Especialistas ou salteadores de vozes.

July 17, 2017 | Autor: Celeste Fortes | Categoria: Women and Gender Studies
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Especialistas ou salteadoras de vozes? A difícil relação entre investigadores e grupos investigados: o caso dos estudos de género em Cabo Verde. Prof. Doutora Celeste Fortes Uni-CV/DCSH-SV [email protected].

Agenda endógena de pesquisa em género: work in progress e os seus equívocos. Conforme tenho vindo a apontar,1 o género tornou-se um dos campos privilegiados da agenda endógena de pesquisa2, sobretudo nas ciências sociais. A participação deste campo de pesquisa, com contribuições de investigadores nacionais e estrangeiro, que elegem Cabo Verde como terreno de pesquisa, desdobra-se em várias abordagens, mas direccionada por temáticas facilmente identificáveis3. O percurso desta agenda levanta várias questões, que devem ser problematizadas, a fim de que esta se policie contra o seu próprio percurso e para que possa evitar alguns equívocos e ansiedades próprias de uma agenda jovem, ainda em work in progress. Este ensaio pretende problematizar algumas destas questões. A primeira questão é a da produção do equívoco - muitas vezes a montante e outras vezes a jusante - de que trabalhar sobre as dinâmicas de género, em Cabo Verde, significa trabalhar, enquanto mulher investigadora, com e sobre as mulheres. Não será exagerado afirmar que nesse contexto particular de pesquisa, existe um processo de construção de afinidades identitárias, entre quem investiga e quem é alvo das investigações. Aformalam alguns traços de identificação que tendem a mostrar que são as mulheres que investigam as mulheres. Mas, este processo de identificação é generalista, usando apenas a categoria do género – muitas vezes sem ser reflectida - como o único princípio organizador das relações de interacção, que decorrem na investigação. 1

FORTES, Celeste. 2013. “Estudo para não ter a mesma vida da minha mãe”. Relações de Género e de Poder: narrativas e práticas de “mulheres cabo-verdianas”, em Portugal e Cabo Verde. Tese de Doutoramento, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. 2 VARELA, Odair. 2009. O repto da ‘diversidade de conhecimento’ em Cabo Verde: do colinial/moderno ao moderno/pós-colonial», e-cadernos CES, CES; FEUC. 3 Por exemplo, Violência Baseada no Género, Migração Feminina, Dinâmicas familiares a partir do lugar das mulheres na vida das famílias, Pobreza Feminina, mundo rural e as mulheres, participação política das mulheres, entre outros.

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A eleição da(s) mulher(es) cabo-verdiana(s) como alvo de investigação remetenos, para lá deste equivoco primário, para a necessidade de problematização sobre uma segunda questão. Embora não se deva perder de vista que estamos a falar de uma agenda jovem e correndo o risco de estas provocações serem entendidas como um acto de investida contra algo que ainda não reuniu todas as condições para se consolidar, a minha experiência de pesquisa leva-me a considerar que é tempo de aceitarmos a hipótese de que a eleição das mulheres provoca o epistemicídio do outro4. E podemos – em razão de não haver espaço para uma listagem ampla de outros Outros – tomar o homem cabo-verdiano como a vítima, principal, deste epistemícidio. Este Outro ocupa um lugar ambíguo na maioria das pesquisas sobre as dinâmicas de género em Cabo Verde. Muitas vezes presente-ausente das pesquisas, porque quando aparece é um personagem evocado a partir de vozes femininas. Daí podermos observar que há a partir desta Outridade opositiva5, dos homens, uma dupla visão singularizante sobre as dinâmicas de género em Cabo Verde. A de que as relações de género são configuradas a partir da guerra de sexo entre homens e mulheres. Isto é, ainda mantem-se a valorização da perspectiva binária das relações de género, que interliga, sem problematizar, o processo de construção das pertenças de género a partir da ideia de que as mulheres constroem a sua identidade em permanente conflito com os homens. A outra singularização, que também tido sido alvo de críticas, nas minhas pesquisas, tem a ver com o facto de que esta perspectiva binária cria dois grupos essencializados e homogeneizados, sempre em oposição. O grupo das mulheres, definidas identitariamente, sobretudo pelo feminismo vitimário6, a partir da condição de vítimas de um quadro sociocultural machista e androcêntrica que as aprisiona. E os homens tidos como machistas, poligâmicos, infiéis e ausentes nas suas responsabilidades paternais, por exemplo. 4

CUNHA, Teresa. 2014. Never Trust Sindarela. Feminismos, Pós-colonialismo, Moçambique e TimorLeste. Coimbra: Edições Almedina. A ideia de epistemícidio tem a ver, no geral, com o facto de se provocar a invisibilidade e o silenciamento de outras vozes, numa espécie de homicídio simbólico, deixando de estar presente, durante uma pesquisa que dá primazia apenas a uma voz. 5 Um Outro sempre visto na sua condição de oposição. 6 LIPOVETSKY, Gilles. 1997. A Terceira Mulher. Permanência e Revolução no Feminino. Lisboa: Instituto Piaget.

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Etnografia para a pluralização de vozes: contributos contra-hegemónicos. Por conseguinte, deve-se destacar o papel da etnografia, no campo das ciências sociais e particularmente da antropologia, como prática de desconstrução do projecto universalista da comprovação da dominação masculina sobre as mulheres. Com efeito, algumas investigadoras7 defendem – no caso das mulheres – que existe a criação da categoria mulher que se caracteriza por ser anti-histórica e universal. Isto quer dizer que esta perspectiva categorizante considera todas as mulheres, como fazendo parte de uma mesma unidade, que tem na dominação o denominador comum e irmãs da mesma luta. Para estas investigadoras – posição que partilho para o caso da agenda de pesquisa em Cabo Verde – esta é uma estratégia falaciosa. Estas investigações defendem, no geral, que a estratégia metodológica tem de ser a de analisar as mulheres enquanto produtos de contextos socioeconómicos e políticos locais, particulares e históricos. De que é necessário analisar as experiências biográficas das mulheres, em diálogo com outras determinantes identitárias, como sejam as pertenças de classe, étnicas, religiosas, capacidade de mobilidade geográfica e social, etc. Neste sentido, estas investigadoras posicionam-se contra a ideia da confirmação, quase que apriorista, da universalidade da dominação. Com efeito, esta proposta de pesquisa, critica a perspectiva singular de definição de ser-se mulher ou ser-se homem porquanto deixa de fora a possibilidade de se considerar que as relações de género podem ser configuradas a partir de relações intra-sexuais8 Mulher/Mulher, Homem/Homem - tendo outros organizadores, como por exemplo as reciprocidades e alianças, femininas e masculinas.

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Ver, por exemplo: MOHANTY, C., 2008, “Bajo los ojos de Occidente: academia feminista y discursoscoloniales”, en Suárez Navaz, L. e Castillo, R. (eds.) Descolonizando el feminismo:Teorías y prácticas desde los márgenes. Madrid, Cátedra, pp. 117-163. BIDASECA, K., 2010, Perturbando el texto colonial. Los Estudios (Pos) coloniales en América Latina. Buenos Aires: Editorial SB. 8 STRATHERN, Marilyn., 2006 [1988]. O Género da Dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas: Editora UNICAMP. A minha pesquisa com mulheres caboverdianas, em Cabo Verde e Portugal, privilegia a relação intra-sexual, entre mulheres mães e mulheres filhas, que reciprocamente contribuem para trajectórias diferenciadas de fazerem-se enquanto mulheres cabo-verdianas.

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Adoptar esta possibilidade - que não excluir a existência de conflitos mas apenas retira-lhe a centralidade na dinâmica relacional – abre caminho para que a agenda de pesquisa se liberte deste fetichismo binário. No caso das pesquisas em Cabo Verde permite questionar a categoria de mulher cabo-verdiana e de homem cabo-verdiano e o determinismo social e cultural que muitas vezes tem sido usado para os definir. A pluralização identitária permitenos, por um lado, ver que não existe a mulher cabo-verdiana e o homem caboverdiano, mas que são plurais, em resultado das múltiplas trajectórias performativas, que engendram. Por outro lado, permite que a agenda endógena de pesquisa participe numa agenda internacional, nascida no Sul da geopolítica do conhecimento, que tem criticado esta produção de categorias universalizantes, estanques e redutoras. Em concreto, podemos, a partir de Cabo Verde, contribuir para estas propostas de rupturas metodológicas e epistemológicas com o feminismo hegemónico ocidental e para a consolidação de uma epistemologia feminista ao sul. Conforme se pode constatar, temos duas correntes distintas, mas que em algumas ocasiões se cruzam: uma homogeneização da categoria mulher, isto é, as mulheres são, independentemente do contexto de vida, um grupo uniforme e oprimidas, e por outro lado, as mulheres podem ser agrupadas em dois subgrupos, mulheres do primeiro mundo e mulheres do terceiro mundo. Assim, a proposta que vem do feminismo do Sul, crítica as limitações das representações binárias e tem como tarefa primordial, o estudo das mulheres ao Sul, enfatizando as suas concepções contextuais e situacionais de ser mulher, dentro do contexto político, social e cultural local. Atribuindo, deste modo, grande centralidade aos contextos sócio históricos, para a construção das experiências subjectivas de ser mulher. Por fim, esta contra corrente epistemológica mostra-nos que o género não tem poder absoluto de organizador de irmandades e parcerias universalistas ahistóricas.

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Resgate das vozes femininas e o processo de construção do investigador especialista. Outra questão – que me ocupará nas próximas páginas – é a das intenções subjacentes à escolha do género, mais em concreto das mulheres, como campo de construção da identidade do investigador, em Cabo Verde. Desde logo, é importante não perder de vista que entre o sujeito que investiga e o grupo escolhido como interlocutor - na procura de respostas levantadas no projecto de pesquisa – as relações são fortemente marcadas por lógicas de poder. Como defende Bourdieu9 é necessário ter em consideração que o pedido para a colaboração na investigação, geralmente parte do investigador que tem já os seus interesses, objectivos e métodos previamente estabelecidos e, por conseguinte, ele dirige o jogo, sabendo que terá de ganhar. Acrescenta Bourdieu que esta relação assimétrica é cada vez mais evidente e profunda nos contextos relacionais em que o investigador possui maiores capitais culturais, intelectuais, sociais, etc., do que aqueles que o investigado possui. O autor prossegue e defende que uma das diferenças visíveis, nessa relação social, ocorre no mercado dos bens linguísticos e simbólicos, significando que a interacção se dá num contexto de manejos dos capitais linguísticos, por parte do entrevistador e entrevistados. Partindo desta contribuição de Bourdieu, importa perguntar: O que significa trabalhar com as temáticas de género em Cabo Verde? O empreendimento que - conforme anteriormente frisei – materializou, a partir de várias investigações, uma agenda de pesquisa em género, resgatou algumas vozes femininas, mas o que significa dar voz às mulheres? Já vimos que do lado dos investigados, o homem é, constantemente, vítima de silenciamento, desta outra agenda. Mas, e do lado daqueles que investigam, quais são os objectivos desta opção metodológica e epistemológica? Um dos propósitos assumido, pela agenda de pesquisa, é a de dar visibilidade às mulheres, enquanto intérpretes da sociocultura cabo-verdiana, deixando de estar 9

BOURDIEU, Pierre. 2007 [1993]. A Miséria do Mundo. Petrópolis/RJ: Vozes.

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na condição de sujeitos sem voz. Trata-se de considerar, por um lado, que o estudo da sociedade cabo-verdiana, similar a outros contextos, por muito tempo não considerou a ideia de que homens e mulheres participam e interpretam os seus contextos sociais e culturais de diferentes formas, em resultado das suas pertenças de género, diferenciados. E que, por outro lado, os homens foram privilegiados, enquanto únicas vozes escutadas e consideradas com competências para a interpretação da sociocultura cabo-verdiana. Isto é, falar com os homens significaria falar com o representante do colectivo, que fala em nome de todos. Mas, devemos estar conscientes das implicações desta participação epistemológica. Na investigação em Cabo Verde - e no caso particular das dinâmicas de género - creio que o que é mais visível são as dificuldades de libertação de exigências e necessidades impostas pelos organismos nacionais e internacionais de cooperação e de financiamento. Nessa medida, os investigadores são constantemente cortejados enquanto especialistas, para participarem em projectos que deixam uma zona dúbia; se se tratam de projectos de investigação, investigação acção ou investigação acçãoparticipativa ou projectos de implementação de políticas públicas, com vista a atingir as exigências de organismos que financiam o desenvolvimento do país. A existência destas zonas dúbias remete-nos para a necessidade de dialogarmos com outros investigadores. Na geografia política do conhecimento, Spivak10 – que centra toda a sua produção crítica à volta dos efeitos que a produção do conhecimento moderno (Ciência moderna) teve sobre a subalternização do Outro e do conhecimento que é produzido fora desse espaço hegemónico – pergunta Pode o Subalterno Falar? Argumentando que o trabalho dos cientistas sociais, particularmente aqueles que trabalham com as questões de género, tem como tarefa principal o resgate da voz dos subalternos, nesse caso das mulheres. E, como fica claro pela definição de Spivak, o conceito de subalterno é um conceito político que politiza o investigador perante aqueles que investiga e perante outros Outros, que fazem parte de todo o percurso da 10

SPIVAK, Gayatri. 1988. Can the Subaltern Speak?. In N. Cary; L. Grossberg (eds) Marxism and the Interpretation of Culture. Chicago. University of Illinois Press, p.271-313.

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investigação - autoridades, governos, instituições sociais, os outros que ficaram de fora, como sejam os homens que foram indirectamente referenciados e por conseguinte directamente ausentados. A pergunta coloca a nu as (im) possibilidades que o subalterno tem de falar, já que não lhe é permitido falar. Existe, segundo Spivak, uma violência epistémica que transforma o sujeito colonial num Outro. Para Spivak, a referência central de subalternidade são as mulheres, e desdobra a sua questão numa outra: Pode a mulher subalterna falar? Podemos considerar que elas têm falado, a partir da voz dos investigadores. Com efeito, no caso da investigação sobre as mulheres em Cabo Verde, deve-se acrescentar à questão da Spivak, uma outra questão, deixada a partir da provocação de Cunha: sabem as ciências sociais (em Cabo Verde) escutar? Creio que as respostas estão intimamente interligadas ao projecto profissional e pessoal dos fazedores da ciência e à sua agenda político-científico. Isto é, a tarefa crítica que deve ser empreendida deve ser a de analisar as intenções e os interesses dessa agenda de investigação, procurando salientar se se trata de um resgate da voz para retirarem as mulheres dessa condição de subalternidade ou se se trata de um posicionamento enquanto porta-voz que no limite não revela o desejo, guardado a sete chaves, de que as mulheres se mantenham nessa condição de subalternidade. Na esteira das propostas das investigadoras, chamadas para este diálogo, devemos considerar a possibilidade de estarmos, em Cabo Verde, a criar uma arena de produção onde as mulheres cabo-verdianas surgem como um grupo socioantropologicamente homogéneo e que remete para a sua caracterização binária, enquanto vítimas ou “heroínas. Mulheres presas a uma teia de violências materiais e simbólica e que torna outras mulheres especialistas e resgatadoras da “mulher cabo-verdiana”. Se as nossas investigações forem de facto usadas11 para alteração de quadros sociais, económicos e políticos de desigualdades (de género, por exemplo), isto é, se o investigador for escutado, quem serão os nossos, próximos, subalternos? 11

Com todos os perigos inerentes ao uso estratégico do conhecimento.

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Creio que, por enquanto, a resposta que pode satisfazer é a de que temos de considerar que a condição de subalternidade é criada, também, pelos investigadores. Estes podem deixar de subalternizar a um nível, mas continuam a outros níveis, para colocar o subalterno sempre no lugar de subalterno, enquanto óptimos objectos de estudo e excelentes instrumentos para a consolidação do projecto de se tornar especialista. Assim, na esteira destes diálogos, deixo uma última pergunta, para este debate, necessário e urgente: serão os investigadores especialistas ou especialistas salteadores de vozes?

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