Esprit de corps e politização das Forças Armadas após a Guerra do Paraguai

July 8, 2017 | Autor: R. Goyena Soares | Categoria: Nineteenth Century Studies, Guerra do Paraguai, História do Brasil Imperial
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Esprit de corps e politização das Forças Armadas após a Guerra do Paraguai

Rodrigo Goyena Soares* [email protected] Rio de Janeiro, Maio de 2014

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Formado em Ciências Políticas e Mestre em Relações Internacionais (SciencesPo - Paris). Mestrando em História Social (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO). Bolsista da CAPES. Pesquisa atualmente o desgaste da monarquia brasileira promovido pelo regresso dos veteranos da Guerra do Paraguai.

Um dos aspectos mais notáveis do século XX brasileiro, se não latinoamericano, foi a presença da caserna na condução dos negócios políticos. Em ano no qual se completam cinquenta anos do golpe militar de 1964, avolumam-se, no Brasil, debates em que, relativamente à análise da irrupção militar no poder, ora se dá mais expressividade à instrumentalização das Forças Armadas por grupos partidários, ora se advoga a autonomia daquelas em relação a estes1. Não se quer aqui ressignificar esse debate no período que se estende do fim da Guerra do Paraguai à queda da monarquia. Busca-se pensar a caserna como instituição capaz de instrumentalizar grupos sociais em benefício de um interesse julgado comum. Certamente, a pressão de grupos não alinhados ao sistema bipartidário do Segundo Reinado pesou no posicionamento político dos militares. Mas não é essa analise com a qual este artigo procura dialogar. Interessa aqui avaliar o processo de autonomização das Forças Armadas após o conflito no Prata, independentemente das relações entre militares e civis. Embora os mecanismos e instrumentos de autonomização dos militares sejam a expressão de seu robustecimento institucional, não explicam por si só a passagem de uma caserna politicamente mais apática a outra resolutamente engajada na formulação de reformas estatais. Mecanismos como o reordenamento hierárquico e as regras de promoção militar ou instrumentos como o Instituto Militar (1871), a Escola Militar (1874), os jornais O Soldado e A Tribuna Militar (ambos existiram entre 1881 e 1883) ou o Clube Militar (1887) constituem ferramentas tanto de instrumentalização de grupos sociais pelos militares quanto de politização da caserna. Não descortinam, contudo, o porquê da autonomização das Forças Armadas.

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Essa dualidade de pontos de vista, embora tornada mais plástica pelos debates acerca do golpe de 1964, retoma a caracterização entabulada, nos anos de 1980, por Alain Rouquié e por Antônio Carlos Peixoto. Ver: PEIXOTO, Antônio Carlos. Armée et politique au Brésil: une critique des modèles d’interprétations. In : ROUQUIÉ, Alain (org.). Les partis militaires au Brésil. Paris : Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1980, p. 20-25 ; ROUQUIÉ, Alain. Les processus politiques dans les partis militaires au Brésil : stratégies de recherche et dynamique institutionnelle. In :________ (org)., Les partis militaires au Brésil. Paris : Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1980, p. 9-20.

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O retorno dos veteranos a Guerra do Paraguai marcou um ponto de inflexão no posicionamento dos militares para com os civis no poder. Antes de 1870, isto é, o fim da Guerra do Paraguai, houvera momentos, notadamente no década de 1850, em que as Forças Armadas mostraram descontentamento com o tratamento dado a elas pela Coroa. As poucas vozes que se levantavam em prol de reformas militares reclamavam melhores soldos ou pensões, mas não extrapolavam as fronteiras das solidariedades internas à corporação. O fim do conflito no Parta, no entanto, adensou o número de reclamações militares contra o governo. Mas não só. Os egressos do Paraguai, especialmente aqueles que permaneceram no Exército e na Armada, buscaram mobilizar um passado comum, para dar sentido preciso às reivindicações castrenses. Procurava-se assegurar a consolidação de um esprit de corps, ou seja, um sentimento de pertencer a um grupo social específico. O que levou um punhado de militares a escrever em março de 1881 que “os interesses imediatos de nossa classe estão ligados por laços indissolúveis aos interesses comuns da sociedade brasileira. Somos a força que faz respeitar o direito: somos o direito constituído na força”2? Por que dificilmente se encontrariam essas linhas em manifesto qualquer anterior à Guerra do Paraguai? A condição de veterano do Paraguai produziu rearranjos nas Forças Armadas. A mobilização constante do passado nas trincheiras foi o pano de fundo para a politização militar ocorrida nas duas últimas duas décadas imperiais. Compreender a capacidade de instrumentalização social pela caserna em prol de seu interesse político requer trafegar, a um só tempo, pelos porquês do fortalecimento da corporação após a campanha no Prata e pela politização advinda desse processo de autonomização. I] Expectativas e frustrações O retorno dos veteranos da Guerra do Paraguai impulsionou uma série de reformas militares que foi além das promessas feitas quando da convocação dos 2

A afirmação, sem identificação autoral, encontra-se exposta na edição de 22 de março de 1881, no jornal O Soldado, que era publicação do Exército. O diário foi retirado de circulação com menos de dois anos de existência por razões ainda não esclarecidas. Pode-se suspeitar tanto da açãodos partidos políticos contra o jornal quanto da alta cúpula do Exército, preocupada em evitar desmandos e quebras de hierarquia que poderiam advir de publicações do tipo citado.

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Voluntários da Pátria. Pelo decreto n. 3371, de 7 de janeiro de 1865, o governo comprometeu-se com outorgar aos voluntários bonificações salariais, preferência em empregos públicos, gratificações, dez hectares de terra em colônias militares, pensões em caso de lesão física e, em caso de falecimento do combatente, pensões às respectivas famílias. Conforme se lê nos relatórios anuais dos negócios da guerra de 1870 a 1875, as promessas de guerra foram cumpridas em grande medida. As pensões foram dadas a cerca de 75% dos requerentes. As gratificações outorgadas não ficaram aquém das pensões. As bonificações salariais ocorreram no decurso da guerra, e a preferência em empregos públicos perpassou os veteranos que deixaram a caserna3. No que concerne às colônias militares, poucos as quiseram. Os soldados que regressaram a suas províncias não mostraram interesse em novo deslocamento para regiões que julgavam mais inóspitas do que os pântanos paraguaios. As colônias militares, em sua grande maioria, não estavam localizadas nas proximidades dos centros econômicos. Não havia, por exemplo, disponibilidade para conceder braças de terra nas colônias da província do Rio de Janeiro. Única verdadeira exceção, nessa lista de promessas parcialmente cumpridas, foram as pensões dadas às famílias de combatentes falecidos. Nessa caso, menos de 15% das pensões requisitadas foram concedidas. O que explica, visto esse quadro, a impulsão de reformas militares para além das promessas de guerra logo após o retorno do Paraguai? Em escala individual, houve quem se sentiu menosprezado em relação aos corpos de Voluntários da Pátria. Os veteranos do Paraguai eram plurais em suas agremiações. Ao exército de linha não se concederam as promessas feitas aos voluntários, já que não entraram no marco do decreto de 1865. Para os praças regulares, no entanto, não havia razão em distingui-los dos ex-voluntários da pátria ou dos guardas nacionais, visto que o esforço no Prata havia sido o mesmo. Ainda, as pensões concedidas aos ex-combatentes concerniram mais aos oficiais do que aos praças, fossem eles regulares, guardas nacionais ou voluntários da pátria. Ou seja que havia uma sensação de injustiça, traduzia em junho de 1870 pelo Diário do Rio de 3

Com exceção dos dados referentes à concessão de empregos públicos, encontrados na pasta 5H197, GIFI, do Arquivo Nacional, os dados relativos às outras promessas foram extraídos dos relatórios dos negócios da Guerra de 1870 a 1875, disponíveis no Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro.

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Janeiro, que mais guardava relação com um esforço não recompensando do que com a lista de vantagens prometidas. Qual a razão por que não se tem dado as condecorações que competiam ou competem às praças [...]? [...]. Por ventura elas não derramaram seu sangue pela pátria, e não devem gozar do mesmo direito que fruem os senhores oficiais, para os quais só há apreço e elogia? Por ventura a campanha foi somente feita por oficiais? Ninguém o dirá. E por isso deve o governo atender nos serviços de soldados tão briosos e fieis à causa nacional, de tal maneira que deixem de exigir quanto lhes foi garantido, e retirem-se aos lares da família, esperançosos na recompensa do Estado4.

Em escala institucional, as Forças Armadas tampouco se contentaram com a resposta do governo às promessas feitas quando a guerra eclodiu. A persistência de uma situação de exclusão socioeconômica ou política, após a guerra, tanto para praças quanto para oficiais engendrou rápida posta em evidência de frustrações que estavam à altura das expectativas geradas durante a guerra. Arrematava-se no relatório da Marinha apresentado em 1871 ao gabinete do Visconde do Rio Branco: É nesta Corte que nossos oficiais devem fixar sua residência; porque, por ora, não temos distritos pelos quais sejam distribuídos, como em alguns países. Aqui a vida é cara, e não podem, de forma alguma, subsistir decentemente um capitão de fragata com 96$000 por mês, um capitão de mar e guerra com 120$000, um chefe de divisão com 144$, um chefe de esquadra com 180$000, um vice almirante com 240$000 e um almirante com 300$000. Embora desembarcados, estão sempre às ordens do governo, e não devem, nem podem atender a outros interesses. Empregados públicos, em posições mais modestas, gozam de ordenados mui superiores aos que acabo de apresentar a vossa apreciação5.

Os veteranos não podem ser considerados como um agente monolítico, visto que não constituem uma profissão, uma classe ou um partido: trata-se de uma situação fundada numa experiência comum, qual seja, a guerra. A condição de veterano adquire mais sentido quando julgada à luz das formas pelas quais a participação na guerra foi narrada. E por narração não se entende exclusivamente discursos na Assembleia Geral do Império ou publicações em jornais da época, mas também 4 5

Diário do Rio de Janeiro, 01/06/1870, p. 2, Biblioteca Nacional. Relatório dos negócios da Marinha de 1870, Arquivo da Marinha, Rio de Janeiro.

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requerimentos de emprego, de terra, de soldo e de gratificações. Há maneira de vislumbrar, no entanto, nessas diferentes narrativas, expectativas e frustrações que caracterizaram os discursos dos ex-combatentes como um todo. A experiência comum no Prata conferiu aos veteranos uma expectativa de direitos que não foi preenchida quando do regresso. Essas expectativas, portanto, tornaram-se frustrações, visto que o enaltecimento dos combatentes, antes e durante a guerra, não correspondeu a um reconhecimento do esforço no pós-guerra. Essas frustrações, por sua vez, redundaram num conjunto de reivindicações militares que se referenciaram constantemente na Guerra do Paraguai. Entre as reformas militares mais emblemáticas promovidas na década de 1870, figuraram o aumento salarial previsto em 1873, embora somente posto em vigor em 1887, a separação da Escola Central da Academia Militar, em 1874, e a Lei de Recrutamento, também de 1874. Todos elas assentaram-se em discursos orientados ora pela necessidade de reparar supostas injustiças cometidas contra aqueles que defenderam a pátria no Paraguai, ora pela constatação, advinda nos campos de guerra, da escassa qualidade técnico-militar dos corpos castrenses6. II] Formação do esprit de corps militar A participação na Guerra do Paraguai consubstanciou diferentes capacidades deorganização política dos veteranos nas últimas duas décadas imperiais. Essas capacidades em muito coincidiram, primeiro, com os modos de mobilização das memórias de guerra e, segundo, com as diferentes classes e grupos sociais, para cuja condição os veteranos regressaram. Quantos mais veteranos presentes em uma classe, ou grupo social, maiores foram os vínculos entre a mobilização do passado no Paraguai e os apelos dessa classe ou desse grupo social. E ainda, paralelamente, quanto mais articulada fora a classe social na qual este ou aquele grupo de excombatentes se inseriu, maior foi a capacidade dessa classe ou desse grupo em reivindicar, perante o Estado, a concretização dos interesses de classe ou grupo social. 6

As referências à Guerra do Paraguai, no que concerne às reformas militares da década de 1870, foram extraídas dos relatórios dos negócios da Guerra e da Marinha, de 1872 a 1876. Encontram-se disponíveis no Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro.

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Entre os quase 60.000 egressos do Paraguai, pouco menos de 20.000 permaneceram na caserna7. Ou seja que algo em torno de 2/3 dos veteranos tornaramse, ou voltaram a ser, artesãos, comerciantes, serviçais domésticos, jornaleiros, lavradores, pescadores, médicos, deputados ou senadores, para citar apenas alguns exemplos. Para alguns, a condição de ex-combatente combinou-se com interesses específicos a uma categoria profissional. Formaram sociedades de assistência mútua e associações para a defesa de interesses laborais. Outros organizaram-se sob formas recreativas, lícitas ou não: formaram casas de candomblé, maltas de capoeiras e ranchos carnavalescos. Ocorre que o recurso às memórias de guerra, embora presentes nessas configurações profissionais e recreativas, dissolveu-se em interesses próprios a cada uma dessas configurações. A formação da classe militar, no entanto, destoa dessa análise. Por serem instituições autônomas, o Exército e a Armada deram mais expressividade a suas reivindicações. Isso em comparação às insatisfações dos veteranos que não permaneceram na caserna. Os veteranos militares organizaram melhor o passado comum, visto que possuíam canais próprios de transmissão de ideias. Fizeram-no de maneira a dar sentido às expectativas e às frustrações da classe. Esse processo foi liderado por um grupo de oficiais de alta patente, veteranos do Paraguai em sua quase totalidade. Independentemente do teor da reivindicação militar, recorreu-se ao esforço despendido na guerra como forma de legitimação das exigências de classe. O fortalecimento da corporação militar, nessa perspectiva, deveu-se menos à ação conjunta de toda a hierarquia da caserna – isto é, do praça ao oficial-general – do que a um conjunto de veteranos interessados em robustecer a classe militar. Para compreender a formação do esprit de corps castrense após a Guerra do Paraguai, parecem elucidativas as definições de William Dudley. Segundo ele, o esprit de corps militar é caracterizado 1) por um alto grau de conhecimento sistemático e generalizado das Forças Armadas, fundados num sistema formal de treinamento; 2) por um alto grau de autonomia institucional na administração da coerção para finalidades de segurança nacional; 3) por um senso corporativo, que possa ser medido pela lealdade e pela disciplina; 4) por um desenvolvimento de 7 O número de egressos do Paraguai foi estipulado em acordo com o número de medalhas cunhadas para os veteranos pelo governo em 1870. Ver decreto n.4560, de 6 de agosto de 1870.

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controles internos visando à socialização profissional de recrutas e jovens oficiais; e 5) por um desenvolvimento de uma ética social profissional capaz de reconhecer que as habilidades militares devam beneficiar a nação como um todo (DUDLEY, 1976:103). As reformas militares da década de 1870, em especial a Lei de Recrutamento e a criação da Escola Militar da Praia Vermelha, foram conduzidas nos cinco sentidos apontados por Dudley. A lealdade e a disciplina corporativas adviriam, acreditava-se, da qualidade do treinamento dado aos novos recrutas. Haveria, assim, o desenvolvimento de uma ética profissional amparados por controles internos, em muito representados pelo sistema de promoções por mérito e por tempo de serviço. Ao todo, as Forças Armadas garantiriam maior autonomia institucional perante governo. A julgar pelo progressivo embate entre civis e militares da década de 1880, houve sólida formação do esprit de corps militar. Afirmava-se, em março de 1881, no jornal O Soldado: “Almejamos somente o que é de justiça: queremos tomar parte na administração do Estado, porque o Estado representa essa grande família, essa comunhão geral, que se chama sociedade brasileira”8. Ou seja que, de alguma forma, o esprit de corps militar, secundado por discursos caracterizados pela primeira pessoa do plural,passava a assumir feições de classe social. De que maneira podemos pensar a classe militar, não como classificação socio-profissional, mas como agente político? Consoante as ponderações de Antonio Gramsci, três momentos caracterizam a classe social: em primeiro lugar, haveria o momento econômico-corporativo, no qual solidariedades se dão no âmbito profissional; o segundo momento caracterizar-se-ia por solidariedades de interesses, no qual a classe procura o Estado para obter igualdade jurídica e política, reivindicando, portanto, participação na administração pública; o terceiro e último momento ocorreria quando as solidariedades de classe extrapolam as fronteiras da própria classe. Isto é, quando as solidariedades internas a uma classe buscam abranger outras classes, tecendo, assim, solidariedades externas. Nesse terceiro momento, conclui Gramsci, o interesse de classe torna-se partido (GRAMSCI, 1978). 8

O Soldado, 22/03/1881, p. 1, Biblioteca Nacional.

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A mobilização das memórias no Prata pelos veteranos militares, em primeiro lugar, serviu de base para a formação do esprit de corps castrense; em segundo lugar, esse esprit de corps caracterizou-se por forjar solidariedades próprios à caserna. O que, se acreditarmos nas colocações de Gramsci, coloca as Forças Armadas em condições análogas ao nascimento de uma classe social em sentido político. A consolidação da classe militar, no entanto, somente ganhou maior expressividade na última década do Império. III] A politização da caserna A partir da década de 1880, a classe militar passou a tomar feições de um partido. O fortalecimento da corporação redundou numa profissionalização do Exército e da Armada mais acentuada do que ocorrera antes da guerra. Essa profissionalização, por sua vez, permitiu à caserna constituir mecanismos de solidariedade e de controle interno. Criam-se escolas de treino, jornais, clubes e associações. Esses mecanismos tornaram mais claros, a um só tempo, ideais de estabilidade profissional e, correlativamente, expectativas quanto à concessão de direitos por parte do governo. A caserna buscou, graças a esses mecanismos, tecer solidariedade externas à classe militar, para melhor legitimar suas reivindicações perante os gabinetes. Julgou-se portadora da voz do povo, propositalmente usando o termo de forma ampla. Os militares mantiveram laços com os veteranos que haviam deixado o Exército ou a Armada: criaram, ainda na década de 1870, o Clube dos Voluntários da Pátria, mais tarde transformado em Associação dos Veteranos da Guerra do Paraguai. Quer-se dizer com isso que, ao extrapolar os limites das reivindicações exclusivamente corporativas, a classe militar politizou-se: tornou-se um partido. Embora seja certo que as expectativas de classe tenham variado em função das armas e das gerações dos militares, o recurso às memórias da Guerra do Paraguai permeou a classe como um todo 9. Melhor, era maneira de recordar aos civis, fossem eles do 9

Os posicionamentos políticos dos tarimbeiros, que estavam ligadas à infantaria e à cavalaria, não coincidiram com aqueles da mocidade militar, mais atreladas à artilharia. Não houve tampouco coincidência de reivindicações no seio da mesma geração de militares. Prova disso foi a divergência entre científicos, ligados à engenharia, e

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governo ou não, que o Exército e a Armada tinham legitimidade para incidir nos destinos do Estado. Em reiteradas ocasiões, o jornal O Soldado trazia à baila a politização das Forças Armadas. A classe militar, como todas as outras, tem o dever de se congregar em um corpo unido, afim de se fazer representar perante a nação. Se é a nós que está incumbido o dever de velar pela tranquilidade do Império, a nós também deve ser facultado o direito de representar a Nação [...]. A pátria não é propriedade deste bem daquele: ela pertence a todos, não só àqueles que tiveram nela berço, como aos que vêm conviver conosco [...]. Saudamos neste momento o povo, que é nosso companheiro de desgraça, vítima como nós da prepotência e do massacre. Nada nos separa no infortúnio e na sociedade: o soldado veste blusa militar, o povo a de cidadão. O soldado para o imposto de sangue, com o valor de suas armas; o povo para o imposto, tirando do seu trabalho manual o que poderia aplicar à família e a educação dos filhos. Quantos laços de união há entre nós! Tais são os elos que nos prendem!10

Apenas o grupo de veteranos que permaneceu na caserna alcançou o terceiro momento definido por Gramsci. Os veteranos civis que participaram de associações e sociedades de beneficência fizeram-no buscando sedimentar solidariedades internas às profissões que adquiriram após o regresso ao Brasil. Aqueles que se ligaram a organizações voltadas para a expressão dos interesses dos veteranos, como no caso do Clube dos Voluntários da Pátria, embora tenham procurado o Estado para satisfazer suas reivindicações, não foram além das solidariedades internas à organização. Os veteranos militares, no entanto, formaram uma classe politizada. Alain Rouquié argumenta que as Forças Armadas podem ser entendidas como partido, porque preenchem as mesmas funções elementares dos partidos eleitorais: à imagem desses, as Forças Armadas possuem processos de tomada de decisão, de articulação de interesses e de escolha de porta-vozes (ROUQUIÉ, 1980). O nascente partido militar não se dividiu no que concerne à oposição ao governo. Pelo contrário, foi esse o ponto de comunhão. A caserna passou a observar-se como instituição autônoma, capaz de valer-se da realidade extramilitar para impulsar transformações políticas. Os

tarimbeiros. A expressão tarimbeiro é empregada para designar os oficiais de perfil troupier [grifado no original], geralmente [associado às] armas de infantaria e de cavalaria, distintos dos científicos [geralmente associados à mocidade militar], que eram, em sua maioria, artilheiros e engenheiros (CASTRO, 1995, p. 24). 10 O Soldado, 22 de março de 1881, Biblioteca Nacional.

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veteranos da Guerra do Paraguai, pela legitimidade adquirida nos campos de batalha e pela posição hierárquica, na caserna, que ocupavam na década de 1880, tornaram-se porta-vozes do partido militar. Usaram a guerra externa para dar unidade, internamente, à caserna. Buscaram, enfim, dizer-se portadores das reivindicações da cidadania. A profissionalização dos tropas durante a Guerra do Paraguai contribuiu para dar maior expressividade à corporação militar no pós-guerra. Estaríamos aqui no momento econômico-corporativo. A corporação militar, ao criar mecanismos de controle e de solidariedade interna, colaborou para dar maior expressividade aos interesses castrenses. As Forças Armadas passaram a posicionar-se frontalmente contra o governo. Reclamaram espaço na administração pública, valendo-se da legitimidade conferida pelos esforços despendidos no Paraguai. Seria esse o momento das solidariedades de interesses. Em vista da incapacidade do governo em levar a cabo as reformas exigidas pela corporação militar, a caserna passou a dizer-se portavoz dos interesses dos governados, tornando-se, assim, um partido. Trata-se, enfim, do momento de solidariedades externas exposto Gramsci.

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___________. A proclamação da república. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. DUDLEY, William. Institutional sources of officer discontent in the Brazilian Army, 1870-1889.The Hispanic American historical review, vol. 55, no. 1. Feb., 1975, pp. 44-65. ___________, Professionalization and politicization as motivational factors in the Brazilian army coup of 15 November 1889.Journal of Latin American Studies, vol. 8, no. 1.May, 1976, pp. 101-125. IZECKSOHN, Vitor. O cerne da discórdia. A Guerra do Paraguai e o núcleo profissional do exército brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca do exército editora, 1997. KRAAY, Hendrik e WHIGHAM, Thomas (orgs.). I die withmy country: perspectives on the Paraguayan War. Nebraska: University of Nebraska Press, 2005. LEMOS, Renato. Benjamin Constant: the ‘Truth’ behind the Paraguayan War. In: MORAES GOMES, Marcelo Augusto. Tese de doutorado. A espuma das províncias: um estudo sobre os inválidos da pátria e o asilo dos inválidos da pátria, na Corte (1864-1930). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006. GRAMSCI, Antonio. Cahiers de prison. Cahiers 10, 11, 12 e 13. Paris: Éditions Gallimard, 1978. ____________. Escritos políticos. Vol. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. ROUQUIÉ, Alain. Les processus politiques dans les partis militaires au Brésil : stratégies de recherche et dynamique institutionnelle. In :________ (org)., Les partis militaires au Brésil. Paris : Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1980, p. 9-20. SALLES, Ricardo. A Guerra do Paraguai, a "questão servil" e a questão nacional no Brasil (1866-1871). In PAMPLONA, M. e STUVEN, A. M. (orgs.) Estado e nação no Brasil e no Chile ao longo do século XIX. Rio de Janeiro: Garamond Universitária e FAPERJ, 2010. ___________. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do Exército. São Paulo: Editora Paz & Terra, 1990. ___________. Guerra do Paraguai: memórias & imagens. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2003. SCHULZ, John. O exército na política. Origens da intervenção militar, 1850-1894. São Paulo: Editora EdUSP, 1994.

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