Espetáculo, religião e consumo: Passagens e tensões na hipermodernidade (capítulo de livro)

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Espetáculo, religião e consumo: Passagens e tensões na hipermodernidade

(Capítulo de livro: SILVA, Alberto Moreira da; LEMOS, Carolina Teles; QUADROS, Eduardo Gusmão (orgs.). A Religião entre o espetáculo e a intimidade. Goiânia: Editora da PUC-Goiás, 2014, p. 219-224).

Emerson Sena da Silveira1

Entre o século XIX e meados do século XX, emergiu uma modernidade sólida, industrial e com classes sociais marcadas pela ânsia, pela produtividade e pelo controle laboral. A solidez das instituições era celebrada com imagens fortes, estáticas e monumentais: Igreja, Estado, Família, Escola, Exército. Por outro lado, paralelamente (em superposição, justaposição e, também, em intercambiamento) aos processos populares de vivência religiosa, consolidou-se uma religião institucional, clerical, preocupada com a moralidade e com um modelo familiar mono-heteropatriarcal. Subalternização e violência contra as camadas sociais não abastadas, mulheres, minorias étnicas, religiões e outros fenômenos marcaram essa época, cujas cicatrizes ainda estão abertas. Pouco a pouco, processos econômicos, sociais e culturais (globalização financeira e cultural) começaram a liquefazer essa modernidade sólida, a indústria cultural disseminou-se, os meios de comunicação e transporte desenvolveram-se. Novas teologias renasceram, bem como heresias antigas e atuais confirmaram a universalização do imperativo da escolha. Em contrapartida, o velho e o novo convivem e intercambiam-se na hipermodernidade. As mídias de massa e eletrônicas, as tecnologias/biotecnologias de produção, o controle, consumo, as reengenharias sociais e as mudanças de etos tecem nas histórias das sociedades, na passagem do século XX ao XXI, mais uma vez, uma rede de afinidades eletivas com as mudanças socioeconômicas que impulsionam tendências e reestruturam o viver, o crer e o pertencer, tanto em termos religiosos quanto culturais. Não se deve supor, entretanto, que religião e espetáculo, de um lado, mercado e consumo, de outro, sempre foram campos impermeáveis à influência mútua. Durante os pomposos autos de fé (a Inquisição era cruel, teatral e espetacular) das feiras, nas aldeias e cidades medievais, por exemplo, camponeses e citadinos compravam e consumiam, enquanto queimavam-se hereges e bruxas. Nos

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Antropólogo, mestre e Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). PósDoutorado em Antropologia. Professor Adjunto do Departamento e Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião-UFJF.

grandes deslocamentos de peregrinos entre os santuários católicos, movimentavam-se corpos, ideias, crenças e pertenças por toda orbe medieval cristã: um mundo hierárquico, com muitas diferenças e imaginários, mas impregnado de religião, heresias, fogueiras, castelos e ermidas, heranças religiosas não cristãs, teologias e exércitos. Os mercados e os consumos, no entanto, eram regidos por outras lógicas culturais (familiares, comunitárias e étnicas), englobadas por arquiteturas institucionais religiosas, condutores de outras imaginações sociais. Com a emergência da Reforma Protestante e do modo de produção capitalista, foram promovidas importantes rupturas, constituindo uma porta de passagem para novas modernidades. Desta forma, iniciaram-se os processos de construção da modernidade moderna que, posteriormente, foram precipitados por amplos movimentos socioculturais, como o Iluminismo e as Revoluções (Francesa e Americana). A partir daí, as tramas do mundo moderno entrelaçaram fortemente imagem, consumo e espetáculo na vida de homens, mulheres e comunidades religiosas e não religiosas, de forma que, nesse denso e forte entrelace, as imagens pululam de forma agonística, aparentemente caótica, aproximando e afastando ideias, valores, imaginários, pessoas e grupos. À semelhança de um caleidoscópio, personalidades e lideranças religiosas, por meio do consumo e do espetáculo, têm suas imagens elaboradas, destruídas, construídas, metamorfoseadas de múltiplas maneiras. Desencaixadas de seu lócus de origem e circulando por meio do consumo de bens simbólico-materiais, as representações imagísticas são catapultadas pelas mídias de massa e eletrônicas, em um processo de convergência com novas plataformas físicas (celulares, ipads, iphones), potencializando o circuito do consumo e afetando fortemente a maneira como se concebe o religioso, a experiência do sagrado e as religiões. Essas interações acontecem ao sabor de políticas de identidade religiosa, estruturadas em torno da busca por segurança ontológica ou por liberdade utópica. É na hipermodernidade2, entendida como aceleração da modernidade capitalista em suas dinâmicas e contradições internas, que a religião interage com o consumo e o espetáculo, dilacerada entre a autonomia e a heteronomia, o endurecimento e a liquefação, as reiterações e as invenções. Nesse contexto, as tradições religiosas têm suas representações simbólicas igualmente dispersas e reagrupadas sob variadas lógicas midiático-consumeristas. Nesse fluxo, o cristianismo, por exemplo, interage com a mídia, lançando padres, pastores e cantores no mercado, criando empresas especializadas na produção de festivais, que reúnem centenas de milhares de pessoas em várias cidades do Brasil, sob o patrocínio de grandes empresas-marcas, como a Coca-Cola, Claro e Rede Globo (Festival Promessas, Hallel e centenas de outros festivais e festas locais e regionais).

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Para o conceito de hipermoderno, ver Lipovetsky (2005).

Atrelado a todo esse mercado cultural gospel, centenas de objetos, serviços e produtos são lançados e consumidos, misturando as fronteiras entre as dimensões deste e do outro mundo, do transcendente e do imanente. Assim, num fluxo de técnicas, categorias e conceitos que migram do mundo do marketing e do consumo para o mundo religioso, ideias e valores religiosos espalham-se no mundo das mídias e da esfera pública, pautando, contraditoriamente, agendas conservadoras e não conservadoras, de modo que, em ambos os processos, ocorrem mudanças de sentido e de significado entre as categorias “nativas” da religião e os conceitos das esferas empresariais e mercadológicas. Esse paroxismo aponta para os claros limites de perspectivas teóricas que enfatizam o poder manipulatório das propagandas e do aparato institucional e midiático que sustenta o consumo, de forma que os processos de apropriação dos produtos, objetos, serviços e bens simbólicos são multivocais e polissêmicos, envolvendo tanto a racionalidade instrumental quanto a emoção e os afetos (CAMPBELL, 2001). Baseadas na teoria da utilidade marginal e na teoria crítica da Escola de Frankfurt, as ideias econômicas e sociológicas sobre consumo, espetáculo e mídias, simultaneamente, acentuam a racionalidade instrumental (ou, ainda, fetichismo da mercadoria e outros) e atenuam a produção de sentido e a razão simbólica inscritas nos processos midiático-consumeristas. Esses processos, por sua vez, envolvem uma teia de agentes coletivos e individuais, mediadores de relações (arranjos familiares, grupais religiosos e outros) e difratores/dispersores (marcadores sociais, de gênero, psicossociais e outros). Deve-se enfatizar que, ao se mover no tempo e no espaço, essa teia é submetida a arranjos que sofrem concomitantes influências locais e globais. O quadro teórico tradicional (o consumo e o espetáculo como alienação e perda de autonomia, regido por lógicas neoliberais de mercado) tende a ser assumido nas ciências da religião quando se analisam as muitas relações entre consumo, religião e mídia, ora enfatizando os efeitos de emulação (esforço competitivo por status social) entre as igrejas (e outras agências religiosas) e os indivíduos, ora acentuando os efeitos de mimese e imitação presentes nos processos de consumo de bens e serviços religiosos e não religiosos. Às vezes, esse quadro teórico vem acrescido de uma avaliação moralista, não raro condenatória, em relação aos processos simbólicos midiáticoconsumeristas que, cada vez mais, influenciam as identidades religiosas, coletivas e individuais. Nesse sentido, em meio às distorções geradas pelos processos midiático-consumeristas, posturas intelectuais pouco compreensivas não contribuem para uma reflexão criativa sobre as relações entre consumo, religião e mídia. As desigualdades sociais e os problemas ambientais, concomitantes ou mesmo embutidos no mundo do espetáculo e do consumo, somados à produção do descarte como engrenagem de uma

vida para o consumo3, são problemas que podem ser abordados sob a ótica da “pura racionalidade” dominadora do capital financeiro, sem, contudo, dispensar a compreensiva luz das razões simbólicas que permeiam a vida humana nas sociedades ocidentais. Na mesma trama social coexistem, por um lado, a descartabilidade ampla de bens e pessoas, os desequilíbrios socioambientais, as ideologias econômicas restritivas e, por outro, as buscas criativas de novos padrões de consumo, as lutas socioambientais e as mobilizações contra políticas sociais e econômicas restritivas e em apoio às redistributivas. Imersos nessa mesma trama, estão os sentidos sagrados, os vaivéns dos agentes religiosos coletivos e individuais. Esse contexto evidencia importantes questões, entre as quais, os sentidos do religioso e da religião na sociedade do consumo e do espetáculo, de forma que são levantadas, por hora, duas hipóteses sobre a relação consumo, mídia e religião na hipermodernidade. A primeira é a dispersão do significado do religioso no fluxo midiático-consumerista (efeitos de heterogeneidade e diferença) e as buscas de controle e de homogeneização do crer e do pertencer religiosos (efeito de homogeneidade e semelhança) por parte das instâncias institucionalizadas (igrejas e outras agências). Resulta disso uma forte tensão entre a busca individual-coletiva pelo engajamento nas esferas da modernidade (sexo, arte, música, política e outras) e a vivência das verdades da fé, que exige total ou parcial engajamento dos indivíduos em “totalidades” (reais ou imaginárias). Parece haver uma intensificação da opção pessoal e individual, reflexiva e também performática no seio das experiências de fé entre diversas famílias religiosas. A segunda hipótese é o uso da tradição, com seu deslizamento rumo ao espetáculo midiático-consumerista como “fator de agregação” ou como uma das possibilidades de as vivências religiosas se contraporem à “agonia da escolha” (o “oceano de promessas e possibilidades” da vida para o consumo), aberta pela pluralização de estilos, instrumentos e valores no mundo hipermoderno. Neste sentido, seria uma forma de oferecer “segurança ontológica”, isto é, uma espécie de promessa de estabilidade no giro incessante das configurações identitárias hipermodernas (LIPOVETSKY, 2005). Os fluxos midiático-consumeristas repõem a questão do consumo mais como produção de identidade do que como competição ou distinção por status social. Em contrapartida, como se pode depreender de algumas análises socioteológicas, embora o consumo moderno e as mídias, tanto quanto a religião e seus agentes, prometam paraísos, não podem ser vistos como dimensões sinônimas. Dessa forma, optou-se pelo conceito de espaço de fluxos para analisar as transformações ocorridas nas variadas esferas sociais, por meio da expansão de novas redes sociotécnicas (internet, novos meios de comunicação), usadas pelos e nos movimentos religiosos. Esses fluxos, segundo Castells (2005, p. 501), “não representam apenas um elemento da organização social, são 3

A esse respeito, o livro de Bauman (2008) é extremamente pessimista.

expressões dos processos que dominam nossa vida econômica, política e simbólica”, de modo que “nenhum lugar existe por si mesmo, já que as posições são definidas pelos intercâmbios de fluxos da rede”, ou seja, a pretensa rigidez do dogma (ou, ainda, a ancestralidade da tradição e a autoevidência da moral conservadora) não existe como um lugar pronto, dado, fixo ou definitivo. Emerge, então, o espaço de fluxos, cujos discursos e práticas, com eficácia “doxológica”, constituem uma trama mítica (escrituras sagradas) e performática (exercício teatral dos gestos e dons extraordinários). Continuamente atravessado por fluxos de tecnologia, sons, imagens, símbolos, informações, interação organizacional e capital (financeiro e sociocultural), o espaço de fluxos organiza a temporalidade e se opõe, dialeticamente, à experiência cotidiana dos espaços de lugares, nos quais a estrutura “física” (organizações, dogmas, doxas etc.) surge como nódulos de uma malha. Atravessando esses nódulos, esses fluxos definem relações de afinidade e de afastamento, entre as religiões e outras dimensões sociais (terapia, música, política, arte etc.), provocando a expansão e a circulação de novas técnicas e linguagens nos mais diversos cenários religiosos. Diante desse contexto, pode-se dizer que a relação entre as religiões, a sociedade brasileira, as mídias e o consumo desdobra-se em dois espaços-fluxos. O primeiro, espaço-fluxo “gramatical”, vale-se do formato das novas linguagens (mídia e internet), considerando importante ensinar a doutrina, socializar os membros na visão de mundo dos movimentos e instituições religiosas. Nesse espaço-fluxo, a doxa e o dogma são constituídos a partir da tensão entre o conteúdo teológico e os conteúdos de outras dimensões da vida social. Exemplos dos pontos de emersão dessas redes são as comunidades de vida, os movimentos como a Toca de Assis e o Projeto Universidades Renovadas, entre outros, nos quais as práticas de consumo, referindo-se à afirmação da identidade, são “sólido-modernas”. O segundo é o espaço-fluxo vivencial-espetacular, em que performance e espetáculo abarcam manifestações festivas (cristotecas e outros), exercícios dos dons carismáticos nos grupos religiosos (glossolalia, cura e outros), “novas comunidades”, bandas católico-carismáticas, “ministérios de música” (grupos de músicos religiosos), padres-cantores/apresentadores evangélicos. Atravessados pelo fluxo midiático-consumerista, numa linguagem-rede na qual e pela qual os movimentos religiosos ganham visibilidade pública e disputam espaço com outras manifestações não religiosas, esses espaços, embora identificáveis, são nódulos de uma rede de intercomunicações e tráfego de pessoas e ideias, constituindo uma ponte de encontro da “rede” e por onde os demais “espaços-fluxos” transitam. Nesses espaços-fluxos, são identificadas, pelo menos, três dimensões: a material (os meios concretos das telecomunicações ou o suporte físico, como as câmeras, os prédios); as emersões em

rede (nós ou centros, tais como as instituições, locais ou agências de serviço religioso); a terceira, e não menos importante, os códigos e as linguagens usados para a interconexão entre os nós e o trânsito de pessoas, corpos e saberes. Não se pode ignorar o fato de que está distante a época em que as identidades se definiam por essências “duras” e que, atualmente, elas se constroem também no consumo: depende do que se possuem ou do que podem chegar a possuir. Objetos como livros, vestuários e artefatos associados às religiosidades marcam, de fato, outro modo pelo qual a cultura de consumo se reapropria da simbologia religiosa e outro meio pelo qual esta simbologia se manifesta. Imagens e símbolos associados às religiosidades passam, então, a irromper de dentro da própria hipermodernidade, ou seja, a religião assume modos de ser concebida como hipermoderna, particularmente a partir de dois elementos: decisão e escolha pessoais, bem como marketing aplicado ao conteúdo religioso de igrejas e de credos. Em contrapartida, a dimensão do consumo moderno pode ser vista não apenas como impulso de insatisfação, simulacro do desejo, mas como importante elemento da reflexividade: uma forma de autoconstrução, em que o risco está embutido num jogo em que a identidade se torna fluxo, e não uma longa e dura parada obrigatória. Compra-se também para afirmar adesão simbólica, produzindo identificação. Dessa maneira, o ato de comprar é mais do que o que se compra. No argumento pessimista, o consumismo moderno não gera a reflexividade, mas o “fetichismo da subjetividade”, ou seja, na sociedade de consumidores, ninguém pode tornar-se sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar, de maneira perpétua, as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável (BAUMAN, 2008, p. 21). Segundo essa visão, ocorre profunda perda de sentido da permanência dos direitos sociais e da cidadania, da justiça social e dos laços cooperativos. Todavia, essa visão “pessimista” é criticada porque carrega o ato de consumir com um valor moral em degradação: “as associações evocadas pelo consumo são sempre as mais negativas. [...] do consumo derivam termos, como consumista, consumismo etc., que são estratégias de acusação ou de autoflagelação” (BARBOSA E CAMPBELL, 2006, p. 40). Segundo essa visão pessimista, o consumo não é entrecruzamento de questões políticas, sociais e simbólicas, cujos atores e sistemas envolvidos refletem e interagem entre si, demarcando fronteiras e servindo de índice de produção de identidades. Num mundo hipermoderno, reflexivo e psicodélico, o fluxo de consumo carrega reflexividade e obriga a tradição religiosa a buscar justificativas para sua existência, sua atuação e sua função, implicando, para tanto, um tenso diálogo entre as diversas esferas de valor constituintes do mundo moderno e a sua hipermodernidade: arte, comunicação, mídias, legislações.

Por outro lado, para captar a intensidade das linguagens e dos fluxos midiáticoconsumeristas ante os religiosos e as religiões, é preciso compreender as margens da vida social, os abalos e os conflitos produzidos na construção social da pertença e da crença religiosa. A partir dessa compreensão, é possível pensar no enrijecimento institucional que, ao contrário de ossificar a estrutura, pode também pluralizar a oferta de comunidades religiosas (evangélicas, católicas e outras), promovendo diversas possibilidades de ser religioso, dentro e fora, criando novas linhas e perspectivas de adesão. Nesse contexto, além de proliferarem igrejas autônomas, grupos de oração em domicílio, movimentos e eventos ligados a um sem número de pequenas fenomenologias religiosas, diversificaram-se retóricas (bem-estar, prosperidade, libertação do demônio, cura física e interior, entre outros), aumentaram dissidências e introduziram-se práticas heterodoxas (orar no monte, experiências de dançar no espírito, demônios intergeracionais, cristotecas etc.). Talvez seja possível afirmar que, se na moralidade e na doutrina, os fluxos midiáticosconsumeristas entre os católico-carismáticos e evangélicos pentecostais, por exemplo, tendem ao conservadorismo, na performance e no estilo de apresentar, tendem às combinações heréticas hipermodernas. Assim, afirmam, por um lado, um processo de identificação à deriva, e, por outro, um processo marcado pela busca de autenticidade e segurança. Característica de um estado liminar, a subjetividade surge, nesse contexto, como efeito de espelho mágico: tempo e espaço propícios a associações lúdicas, figuras alteradas e objetos de intensas polêmicas. Tensões suprimidas vêm à tona. Emergem estratos e sedimentações profundas. Eis a questão: em que medida a normalização institucional da memória coletiva poderá funcionar numa sociedade em que a aceleração das mudanças abala a totalidade social da consciência de uma tradição religiosa? O tempo todo, a cultura midiático-consumerista esfacela essa busca de totalidade, sendo sua reconstrução um longo trabalho condenado a nunca terminar. Isso torna a estratégia de normalização institucional um verdadeiro jogo, cujos riscos não são desprezíveis na medida em que há possibilidade concreta de aumento das linhas de fuga, ou seja, de comportamentos que podem desdobrar-se como ondas: além de fugirem ao controle semântico e político, podem trazer mais impactos. Estes, por sua vez, podem aumentar a frequência dessas ondas, e estas, mais comportamentos híbridos, num processo em espiral, cujo término é imprevisível. Nesse sentido, os contrabandos entre as fronteiras tornaram-se predominantes, levando à reconfiguração da topografia dos valores, das regras e dos códigos semânticos. Frente a esses fenômenos de transbordamento fronteiriço e às múltiplas formas de contenção, há duas formas de realizar a complexa tarefa de compreensão socioantropológica: 1ª) ler esses fenômenos sob a perspectiva epistemológica clássica da modernidade, identificando, nos transbordamentos, invasões

e ultrapassagens indevidas, e, nas contenções, operações de censura, exigindo, portanto, procedimentos de restauração ou diferenciação de territórios, e 2ª) operar uma nova leitura epistemológica, deixando de ver, na ambivalência e na ambiguidade dos transbordamentos e contenções, o defeito de uma operação metodológica incompleta e impura. Vive-se hoje em sociedades, em larga medida, pós-tradicionais, em que o quadro da tradição religiosa desloca-se/desliga-se do contexto social, cultural e político de origem (GIDDENS, 1991). De fato, a tradição está desencaixada e, nesse novo contexto, buscam-se reencaixes, e isso se faz também por meio da capacidade de reflexão, não apenas racional, mas prática e simbólica. Em contraposição, na busca desses reencaixes, o consumo e a imagem desempenham papéis-chave, de forma que os desenhos e contornos das identidades religiosas perdem a precisão estática e evoluem para um jogo complexo entre fechamento-abertura. Em termos comunicacionais, as identidades, inclusive as religiosas, intermonitoram-se e vigiam as respostas e questões que cada uma coloca à outra por meio de suas atividades e existências. Nesse âmbito, é preciso levar em conta a dimensão pragmática dos confrontos cotidianos e das estratégias lançadas para se buscarem respostas e saídas, face o enfrentamento prático da vida no dia a dia. As tradições religiosas, em especial a católica, passadas de geração em geração, e o orgulho de assumi-las como herança, rangem sob o impacto das transformações vividas na sociedade como um todo. As mudanças nos modelos familiares, ou seja, a desterritorialização do afeto, do conjugal, da sexualidade, do parentesco e suas reterritorializações em novos modelos e vivências quebraram a espinha dorsal da socialização primária no catolicismo. Os novos meios de consumo e as mídias em geral tanto influenciaram quanto foram influenciadas por esse jogo entre desterritorialização e reterritorialização. Para Carranza (2011), esse fato mobilizou grande parte da igreja católica e de outras igrejas evangélicas para um projeto identitário tradicionalista que usa os meios de comunicação como estratégia fundamental. Disso emerge uma pergunta crucial: qual a possibilidade e plausibilidade de que, nesse contexto de aceleração da hipermodernidade e desencaixe da tradição, o grupo possa reconhecer-se como pertencente a uma “descendência de fé”, a ser prolongada no futuro? (HERVIEU-LEGER, 1993). Por outro lado, no mundo moderno, a religiosidade exige um processo de estar engendrado, em constante vinculação a grupos, imagens, marcas e estilos, num remanejamento da relação com a tradição, evidenciando processos de invenção, reparos e manipulação dos dispositivos do sentido suscetíveis de “fazer tradição”, dentro de religiões históricas, como o catolicismo. De um lado, as instituições religiosas prescrevem operações de recomposição individual e comunitária, de outro acontece a reapropriação e a ressignificação desses processos por parte das próprias comunidades religiosas e dos fiéis. Entre essas instâncias, a linguagem midiático-

consumerista acelera a dispersão de sentidos, impedindo o controle homogêneo do processo, tanto por parte das igrejas e agências, quanto por parte das comunidades e grupos. Somando-se a isso, as determinações socioculturais próprias a um ou outro contexto particular limitam o universo em cujo interior efetuam-se essas recomposições. Essa reorientação afeta, por meio da instituição da crença, o próprio princípio memorialístico da instituição do religioso. A instituição religiosa, cuja razão de ser é a preservação e a transmissão da memória legítima de uma narrativa sagrada, conseguirá rearticular seu dispositivo de autoridade? Não se deve olvidar que essa tradição é considerada pelos fiéis também como patrimônio ético-cultural, capital de memória e reserva de sinais à disposição do indivíduo. O problema que as religiões como o catolicismo enfrentam é a capacidade dessa herança em orientar comportamentos globais para além dos pequenos e fragmentados territórios sociais e culturais, contextualizados. Por conseguinte, instaura-se uma tensão entre a “memória legítima”, proposta pela instituição, e os fiéis, que demandam uma verdade subjetiva, própria de sua trajetória e crença. Novos elementos de mediação, além dos tradicionais (como a socialização familiar), surgem: as mídias e o consumo. Neste contexto, a igreja católica, assim como outras igrejas e religiões, é afetada diretamente em sua estrutura por dois fenômenos correlatos: a proliferação dos fenômenos neocomunitários e o processo da hiperindividualização da fé. No caso do catolicismo, as estratégias de enfrentamento dessas mudanças têm variado ao longo do tempo, dos papados, dos movimentos e das associações católicas. Dessa forma, as polaridades intensificam-se: de um lado, as perspectivas dos fiéis, que preferem a mensagem à instituição; de outro, os que privilegiam a pertença a uma comunidade ou até mesmo a um conjunto de valores. Neste caso, produzem-se as pertenças transinstitucionais, orientadas religiosamente e sustentadas pelo mundo do consumo e da mídia. Essa tensão, ao invés de produzir as unificações esperadas por hierarquias religiosas, pode acelerar os processos de fragmentação. Nesse sentido, o grande eixo polarizador das atitudes católicas está em torno da moralidade tradicional e do evangelho social: entre as lutas contra o aborto, a eutanásia, a união civil gay e as lutas contra a miséria, a fome, as injustiças sociais e ambientais, os mercados desregulados. O consumo moderno e as mídias de massa e eletrônicas ampliam os embates travados por bispos, associações, padres e leigos dentro desse eixo em torno do qual surgem diversas combinações e os próprios processos da hipermodernidade, hiperindividualistas reflexivos e construtores de novas maneiras de crer e pertencer. Acontece, portanto, uma oscilação nas estratégias identitárias: nos papados de João Paulo II e de Bento XVI, a posição da hierarquia foi selar alianças, à revelia das dioceses e paróquias,

incorporando ao espectro institucional tanto as comunidades carismáticas mais expressivas quanto as associações tradicionalistas e ultratradicionalistas (Neocatecumenato, Arautos do Evangelho, Fraternidade Pio X). A estratégia do Papa Francisco, por sua vez, é enfatizar não só os direitos sociais em diversas vertentes, mas também a crítica à economia financeira moderna. É notável perceber que os gestos de Jorge Bergoglio, divulgados e consumidos à exaustão pelas mídias, introduzem uma pausa na ascensão conservadora, a partir de dentro do sistema midiático-consumista: multiplicam-se com eloquência, são comentadas, desdobradas, amplificadas e colocadas nas redes sociais eletrônicas as imagens de abraços, bênçãos a doentes, missas com destroços de embarcações de imigrantes africanos, entre outros. Destarte, seja como novidade afirmadora da simplicidade evangélica ou como velha continuidade da longa duração católica da doutrina social da igreja, cuja raiz remonta a Patrística, a nova Encíclica, Evangelii Gaudium (Alegria do Evangelho), é debatida à exaustão, vira manchete de grandes jornais, ganha fóruns de teólogos e cientistas da religião. Mas, em pleno século V, João Crisóstemo, um dos maiores oradores da Igreja naquela época, nomeado Patriarca de Constantinopla, em 398, por Arcádio (Imperador do Império Romano do Oriente), dizia: Deus nunca fez uns ricos e outros pobres. Deu a mesma terra para todos. A terra é toda do Senhor e seus frutos devem ser comuns. As palavras ‘meu’ e ‘teu’ são motivo e causa de discórdia. A comunidade dos bens é uma forma de existência mais adequada à natureza que à propriedade privada (Homilia sobre a Primeira Cara de Paulo a Timóteo, capítulo 12, versículo 4). Quando o pobre nos furta, ele comete um ato de justiça, pois veio buscar o que é seu, e que nós, criminosamente, lhe sonegamos (Homilia sobre a Primeira Carta aos Coríntios, capítulo13).

Sua linguagem forte e direta repercute amplamente no mundo globalizado: a primeira encíclica do Papa Francisco, saudada como ruptura com os dois papados anteriores, ou como marxista por conservadores católicos, diz: “Esta economia mata”. Na Exortação Apostólica, Evangelii Gaudium, diz Francisco:

Devemos dizer 'não a uma economia da exclusão e da desigualdade social'. Essa economia mata. Não é possível que a morte de um idoso em situação de rua não seja notícia, enquanto o é a queda de dois pontos na Bolsa. Isso é exclusão. Não se pode tolerar mais que se jogue comida fora, quando há pessoas que passam fome. Isso é desigualdade social. Hoje, tudo entra no jogo da competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais fraco. […] Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controle dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível […]. (Os) interesses do mercado divinizados (são) transformados em regra absoluta. […] (Os) mecanismos do sistema econômico reinante (são) sacralizados.

Em contraposição, o Papa Francisco é a própria mensagem que ele propaga, assim como foi João Paulo II, e assim como são muitos líderes religiosos, tanto em vertentes sectárias não dialogais quanto nas vertentes dialogais e abertas, como Dalai-Lama, líder do budismo tibetano, exilado, cuja imagem circula, à exaustão, nas mídias e nos circuitos de consumo. Assim, camisetas, bonés, chaveiros e outros itens de consumo fazem circular essas mensagens e imagens de forma contínua por diversos segmentos sociais, desde os menos aos mais abastados. Nas redes sociais eletrônicas, por exemplo, imagens e expressões escritas circulam velozmente. Trata-se, portanto, de menos adesões fortes e estabilizadas, centradas na representação de um sujeito racional e unívoco, e de mais fluxos de aderência, às vezes fracos, às vezes fortes, individualizados em alguns segmentos, mediados por representações comunitárias e coletivas, centrados numa representação plurívoca do sujeito – um sujeito plural, flutuando em uma rede de crenças e desejos, alimentada pelas infinitas cascatas do consumo e do espetáculo. Essa situação, que consiste na flutuação dos sinais, deixando que funcione o mais livremente possível o jogo das transações entre as diferentes tendências identitárias em tensão umas com as outras, é propícia, também, à propagação de comportamentos sectários. Por outro lado, para enfrentar o perigo de deslocamento interno e, simultaneamente, defender-se da concorrência externa, nesse regime de disseminação generalizada do religioso, há dois registros que influenciam, particularmente, uma política para evitar conflitos: a mobilização e racionalização cultural do outro. A mobilização cultural permite desdramatizar os conflitos, evidenciando-os como expressão valorizada de uma diversidade de sensibilidades e culturas, de forma que a instituição interpõe-se como mediadora face à cultura hipermoderna. Essa mobilização atravessa os sistemas (religiosos e não religiosos), cruzando atores sociais e tradicionais. Parece ser esta uma das tônicas do pontificado de Francisco. Todavia, nesse contexto de campanhas de mobilização, os sistemas aumentam seus entornos e interstícios, multiplicando as possibilidades de hibridação. Esses sistemas comunicam-se entre si, estabelecendo complexas trocas de sinais e símbolos. Deste modo, os atores estão em rede, e as fronteiras não são marcos permanentes (nem modernos, nem antimodernos), mas construtos estratégicos mobilizados pelos atores em jogo. Trata-se, na verdade, de produzir o efeito de modernidade e o efeito de tradição por meio de mútuas referências acusatórias: as comunidades e instituições religiosas, acusando a modernidade cultural e a sociedade contemporânea de perda de fronteiras e valores, e esta acusando-as de enrijecimento, de projetar a sombra da reconquista teocrática nos espaços públicos. A cada acusação os atores (individuais e coletivos) elaboram certas imagens que, longe de serem essência, traduzem estilos de crenças e pertenças que podem se petrificar ou não.

A despeito disso, essa solidez precisa ser construída no embate e na constante afirmação de princípios imutáveis e atemporais, muitas vezes por meio das mídias e do consumo. Assim, alguns atores constroem, em sua retórica, o atavismo da tradição, desejando traçar um território rígido, antimoderno, tentando recuperar a hegemonia da memória religiosa. Outros, ao misturarem a tradição com os modernos meios de comunicação, incorrem em experiências gnósticas, em que bem-estar individual e autoconhecimento aliam-se às narrativas místicas de iluminação do Espírito Santo (ou outras fontes, dentro ou fora do sujeito) e às revelações de que a tradição e os dogmas salvam do caos.

Hipermodernidade, etos do trabalho, consumo, mídia e religião

Deve-se considerar que há muitos caminhos para se pensar como, no mundo contemporâneo, o consumo e a imagem passaram a impregnar os cotidianos religiosos e as representações sociais do sagrado. Um desses caminhos é tomar os eixos em torno dos quais se estruturaram a rede de afinidades entre condições materiais, sociais e econômicas e as ideias e simbologias religiosas e não religiosas. Entre esses eixos, está o paradigma do trabalho, como etos da Era Moderna (do século XVI ao XX), valor e horizonte ontológico da identidade social de pessoas, grupos, classes e sociedades. O trabalho, como horizonte ético e simbólico, alargou-se e firmou-se nas culturas e sociedades ocidentais, sendo incorporado tanto por burgueses quanto por partidos comunistas, por igrejas protestantes e por Estados ateus. Paul Lafargue, genro de Karl Marx, apontava o trabalho como fundamento moral comum entre capitalistas e comunistas, burgueses e bolcheviques, liberais e conservadores, católicos e progressistas, ricos industriais e paupérrimos proletários. Da Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, aos grandes congressos do Partido Comunista (Stalin, Lenin e Trotsky), a religião do trabalho atravessava universalmente os imaginários sociais, embora com ênfases e diferenças: instrumento de ascese moral (na visão liberal conservadora), direito dos cidadãos e dever dos Estados Nacionais (na visão social-democrata), ou, ainda, uma importante estrutura social aprisionada pelo e no capitalismo (alienação e mais-valia, na visão comunista-marxista). Essa religião ligava-se à estrutura de produção moderna, e o modo de produzir bens e serviços era marcado pela emergência do capitalismo industrial. Contudo, na visão comunista, o trabalho deveria ser desaprisionado, e suas riquezas repartidas entre os indivíduos da última classe social, o sujeito universal redentor: os proletários. Na visão liberal-libertária, o trabalho não passava de mais uma religião normativa, impositiva, tolhendo as criatividades humanas e submetendo tudo e todos a rotinas racionalizadas e mecânicas.

Entre fins do século XIX, o slogan comunista ressoava: “Proletários do mundo todo univos”, anunciado um tempo de organizações sociais e polarizações políticas fortes (liberalismo, anarquismo, comunismo, socialismo e socialdemocracia), bem como reverberações religiosas dentro e fora das instituições religiosas. Em meados do século XX, as antigas lutas sociais, a dura realidade de miséria e exploração nas periferias latino-americanas, bem como o intercâmbio entre teologias e ciências sociais (de vertente crítica e marxista), influenciaram as igrejas, fazendo surgir novas experimentações teológicas e pastorais. Isso culminou com a teologia da libertação e as comunidades eclesiais de base, espalhadas pelo catolicismo e por igrejas protestantes. A partir da década de 1960, todavia, os fluxos desterritorializantes da economia globalizada, do consumo e das mídias consolidaram a emergência de novas redes religiosas, como a nebulosa místico-esotérica New Age, descentradas, desterritorializadas e em constante expansão. A partir de então, os movimentos de desterritorialização, fluidos e propensos a porosidades tornaram mais nítidos os medos e inseguranças religiosos e sociais, desestabilizaram verdades, modos de adesão, imaginários e símbolos, provocando, com isso, novas formas de procura por certezas nítidas e seguranças religiosas e sociais que separem a “verdade” do “erro”. Surgem e crescem, nos mais diversos segmentos sociais e arregimentando grupos e pessoas, modos de adesão, imaginários e símbolos religiosos que apelam para a rigidez doutrinária e para o endurecimento retórico. Tudo isso turbinado pelos circuitos de mídia e consumo. Em contrapartida, outros slogans e etos surgem e/ou reemergem: em 1985, criou-se, pela artista norte-americana, Barbara Krueger, um interessante slogan, que é uma paródia do notório lema de um oficial da Gestapo (polícia nazista): “quando ouço a palavra cultura, eu saco meu talão de cheques” (SEVCENKO, 2001, p. 13). Assim, para alguns, a era do dever moral cede espaço pouco a pouco a uma época pósmoralista, de forma que, depois “dos objetos, do lazer e do sexo, os bons sentimentos foram solenemente admitidos na área midiática” (LIPOVESTKY, 2005, p. 110). A caridade, por sua vez, torna-se um show: teletons, criança esperança e outros, inclusive com intensa participação de agentes religiosos, padres, pastores e outras lideranças. A “era moralista era disjuntiva; a pósmoralista é conjuntiva: harmoniza o stress e a emoção, os decibéis e o ideal, o prazer e a boa intenção [...] até a moral passa a ser uma festa” (LIPOVETSKY, 2005, p. 111). Fala-se dos negócios da caridade, uma nova caridade (charity-shows) engendrada nas mídias e nos espetáculos. Por outro lado, há que se ter cuidado para não “absolutizar” as mídias de massa e as eletrônicas e, consequentemente, o espetáculo e o consumo, como se fossem dotadas de um poder sem precedentes ou como se fossem uma matriz epistemológica e social que a tudo e a todos envolve, determinando comportamentos, pensamentos e valores.

Todavia, cambiam entre as mídias as realidades religiosas, a esfera pública e as vidas pessoais, muitos mediadores e múltiplas combinações históricas e sociais: estruturas familiares, grupos políticos, aparelhos estatais e outros. Essa realidade está relacionada a muitos fenômenos, entre os quais a perda de densidade dos grandes relatos organizadores da vida social, a pulverização dos símbolos em pequenos relatos individualizados, as intensas transformações econômicas no modo de produção capitalista, enfim, uma longa rede de elementos articulados. Desdobramentos políticos e sociais estão atrelados à espetacularização: shows, marchas, polêmicas nas redes sociais eletrônicas, uso do corpo como forma de protesto, entre outras formas de ocupação do espaço social e público, guiadas por diversos objetivos, entre os quais, a busca por capital político e simbólico. Assim, o intercâmbio entre ideias, noções, crenças e práticas entre os campos religiosos e os demais campos da sociedade acelera-se, de forma que faz sentido o título Igreja Universal: templo, teatro e mercado, livro de Leonildo Campos. Nas sociedades modernas, a identidade religiosa ou espiritual de massas ainda é um importante horizonte social e simbólico, de origem romântica e mediada pela cultura do consumo. Por isso, para Taylor (2010, p. 612), as massas, classes e os grupos sociais, apesar dos experimentalismos, não querem perder totalmente de vista a identidade normativa, daí a resistência em negá-la ou vê-la denegrida. O “marco identitário normativo-ontológico” ainda é importante para muitos indivíduos e grupamentos religiosos em sua busca de âncoras sociais (TAYLOR, 2010, p. 612). Esses elementos normativos, contudo, têm sido acionados a partir da plataforma midiáticoconsumerista, em particular nas redes sociais eletrônicas. Ao lado dos processos de liquefação de identidades e fronteiras culturais, econômicas e religiosas, os especialistas da verdade (os homens do saber institucional) e a verdade oracular (a memória autorizada da instituição religiosa) são reinventados, impulsionando pares binários de oposição (segurança e liberdade, certeza e incerteza, erro e verdade) que operam ora em composições moleculares (nas microrrelações cotidianas), ora em organizações molares (macrorrelações sociais). Um bom exemplo de como as relações entre consumo, religião e narrativas do sagrado interagem, formando uma trama densa e forte, é o imaginário do mal, do diabo, do diabólico, plasmado pelo e no cristianismo, que, de diversos arranjos e combinações, espalhou-se de forma difusa na sociedade hipermoderna, concentrando-se em alguns nódulos materiais-simbólicos. O mal migra, assume múltiplas formas e presenças, dentro e fora das instituições religiosas. Os rituais das diversificadas religiões de matriz africana e mediúnica (candomblés, umbandas, tambor de minas, batuque e outras), com suas crenças, inquisses, voduns, orixás e guias, por exemplo, são demonizados.

Na sociedade do espetáculo, o mal espreita, assumindo inventivas recriações de antigas narrativas, como a serpente do mal, numa narrativa que correu o mundo: espraiou-se numa lenda urbana a narrativa de que, numa piscina de bolas do McDonald’s, num shopping, várias crianças haviam sido mordidas por cobras que entraram e se esconderam dentro de um brinquedo, fazendo um ninho. Às vezes o mal é o próprio consumo, é a alienação suprema (sua hipóstase concreta), ou seja, “é legítimo afirma que a era do consumo, em virtude de constituir o remate histórico de todo processo de produtividade acelerada sob o signo do capital, surge igualmente como a era da alienação radical” (BAUDRILLARD, 2007, p. 205). A lógica da mercadoria divinizou-se, isto é, tornou-se onipresente e onipotente, faltando apenas a onisciência: “se a sociedade de consumo já não produz mitos é porque ela constitui seu próprio mito. Em vez do Diabo que trazia o Ouro e a Riqueza (pelo preço da alma), surgiu a Abundância pura e simples. Em vez do pacto com o Diabo, o contrato de Abundância” (BAUDRILLARD, 2007, p. 207). Na década de 1980, antes da era da internet, espalhou-se outra lenda urbana em torno do boneco Fofão, segundo a qual ele era obra de um trabalho de magia negra, e quem abrisse sua barriga encontraria uma faca negra; a história tomava contornos de realidade quando, apalpando a barriga, aparecia algo pontudo que, na verdade, era a coluna de sustentação do boneco, semelhante a um punhal. Some-se a isso o fascínio que as narrativas simbólicas do mal, ocultas aos olhares, vêm sendo mobilizadas, há alguns anos, por algumas igrejas, como a Universal do Reino de Deus, além das mensagens subliminares em músicas e desenhos para crianças. Por exemplo, na década de 1990, as pessoas afirmavam categoricamente que, se alguém ouvisse determinadas faixas do Long Play da Xuxa ao contrário, seriam ouvidas mensagens do diabo. Ou, ainda, os desenhos da Walt Disney e, mais recentemente, sucessos de consumo e mídia, como “Galinha Pintadinha”, tendo um de seus personagens, Mestre André, associado à figura de Zé Pelintra, ícone nos terreiros de umbanda. Ambos os fenômenos voltados ao consumo do público infantil venderam milhões de produtos: brinquedos, discos e CDs, bonecos, entre outros objetos. Tanto as crenças apocalíticas que penetraram as principais correntes judaicas, no Exílio Babilônico, com a absorção do imaginário da besta e do monstruoso, quanto as antigas acusações contra o papa e a Igreja de Roma, como Besta do Apocalipse, combinam-se com as mídias eletrônicas de massa e com a cultura do consumo4. Essas crenças varrem como ondas as igrejas, os programas de TV, as pregações religiosas, os encontros de jovens, de famílias evangélicas neopentecostais, de católicos carismáticos. Trata-se 4

O Bispo Edir Macedo, líder da Universal, usou seu blog, acessado por milhares de pessoas, para divulgar um vídeo acusatório ao papa e à igreja católica. Disponível em: http://www.bispomacedo.com.br/2013/12/19/o-maior-segredo-dovaticano-e-revelado/. Acesso em: 22 dez. 2013.

do encontro entre os fluxos das antigas crenças milenaristas sobre o mal e a sociedade do consumo e do espetáculo. Com a mesma força, movem-se fluxos de humor, dentro e fora das comunidades e instituições religiosas, em variados graus de acidez. Multiplicam-se páginas eletrônicas, programas de TV e WebTV, grupos humorísticos e indivíduos, cujo procedimento é a sátira às narrativas e teorias conspiratórias do mal, aos preconceitos religiosos, dogmas e doxas, entre outros densos aspectos religiosos e políticos. Personagens satíricos são criados, a fé, os ritos e os valores são teatralizados, simbolicamente transgredidos e suspensos. Novas fronteiras identitárias são criadas com esse humor irreligioso, que flui por meio do circuito de consumo e mídia, entrechocando-se com a seriedade religiosa. A título de ilustração, entre variados sites patrocinados pelo portal R7 (da Rede Record), está a revista cultural “Mad Mag” que, em abril de 2013, publicou, em formas demoníacas e coloridas de vermelho, com chifres e outros acessórios, uma série de caricaturas de pastores brasileiros listados pela Revista Forbes como milionários. Um artista curitibano fez seis ilustrações, sendo a primeira de Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, dono da rede Record, seguida de Valdemiro Santiago, Silas Malafaia, R. R. Soares, o casal Estevam e Sonia Hernandes, o deputado e pastor Marco Feliciano, incluído com uma legenda relativa ao suposto esforço para estar na próxima lista Forbes. Abaixo das seis ilustrações, uma frase da música “Simpathy for the Devil”, composta pelo grupo Rolling Stones: “Prazer em conhecê-lo, espero que adivinhe o meu nome, mas o que está te deixando confuso é saber qual é o meu jogo”. Na mesma sociedade do espetáculo e do consumo, digladiam-se a leveza das solvências irônicas e o peso das atitudes religiosas etnocêntricas. O exercício livre desse humor irreligioso, por sua vez, provoca reações iradas, até violentas, acentuando não só os modos de ser e pertencer que beiram a caricatura, mas também as sensações de perda de referencial. Se, por um lado, o efeito desse jogo entre o deboche irreligioso e a verdade religiosa é a perda de plausibilidade dos modos fortes, fechados e dogmáticos de crença e pertença, por outro lado, trata-se de um movimento paradoxal: parecem caricatos justamente quando reagem de forma intensa e agressiva, ao serem espicaçados pelo humor corrosivo, entre outros fluxos críticos e dissolutivos de modos exclusivistas de pertença e crença religiosos. Ambos os comportamentos, tanto a ironia quanto a rabugice, são visibilizados nas mídias eletrônicas, consumidos e disseminados, entrando no jogo dos argumentos contra e a favor. Moverse nesse terreno requer concessões, alianças, posicionamentos táticos que não respondem a um comando central, mas estão submetidas a pressões de lógicas circunstanciais externas e lógicas simbólicas internas, e, enfim, às instituições religiosas.

Os dogmas e a dureza da norma religiosa não existem por si mesmos, fundados de forma “natural”. É necessário que ambos sejam construídos tanto a partir dos tradicionais mecanismos de produção de identidade (socialização primária e secundária, família, comunidade e grupos) quanto a partir dos novos mecanismos midiáticos-consumeristas produtores de identificações. A oscilação entre os mecanismos tradicionais e os novos, bem como suas interpenetrações, ocorre numa sociedade do espetáculo, em que a corporeidade (o corpo, sua exibição, sua estética) adquire nova importância, criando-se novas formas de vínculo, novas produções identitárias e novos rituais. Essa intensa circulação põe em evidência novos mecanismos de recomposição da memória religiosa que embasa a identidade dos grupos religiosos. Por outro lado, no amplo circuito do consumo cultural moderno, a lista de produtos religiosos do vasto mercado gospel também é longa e diversificada, desde músicas, cantores e livros, a produtos voltados a públicos específicos, como o infantil, que tem sido muito visado. Entre os produtos religiosos destinados a esse público, cita-se a personagem Smilinguido e sua turma, afetuosas e emotivas formiguinhas cristãs evangélicas, criadas na década de 1980, cuja imagem estampa centenas de produtos, como chaveiros, canetas, jogos educativos, materiais escolares, filmes, vídeos, camisas, entre outros itens. Com 50 anos de mercado, a editora evangélica “Luz e Vida” publicou o personagem Smilinguido e sua Turma para o inglês e o espanhol, exportando para 30 países, muitos deles africanos, considerados lugares de grande expansão neopentecostal5. Consumidos por evangélicos e não evangélicos, os gibis do Smilinguido vendem aproximadamente 200 mil exemplares mensais, evidenciando que as fronteiras entre consumo e fé são móveis: na hipermodernidade, embora não estejam ontologicamente fundadas, dependem de complexas tramas e redes de afinidade para virem à existência. Nesse contexto, cresce o número de livros e editoras que publicam temáticas religiosas e próximas à religião, como o gênero da autoajuda, que tende a incorporar ideias e elementos da religiosidade “nova era” como o self, a energia e a vibração. Tudo isso indica que, numa sociedade do espetáculo e do consumo, embora sejam múltiplos os locais em que as batalhas semânticas são travadas, o corpo, ontologia do desejo, ator, horror, beleza e ato simbólico, assume o protagonismo.

Corpo e segurança ontológica na sociedade midiático-consumerista

O corpo, como elemento trágico ou erótico, ascende ao palco, atravessando todas as religiosidades, todas as vivências do sagrado e suas experimentações. As mídias e os espaços 5

Disponível em:. Acesso em: 20 dez. 2013.

públicos imbricam-se, e neles, o corpo espetacularizado advém como um novo horizonte não só de mediação, mas também de expressão da dor, da alegria, da prosperidade, entre outros aspectos. Nas modernas sociedades, o bem simbólico da segurança existencial encontra-se liquefeito, escorrendo pelos interstícios abertos no choque das plausibilidades das esferas de valor. Nesse contexto, com a pulverização dos modos de percepção e recepção das imagens e dos espetáculos, tanto os corpos individuais quanto os sociais entram em novos circuitos de consumo e de desfrute, de forma que monumentos, templos e locais sagrados, festas religiosas, grandes mobilizações de massa católicas, evangélicas e outras (objetos de um turismo, um fruir social desterritorializado de dogmas e crenças enraizadas) podem ser vistos como corpos culturais. Nesses tempos hipermodernos, ambas as corporeidades (a dos indivíduos, mulheres e homens e as sociais) entram na dinâmica do estético, em que beleza, feiura, escândalo, horror, sublimidade, alegria, tristeza, modéstia e vaidade marcam discursos, imagens, circulações de agentes religiosos, eclesiásticos e não eclesiásticos:

Um dos calendários mais vendidos da Itália não mostra mulheres peladas. O que faz do “Calendário Romano” um grande sucesso no país desde que foi criado, em 2004, são 12 fotos de padres bonitões, uma por mês, vestidos quase sempre com a batina sacerdotal. O organizador do calendário, que não tem qualquer relação com o Vaticano, é o fotógrafo Piero Pazzi, também responsável pelos ensaios. São feitas 75 mil cópias por ano, vendidas a 10 euros cada. A edição de 2014 já disponível em lojas e bancas de jornais de Roma e na internet. O Vaticano franze a testa para os álbuns, que são vendidos junto com reproduções do Coliseu ou fotos do Papa. O calendário também inclui um pequeno guia sobre o Vaticano com sugestões para orientar turistas. Curiosamente, tornou-se em objeto de culto para muitos gays que visitam a capital italiana6.

Deslocando-se até a Itália, numa espécie de turismo erótico-religioso, grupos gays compram o referido calendário, instaurando-se um fruir estético da religião. Próximo desse consumo alegre e desse movimento de leveza, estão os grupos liberais, desde associações LGBTs e grupos feministas católicos (teólogas, irmãs e leigas) até grupos de padres que promovem uma abertura crítica das cláusulas de poder eclesiástico (sacerdócio para mulheres, comunhão para divorciados, eleição direta para bispos). O corpo é espetáculo, mas é também política em ato, em verso e reverso. Os grandes movimentos de corporeidades sociais, como as marchas religiosas, os deslocamentos de romarias e peregrinações, movem imaginários e escavam o leito de futuras ações sociais e políticas. A partir da sociedade da informação, com os meios de comunicação de massa e, mais ainda, com os novos meios eletrônicos e técnicos de reprodução, difusão, produção e mudança de 6

Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/mundo/um-calendario-com-os-padres-mais-bonitoes-dovaticano-11042829.html.

imagens, os gestos simbólicos de grandes lideranças religiosas espalham-se sobre os corpos e corporeidades individuais e sociais em diversas velocidades com distintos impactos. Embora as formas de reapropriação e hermenêutica desses gestos sejam muitas e apontem uma linha de fuga, cujo horizonte é o espetáculo, os circuitos imagéticos podem trilhar agonísticas perspectivas: a descontrolada multiplicação das imagens e de suas formas de recepção pode criar ensurdecedores ruídos sociais e epistemológicos. Por outro lado, tanto fora quanto dentro das religiões, mesmo algumas que tenham tons sectários e exclusivistas, o corpo é ato político. Nos EUA, em 2013, a fotógrafa Katrina Barker Anderson fotografou mulheres mórmons nuas:

Seguidora da Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias, a fotógrafa Katrina Barker Anderson, de 30 anos, divulgou um projeto no qual reúne cliques de mulheres mórmons sem roupa. Em crítica aos rígidos códigos de comportamento impostos pela religião, a norte-americana realizou os ensaios com o objetivo de “normalizar a nudez”. O projeto teve mais de 30 mulheres mórmons voluntárias desde que foi iniciado, em 2012. ‘Eu sei que as imagens podem ser ferramentas muito poderosas para a mudança’, contou Katrina ao Daily Mail. ‘Para as mulheres que optaram por serem fotografados, este ato de expressão artística as ajuda a usarem seus corpos como forma de protestos contra um sistema que lhes pede para andarem cobertas’7.

Assim, num mesmo espaço e tempo, estão o corpo individual e o coletivo, transformados em espetáculos nas mídias eletrônicas e de massa, transversalizados e mobilizados, consumidos e em consumação; agonia e êxtase, alienação e consciência em vertiginosas presenças. No próprio circuito das mídias, os limites são confessados e a estética do horror e da recusa assoma-se ao horizonte. Como exemplo, o padre pop star Marcelo Rossi confessou, recentemente, em famosos programas de TV, que a fama e o sucesso trouxeram-lhe problemas, como depressão e anorexia. Como os protestos realizados pelos movimentos antiglobalização, reunindo num mesmo espaço-tempo muitos atores locais, amplificando protestos e reinvindicações, tais confissões são disseminadas nas redes sociais, como Twitter e outras. Em outros contextos religiosos, da mesma forma como o corpo era chicoteado e contido em seus desejos materiais para que ascendesse aos céus e às glórias vindouras, agora ele é exorcizado da pobreza e preparado para o reino da abundância aqui nesta terra. Essas duas atitudes e esses dois movimentos estão presentes em muitas religiosidades cristãs, de antes e de agora, católicas, assembleianas e outras. Não são raros os discursos e gestos dos líderes evangélicos neopentecostais exaltando a prosperidade e o dinheiro, de modo que a confissão positiva dá a certeza das posses

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Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/mundo/mulheres-mormons-posam-nuas-em-protesto-contra-codigosreligiosos-rigidos-10898622.html.

materiais e espirituais. A teologia da prosperidade e a mídia entrelaçam-se e reforçam as teias hermenêuticas entre a ética romântica e o consumismo moderno (CAMPBELL, 2001). Nesse contexto, ocorrem combinações surpreendentes: mulheres empreendedoras de origem evangélica investem em produtos e serviços de estética e cuidados corporais, não raro abençoados em rituais religiosos. A ampliação e circulação da noção de prosperidade atingem outras searas, como as espíritas, herdeiras da desconfiança católica em relação ao lucro capitalista, redefinindo práticas caritativas. Com títulos como “A senhora dos espíritos” ou “O império espírita”, a revista “Isto É” entrevistou, em maio de 2013, a famosa médium Zíbia Gasparetto e fez uma provocativa pergunta sobre dinheiro e mediunidade. Ela respondeu o seguinte: “O que essas pessoas têm contra o dinheiro? [...] O dinheiro é do mundo! E fica aqui. A gente responde pelo que faz com o dinheiro e eu estou fazendo bom uso dele” 8. As ideias de felicidade, bem-estar e cura são cotidianamente ditas e reditas, circulando inventivamente em livros, canções, cultos e pregações de padres, pastores, lideranças umbandistas, candomblecistas, kardecistas, new age, terapeutas esotéricos, entre outros. Ser feliz é direito, mandato divino ou quase obrigação, e o corpo é festa, hierofânica ou teofânica. Dessa maneira, letras de música gospel, pontos de umbanda, entre outros elementos do sagrado expressam redefinições semânticas que enfatizam a alegria, o bem-estar, a superação do sofrimento e da dor, constituindo o corpo como índice e critério de espiritualização. Nesse cenário, os corpos dos negros, dos índios, das mulheres, dos caboclos, dos operários, dos jovens pobres – homens e mulheres – ascendem e fazem acelerar, por dento das instituições religiosas, intensas trocas culturais. Mas, também, são locus de dor, horror, miséria e profundas e vivas cicatrizes sociais. E elas se visibilizam justamente no circuito das mídias e do consumo de imagens. Por outro lado, constituindo a memória e instituindo-a no momento presente, no gozo do consumo de bens simbólicos de salvação, o corpo traz o eterno no lampejo de um instante. Assim, entende-se melhor a espantosa ligação entre o 'apelo da vida' e o 'apelo da morte', na medida em que constituem, em longo prazo, um equilíbrio dos mais sólidos. Quando uma sociedade não consegue encontrar este equilíbrio, sucumbe rapidamente à violência desenfreada ou ao tédio generalizado. A modernidade é um exemplo flagrante de civilizações que, tendo pretendido esquivar-se à dor, expulsaram a sombra e por isso mesmo viram proliferar carnificinas e genocídios, enquanto eram tomadas por uma falta de intensidade existencial (MAFFESOLI, 2004, p. 128).

8

Disponível em: . Acesso em: 12 jan. 2014.

Por outro lado, as forças globalizatórias do capital e da cultura promoveram amplos espaços de desterritorialização de antigos laços sociais, recriando-os, reemergindo velhas fronteiras, anseios de segurança e proteção, comunidades religiosas fundamentalistas e integristas que também estão nas mídias eletrônicas, participando do consumo e da “guerra de imagens” como “guerra de cultura”. O espetáculo, o consumo e as imagens, ou melhor, seu incessante fluxo e sua errância, adquiriram centralidade, mesclaram-se aos antigos processos de constituição de identidades sociais, pessoais e subjetivas, de forma que as tradicionais divisões entre popular e erudito, classes altas e baixas, periferias e centros, precisam ser repensadas, na medida em que os fluxos e intercâmbios culturais entre essas polaridades intensificaram-se, e as fronteiras entre identidades tornaram-se mais fluidas, mais móveis. Imersa num mundo governado pelo imperativo da mudança e da inovação – que atravessa de alto a baixo as classes e as relações sociais, políticas, culturais e econômicas das sociedades ocidentais –, a religião (e suas instituições), empreendimento marcado pela busca da continuidade, vê-se atravessada por forças centrípetas e centrífugas. Diante disso, toda religião envolve a mobilização da memória coletiva, constituindo-se num dispositivo prático, simbólico e ideológico, a partir do qual a consciência individual e coletiva de pertença a uma linha de crença é constituída, estabelecida e controlada (HERVIEU-LÈGER, 2008). Se, por um lado, a transmissão ou continuidade de uma tradição religiosa não significa imutabilidade, por outro implica a ocultação das rupturas que a linha crente sofreu ao longo da história (HERVIEU-LÈGER, 2008). As disputas dos muitos grupos religiosos em torno da memória autorizada (memória hegemônica e legitimada da maioria dos crentes), bem como as disputas em torno da autenticidade dessa memória ou de sua restauração, expressam essas irrupções ou disjunções históricas (HERVIEU-LEGÈR, 2008). E é o corpo o condutor dessas disputas, assinalando dissensões e distensões nos grupos e indivíduos contemporâneos, bem como seus modos de aderir e de pertencer às fés religiosas. Como os crentes e seus corpos, involucrados em hábitos e gestos, veem sua linhagem como imutável, legítima, autêntica e unívoca, as outras linhagens lhes parecem mutáveis, bastardas, inautênticas e plurívocas. Assim, no mundo do espetáculo e do consumo, a dispersão da memória autorizada aumenta de forma agonística, e as estratégias de fazer com que uma identidade seja coerente tornam-se extenuantes. Em tempos hipermodernos, favoráveis à pluralidade normativo-cognitiva das esferas institucionais (arte, ciência, política, economia) e à ascensão do indivíduo (vontade, inteligência e emoção) como centro decisório maior, entra em crise o ocultamento da mudança empreendido pelas

tradições religiosas. A tarefa de fazer da tradição o imutável passa a ser um jogo de posições políticas e efeitos estéticos, obtidos no mercado, nas mídias e no eixo produção-consumo. Para conter e administrar tensões dentro dos limites da memória autorizada, defendida pelos guardiões da verdade, os controles institucionais são enfraquecidos pelos processos secularizantes e laicizantes. Em torno dessas tensões, novas possibilidade de crer e pertencer são efetivadas: crer sem tradição e pertencer sem crença (HERVIEU-LÈGER, 2008). Por outro lado, a secularização e a laicidade não expulsaram as religiões do espaço público, pelo contrário, numa época de hipermodernidade, com novos fluxos de consumo, novas mídias e outros aspectos sociais, as religiões firmam presença nos espaços políticos e sociais. Assim, tendo as mídias de massa e eletrônicas como canais de mobilização e de parcerias estratégicas para os projetos de poder, lideranças e movimentos religiosos atrelam-se a causas políticas e disputas culturais. Convém ressaltar que essas parcerias impõem às antigas narrativas do sagrado e da religião mudanças e lógicas outras. Diante desse novo contexto, as misturas entre lógicas abriram às religiosidades, outras formas de viver e pertencer: seduzidas pelos novos tempos do consumo e da produção, nas sociedades terceiro-mundistas, emergem teologias da felicidade e prosperidade. Os bens simbólicos são vendidos e consumidos por líderes religiosos e seus grupamentos de seguidores, os quais relativizam seu consumo: consumem músicas de estilo gospel, frequentam shows de cantores evangélicos ou católicos, participam de reuniões com pregações moralistas, mas não aceitam todas as determinações normativas das igrejas; quando aceitam, amenizam e liquefazem algumas certezas. Com efeito, uma parcela de evangélicos genéricos ou desinstitucionalizados do último Censo do IBGE (2010) evidencia esses fenômenos de desterritorialização. Em contrapartida, a competição entre várias agências religiosas, ao oferecer no mercado de bens simbólicos produtos de salvação, leva a disputa de plausibilidades, erodindo a noção de unicidade e de verdade universal. Nesse caso, o novo e o velho em um só espaço e tempo: dos amplos comércios de relíquias de santos católicos aos travesseiros bentos, lenços molhados com o suor de líderes evangélicos, rosas vermelhas, tapetes de sal e uma infinidade de pequenos mediadores entre a graça divina universal e as bênçãos concretas cotidianas. As marchas sociais (Marcha das Vadias, Marcha para Jesus, Parada Gay) que invadem os espaços urbanos como corpos coletivos que se movimentam na arena pública evidenciam que o sistema clássico de representação (partido, igreja, escola, sindicato, associações) não consegue mais organizar adesões e pertences unívocos, fortes, unidirecionados. No meio mesmo dessas manifestações, os grupos e indivíduos podem, por gosto, por convicção, e um sem número de pretextos, aproximar-se ou distanciar-se das teses e ideias defendidas, cruzando-as com os signos e

símbolos do religioso, dispersos na cultura de consumo moderna ou concentrados nas igrejas e comunidades. Em virtude do entrechoque dos fenômenos sociais, do crescimento de ocupações frágeis, da retirada das elites sociais dos aparelhos públicos (a falência da escola pública) e da globalização financeira, entre outros, pairam problemas e questões sombrias nessa sociedade de consumo. Enquanto alguns pesquisadores frisam a (re)emergência do poder pastoral (bancadas evangélicas, partidos políticos com base religiosa, movimentos de maioria moral), outros enfatizam a potência de novos arranjos, alianças e lutas, decorrentes de novas subjetividades na cultura, na sociedade e na religião, em ambientes urbanos e eletrônicos. De fato, as práticas de criação de comunidades e a politização do cotidiano estão forjando novas armas para os movimentos em fluxo: criam-se redes, releem-se e reinventam-se, de forma empírica, dinâmicas e processos decisivos dos embates teológicos e políticos. Assim, a religião é agente e agenciamento, mas é agenciada também pelo consumo e pelo espetáculo, de forma que o empoderamento de minorias, a partir de experiências religiosas, ocorre em rede e em escalas multivariadas: locais, globais, transnacionais, e também por meio das imagens e do consumo. Por outro lado, no imbricamento entre espetáculo, corpo, mídia e religião, surgem novos fenômenos religiosos nas periferias de grandes metrópoles e cidades de porte médio (Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Juiz de Fora), mostrando um frenético intercâmbio entre as religiosidades constitutivas do campo religioso brasileiro. Entre

esses

novos

fenômenos

estão

as

igrejas

“reteté”,

ou

seja,

igrejas

pentecostais/neopentecostais desligadas das grandes correntes (Assembleia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus e outras) e que elaboram uma liturgia do corpo e do espetáculo com traços híbridos, ou seja, tanto dos pentecostalismos quanto das heranças africanas: gestos celebradores, alegres e dançantes corpos negros e pardos, batuques, percussão e pandeiros. Uma dessas igrejas, em Salvador (BA), localizada em bairro periférico e liderada por Joselita Santos, negra, sem formação superior e autointitulada apóstola, tem diversos canais de exibição na grande rede social YouTube9, onde seus vídeos são disseminados, reproduzidos e comentados, favorável e desfavoravelmente. Os traços híbridos são refletidos no gestual, no êxtase e na alegria de celebrar o sagrado que irrompe no aqui e no agora, como um “gospel popular”, fruto das trocas interculturais que freneticamente correm Brasil afora. O som do batuque remete o carnaval do Olodum e certos toques afro-brasileiros, bem como o pentecostalismo.

9

Um dos canais da líder evangélica, Joselita Santos, http://www.youtube.com/user/joselitaiesc1/about. Acesso em: 15 dez. 2013.

funciona

desde

2009.

Endereço:

Agrupando mulheres e uma massa de trabalhadores urbanos de classes menos favorecidas, como um fenômeno, essas igrejas disseminam-se sob o olhar de censura de macrolideranças neopentecostais e de intelectuais evangélicos tradicionais, sob o olhar de desconfiança de lideranças de religiões afro-brasileiras, de má vontade de alguns cientistas sociais e o olhar de reificação de alguns antropólogos. Sem ser acusatória nem apologética, mas compreensiva, uma nova postura hermenêutica se faz necessária. Há alguns anos, valendo-se da concepção da antropofagia cultural defendida pela Semana de Arte Moderna de 1922, Pierre Sanchis questionava: quem vai “comer quem”? Será o pentecostalismo que “comerá” o Brasil, ou o Brasil “comerá” o pentecostalismo? Esses fenômenos de consumo, mídia e religião indicam tramas mais delicadas entre o econômico, o simbólico e o sagrado:

A paixão e o desejo do Outro são os indícios mais claros do inacabamento do indivíduo e da sociedade. Mas, da mesma maneira que a completude pode apenas suscitar mônadas que se tocam levemente sem se agarrar, a troca, que engaja elementos incompletos, é fundada antes de tudo sobre a disparidade, sobre a diferença daquilo que é dado ou daquilo que é devolvido. É preciso dizer então que ainda aí a reversibilidade é totalmente plural e desigual (MAFFESOLI, 2001, p. 60-61).

Trata-se de um fenômeno de fronteiras, situado com imprecisão, porque o corpo, o fluxo midiático-consumerista e as expressões religiosas promovem novas topologias e novos modos de existir. Essas imprecisões são evidenciadas em frases como “macumba gospel” ou “candomblé cristão”, postadas pelos comentaristas de vídeos e de notícias relativos a essas igrejas. As reações de defesa, ataque e perplexidade são por si mesmas indicativas de profundas mudanças culturais em curso na sociedade brasileira. Os fenômenos religiosos são transformados em palco e espetáculo, luzes e bandas, canais de TV e ondas de rádio. Em outros modos e mídias, uma moral rígida é elevada à condição mística de proteção, salvação e cura. De novo, e em novo tom e volume, as vozes do pecado são elevadas: místicas, ao clamar o êxtase e negar, por meio de uma ascese corporal e psíquica, o pecado. Numa verdadeira polifonia, essas vozes adquirem dramaticidade ao serem alimentadas pelo fluxo midiático-consumerista. Flutuando entre os diversos atores, os significados não podem mais ser fixados de antemão ou inscritos de forma inevitável.

Considerações finais

Como se pode perceber, velhas perspectivas de entendimento não conseguem dar conta desses intercâmbios, que acabam por descambar numa acusação prenhe de tons morais ou numa

posição normativa. Solidifica-se o medo das novas dinâmicas inventadas fora das interpretações autorizadas e das instâncias que as chancelam, desde a política clássica às instâncias ortodoxas das teologias e do pensamento sociológico, nas ciências em geral e nas ciências da religião em particular. Estudar esse aspecto nas religiões é vital para uma compreensão da relação complexa entre as questões supracitadas e a sociedade brasileira, em que travam embates, como aborto, união civil entre pessoas do mesmo sexo, entre outras zonas de atrito, que não são uniformes, homogêneas nem constituídas apenas de atritos, mas com possibilidade de oposição complementar. Nos pontos de contato, evidenciam-se duas dimensões, a da linguagem religiosa – presente nos símbolos e nas imagens – e a das atitudes. Ambas as dimensões representam o objeto de reapropriação e ressignificação encontrado nas religiões, desde as mais tradicionais, como o catolicismo e o candomblé. Na cultura de consumo e das mídias, o corpo passa a ser objeto de investimento político. Os dons do Espírito Santo e suas vivências evidenciam-no. O consumo e as músicas são criados para que, no corpo, a tradição habite e as normas e dogmas nele grudem e dele não saiam mais. Padres cantores e artistas, bandas e shows multiplicam-se no circuito religioso, instaurando uma ambiência difusamente sagrada, com a ambiguidade das fronteiras e dos constantes reposicionamentos. As fronteiras entre as instituições religiosas e as subjetividades modernas oscilam concomitantemente e são,

paradoxalmente,

rígidas/contínuas

e

descontínuas/porosas

ou

porosas/contínuas

e

rígidas/descontínuas. De fato, o consumo e as mídias trouxeram, irremediavelmente, para o cerne das tradições religiosas, a flutuação de sentidos. Não é mais possível ignorar esse fluxo, de forma que a instituição coloca-se em duas fronteiras: no registro da emoção, a expressão de uma crença sem referência necessária à tradição; no registro da racionalização cultural, a referência de uma tradição que não implica necessariamente crer. O espaço-fluxo midiático-consumerista torna as tradições uma trama tensa, complexa e sujeita a jogos e estratégias, cujo alcance e impacto nenhum ator sociorreligioso pode, antecipadamente, dizer ou traçar reflexivamente. As repercussões ainda são imprevisíveis, e os modos de combinar mídia, corpo, religião e consumo ainda estão em franco processo de expansão e circulação. REFERÊNCIAS BAUMAM, Zygmunt. Vida para o consumo. A transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa Edições 70, 2007. CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. CARRANZA, Brenda. Catolicismo midiático. Aparecida: Ideias & Letras, 2011. GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 2001. HERVIÉU-LÈGER, Daniele. La religion pour mémoire. Paris: Le Cerf, 1993. ______. O peregrino e o convertido. A religião em movimento. Petrópolis, 2008. JAMESON, Frederic. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1985. LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade pós-moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Barueri: Manoli, 2005. MAFFESOLI, Michel. A parte do Diabo: resumo da subversão pós-moderna. Rio de Janeiro: Record, 2004. ______. A conquista do presente. Natal: Argos, 2001. SEVECENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI. No loop da montanha russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. TAYLOR, Charles. Um era secular. São Leopoldo: UNISINOS, 2010.

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