tem de percorrer uma espécie de “puzzle espacial”, subindo e saltando entre vários elementos do edifício para chegar ao ponto final de objectivo (Figura 132).
Figura 132 -‐ Screenshots de Assassin's Creed II (2009) de algumas situações em que a configuração do espaço obriga o jogador a progredir por formas alternativas.
3.3. Caracterização dos Ambientes “As qualidades atmosféricas dos cenários, locais e ambientes são essenciais no estabelecimento de um estado de espírito e na projecção de um sentimento emocional sobre o mundo em torno do filme” (LoBrutto, 2002). Um espaço cénico também tem de criar uma atmosfera e estado de espírito de acordo com a ficção, cena e acção concreta que nele vai decorrer em cada momento. Os dispositivos mais marcantes para a criação destas ambiências correspondem principalmente a toda uma dimensão simbólica. É fundamental equacionar metáforas visuais e símbolos da cor, dos modelos da arquitectura, de poder, monumentalidade, religião, do fantástico ou místico, dos modos de vida, de época e cultura histórica, de romance, da tecnologia, da cultura, da sociedade, dos estilos e poéticas arquitectónicas, da finalidade da arquitectura, seja esta civil, militar, religiosa, política e do estatuto dos proprietários desses espaços ou edifícios. Todas as referidas metáforas visuais têm de ser ponderadas no desenho e referencias na arquitectura, desde o nível da estrutura do espaço até ao nível da escala entre o Homem e o espaço que este habita ou percorre, entendido como a sua envolvente imediata. Preocupações idênticas e concordantes deverão estar reflectidas nos objectos e adereços de um jogo, sejam estes caracterização dos personagens, mobiliário, artefactos, veículos, armas. Explorando exemplos de alguns destes elementos: 143
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Escala: Num videojogo, a escala dos diversos objectos e elementos no espaço deve estar relativamente correcta e credível – em especial nos jogos em primeira-‐pessoa pois, uma vez que a perspectiva do jogador é igual à de uma pessoa num espaço real, qualquer manipulação da escala será mais notória (Adams, 2010). Sendo narrativas visuais para entretenimento, muitas vezes os espaços ficcionais representados são exagerados com escalas grandiosas de modo a aumentar o impacto emocional do jogador. O importante é que no seu todo, o espaço seja coerente e que qualquer exagero de escala não seja totalmente improvável. A problemática da escala, nos objectos, não diz respeito apenas à questão do realismo, mas também se relaciona com a affordance — no mundo real a forma e tamanho dos objectos é vista em relação ao tamanho das mãos, considerando e percepcionando segundo a sua affordance em termos da sua manipulação. Mesmo sendo personagens virtuais, o jogador estabelece uma relação idêntica de escala e tamanho consigo próprio. Mesmo em jogos na primeira-‐pessoa, onde não se vê o corpo do protagonista, os objectos com que esse personagem pode interagir e utilizar devem ter uma escala adequada para ele subconscientemente identificar essa qualidade de affordance neles, tal como o faz no mundo real. No entanto, certas distorções são por vezes feitas – alguns objectos mais relevantes (como chaves ou armas, entre outros casos) podem ser exagerados ligeiramente para serem mais visíveis (Figura 133).
Figura 133 -‐ Screenshots de Bioshock Infinite (2013) mostrando como as moedas são exageradas em tamanho de modo a serem mais visíveis pelo jogador.
A manipulação da escala poderá igualmente contribuir para o impacto dramático do espaço sobre o espectador-‐jogador. Apesar de procurarem sempre manter uma proporção adequada da escala de certos elementos, no todo, há uma tendência para criar espaços e edifícios de escala monumental
144
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS para ter um maior impacto visual, mais interessante, e que fascine mais o jogador. Para ilustrar, Dragon Age: Origins (2009) é um caso carregado de locais onde a construção é muito grandiosa e monumental em comparação às personagens (Figura 134).
Figura 134 -‐ Screenshots de Dragon Age: Origins (2009) de alguns locais cujo interior possui uma escala monumental.
Também em Bioshock Infinite (2013), de modo geral, parece tudo proporcional às personagens, mas a grande maioria (senão toda) a arquitectura é relativamente grandiosa – possui vários pisos, tornando-‐se todos grandes edifícios que contrastam em tamanho com a personagem, e muito locais e passagem possuem pés-‐direitos duplos ou triplos (Figura 135).
Figura 135 -‐ Screenshots de Bioshock Infinite (2013) de alguns locais cujo interior possui uma escala monumental.
Cor: Em Dragon Age: Origins (2009) utilizam-‐se simbologias da cor na criação de ambiências diferentes: os templos abandonados ou em ruinas têm tons verdes ou azuis. O verde está relacionado com a Natureza mas também com o que é estranho, complexo e/ou com um poder maléfico, pois na idade média era considerada a cor do diabo (Pastoureau, 2009). O templo abandonado de Haven (Figura 136.a) faz parte dum local envolto em mistério, escondido e secreto, com um carácter predominante religioso e de culto. A cor usada é o azul que, para além de conferir tranquilidade, está relacionado com o divino e o metafísico (céu), como com o mistério e o sonho (mar). As ruinas de Brecilian (Figura 136.b) situam-‐se no meio de uma floresta e são também um local
145
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
onde se abrigam lobisomens, obviamente conotados com o mal e com uma mutação do Homem em direcção ao animal e portanto tendo uma forte ligação telúrica. É utilizado um tom esverdeado, bege e castanho. O verde e o castanho têm uma conotação telúrica remetendo para o terrestre (terra, rocha, vegetação) pelo que esta iluminação fora destes contextos (da natureza) remetem para uma sensação de desconforto, desconfiança, medo, maldade, ameaça vinda do desconhecido e metafísico de certa forma oposto à metafísica celeste.
Figura 136 -‐ Screenshots do interior do templo de Haven e do interior das ruínas de Brecilina em Dragon Age: Origins (2009)
Em Bioshock Infinite (2013), na cena inicial, quando entramos na cidade de Columbia, as cores são vibrantes, iluminação é high-‐key e difusa, conferindo uma ambiência cosmopolita de grande riqueza visual e arquitectónica, e de grande variedade formal, o que dá ao jogador uma noção de habitantes felizes e de vida confortável e organizada (Figura 137). Quando são explorados locais deste universo, progredindo ao longo da história, estes vão-‐se tornando mais obscuros e tensos, traduzindo na consciência do jogador o facto de que este universo pode não ser afinal um paraíso, sendo um local de xenofobia militante. Utiliza-‐se uma iluminação low-‐key com sombras acentuadas e opacas e luz muito contrastada, tingidos de roxo, verde ou vermelho (Figura 138). Neste último caso acentuando o conflito.
Figura 137 -‐ Screenshots da entrada em Columbia em Bioshock Infinite (2013), onde se pode verificar uma ambiência agradável com a iluminação high-‐key e cores vibrantes.
146
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS
Figura 138 -‐ Screenshots de algumas ambiências em Bioshock Infinite (2013), marcadas por uma iluminação low-‐key e/ou cores frias ou vermelhas criando ambiências obscuras e/ou de conflito.
Bioshock Infinite (2013) utiliza também vários elementos que remetem para a mentalidade americana do início século XX e o patriotismo americano extremo. Para além da propaganda encontrada por todos os espaços, alguns exemplos de simbolismo encontram-‐se nas estátuas e personagens que remetem para o patriotismo americano recorrendo à imagem dos “Founding Fathers” e da bandeira americana (Figura 139.a e 139.b) Outro caso são os membros da “Fraternal Order of the Raven” que assemelham-‐se muito ao Ku Klux Klan fisicamente e devido a também defenderem violentamente a ideia de “pureza racial” (Figura 140.c).
Figura 139 -‐ Screenshots de Bioshock Infinite (2013) mostrando alguns elementos e personagens que possuem um forte simbolismo com elementos da cultura americana.
“Uma metáfora visual pode actuar ao nível subconsciente, enquanto o espectador conscientemente segue o enredo, desenvolvimento de personagem e a materialidade do design. Essas (...) subconsciente[mente] (...) podem transmitir ideias, conceitos e significado na narrativa” (LoBrutto, 2002, p. 46). Para todas estas metáforas visuais e simbolismos nas ambiências concorrem não só o cenário físico, mas também as expressões faciais e o movimento dos personagens, o seu diálogo, a expressão e tom vocal, o uso do som e da música, a iluminação, o ponto de vista ou perspectiva, ângulos, distâncias, os acessórios e os figurinos. Para ilustrar, olhando para diferentes locais (zonas ou cidades) em Dragon Age Origins (2009) e em Bioshock Infinite (2013) (Figura 140), cada um tem cores, contraste, iluminação, por vezes até 147
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
arquitectura, distintos marcando a diferença entre cada um desses lugares – cada um destes locais ganham assim uma caracterização muito diferente que os distingue.
Figura 140 -‐ Screenshots de algumas de ambiências em Bioshock Infinite (2013) onde, através da iluminação, cor, texturas, arquitectura e escala, o espaço ganha efeitos dramáticos e emocionais muitos distintos.
Dragon Age: Origins (2009) ilustra bem como a criação de ambiências é conseguida através das características da Arquitectura, do usa de uma escala monumental mas também através do uso (e simbolismos) da cor e da iluminação. O caso dos templos, ilustrados anteriormente, para além de usarem geralmente cores frias (azul e verde) – que dão uma sensação calma que reforça a ideia de estarem abandonado, pois também os outros locais habitados deste mundo ficcional geralmente apresentam cores mais quentes – também têm uma iluminação mais difusa, muitas vezes com perspectiva atmosférica, pés direitos muito altos. Tudo isto contribui para uma sensação mais mística e imponente do espaço (Figura 141).
Figura 141 -‐ Screenshots de Dragon Age: Origins (2009) onde aspectos como a escala, Iluminação e perspectiva atmosférica reforçam a sensação mística e imponente destes espaços.
O contexto cultural de uma ficção é igualmente um aspecto de grande peso para a caracterização de ambiências e o revelar de uma dimensão vivencial dos personagens e espaço. O contexto cultural de um jogo tem a ver com a sua cultura no sentido antropológico: crenças,
148
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS atitudes e valores das pessoas que o habitam, instituições políticas e religiosas, organização social, ou seja, a maneira como essas pessoas vivem. Estas características estão reflectidas nos items dos jogos (Figura 142): roupa, mobiliário, arquitectura, paisagem e outros objectos manufacturados (Adams, 2010). O contexto cultural também inclui a backstory do jogo. Esta é a história imaginária, grande escala ou pequena, que precede o tempo em que o jogo ocorre estabelecendo porque é que a cultura do mundo do jogo é como é.
Figura 142 -‐ Screenshots de Assassin’s Creed II (2009) onde a Arquitectura, vestuário das personagens, objectos, entre outros, tudo remete para o período renascentista sendo esse o contexto cultural do videojogo.
3.4. Construção de Ambiências Visuais e Ficcionais “Arquitectura fornece ao episódio cinemático a sua ambiência, e os significados dos eventos são projectados [nela]. A narrativa cinemática define os limites da realidade vivida” (Pallasmaa, 2001, p. 35). Deve-‐se compreender o ambiente em que a ficção tem lugar. Os locais devem revelar informações sobre o estatuto do ponto de vista económico, social, moral e político das personagens. Os espaços criados devem responder a interrogações como: Onde é que eles vivem? Qual é o seu estilo pessoal? Como eles se relacionam a seu ambiente? Qual é o impacto espaço físico nas suas vidas? Como pode a vida interior da história ser colocado em um ambiente físico? (LoBrutto, 2002). Os processos de construção de um Espaço Ficcional é em muito semelhante ao processo arquitectónico tradicional, por isso a arquitectura surge como uma das principais fontes de inspiração.
149
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
3.4.1. Desenhar do Espaço Físico O desenho de um espaço físico de um jogo implica o seu estudo através de desenhos conceptuais (Figura 143), de múltiplos elementos visuais do jogo, com maior cuidado nos mais importantes. Estes elementos são edifícios, veículos, roupa, armas, mobiliário, decoração, artefactos religiosos ou mágicos, logos ou emblemas (Figura 144 e 145) (Adams, 2010). Também tem de ser desenhado o mundo natural e com ele a natureza e fauna: pássaros, plantas, terrenos, céu, clima, entre muitos outros aspectos neste mundo natural, tentando sempre traçar um mundo rico e único (Adams, 2010). O desenho do espaço implica também pensar na luz que o ilumina, nos materiais e texturas de que é constituído, e nos elementos das artes decorativas, relacionados e embutidos na arquitectura, no propósito das divisórias espaciais (interiores e exteriores). Devem ainda ser considerados os sons desse mundo, como sejam a música, sons ambiente, dos artefactos, a língua, dos animais, de máquinas e veículos, ou seja do mundo no seu todo (Adams, 2010).
Figura 143 -‐ Concept art e modelo no jogo da cidade de Denerim em Dragon Age: Origins (2009).
Figura 144 -‐ Heráldica de Denerim e algumas situações nessa cidade onde o mesmo símbolo aparece, em Dragon Age: Origins (2009).
150
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS
Figura 145 -‐ Diversos exemplos de Concept Art de Assassin’s Creed II (2009) e respectivos modelos no jogo.
No entanto, o desenho do espaço físico é também determinado por limitações e constrangimentos técnicos – tempo de desenvolvimento e memória e espaço do disco – e temporais. No mundo real o indivíduo pode pegar em qualquer objecto portanto num jogo, para ser realista, dever-‐se-‐ia poder também, mas tal não é prático de se programar num ambiente virtual (Adams, 2010). A consequência disto é que quando existe no jogo um objecto em que o jogador pode pegar, este sabe que esse objecto deve ser importante ou útil por algum motivo. 3.4.2. Fontes de Inspiração e Referências Em termos de fontes de inspiração e referências, muitas áreas podem constituir fontes de material cultural, como arte e arquitectura, história e antropologia, literatura e religião, moda, design de produto e movimentos arquitectónicos e culturais especialmente (Adams, 2010). Por vezes são usadas fontes de inspiração e referências do cinema, uma vez que nessas narrativas já existe um trabalho feito de visual design, e atmosferas já criadas e reconhecíveis pelo público. No entanto, usar apenas estas fontes poderá trazer problemas, tornando-‐as em clichés e pouco imaginativas. A Arquitectura surge como uma das principais fontes de inspiração nos jogos, para os seus mundos, pois os estilos arquitectónicos são a materialização do modo de vida dos habitantes, da sua sociedade, da sua organização, da sua cultura, dos seus hábitos, da sua religião, da sua organização política, e tudo o que caracteriza a sociedade humana. A arquitectura de um universo ficcional vai portanto falar ao jogador para o período histórico e cultura que ele habita (ou habitou) das suas crenças, vida ou mentalidade. A esta tem de ser 151
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
adicionados, todos os artefactos criados pelo Homem de uma época ou sociedade que, tendo a sua componente utilitária, simbólica e artística, também caracterizam um lugar, os seus habitantes, e o seu modo de vida. Para ilustrar, em Assassin’s Creed II (2009), sendo uma narrativa histórica, é bem notória a forte inspiração no período renascentista (Figura 147), desde a Arquitectura toda consistente com esse movimento arquitectónico, ao vestuário, profissões e estabelecimentos. Bioshock Infinite (2013), por seu lado, inspirou-‐se principalmente no contexto das tendências dos EUA no início do século XX, apesar de misturar igualmente referências de outros períodos históricos em diversos elementos. É assim uma arquitectura ecléctica, que privilegia a monumentalidade e espectáculo, carregado de detalhes. As diversas fontes de inspiração encontram-‐se pela sua arquitectura, mas também nos veículos (Zepelins), nos vestuário e maneirismos dos personagens, propaganda e outros elementos visuais do espaço cénico (Figuras 148 e 149).
Figura 147 -‐ Catedral de Santa Maria del Fiori e respectivo modelo virtual em Assassin’s Creed II (2009)
Figura 148 -‐ Exposição Universal (Feira Mundial de Chicago) de 1893 e screenshot da entrada de Columbia em Bioshock Infinite (2013).
152
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS
Figura 149 -‐ Propaganda americana durante a 2ª guerra mundial e propaganda em Bioshock Infinite (2013).
No entanto, por vezes são usadas características formais de elementos arquitectónicos de forma decorativa, para adicionar riqueza visual, mas sem corresponder as propriedades técnicas e estruturais desses elementos. Num jogo por vezes utilizam-‐se elementos arquitectónicos ou artefactos que não podem ser entendidos à luz da sociedade retratada mas antes na lógica do enredo do jogo e na sua narrativa, o que distancia por vezes muito dos objectos espectáveis do universo desse jogo por terem sobretudo um papel dramático e não de pertença a esse universo. Em Dragon Age: Origins (2009) encontram-‐se vários casos que ilustram isto. Entre outros, encontram-‐se os casos de arcos que formalmente remetem para o movimento gótico mas que apenas formam janelas fechadas, arcos separados ou incompletos que aparecem sem qualquer aparente função de suporte (Figura 150).
Figura 150 -‐ Screenshots de Dragon Age: Origins (2009) de alguns casos em que elementos arquitectónicos são utilizados apenas de forma decorativa e com um papel dramático.
Por último, há que voltar a referir a ideia de variatio delectat, ou seja, é a variedade que ‘deleita’, argumentado por Gombrich (2002). Isto é muito importante nos jogos porque para além de procurarem alcançar um “realismo” (em termos de autenticidade), eles têm igualmente que fascinar. “Quando os pintores estão a trabalhar com objectos reais, o seu objectivo nunca é evocar o objecto em si, mas criar na tela um espectáculo que é suficiente para si próprio” (Merleau-‐Ponty, 153
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
2004, p. 96).
3.5. Autenticidade, Coerência e Credibilidade “Os jogos não precisam de um elevado grau de realismo, precisam é de ter um lógica interna coerente e consistente” (Konzack, 2006). A intenção é ter autenticidade. Lars Konzack identifica três níveis interligados que constituem um mundo ficcional e que pretendem proporcionar uma experiência completa e total (Konzack, 2006): – Nível filosófico: O autor deve criar mitologias, religiões e filosofias do mundo, sabendo que diferentes culturas terão diferentes perspectivas sobre este mundo e poderão ser influenciadas por diferentes fontes de sabedoria. – Nível épico: O autor deve construir um mundo secundário com uma geografia e objectos baseados nos aspectos do nível filosófico, o que moldará esse mundo historicamente. – Nível ingénuo: Dentro da sua subcriação, o autor cria simples narrativas, que no entanto se devem relacionar com narrativas de proporções épicas e, nesse sentido, devem relacionar-‐se com as culturas, mitologias, religiões e filosofias desse mundo secundário. O desenho de espaços ficcionais em videojogos raramente se preocupa com alcançar uma cópia exacta de um dado local, mas antes de alcançar a sua substituição da realidades que conhecemos para uma outra “realidade” que sintamos como autentica, coerente, credível, original e única. A procura por construir espaços ficcionais “realistas” não é uma questão de copiar exactamente um dado local – “o problema é substituir a realidade por outra verdade; a verdade da arte que é mais persuasiva e não entra em conflito com o estilo geral do filme” (Barsacq, 1976, p. 125). Não se trata portanto de uma simples síntese de elementos estereotipados, mas a sua aplicação no contexto de outra realidade que é a do argumento, dos ambientes pretendidos, e dos requisitos de realização, numa composição que seja no entanto uma expressão artística por si própria, fruto de um impulso interno poético e humano (Barsacq, 1976), e que pareça independente e autónoma em relação aos requisitos citados. Vários aspectos trabalham em conjunto para criar um mundo ficcional com autenticidade e coerência, tais como o contexto cultural, o desenho do espaço físico, bem como as fontes de inspiração e referências culturais, que já se abordaram anteriormente. Quando um videojogo é situado num determinado contexto histórico e cultural, ou pelo menos 154
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS utiliza elementos visuais característicos desses, delimita imediatamente o conjunto de elementos que criam o seu design de produção e concept art. No contexto de coerência e autenticidade, isto significa que, para ilustrar, escolhendo uma arquitectura medieval fará pouco sentido a inclusão de objectos, artefactos, vestuários, entre outros, de um visual claramente futurista – a coerência é o aspecto mais importante para criar credibilidade numa ficção. Quando ela é credível, o espectador acredita nela como realista. Existem dois caminhos para criar autenticidade: – Através de elementos de inspirações de diferentes épocas e culturas, criando autenticidade pela complexidade e riqueza dos elementos visuais utilizados procurando conjugá-‐los de forma a criar uma nova identidade diversa de qualquer das que o jogador conhece. Este caso pretende criar um novo universo ficcional através da conjugação de várias influências. – Através da escolha de uma única época histórica e cultural como referência, recolher e multiplicar elementos dessa referência, sendo-‐lhe o mais fiel possível em todos os seus elementos. Pretende-‐se nesta abordagem imitar e fazer sentir uma época, civilização e cultura determinadas. Assassin’s Creed II (2009) é um perfeito exemplo de coerência e autenticidade criada pelo segundo caminho. No entanto há que ter em conta que este caso é um videojogo histórico, que aborda acontecimentos históricos reais, e em que portanto se procurou intensionalmente ser o mais historicamente correcto quanto possível (Figura 151).
Figura 151 – Screenshots de Assassin’s Creed II (2009), ilustrando a criação de credibilidade através de imitação duma época histórica e cultural, neste caso é criado uma vivência única pelo plot.
No entanto, videojogos de carácter marcadamente fantástico, como os casos de Dragon Age: Origins (2009) e Bioshock Infinite (2013), conseguem levar o jogador a crer na sua ficção como tendo autenticidade, ao terem todo um estilo visual rico criando assim a sua própria identidade – ou seja criam autenticidade através do primeiro caminho mencionado. Um aspecto relevante neste tópico é então também o grau de detalhe existente nesses espaços e objectos. Bioshock Infinite (2013) mistura elementos de referências e fontes de inspiração de várias épocas. 155
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Apesar de representarem um universo ficcional com vários características inexistente no mundo real, o mundo total torna-‐se credível pela sua complexidade e riqueza de estilos e elementos visuais que lhe conferem uma identidade própria e portanto autenticidade (Figura 152).
Figura 152 – Screenshots de Bioshock Infinite (2013), ilustrando a criação de credibilidade através de elementos de inspirações de diferentes épocas e culturas criando assim uma identidade própria e única.
Ambientes virtuais com muito pouco detalhe e fraca modelação de formas e texturas tende a ser considerado pouco realista ou autêntico, caindo mais na figuração e realçando o carácter artificial. Por outro lado, um exagero de detalhe desnecessário poderá prejudicar a experiência e imersão do jogador ao causar cansaço visual. Também, o tipo de câmara, a maneira como o jogador se move no mundo, e motivos relacionados com a narrativa e gameplay influenciam o nível de detalhe – se surgirem personagens relevantes ou demasiados visíveis por algum motivo, torna-‐se necessário que sejam modeladas com algum detalhe. Se aparecerem de fugida não se justifica que tenham muito detalhe, pois nestes casos não existirá sequer tempo suficiente para o jogador absorver esses detalhes (Adams, 2010).
3.6. O Espaço Ficcional e a sua Dimensão Existencial e Experiencial O espaço cénico está inseparavelmente interligado com as personagens que o habitam e nele agem, e assim com a acção e narrativa que lá ocorrem, pois ”as personagens, eventos e arquitectura interagem e designam-‐se uns aos outros” (Pallasmaa, 2001, p. 23). O espaço cénico é onde decorre a acção, portanto ele serve como fundo ou suporte para a mesma. Para isso necessitam de concorrer para a representação e caracterização da ambiência e contextos das várias cenas e etapas da ficção. O espaço é a “concha” onde habita o indivíduo. No caso de um espaço ficcional é então onde habitam os personagens. Ele cerca e envolve e suporta tudo o que a personagem faz e é. Por isso são
156
4 | ARQUITECTURA E ESPAÇO FICCIONAL EM VIDEOJOGOS inseparáveis. Não se consegue retirar a vida duma pessoa do espaço – o contexto – onde ela habita e existe. Consequentemente o espaço é também indivisível da acção, uma vez que a acção é efectuada e transmitida pelos personagens: “A acção pode determinar o design dos lugares e do tempo em que decorre. Inversamente, este design pode contribuir para a caracterização da acção” (Carpinteira, 2011, p. 16). O espaço cénico está então invariavelmente carregado da personalidade e vida dos personagens que nele existem (Barsaqc, 1976), revelando destas o seu estatuto, gostos, hábitos, expectativas, atitude e estado de espírito, estilo de vida, personalidade, ou seja, toda uma dimensão vivencial. É por isso necessário ter em conta a psicologia e comportamento daqueles que se pretende que habitam o espaço. Este torna-‐se assim um elemento narrativo do argumento e das personagens, por si mesmo. No entanto, os diversos espaços – lugares – estão relacionados com a acção, cena a cena, revelando sobre as personagens e o seu evoluir ao longo da narrativa: o seu estatuto, gostos, hábitos, expectativas, atitude, estado de espírito, estilo de vida, personalidade, em suma, a dimensão vivencial dos habitantes desse mundo (Figura 110). "Um cenário (...) para ser bom tem de actuar. (...) Deve apresentar a personagem antes de ele ter aparecido. Devem indicar a sua posição social, gostos, hábitos, estilo de vida e personalidade. Os cenários devem ser intimamente ligados com a acção" (Carpinteira, 2011, p. 126). “Não consigo imaginar qualquer padrão de eventos sem imaginar um lugar onde estão a acontecer” (Alexander, 1979, p.69). Acção e Espaço são inseparáveis, pois os eventos não podem ser separados do espaço em que ocorrem. O mundo humano é composto tanto da natureza e dos seus fenómenos, como também, e principalmente, da humanização de espaços e objectos – marcas da existência do indivíduo. “O interesse do homem no espaço tem raízes existenciais. Ela decorre da necessidade de compreender as relações vitais no seu ambiente, para trazer significado e ordem a um mundo de eventos e acções” (Norberg-‐Schulz, 1971, p. 9). Por isso cada lugar, ou espaço, adquire o seu carácter, e ganha significado, por esses eventos que lá ocorrem (Alexander, 1979). Então o espaço ficcional tem de ser pensado e construído considerando as condições e eventos que o criaram.
157
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Tanto a Arquitectura como o Cinema – e agora também os videojogos – criam “cenas experienciais de situações de vida” (Pallasmaa, 2001, p. 13). É no espaço que o individuo “experiencia eventos significantes da [sua] existência” (Norberg-‐ Schulz, 1971). Por associação, o jogador através da personagem também experiencia a sua existência no mundo ficcional. Este espaço ficcional, tal como na Arquitectura tradicionalmente pensada (física), constitui um enquadramento da existência humana (Pallasmaa, 2001). De facto, o espaço cénico e da ficção não é apenas “aquilo que não mexe”. Ele é um mundo que vibra com sinais de vida própria, efeito da natureza e dos seus habitantes, criando estados de espírito, emoções ou sentimentos no espectador desde melancolia, alegria, terror, humor, entre tantos outros. Mesmo sendo um espaço ficcional e virtual, ele deve comunicar um sentido de lugar. O Espaço arquitectónico é portanto a concretização do espaço existencial do homem – ”a estruturação de lugar, espaço, situação, escala e iluminação características da Arquitectura – a definição da existência humana – infiltra-‐se inevitavelmente em cada expressão cinematográfica” (Pallasmaa, 2001, p. 20).
158
CONCLUSÃO O espaço e a arquitectura constituem o suporte onde acontecem todas as vivências do Homem. É onde ele habita, age e interage, onde ama e odeia, onde socializa e trabalha. Por isso qualquer outra Arte ou Narrativas onde se desenvolvam simulações da vida e existência do Homem (cinema, videojogos, animação), não conseguem deixar de estar assentes no espaço e na Arquitectura. Nos videojogos -‐ como no cinema ou na animação -‐ também se habita um espaço existencial, uma vez que o jogador nele “mergulha”, nessa realidade induzida, e neste sentido nele “existe”: o jogador é compelido a vivenciar realidades, espaços, enredos e personagens, que criam situações em que se vê pessoalmente envolvido e com as quais vai interagir. Esta imersão leva-‐o a planear e executar acções em resposta a desafios que se colocam nessas ficções, numa plena aceitação destas vivências como se fossem do seu mundo existencial. Quando se cria um espaço, deixa de se ser simples utilizadores dos espaços tal como existem para se passar a ser um modelador de espaços, passando a existir um acto criativo, onde de certa forma se quer exprimir a forma de viver e ver o mundo pelo Homem. Os espaços expressivos ou artísticos constituem-‐se nesta criação de espaços, que ocorrem ao nível do espaço enquanto adaptação a nós próprios do espaço existencial, recriando-‐o. Na criação destas narrativas virtuais, existe nelas a atitude de criar um espaço expressivo ou artístico, de definir a estrutura de mundos de ficção, mas que não obstante continuam a ser criados e vividos à imagem do Homem, mantendo-‐se como Imago Mundi.
159
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
160
BIBLIOGRAFIA Fontes Escritas: Ablan, D. (2002). Digital Cinematography and Directing. Indianapolis, Indiana: New Riders. Adams, E. (2010). Fundamentals of Game Design (2nd Edition ed.). Berkeley, CA: New Riders. Alexander, C. (1979). The Timeless Way of Building. New York: Oxford University Press. Anhut, A. (9 de Abril de 2011). Evaluating Camera Angles for Immersion. Obtido em Junho de 2015, de How not to suck at Game Design: http://howtonotsuckatgamedesign.com/wp-‐ content/uploads/evaluating-‐camera-‐angles-‐for-‐immersion.pdf Arnheim, R. (1997). Visual Thinking. Berkeley: University of California Press Barsacq, L. (1976). Caligari's cabinet and other grand illusions: A history of film design. New York: New York Graphic Society. Beane, A. (2012). 3D Animation Essencials. Indianapolis, Indiana: John Wiley & Sons, Inc. Birn, J. (2000). Digital Lighting and Rendering. New Riders Publishing. Boggs, J. M., & Petrie, D. W. (2008). The Art of Watching Films (7th ed.). New York: McGraw-‐ Hill. Carpinteira, Y. (2011). A Intervenção do Designer de Produção na Peça Cinematográfica (Dissertação de Mestrado em Design de Comunicação). Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, Lisboa. Comparato, D. (2009). Da Criação ao Roteiro: Teoria e Prática [versão Kindle]. São Paulo: Summus Editorial. Retirado de Amazon.com Egri, L. (1960). The Art of Dramatic Writing: Its Basis in the Creative Interpretation of Human Motives. New York: Simon & Schuster. Field, S. (2005). Screenplay: The foundations of Screenwriting. New York: Delta Trade Paperback. Fullerton, T. (2008). Game Design Workshop: A playcentric approach to creating innovative games (2nd ed.). Burlington: Morgan Kaufmann Publishers. Gallardo, A. (2001). 3D Lighting: History, Concepts, and Techniques. Rockland, Massachusetts: Charles River Media, inc. Gibson, J. J. (1986). The ecological approach to Visual Perception. New York: Psychology Press. Gombrich. (2002). The Sense of Order. London: Phaidon 161
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Hicks, N. D. (1999). Screenwriting 101: The Essential Craft of Feature Film Writing. Michael Wiese Productions. Jackman, J. (2010). Lighting for digital video and television (3ª ed.). Oxford: Focal Press. Jones, M. (2005). Composing Space: Cinema and Computer Gaming -‐ The Macro-‐Mise en Scene and Spatial Composition. Artigo apresentado em Imaginary Worlds Conference/Symposium. Sydney: University of Technology. Konzack, L. (2006). Sub-‐creation of Secondary Game Worlds. Games 2006: iDiG -‐ International Digital Games Conference Proceedings (pp. 115-‐122). Portalegre. LoBrutto, V. (2002). The Filmmaker's Guide To Production Design. New York: Allworth Press. Maestri, G. (2002). Digital Character Animation 2 (Vol. II: Advanced Techniques). Indianapolis, Indiana: New Riders. Marner, T. (2013). A Realização Cinematográfica. Lisboa: Edições 70. Martinho, C., Santos, P., & Prada, R. (2014). Design e Desenvolvimento de Jogos. Venda do Pinheiro: FCA-‐Editora de Informação, Lda. Mascelli, J. V. (1998). The 5 C's of Cinematography. Los Angeles: Silman-‐James Press. Merleau-‐Ponty, M. (2004). The World of Perception. New York: Routledge. Morris, D. (2002). People Watching. London: Vintage. Myers, D. G. (2014). Exploring Psychology. New York: Worth Publishers. Nitsche, M. (2008). Video Game Spaces: Image, Play, and Structure in 3D Worlds. Massachusetts: MIT Press. Nogueira, L. (2008). Narrativa Fílmica e Videojogos. Covilhã: Universidade da Beira Interior. Norberg-‐Schulz, C. (1971). Existence, Space and Architecture. Praeger Publishers. Oliveira, S. (2012). Lições das Sombras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian Pallasmaa, J. (2001). The architecture of image. Helsínquia: Rakennustieto Oy. Pastoureau, Michel. (2009). Diccionario de los Colores. Barcelona: Paidós. Preston, W. (1994). What an Art Director Does: An Introduction to Motion Picture Production Design. Silman-‐James press. Salen, K., & Zimmerman, E. (2003). Rules of Play: Game Design Fundamentals. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press. Salingaros, N. A. (2011). Why Monotonous Repetition is Unsatisfying. Meandering Through Mathematics. Schell, J. (2015). The Art of Game Design: A Book of Lenses. Pittsburgh, Pennsylvania: CRC Press. 162
BIBLIOGRAFIA
Sylvester, T. (2013). Designing Games: A guide to Engineering Experiences. E.U.A: O'Reilly. Thompson, R., & Bowen, C. (2009). Grammar of the Edit. Burlington: Focal Press. Thompson, R., & Bowen, C. (2009b). Grammar of the Shot (2ª ed.). Burlington: Focal Press. Wade, N. J., & Swanston, M. T. (2013). Visual Perception: An Introduction. East Sussex: Psychology Press. Ward, P. (2003). Picture Composition for Film and Television (2ª ed.). Oxford: Focal Press. Wolf, M. J. (2012). Building Imaginary Worlds: The Theory and History of Subcreation. New York:Routledge. Wolf, M. J. (2001). Narrative in the Video Game. In M. J. Wolf, The Medium in the Video Game [versão Kindle]. Austin: University of Texas Press. Retirado de Amazon.com Wolf, M. J. (2001b). Space in the Video Game. In M. J. Wolf (Ed.), The Medium in the Video Game [versão Kindle]. Austin: University of Texas Press. Retirado de Amazon.com Wolf, M. J. (2011). Theorizing Navigable Space in Video Games. In S. Günzel, M. Liebe, & D. Mersch (Ed.), Digarec Keynote-‐Lectures 2009/10 (pp. 18-‐49). Potsdam: Potsdam University Press. Zangalo, N. (2009). Emoções Interactivas. Do cinema para os videojogos. Coimbra: Grácio Editor. Fontes Cinem atográficas e de Anim ação (Filmes): Cobb, M. (Produtor), Osborne, M., & Stevenson, J. (Realizadores) (2008). Panda do Kung-‐Fu [Filme]. E.U.A.: DreamWorks Animation. Cunningham, C. & Jackson P. (Produtores), Blomkamp, N. (Realizador) (2009). District 9 [Filme]. E.U.A., Nova Zelândia, Canadá & África do Sul: TriStar Pictures. Deeley, M. (Produtor), Scott, R. (Realizador) (1982). Blade Runner [Filme]. E.U.A.: Warner Bros. Kurtz, G. (Produtor), Lucas, G. (Realizador) (1977). Star Wars Episódio IV: Uma Nova Esperança [Filme]. E.U.A.: 20th Century Fox. Lewis, B. (Produtor), Bird, B. (Realizador) (2007). Ratatui [Filme]. E.U.A.: Walt Disney Pictures & Pixar Animation Pictures Logan, J. et al (Produtores), Burton, T. (Realizador) (2007). Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street [Filme]. E.U.A. & Reino Unido: DreamWorks Pictures & Warner Bros. Pictures. Paterson, A. & Tucker, A. (Produtores), Webber, P. (Realizador) (2003). A rapariga do brinco de pérola [Filme]. Reino Unido, Luxemburgo & Holanda: Lions Gate Films. Sarafian, K. (Produtor), Chapman, B., & Andrews, M. (Realizadores) (2012). Brave -‐ Indomável [Filme]. E.U.A.: Walt Disney Pictures & Pixar Animation Pictures. Walsh, F. et al (Produtores), Jackson, P. (Realizador & Produtor) (2001). Irmandade do Anel [Filme]. 163
ESPAÇOS ARQUITECTÓNICOS EM NARRATIVAS INTERACTIVAS E VIRTUAIS – Seu papel, condicionamentos e representação –
Nova Zelândia & E.U.A.: New Line Cinema. Warner, J.L. (Produtor), Cukor, G. (Realizador) (1964). My Fair Lady [Filme]. E.U.A.: Warner Bros. Zaentz, S. (Produtor), Forman, M. (Realizador) (1984). Amadeus [Filme]. E.U.A.: Orion Pictures. Zaentz, S. (Produtor), Forman, M. (Realizador) (2007). Os Fantasmas de Goya [Filme]. E.U.A. & Espanha: Warner Bros. Fontes Cinem áticas Interactivas (Videojogos): Bethesda Games Studios. (2011). The Elder Scroll V: Skyrim [Videojogo]. Bethesda Softworks. BioWare. (2009). Dragon Age: Origins [Videojogo]. Electronic Arts. BioWare. (2011). Dragon Age II [Videojogo]. Electronic Arts. BioWare. (2014). Dragon Age Inquisition [Videojogo]. Electronic Arts. Capcom Production Studio 4. (2005). Resident Evil 4 [Videojogo]. Capcom. CD Projekt RED. (2015). The Witcher 3: Wild Hunt [Videojogo]. CD Projekt RED. Crystal Dynamics. (2013). Tomb Raider [Videojogo]. Square Enix. Infinity Ward. (2007). Call of Duty 4: Modern Warfare [Videojogo]. Activision. Irrational Games. (2007). Bioshock [Videojogo]. 2K Games & Feral Interactive. Irrational Games. (2013). Bioshock Infinite [Videojogo]. 2K Games. Naughty Dog (2013). The Last of Us [Videojogo]. Sony Computer Entertainment. Rocksteady Studios. (2009). Batman: Arkham Asylum [Videojogo]. Eidos Interactive & Warner Bros. Interactive Entertainment Square Enix. (1997). Final Fantasy VII [Videojogo]. Square Co. Ubisoft. (2009). Assassin's Creed II. [Videojogo]. Ubisoft Montreal. Ubisoft Montreal. (2010). Prince of Persia: The Forgotten Sands [Videojogo]. Ubisoft. Total de palavras: 48 124 164
Lihat lebih banyak...
Comentários