\"Esse rio nasceu da noite pro dia\". A Vila de Sucuriju, comunidade pesqueira do litoral do Amapá. (2006, bilíngue português-español)

October 12, 2017 | Autor: Carlos Sautchuk | Categoria: Amazonia, Caboclos, Anthropology of Fishing
Share Embed


Descrição do Produto

A POÉTICA DA PESCA: ENTRE ANIMAIS, ÁGUAS E MITOS Como pode a prática da pesca ter uma poética? A pequena Vila de Sucuriju dá uma resposta a esta pergunta. Ela esconde, em seu relativo isolamento, um mundo de sentidos, histórias e biografias que dotam essa atividade de uma riqueza de significados que vai muito além da sua imediata dimensão pragmática. Comprimidos entre o oceano e a Reserva Biológica do Lago Piratuba, os moradores de Sucuriju encaram sua realidade socioambiental com muito trabalho, construindo um universo de significados que se revela em suas práticas cotidianas e em seus discursos, como poderemos perceber no decorrer das páginas que se seguem. Uma história que precisa ser contada, uma realidade que merece visibilidade. No rico relato do antropólogo Carlos Emanuel Sautchuk, que inaugura a série de publicações da ACT Brasil Pensamentos dos Povos da Terra, o leitor terá a oportunidade de se aproximar desse pequeno grande mundo, conhecer seus protagonistas e perceber as nuances e singularidades das relações destes com o seu meio. Nesse contexto, práticas e saberes de pescadores e laguistas se articulam diretamente com os movimentos das águas, com o comportamento dos animais e entes mitológicos, com o ordenamento espaço-temporal, com a observação e compreensão dos astros. Um belo retrato da relação entre homens, mulheres e crianças com o meio ambiente, entre Cultura e Natureza. A partir dessa publicação, esperamos contribuir com os moradores da Vila de Sucuriju no sentido de trazer à tona a sua realidade e de tornar públicas suas dificuldades em construir alternativas econômicas sustentáveis, numa localidade limitada pela impossibilidade legal de uso dos recursos pesqueiros, por um lado, e pela exploração da pesca industrial, pelo lado das águas do Atlântico. “Esse rio abriu da noite pro dia”, além disso, demonstra que a presença e a ocupação humana em determinados ecossistemas não necessariamente são sinônimos de degradação ambiental, mas, ao contrário, pode ser a principal condição para a sua conservação. Vasco van Roosmalen Presidente ACT Brasil

“Esse rio abriu da noite pro dia” A Vila de Sucuriju, comunidade pesqueira do litoral do Amapá.

Carlos Emanuel Sautchuk

Brasília, Abril 2006 1ª Edição

“ESSE RIO ABRIU DA NOITE PRO DIA” – A VILA DE SUCURIJU, COMUNIDADE PESQUEIRA DO LITORAL DO AMAPÁ

SUCURIJU Com cerca de quinhentos e vinte habitantes, a Vila de Sucuriju (01º40’40’’N / 49º55’57’’W) está localizada na foz do rio de mesmo nome, ao norte do estuário do Amazonas, no Cabo Norte, costa do estado do Amapá, Brasil. Sendo continental, ela apresenta características insulares, já que a ligação com outras comunidades e centros urbanos ocorre apenas através do mar (em pelo menos 12 horas de viagem). Isso porque a região em torno – compreendida pela Reserva Biológica do Lago Piratuba, criada em 1980 – é composta por mangues, várzeas e lagos, que inviabilizam o contato com os campos do interior do estado (figuras 1 e 2). A Vila é composta por 113 construções dispostas ao longo de uma ponte, paralela ao rio, de pouco mais de um quilômetro. São 96 casas, 8 prédios públicos (escola, alojamento de professores, posto de saúde, agência distrital, colônia de pescadores, Igreja Católica, salão paroquial e Assembléia de Deus), 8 depósitos de peixe dos patrões de pesca e um bar (figura 3). Nos lanços (marés de sizígia) a água salgada cobre todo o terreno chegando a encontrar, nos meses de inverno, o mangue que fica atrás da Vila. Por isso todas as construções são elevadas cerca de um metro e meio em relação ao solo. Essa altura diminui periodicamente e deve ser restabelecida com a elevação da ponte e demais construções (todas em madeira), já que “a terra de ano em ano tem uma diferença, ela cresce”, em função da constante transformação física desta região litorânea1. A água do rio é salobra, devido à forte e constante entrada das marés, e as águas da chuva é que são utilizadas para o consumo. No inverno é provi1 Ver a tese de doutorado de Odete F. Silveira, A planície costeira do Amapá: dinâmica de ambiente costeiro influenciado por grandes fontes fluviais quaternárias. Belém; Centro de Geociências/UFPA; 1998.



denciado seu armazenamento em duas cisternas para suprir as necessidades do período de estiagem, que se estende de agosto a dezembro. Nesses meses a água é distribuída através de um sistema de cotas semanais. Em 2004, o cálculo do agente distrital estabeleceu em 30 litros por pessoa, a serem retirados todos os sábados. Como não raro acontece, naquele ano as cisternas estavam vazias duas semanas antes das primeiras chuvas. Em ocasiões como esta, quando não é enviada de Macapá uma lancha com água potável, os proprietários de barcos vão à foz do Amazonas para recolher água, e outros sobem aos lagos para fazer o mesmo ou para permanecer lá com a família até o início das chuvas. A água é um tema muito importante no Sucuriju pela dificuldade de obtêla para o consumo, e também por ser um elemento central na diferenciação dos três ambientes que compõem a cosmologia local – a Vila, o Lago e o Mar – como veremos mais adiante. A falta de água potável (aliada ao difícil acesso e à precariedade ou ausência dos serviços básicos oferecidos pelo Estado) é um aspecto central na composição da identidade da Vila de Sucuriju, tanto no discurso dos habitantes de outras localidades e dos funcionários públicos que visitam a vila, como na concepção da população local. É possível notá-lo na própria distribuição e utilização do espaço na Vila e na importância atribuída aos objetos domésticos. A primeira cisterna foi construída em meados da década de 1980, com a iniciativa de um padre italiano, e se estabeleceu como uma praça. Posicionada entre a Igreja, o salão paroquial, a Colônia de Pescadores e a Agência Distrital, a cisterna é o pátio onde as festas, reuniões e brincadeiras encontram lugar e é também o local de distribuição da água todos os sábados. A outra cisterna, construída na década de 1990, também se tornou um local de agrupamento. Seu conteúdo é reservado ao abastecimento dos barcos de pesca no período de estiagem. Nos meses de inverno, a água das chuvas deve ser trazida das cisternas para as casas nos meses de estiagem, ou armazenada a partir do telhado das próprias residência, o que confere grande importância aos frascos, dentre os utensílios da casa. Eles são de 20 até 200 litros e uma unidade doméstica deve contar com um número de frascos compatível com seu tamanho, e por isso eles são oferecidos inclusive como presente de casamento. Num passado recente a obtenção de frascos era mais difícil, mas com sua produção em material plástico, o custo diminuiu e o desgaste pela oxidação não é mais problema. Ademais, hoje em



dia é mais fácil encontrar frascos encostados nas praias, caídos de barcos ou navios, e sua “coleta”, assim como a de materiais como bóias e linhas, constitui uma atividade costumeira – uma espécie de extrativismo da era industrial. De todo modo, a quantidade de recipientes em uma casa é um bom indicador da prosperidade da família. A utilização alternada da água doce (da chuva) e salgada (do rio) varia de acordo com a época do ano e é motivo de uma contínua regulação das atividades domésticas. O consumo e a preparação de alimentos utilizam sempre a água doce, mas o banho e a lavagem de roupas alternam sua fonte, e o uso da agua salgada é uma indicação de escassez. No período final da seca, novas regras para as atividades domésticas são impostas. Apesar da escassez, os recipientes ficam muitas vezes dispostos nas varandas, sem que haja uma preocupação em resguardá-lo no interior das casas. As casas têm variações em sua forma de construção, algumas com dois pisos, com divisões entre quarto, sala, cozinha, mas a maioria é composta de um grande quadrilátero, às vezes dividido ao meio com madeira ou com uma cortina que separa a parte dianteira – a sala com o aparelho de som e/ou a televisão (1/3 das casas dispõe de TV) – da parte de trás, onde ficam a cozinha e os objetos pessoais. O fato é que a casa em si não constitui uma fronteira definida de separação entre o público e o privado. As janelas muitas vezes são aberturas protegidas da chuva por lonas plásticas, e a parte de trás da casa, em boa parte dos casos, é aberta. As refeições têm lugar na varanda, à beira da ponte. A sesta e muitas outras atividades também são realizadas ali, dotando a varanda de uma grande importância nas atividades diurnas, onde o calor é amenizado pela brisa e pela sombra. O que delimita o domínio de privacidade é a rede. Ir para a rede e fechar o mosquiteiro é sinal de que alguém não quer mais ser perturbado, seja em casa ou nas feitorias (palafitas utilizadas durante as expedições de pesca no Lago). Estar nesse domínio transforma mesmo a disposição da pessoa. É comum ouvir alguém dizer que “fulano passou lá em casa” ou “ouvi uma confusão, mas eu já estava na rede” como uma maneira de explicar por que não respondeu, por que esteve alheio a uma situação. Portanto, afirmar que saiu de sua rede para fazer algo demonstra a importância de que se revestia certa atividade. Ainda, dizer que compartilha a privacidade



da rede com alguém é uma forma de indicar o casamento (em grande parte dos casos é sua única marcação simbólica), assim como dizer que fulano “não tem nem rede” é uma maneira de apontar a falta do mínimo necessário a uma vida em família. O número de casas e a população da vila já foram maiores. Na década de 1960 havia postos policial, de arrecadação tributária e de saúde em pleno funcionamento. Armadores de pesca atuavam no local, com frotas de barcos trazidas de Belém. Durante esse período, a população superava os mil habitantes. A partir do início da década de 1980, entretanto, houve um decréscimo populacional e a desestruturação dos serviços públicos. Este êxodo é explicado, sobretudo, pela falta de água potável (a primeira das duas cisternas foi construída em 1986) e de ensino a partir da 4a série. Mas outras mudanças, de caráter econômico, tiveram influência nesta emigração. A intensificação da pesca industrial na costa do Amapá, com frotas oriundas de Belém e de estados do nordeste, dotadas de apetrechos modernos e capazes de conservar o pescado resfriado, restringiu os barcos do Sucuriju às proximidades da costa. Indo para fora, onde ficam os geleiros, além da disputa desigual pelo recurso, os pescadores do Sucuriju correm o risco da perda de redes ou linhas e mesmo de naufrágio, devido ao porte dos apetrechos daqueles barcos. Os grandes armadores de pesca emigraram da vila, continuando a investir na pesca a partir de Belém ou simplesmente deixando a atividade. A vila existe há cerca de oitenta anos, segundo o relato dos moradores mais antigos, e a forma como contam seu mito de origem indica a relevância do contato com a sociedade envolvente na sua existência. Senão vejamos: Até a década de 1920, no lugar onde hoje é a Vila Sucuriju havia apenas algumas feitorias, que eram utilizadas, durante as temporadas de pesca no mar, por pescadores que vinham sobretudo do Arquipélago do Bailique. Os “Antigos” habitantes da região ficavam no Lago, vindo à costa apenas para vender o peixe e comprar alimentos.“Os que trabalhavam pro Lago, era só morador daqui, que morava aqui”. “Esse rio aqui que nós chamamos hoje o Sucuriju, não existia”. No lugar do rio havia uma enseada, “que não tem varada para canto nenhum”. Havia um “barranco”, uma “praia”, que impedia o contato com o mar. Era um tempo onde se “passava necessidade”, devido à dificuldade para a chegada de embarcações trazendo mercadorias.

10

“Isso era tapado! Olha, quando chegava a [embarcação] freteira, daí aparecia uma vara [o mastro] aí fora, a praia era enorme. Então de lá que passava a mercadoria, uma mercadoriazinha. Aqui já houve miséria, meu amigo! Já houve miséria aqui nesse lugar! Você comer sem farinha...”. Então fizeram uma promessa para Nossa Senhora de Nazaré: se a praia se tornasse rio, rezariam em agradecimento todos os anos, durante oito noites. Numa noite de tempestade, com chuva, vento, cerração, trovão, raio, ouviu-se um estrondo muito grande, que não vinha do céu, mas de baixo. Quando amanheceu, o rio já existia: “abriu da noite pro dia”. “Foi um sucuriju que varou, que veio rasgando com essa terra toda e abriu esse rio aqui”. “Essa cobra veio de lá [do Lago], d’um rego muito grande, muito fundo, que chamam rego do Urubu. Essa cobra desceu de lá e veio embora, rasgando por aí, abriu esse rio aí, aí foi, foi, foi. Correu, foi abrindo, foi abrindo, deu certo na época do inverno, ele foi alargando. Ficou muito fundo (...) Foi assim que foi o negócio. Assim que abriu o rio que hoje é chamado o Sucuriju”. Assim, “pôde varar água, que não escorria água [antes]”. “Aí começou o Sucuriju [a Vila], daí que foi o Sucuriju”. (relatos de Dona Tudica, Seu Branco e Seu Nestor)

A localidade, que antes se resumia a algumas feitorias de pescadores, ficou “vilada”. Surgiu uma vila, e isto significou a convergência, para um mesmo lugar, dos Antigos, que moravam e trabalhavam no Lago, e de pescadores do mar, que ao longo dos anos vieram residir ali, oriundos principalmente das ilhas da foz do Amazonas, como o arquipélago do Bailique, das comunidades ribeirinhas do Araguari e da cidade de Amapá. O fato de a desembocadura do rio, que antes era fechada, ter se aberto (o que pode ser verificado também em mapas antigos) simboliza o começo da Vila do Sucuriju. Este episódio é considerado como o início de um novo tempo, quando o contato com embarcações dos centros urbanos se torna viável. A fundação da Vila é considerada como a conexão com a sociedade ao redor, o que foi possível devido à abertura ao movimento das águas salgadas (marés), melhorando a navegação e o comércio. Além de mostrar a dependência do comércio para a obtenção de tudo aquilo que não seja produto da pesca – principalmente a farinha de mandioca –, o que reflete um dos aspectos centrais da economia da vila, o mito indica a

11

importância no Sucuriju de duas atividades econômicas muito praticadas na região da foz do rio Amazonas. Os dois grupos de habitantes que se reúnem no mito de origem da Vila representam os dois tipos de pesca que existem neste complexo – a pesca costeira, realizada no litoral do Pará e do Amapá e nas ilhas do delta amazônico, e a pesca de rios e lagos, praticada pelas comunidades ribeirinhas. As duas atividades se fazem presentes atualmente no Sucuriju, através do contraste entre o Mar e o Lago. Esses dois ambientes têm uma importância central não só para a economia e a cosmologia locais, mas também nas habilidades técnicas dos habitantes, como veremos mais adiante. A especialização dos pescadores nos serviços do lago e do mar ocorre de acordo com a estrutura de parentesco. Trinta e dois dos núcleos familiares são de laguistas e quarenta e nove de pescadores de fora (do mar). Na vila existe uma diferenciação entre eles, mas também uma noção de pertencimento mais amplo para os dois tipos de pescadores. Isto é, laguistas e pescadores são contrapostos no âmbito simbólico (o que se manifesta especialmente por ocasião das competições durante a festa da padroeira, Nossa Senhora de Nazaré), mas há uma complementaridade entre eles no que diz respeito tanto ao aporte econômico quanto à própria mitologia da vila, como foi mencionado. Quando o ponto de referência é a Vila como um todo, pescadores de fora e laguistas são considerados pescadores. O mito do surgimento do Sucuriju refere-se também à origem da maneira específica de viver o tempo na vila, que conjuga ritmos diferentes, devido ao posicionamento desta entre o mar e os lagos. Neste episódio, a Cobra-Grande, animal pertencente ao Lago – domínio das águas paradas – desce para abrir a boca do rio, possibilitando a entrada da maré e dando origem ao trânsito e ao comércio necessários à fundação da vila, cujo surgimento ocorre simultaneamente com o rio, ambos com o nome do animal mítico, o que indica a importância da relação entre o lago e o mar na sua configuração. Se o rio Sucuriju é, em toda a sua extensão, espaço de encontro da água doce, limpa e calma que desce vagarosamente dos lagos com a água salgada, barrenta e movimentada que sobe em golpes violentos a partir do mar, a Vila do Sucuriju expressa em seu cotidiano as influências desses dois ritmos diferentes. Além do ambiente, das técnicas e do aporte econômico distintos, o lago e o mar envolvem temporalidades diferentes, que se fazem sentir no dia-a-dia na vila.

12

Na pesca marítima o que orienta a saída, a chegada e o deslocamento dos barcos é o fluxo das águas. Nesta região a intensidade e a grade variação das marés aliada à pouca profundidade só permite navegar em determinados locais com a maré cheia. “Aqui é tudo por maré!”, diz um pescador impaciente com os questionamentos de um grupo de funcionários sobre os horários do transporte desde Macapá. É por isso que para dar a entender, em sentido figurado, que alguém esteve rapidamente no Sucuriju, diz-se que “veio e voltou na mesma maré”. O trabalho no mar é considerado mais árduo porque deve obedecer ao ritmo inconstante das águas na colocação e recolhimento de linhas e redes, ficando em segundo plano o dia, a noite e as condições climáticas. Esse ritmo influi na temporalidade da vila, não apenas porque a maré faz com que o rio suba, desça e tenha níveis de salinidade diferentes ao longo do dia, mas também porque os preparativos dos pescadores obedecem a esse fluxo, tendo em vista uma saída próxima, a chegada de um barco, uma maré propícia que se aproxima etc. Em função das “marés de lanço” (em lua cheia ou nova), existem períodos em que os barcos estão nos trapiches e outros em que quase todos estão pescando. A temporalidade vivida do Lago também está presente no cotidiano da vila. Naquele ambiente o pescador sempre pode esperar pelo dia, pela luz; também é possível evitar sair nos horários mais quentes do dia. O fluxo da água não exerce sobre ele nenhum imperativo; é o ritmo ordenado dos astros e o comportamento dos peixes que coordenam as atividades do pescador, estabelecendo períodos bem definidos de trabalho e descanso. Na vila, a evolução dos astros (e seus efeitos como luz e calor) é também muito importante, pois de acordo com ela se estabelece uma rotina de sono, trabalho e alimentação considerada digna. A possibilidade da rotina e do respeito às condições climáticas e ao calendário (domingos) é um fator comum ao Lago e à Vila. Mas além da maré e dos astros, há uma outra dimensão temporal que influencia as atividades no Sucuriju: a marcação das horas. O sistema de medição do tempo em horas se faz presente basicamente em três tipos de atividade: as atividades escolares, os programas de televisão e as chamadas telefônicas. Esses são os acontecimentos que justificam a importância do relógio no cotidiano da vila, e eles se desenvolvem a princípio sem nenhuma influência do movimento dos astros ou do nível do rio. Essas três temporalidades – maré, astros e relógio

13

– têm níveis distintos de aplicação, que muitas vezes entram em conflito. Uma chamada telefônica marcada para uma determinada hora pode não ser aguardada atendida porque a água subiu e é o momento de aproveitar para fazer algo no barco ou encher os frascos de água nos trapiches. O motor gerador, que normalmente funciona a partir das 18 horas até o fim da novela, não raro se danifica ou pára por falta de combustível, e então uma aula noturna pode ser interrompida pela escuridão. Mas, em geral, a indicação do relógio é tão irrelevante para a saída de um barco quanto a maré para o término de uma aula ou a lua para o início da novela. Quer dizer, são níveis de temporalidade distintos, caracterizando diferentes planos de cognição e de ação. Tanto é assim que as tentativas de traduzir em horas o movimento das águas são absolutamente inexatas. Um exemplo: quando perguntei a que horas seria a preamar, um pescador calculou 13h30min, depois de observar o rio e de informar-se que naquele momento eram 12h30min. Porém, a maré esteve cheia somente às 16h. Isso demonstra não um equívoco do pescador, mas o despropósito da pergunta. A conversão ao ritmo regular das horas não é algo importante para a orientação das atividades que funcionam articuladas ao fluxo da água. Tripulantes e passageiros dão um ritmo adequado às tarefas preparativas ao embarque e se colocam no trapiche no momento certo da saída de um barco, não porque tenham relógio, mas porque enxergam o rio. Isso explica porque alguém que seja recém-chegado na vila pode se encontrar várias vezes adiantado ou atrasado nos embarques, mesmo chegando na hora previamente acertada. Esta relação de predomínio entre diferentes temporalidades nos três ambientes pode ser esquematizada no seguinte quadro: Lago Elementos ordenadores do tempo

astros (dia/noite)

Vila astros (dia/noite) maré relógio

Mar maré

Entretanto, estes elementos que conferem ordem ao tempo no Sucuriju não podem ser tratados como determinantes naturais (no caso da maré e dos astros) ou imposições externas (no caso das horas) aos quais a vida na vila bus-

14

caria simplesmente se adaptar. Esses elementos ganham sentido em função das atividades e saberes locais. Assim, quando um pescador diz que uma maré não é boa para sair, ele não se refere apenas ao deslocamento das águas marítimas, mas aos seus conhecimentos de navegação e pesca, aos instrumentos e embarcações de que dispõe, às suas concepções a respeito do trabalho, à possibilidade de pescar um determinado peixe (e de vendê-lo depois). Tanto é assim que, num dado momento, a maré pode representar um impedimento à saída de um barco, mas não de outro, a depender da potência de seus motores, da habilidade de seus pilotos para atravessar a barra do rio, etc. LAGO Lago é o termo que remete a uma grande região alagada, no interior da Reserva Biológica do Lago Piratuba, onde existem vários lagos e enseadas com nomes diferentes e de onde surgem igarapés e rios, como o próprio Sucuriju (figuras 1 e 2). Como dizíamos, o tempo no lago é dado de acordo com os astros (noite/ dia), e não conforme a maré. Lá tem sempre água potável, em contraste com a Vila, onde a água do rio é salobra boa parte do tempo. No Lago não há maré, isto é, a água não se movimenta. Há uma variação de cerca de dois metros em seu nível entre a época seca e chuvosa, mas a água não tem um fluxo que influencie no trabalho da pesca, como no mar. Apenas na época da seca as marés lançantes invadem os lagos periféricos, deixando a água salobra. “No Lago a maré é parada, a água não corre. Lá você pode andar toda hora; qualquer hora é hora”. (Maço)

O Lago, além de estar associado à ancestralidade da Vila – pois ali habitavam os Antigos, é considerado um lugar extremamente aprazível em função de sua beleza, para a qual concorrem com grande importância as características de sua água: doce, limpa e sem movimento. “Já imaginou uma casa aqui [no Lago]? Debaixo de uma árvore dessas, com sombra, uma água bonita dessas? Só falta colocar um motor [gerador] e uma parabólica”.

Se o Lago é considerado o lugar da fruição estética, do conforto (água doce, descanso), ele é também o domínio das visagens e as malinezas, onde existe a possibilidade de confronto com certos animais – representada pelo

15

perigo dos ataques do jacaré-açu, do sucuriju e da onça. Apesar do trabalho mais tranqüilo, devido a uma temporalidade agradável, o pescador do lago não deixa de enfrentar os perigos inerentes a este lugar: “O serviço mais manso pra pescar é o do Lago. Uma hora dessas [após o pôr-do-sol] você já está deitado, não tem a maré na hora que der pra colher a linha ou a rede [como no mar]. Dorme a noite toda, se estiver chovendo não vai, merenda com calma. No Lago tem os perigos dos animais te baterem. Uma cobra pode te pegar (...). Hoje os jacarés do jeito que estão brutos...” (Seu Nestor)

No lago o trabalho se desenrola de acordo com a luminosidade, o calor, o vento, e o comportamento dos animais. Os horários preferenciais para pescar o pirarucu são o início da manhã e o fim da tarde, em função do comportamento do peixe, mas também porque nestes períodos o vento diminui e os sinais na superfície da água podem ser observados. Para descer do lago rumo à Vila, nos meses em que o rio está seco, é preciso aguardar a chegada da maré nas suas cabeceiras, para então baixar junto com ela; ou pelo menos evitar encontrá-la no meio da descida, principalmente nos períodos de lanço, pois há o risco da pororoca e, quando não, é impossível vencer a correnteza a remo. O fator negativo de descer o rio junto com a maré vazante é que quando se chega na Vila o nível da água está baixo, e então são mais de cem metros de lama nos joelhos para atravessar. Quando leva bastante carga, o laguista permanece em sua montaria, debaixo do sol, esperando que a maré encha e o leve até o trapiche. As indicações tanto da força da maré em determinado dia quanto do momento de sua chegada nas cabeceiras do rio, que são essenciais às estratégias de deslocamento, são obtidas pelo laguista através do movimento e da forma da lua. De onde estiver na região dos lagos, o pescador coordena seu deslocamento ao da lua, para chegar às cabeceiras do rio em consonância com um fluxo favorável da água. A pesca no Lago é realizada em canoas (montarias) a remo para duas pessoas, utilizando sobretudo o arpão, e o peixe mais importante é o Pirarucu (Arapaima gigas). Há ainda os chamados peixinhos – Tucunaré (Cichla sp.), Aruanã (Osteoglossum bicirrhosum) e Piramutaba (Brachyplatystoma vaillant) – que são capturados com artes de pesca consideradas menos importantes, como zagaia, tarrafa, rede, e linha de mão.

16

A entidade preeminente nessa pesca é o proeiro. Esse pescador especialista em arpoar é que vai ao Lago em sua montaria, com seu piloto. Ele não só é a unidade à qual se concede o crédito – avia-se o proeiro, não a montaria – como é o elemento identificado nos deslocamentos através dos lagos. Diz-se normalmente que “fulano está em tal lugar”, ou que “foi embora ontem”, sem referência ao piloto ou à montaria. Ou melhor, estes ficam compreendidos na figura do proeiro. A forma de captura também indica o papel central do proeiro, já que ela resulta de seu duelo pessoal com o pirarucu, numa relação de enfrentamento e de esperteza. Assim como vários animais do lago, a exemplo do jacaré, do sucuriju, da piranha, do macaco, o pirarucu é dotado de uma personalidade específica, que se caracteriza pela interação ativa com o homem, ainda que não o ameace fisicamente como os dois primeiros. A sua capacidade para fugir e lograr ou, inversamente, o fato de se entregar em alguns momentos, tem como correlato o engajamento pleno do laguista nesse jogo de percepções e habilidades. Na proa da montaria, ele se mantém atento aos sinais do peixe, traçando estratégias e guiando o piloto através dos seus sinais, no mais absoluto silêncio. Chegado o momento oportuno, o proeiro se levanta de haste em punho e lança, para em seguida puxar o peixe através da arpoeira, a corda presa ao arpão. Eis o gesto principal dessa pesca, que representa o tema central das considerações sobre o trabalho no Lago. É importante dizer que a água dos lagos é escura, e que o laguista deve estimar a posição do pirarucu com base em três tipos de sinais emitidos pelo peixe: a siriringa, bolhas brancas que emergem conforme o peixe se arrasta na matéria orgânica do fundo; o carculo, ondulações na superfície quando ele vai a meia água; e o buio, ação com um som característico, quando o pirarucu vem à superfície para respirar. São vários os tipos de buio, classificados de acordo com o comportamento do peixe: brabo, dobrado-manso e bem manso. A caçada começa realmente a partir do momento em que o laguista identifica o pirarucu através desses sinais. O objetivo é encontrar a melhor posição e lançar a haste sem ser percebido pelo peixe. Se, porém, o animal nota a presença do pescador, então todos os cuidados por passar desapercebido são suspensos repentinamente. A situação é outra: o peixe tentará fugir

17

e é preciso persegui-lo. Este confronto pode ser considerado uma espécie de duelo na medida em que o laguista respeita o pirarucu, valorizando suas capacidades e o considerando um rival capaz de vencê-lo. “Ele se defende. Deus o livre! as vez você tá enxergando ele assim, ‘pô, eu acerto esse rumo aqui’, no que você solta a haste das mão, ele já dobrou, já dobrou, já não pega mais nele! O bicho é tão veloz, o pirarucu, que é um peixe muito péssimo mesmo. (...) Na tua vista você tá enxergando que [ele] vai andando, vai atravessado, vai de proa, vem de rabo, mas se tu for arpoar ele, no choque da tua arpoada, se tu não souber arpoar, ele já se espantou lá na frente, já não pega mais, vai pegar só o rasto dele. Ele já foi muitos tempo. Na água clara, um pirarucu de buio, na água clara, é muito ruim de arpoar ele. É ruim porque o peixe quando ele buia, ele buia manso, a gente levanta aqui com força, é levantar e ele bater logo lá, não deixa nem a gente soltar a haste da mão. Já bateu, já percebeu a gente aqui.(...) Ele vê no choque da montaria [na água] que a gente levanta, ele conhece. Pirarucu é! As vez a gente arpoa, que quando a gente solta a haste da mão... Pirarucu buia como essa vara aí ó [a cerca de 15 metros], a gente levanta daqui, quando a gente vai soltar a haste da mão, que já vai enviar a haste, ele já bateu lá, a haste já não pega mais nada. (...) Ele ouve, não pode falar. Por isso que a gente não fala quando a gente topa um pirarucu, por causa disso. Ele é muito vivo, ele sente. A intenção dele é só lograr a gente. Pirarucu é. Ele não tem outra saída pra ele se não for lograr a gente.” (Maçó)

Não fosse o bastante a fineza (esperteza) do pirarucu, a arpoada ainda tem uma outra nuance, que confere ao peixe o lance capital de sua própria captura: o arpão não entra no momento em que encontra o pirarucu, a menos que ele se espante, dobrando o corpo e abrindo as escamas. Quando o espanto ocorre antes, ele se desvia da arpoada; quando ocorre depois, o arpão não penetra. Além disso, a pesca do pirarucu está fortemente relacionada aos aspectos simbólicos referentes à pessoa do pescador (sua constituição e comportamento) e à forma como é utilizado o peixe por ele distribuído. As mulheres grávidas não devem comer a carne (embiara) de um animal capturado por um laguista, assim como é arriscado que uma criança rejeite o prato com peixe que lhe é oferecido. E com o pirarucu o risco é ainda maior, pois ele é muito desconfiado. Vários cuidados são tomados para contornar esses perigos, pois eles podem tornar o pescador panema, isto é, incapaz de pescar.

18

“Você pode tá bom pra pirarucu, e você tando bom ele vem dali e vem morrer aqui na sua ilharga. Mas ele tando desconfiado com você ele passa por ali, ó. Nem olha pra gente. Ele vem, tu encontra com ele aqui, vem, vem, vem, quando chega aqui ele para. Pode arpoar lá o dia inteiro. Lá não tá. Isso se chama a tar de desconfessão, desconfiança.” (Seu Branco).

São basicamente três os signos do bom proeiro. A prática refere-se ao manejo do arpão, na medida em que essa habilidade significa uma percepção apurada, determinada por um profundo conhecimento das finezas do pirarucu, incluindo seu comportamento e sua maneira de reagir. A felicidade indica a sorte da qual todo bom laguista depende; ela se opõe à panema e está ligada a um sistema simbólico marcado por temas recorrentes na Amazônia, como a malineza, as visagens e os donos dos animais. Por último, o fato de ter pilotado a canoa para proeiros de prestígio é referido pelos laguistas como forma de compor uma identificação positiva. Passando quinzenas2 no Lago desde pequenos, com oito anos muitos meninos já se tornam pilotos, normalmente trabalhando para algum parente. A partir de então passam por uma formação, tida como um ensino professoral por parte do proeiro, que dura pelo menos seis anos e termina normalmente quando o jovem constitui uma unidade doméstica autônoma e passa a ser “responsável do seu serviço”, ocupando a proa de sua própria montaria. A relação proeiro-piloto é extremamente valorizada; há inclusive trocas de posições ritualizadas, aos domingos. Essa relação é uma instituição central para a reprodução da pesca no lago. Como veremos a seguir, a prática é também importante na pesca do mar, principalmente para a tarefa de jogar o anzol, mas é no Lago que lhe é conferido maior destaque. A formação do proeiro é um processo longo e constante de ganhar a prática com o manejo do arpão e com o pirarucu. A “prática do pirarucu”, aliás, é considerada uma ciência que envolve profundo conhecimento do comportamento do animal e das estratégias para perseguilo. Mas deve ser citado também o processo de se acostumar ao serviço, que 2 Termo que designa um período, variável, de permanência na pesca. No lago equivale a um mês, em média, no mar normalmente dura três lanços, ou 21 dias.

19

remete à capacidade de suportar determinada situação. Na pesca do lago este termo está ligado à subida e à baixada do rio a remo, tidas como as tarefas mais árduas dessa pesca, chegando a durar mais de quinze horas seguidas no período da seca. MAR Na região do Cabo Norte, o mar tem três características importantes, ressaltadas pela população do Sucuriju. Uma delas é água barrenta, resultado da grande quantidade de partículas sólidas despejada pelo Amazonas; outra é o fluxo intenso das águas, que determina uma grande amplitude de variação das marés e o fenômeno da pororoca; por fim, a pouca profundidade e as constantes modificações físicas da região costeira fazem com que a navegação seja estritamente dependente da maré e bastante arriscada. “Esta costa do Norte não há ninguém que pode dizer que conhece bem. Isso aqui muda muito. Se você passa dois anos sem passar em um lugar, você não sabe mais como é que está”. (Diógenes)

O Mar é tido como um lugar perigoso e inóspito, onde a temporalidade da maré é que orienta o ritmo do trabalho e das atividades em geral, e o simples fato de estar embarcado exige esforço e disposição. “A vida marítima é sacrificosa, é uma vida ruim pra quem não se acostuma muito. (...) É porque, olhe, nós aqui, nós temo conversando, temo quietos, temo parados. Lá no mar, nós pode tá até conversando, mas não temo parado assim. Nós temos ó [faz movimento de balançar o corpo], pra cá, pr’ali, conversando... conforme o mar, assim nós temo. Nós vamos deitar pra dormir, nós não dorme sossegado, nós temos que tá rolando na rede ou na cama, no belicho lá da embarcação. Mesmo que tem [cama], mas você não tá quieto, você tá sempre se mexendo de um lado pra outro. Porque o mar não deixa. Então é isso que a pessoa não se acostuma. Ele vai pra fora, faz uma quinzena, mas na outra ele não quer ir mais. Tem pessoas que não, pra ele tanto faz tá no mar como em terra é a mesma coisa.” (Seu Nestor)

No mar são utilizados barcos motorizados, de oito a doze metros de comprimento, com três ou mais tripulantes, para a captura da Gurijuba (Arius

20

parkerii), especialmente, com espinhel (linha com centenas de anzóis). O que valoriza a Gurijuba é sua bexiga natatória, exportada para consumo e para produção de colas, e que rende ao pescador em torno de três vezes mais do que sua carne. Pescam-se também outros peixes, como Bagre (Arius sp.), Uritinga (Arius proops), Pescada amarela (Cynoscion acoupa) e Dourada (Brachyplatystoma flavicans). A entidade que organiza o trabalho no mar é o barco, termo que denota, além da embarcação em si, o motor, os apetrechos e a tripulação. Sendo a unidade de produção e de crédito, o barco é também o elemento que se movimenta, tanto em busca do peixe através do mar quanto em sua dinâmica interna de trabalho. Seu nome, suas características específicas, como a velocidade e a maneira de enfrentar a maresia (ondulações), suas histórias, a qualidade de seus apetrechos e da tripulação que o compõe, tudo isso opera em conjunto para delinear a identidade do barco. No Sucuriju são 32 barcos, sendo 28 proprietários. Na última década os programas de financiamento estatal têm feito com que a propriedade esteja mais disseminada do que fora antes, quando alguns patrões eram donos de boa parte da frota. O barco é que seca, que vira, que pega o fundo. O relato do naufrágio de um barco diz que ele “secou na costa do Pará”. E eles têm características que os singularizam: “este é um barco certo”, ou que “tomba muito”, ou que “é bom de porrada”, etc. Essas características são determinantes no âmbito do trabalho. É porque um barco “cai demais na maresia” que um jovem pescador hesitou durante algum tempo em se tornar encarregado dele. Depois de um período como camarada, ele adquiriu confiança no barco, aprendeu a lidar com suas particularidades, e pôde aceitar a oferta do dono. No trabalho no barco, as atividades individuais são coordenadas em função de uma ação do conjunto. Assim, aprende-se a pescar entrando como tripulante e engajando-se nas diversas tarefas que o serviço no barco determina, pois não há especialização, a não ser a do encarregado, e apenas naquilo que concerne à gerência do serviço e à responsabilidade pelo barco. O lançamento ao mar da linha com os anzóis, mesmo não sendo executado por um especialista, é considerado a principal atividade da pesca no mar. Tarefa arriscada, seu sucesso depende da habilidade do pescador em incor-

21

porar-se ao sistema do barco, fechando o ciclo de um movimento fundado em sofisticada coordenação. Sobre o convés embalado pelas ondas, jogando cada anzol ao mar em menos de um segundo, o pescador deve sintonizar precisamente seus movimentos à tensão ótima da linha, que é o resultado da atuação dos outros camaradas (que jogam os ferros e as bóias conectados à linha) e da velocidade do motor e da maré. A coordenação é primordial: o fluxo da água, a direção do barco, a velocidade do motor, a ligeireza do jogador de anzol e do jogador de ferro devem estar corretamente vinculados, constituindo um todo harmônico expresso na tensão ótima da linha. Nem muito entesada, capaz de fisgar o pescador ou ir para a água embolada, nem muito frouxa que possa pegar na hélice do motor ou enterrar os anzóis no fundo. O jogador de anzol é que dá o fecho a todo este sistema. Para tanto, ele deve ser ágil, percebendo a relação barco-água, a força da linha e o momento em que o ferro será jogado pelo outro pescador. Um descompasso nesse sistema de múltiplas variáveis pode acarretar não apenas a diminuição da produção, mas também a avaria dos apetrechos ou um acidente com o pescador que joga os anzóis. Nas situações extremas, quando a linha entesa rapidamente em suas mãos, resultado de algum desequilíbrio neste sistema, o lançador terá de decidir entre jogar a linha enrolada mesmo (diminuindo a produtividade) ou tentar desembaraçá-la, o que pode dar chance a ser fisgado pelo anzol. Como forma de reagir a uma fisgada, que o levaria ao fundo, o jogador de anzol tem sempre à cintura uma faca para cortar a linha. Esse é um tema recorrente das conversas, gerando ditados como aquele onde se avisa que “o anzol só tem uma volta, mas ele não erra!”. Os casos ocorridos não deixam de ser lembrados: “... quando o anzol fisga ele [o pescador], ele já vai com tudo, a maré tira ele pra fora do barco. Olha, esse rapaz aí se fisgou aí. A linha tirou ele de cima do convés, jogou ele por cima da casinhola, ele caiu nesse redondo [de popa], a sorte que ele caiu e bem do lado do botijão [de gás] tinha uma faca dele cortar isca. Aí ele pegou a faca e foi com ela pro fundo e cortou a linha do anzol. De lá ele buiou.” (Júnior)

Se a habilidade do jogador de anzol reside justamente em se integrar bem ao ritmo do barco, os sinais de prestígio do bom pescador de uma

22

forma geral são o seu esforço e a aplicação nos serviços que a dinâmica do barco impõe. Especialmente porque esse serviço obedece a uma temporalidade ingrata, orientada pela dinâmica das marés, que não respeita os horários habituais de sono e alimentação, os dias de descanso ou as condições climáticas. Por isso o fato mesmo de permanecer no mar, realizando um trabalho árduo, com os apetrechos pesados e a água salgada e barrenta agredindo as mãos, faz com que o grau de disposição seja indicador do prestígio do pescador. Associa-se a isso o fato de conhecer o serviço no barco, o que é indicado no discurso dos pescadores, quando pronunciam sua capacidade pessoal com base nas embarcações em que trabalharam. O pescador de fora faz sempre referência ao seu corpo como um sinal de seu trabalho no mar. As mãos grossas do contato com cordas e linhas molhadas de água salgada e tracionadas pela maré, as rugas no rosto de “fazer cara para o vento”, enfim, as marcas no corpo de maneira geral são signos do esforço que caracteriza a pesca no mar. Junto com a capacidade de se acostumar às condições a bordo, o esforço é tema central do trabalho no mar, e é tido como item determinante para que um camarado passe a encarregado. “E é assim que vão surgindo os mestres, os encarregados de embarcação, assim, pelo esforço dele”. (Manuel Vales).

A formação do encarregado tem aqui a ênfase no dar conta, no sentido de se responsabilizar pelo trabalho e pelo patrimônio. No Sucuriju, o pescador não passa a mestre quando aprende com outro mestre ou descobre um pesqueiro, mas ele chega a encarregado demonstrando conhecer e ser ativo no serviço do barco. Tomar conta do barco é o dever principal do encarregado e é com base nisso que é julgada sua capacidade. “Para ser responsável de um barco, tem que tomar conta da embarcação tudo direitinho e entregar tudo que você recebeu. E você é responsável pelas pessoas que vão com você, você tem que trazer de volta todo mundo”. (Gero).

Para trabalhar no mar é imprescindível se acostumar com a vida no barco. Estar sobre o balanço da maresia todo o tempo, embalado de um lado para o outro, coordenando as atividades (desde o caminhar até o sono)

23

conforme o movimento da água são elementos que requerem uma adaptação que não é da esfera da vontade. Ficar porre, ou seja, ficar tonto, ter náuseas, são os sintomas mais característicos da não-adaptação. Mas o diagnóstico não se faz na primeira experiência, pois há sempre um período para gerar a adaptação, após o que alguns se acostumam, outros não. E ocorre também que pescadores experimentados percam a capacidade de enfrentar a maresia, às vezes por causa de problemas digestivos, mas especialmente pela debilitação na capacidade de suportar o constante desequilíbrio. É por isso que os pescadores se referem de maneira orgulhosa, sobretudo os mais velhos, à sua postura firme sobre o convés, pois este é um fator constitutivo do trabalho embarcado. *** Tratou-se aqui principalmente dos aspectos simbólicos e técnicos da pesca no Sucuriju, mas não devemos esquecer que essa atividade é o fundamento econômico da vila3. Ela fornece o peixe tanto para o consumo local quanto para comercializar com outros elementos de primeira necessidade, dentre eles a farinha. Ao longo do século passado, as pescas marítima e lacustre atravessaram algumas crises e atualmente se colocam algumas questões importantes no que concerne à manutenção dessas atividades e conseqüentemente à permanência da vila. No caso do mar, existe uma intensa exploração da costa do Amapá pelos barcos vindos de Belém, melhor equipados, o que limita os barcos do Sucuriju às proximidades da praia, onde encontram uma produtividade menor. Para o lago, colocam-se dois problemas. Um deles é uma forma de exploração predatória da região, re-

3 Outras informações sobre a Vila do Sucuriju podem ser encontradas nas seguintes publicações: F. S. Dias et. al., “Pescadores da Vila do Sucuriju, Estado do Amapá: características das relações entre pescadores e recursos pesqueiros”, Macapá, IEPA - Relatório técnico, 2004; e Inácia M. Vieira, “Comunidade Pesqueira do Manguezal do Rio Sucuriju e a Sustentabilidade de seus recursos naturais”, publicado em Marco Antônio Chagas. (Org.). Sustentabilidade e Gestão Ambiental no Amapá: saberes tucujus, 2002, pp. 95-110.

24

alizada por pescadores estrangeiros à vila, iniciada há poucos anos e que se tem buscado contornar com o auxílio do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Por outro lado, existe uma relação potencialmente conflituosa com a própria legislação ambiental, já que criou-se em 1980, na região dos lagos, o tipo mais restritivo de unidade de conservação – a Reserva Biológica, que não prevê a atividade humana – sem que tenham sido consideradas a presença, a utilização e a relação com a área que os habitantes da localidade mantêm desde o princípio do século XX.

25

Barco saindo para pescar. Deste lado estão as âncoras e as bóias. Mira, Jeandré e Nei colocam iscas nos anzóis, posicionando a linha do outro lado.

Borcage arpoando.

Meninos brincam na “beira” em frente à vila. Mais atrás, barcos, montarias e a boca do rio Sucuriju.

26

Duas famílias no lago.

Gero joga o anzol, portando uma faca na cintura. Abaixo e à esquerda, os anzóis que serão lançados em seguida.

Bocarge e a Onça no lago ao amanhecer.

27

“Ese río abrió de la noche a la mañana” La Villa de Sucurijú, comunidad pesquera del litoral de Amapá.

Carlos Emanuel Sautchuk

Brasília, Abril 2006 1ª Edición

“ESE RÍO ABRIÓ DE LA NOCHE A LA MAÑANA” – LA VILLA DE SUCURIJÚ, COMUNIDAD PESQUERA DEL LITORAL DE AMAPÁ.

SUCURIJÚ Con cerca de quinientos veinte habitantes, la Villa Sucurijú (01º40’40’’N/ 49º55’57’’W) está localizada en la desembocadura del río del mismo nombre, al norte del estuario del Amazonas, en el Cabo Norte, costa del estado de Amapá, Brasil. Siendo continental, la Villa presenta características insulares, puesto que el vínculo con otras comunidades y centros urbanos sólo se produce a través del mar (en un viaje de por lo menos 12 horas). Y esto porque la región circundante – comprendida dentro de la Reserva Biológica del Lago Piratuba, creada en 1980 – está compuesta por manglares, várzeas y lagos, que impiden el contacto con los campos del interior del estado (figuras 1 y 2). La Villa se compone de 113 construcciones, dispuestas a lo largo de un puente, paralelo al río, de poco más de un kilómetro. Son 96 casas, 8 predios públicos (escuela, alojamiento de profesores, puesto de salud, agencia distrital, colonia de pescadores, Iglesia Católica, salón parroquial y Asamblea de Dios), 8 depósitos para el pescado de los patrones de la pesca y un bar (figura 3). En los lanços (mareas de sicigia), el agua salada cubre todo el terreno llegando a conectarse, en los meses de invierno, con la ciénaga que se encuentra detrás de la Villa. Por eso, todas las construcciones tienen una elevación cercana al metro y medio, con relación al suelo. Esa altura disminuye periódicamente y debe ser reestablecida con la elevación del puente, y las demás construcciones (todas de madera), ya que “la tierra de año en año tiene una diferencia, ella crece” en función de la constante transformación física de esta región costera1.

1 Ver la disertación doctoral de Odete F. Silveira, A planície costeira do Amapá: dinâmica de ambiente costeiro influenciado por grandes fontes fluviais quaternárias. Belém; Centro de Geociências/UFPA; 1998. Nota del autor

31

El agua del río es salobre, en función de la fuerte y constante entrada del mar, y el agua de lluvia es utilizada para el consumo humano. En el invierno, se almacena el agua en dos cisternas para suplir las necesidades de la sequía, que se extiende de agosto a diciembre. En estos meses, el agua es distribuida a través de un sistema de cuotas semanales. En el 2004, el cálculo del agente distrital fijó la cuota en 30 litros por persona, para ser retirados todos los sábados. Como acontece con frecuencia, en aquel año las cisternas permanecieron vacías durante dos semanas antes de las primeras lluvias. En ocasiones como esa, cuando no envían una lancha con agua potable desde la ciudad de Macapá, los propietarios de barcos van a la desembocadura del Amazonas para recoger el agua y otros suben a los lagos para hacer lo mismo o para permanecer allí con la familia hasta el inicio de las lluvias. El agua es un tema muy importante en Sucurijú por la dificultad para obtenerla para el consumo y también porque es un elemento central en la diferenciación de los tres ambientes que componen la cosmología local – la Villa, el Lago y el Mar –, como veremos más adelante. La falta de agua potable (junto al difícil acceso y a la precariedad o ausencia de los servicios básicos ofrecidos por el Estado) es un aspecto central en la composición de la identidad de la Villa del Sucurijú, tanto en el discurso de los habitantes de otras localidades y de los funcionarios públicos que visitan la villa, como en la concepción de la población local. Es posible notarlo en la propia distribución y utilización del espacio en la Villa y en la importancia atribuida a los objetos domésticos. La primera cisterna fue construida a mediados de la década de 1980 por iniciativa de un sacerdote italiano, y se estableció como una plaza. Posicionada entre la Iglesia, el salón parroquial, la Colonia de Pescadores y la Agencia Distrital, la cisterna es el patio donde las fiestas, reuniones y juegos encuentran su lugar y es también el local de distribución del agua todos los sábados. La otra cisterna, construida en la década de 1990, también se volvió un lugar de reuniones. Su contenido es reservado para el abastecimiento de barcos de pesca en el período de sequía. El hecho de que el agua de lluvia deba ser traída de las cisternas hacia las casas en los meses de sequía, o almacenada, a partir de los tejados de las propias residencias, en los meses de invierno, hace que los frascos figuren de forma importante entre los utensilios caseros. Ellos son de 20 hasta 200 litros y

32

una unidad doméstica debe contar con un número de frascos compatible con su tamaño y, por eso, se ofrecen, incluso, como regalo de matrimonio. En un pasado reciente, la obtención de frascos era más difícil pero, con su producción en plástico, el costo disminuyó y el desgaste por la oxidación ya no es un problema. Además, hoy en día, es más fácil encontrar frascos descartados en las playas, caídos de los barcos o navíos, y su “recolección”, y de materiales como redes y líneas, constituye una actividad habitual – una especie de extractivismo de la era industrial. De cualquier manera, la cantidad de recipientes en una casa es un buen indicador de la prosperidad de la familia. La utilización alternada de agua dulce (proveniente de la lluvia) y agua salada (del río) varía de acuerdo con la época del año y es motivo de una continua regulación de las actividades domésticas. Para el consumo y la preparación de alimentos, siempre se utiliza agua dulce pero, para el baño y el lavado de ropas, pueden alternarse y el uso del agua salada constituye un indicador de escasez. En el período final de la sequía, se imponen nuevas reglas para las actividades domésticas. A pesar de la escasez, los recipientes quedan muchas veces dispuestos en las barandas, sin que haya una preocupación en guardarlas al interior de las casas. Las casas tienen variaciones en su forma de construcción, algunas con dos pisos, con divisiones entre el cuarto, la sala, la cocina, pero la gran mayoría se compone de un solo gran espacio, algunas veces con una división en madera o con una cortina que separa la parte delantera – la sala con el equipo de sonido y/o el televisor (un tercio de las casas dispone de TV) – de la parte de atrás, donde queda la cocina y se guardan los objetos personales. El hecho es que la casa en sí no constituye una frontera bien definida de separación entre lo público y lo privado. Las ventanas muchas veces son aberturas protegidas de la lluvia con lonas plásticas y la parte de atrás de la casa muchas veces es abierta. Se come en la baranda, al borde del puente, con las vasijas y las personas dispuestas en el piso de madera. La siesta, y muchas otras actividades, también se realizan ahí, dotando a la baranda de una gran importancia en las actividades diurnas, y donde el calor se palia con la brisa y la sombra. Lo que delimita el dominio de la privacidad es la hamaca. El ir para la hamaca y cerrar el toldillo mosquitero es señal de que alguien no quiere ser perturbado más, bien sea en la casa o en las feitorias, (palafitos utilizados durante

33

las expediciones de pesca en el Lago). Permanecer en ese dominio transforma, incluso, la disposición de la persona. Es común escuchar que “fulano pasó a la casa” o “escuché una confusión, pero estaba en la hamaca”, como una forma de explicar porque no respondió o el porque se mantuvo alejado de la situación. Por otro lado, afirmar que salió de la hamaca para hacer algo, demuestra la importancia que reviste cierta actividad. Decir que se comparte la privacidad de la hamaca con alguien es una forma de indicar el matrimonio (en gran parte de las veces, es su única marcación simbólica), así como decir que fulano “no tiene ni hamaca” es una manera de señalar la falta de lo mínimo necesario para una vida en familia. El número de casas, y la población de la Villa, fue mayor en otras épocas. A mediados del siglo XX había puesto policial, puesto de recaudación tributaria y puesto de salud en pleno funcionamiento. Grandes armadores de pesca operaban en la zona, con flotas de barcos traídos de Belem, utilizando inclusive sistemas de conservación a partir de hielo. Algunos relatos dan cuenta de que la población superaba los mil habitantes. A partir del inicio de la década de 1980, por otro lado, se produjo una disminución poblacional y la desestructuración de los servicios públicos. Este éxodo se explica sobretodo por la falta de agua potable (la primera de las dos cisternas fue construida en 1986) y de la enseñaza a partir de la 4a serie. Pero parece que otros cambios de carácter económico tuvieron influencia en esta emigración como la intensificación de la pesca industrial en la costa del Amapá, con flotas oriundas de Belem y de los estados del nordeste, dotadas de pertrechos modernos que restringen los barcos del Sucurijú a las proximidades de la costa. Saliendo afuera, donde están los geleiros2, además de la disputa desigual por el recurso, los pescadores del Sucurijú corren el riesgo de perder las redes o líneas e, incluso, de naufragar, debido al tamaño de los pertrechos de aquellos barcos. Los grandes armadores de pesca emigraron de la villa, continuando con sus inversiones a partir de Belém o, simplemente, dejando la actividad. La Villa existe hace cerca de ochenta años, según el relato de los moradores más antiguos, y la forma como cuentan su mito de origen indica la relevancia en su existencia del contacto con la sociedad envolvente. Si no veamos: 2 Embarcaciones para la congelación de pescado. Nota del traductor.

34

Hasta la década de 1920, en el lugar donde hoy es la Villa Sucurijú había apenas algunas feitorias, que eran utilizadas, durante las temporadas de pesca en el mar, por pescadores que venían sobre todo del Archipiélago del Bailique. Los “Antiguos” habitantes de la región se quedaban en el Lago, viniendo a la costa apenas para vender el pescado y comprar alimentos. “Los que trabajaban en el Lago, era (sic) sólo el morador de aquí, que vivía aquí.” “Ese río aquí que hoy llamamos Sucurijú, no existía.” En el lugar del río había una ensenada, “que no tenía salida para ninguna parte”. Había un “barranco”, una “playa”, que impedía el contacto con el mar. Era un tiempo en el cual se “pasaba necesidad”, debido a la dificultad para la llegada de embarcaciones trayendo mercancías. “¡Eso era tapado! Mire, cuando llegaba la [embarcación] freteira, de ahí aparecía una vara [el mástil] ahí afuera, la playa era enorme. Entonces de allá era que pasaba la mercancía, una poca mercancía. ¡Aquí ya hubo miseria, mi amigo! ¡Ya hubo miseria aquí en este lugar! Usted comía sin fariña...” Entonces hicieron una promesa para Nuestra Señora de Nazaret: si la playa se volvía río, rezarían en agradecimiento todos los años, durante ocho noches. En una noche de tempestad, con lluvia, viento, niebla, trueno, rayo, se escuchó un estruendo muy grande, que no venía del cielo sino de abajo. Cuando amaneció, el río ya existía: “abrió de la noche para el día.” “Fue una Sucurijú que perforó de lado a lado, que vino abriendo camino con toda esa tierra y abrió ese río aquí.” “Esa culebra vino de allá [del Lago], de una zanja muy grande, muy honda, que llaman zanja del Urubú. Esa culebra bajó de allá y se fue abriendo camino por ahí, abrió ese río ahí, ahí fue, fue, fue. Corrió, fue abriendo, abriendo; dio bien en la época de invierno, ella fue alargando. Quedó muy hondo (...) Fue así que fue la cosa. Así fue que abrió el río que hoy se llama Sucurijú.” Así, “puede atravesar agua, que no pasaba agua [antes]”. “Ahí comenzó el Sucurijú [la Villa], de ahí fue el Sucurijú.” (relatos de Doña Tudica, Seu Branco y Seu Nestor)

35

La localidad, que antes se reducía sólo a algunas feitorias de pescadores, quedó “villada”. Surgió una villa y esto significó la convergencia, en un mismo lugar, de los Antiguos, que moraban y trabajaban en el Lago, y de los pescadores del mar, que a lo largo de los años llegaron a vivir allí, oriundos principalmente de las islas de la desembocadura del Amazonas, como el Archipiélago del Bailique, de las comunidades ribereñas del Araguari y de la ciudad de Amapá. El hecho de que la desembocadura del río fuese cerrada y se haya abierto (lo que puede ser verificado también en mapas antiguos) simboliza el comienzo de la Villa del Sucurijú. Este episodio es considerado como el inicio de un nuevo tiempo, cuando el contacto con embarcaciones de los centros urbanos se vuelve viable. La fundación de la Villa es considerada como la conexión con la sociedad mayor, lo que se torna posible gracias a la apertura al movimiento de las aguas saladas (mareas), posibilitando la navegación y el comercio. Además de mostrar la dependencia del comercio para la obtención de todo aquello que no sea producto de la pesca – principalmente la fariña de yuca–, lo que evidencia uno de los aspectos centrales de la economía de la Villa, el mito indica la importancia dada, en el Sucurijú, a dos actividades económicas muy practicadas en la región de la desembocadura del río Amazonas. Los dos grupos de habitantes, que se reúnen en el mito de origen de la Villa, representan los dos tipos de pesca que existen en este complejo – la pesca costera, realizada en el litoral del Pará y de Amapá y en las islas del delta amazónico, y la pesca de ríos e lagos, practicada por las comunidades ribereñas. Las dos actividades se hacen presentes actualmente en el Sucurijú a través del contraste entre el Mar y el Lago. Esos dos ambientes tienen una importancia central, no sólo para la economía y la cosmología locales, sino también en las habilidades técnicas de los habitantes, como veremos más adelante. La especialización de los pescadores en los trabajos del lago y del mar se produce de acuerdo con la estructura de parentesco. Treinta y dos de los núcleos familiares son de laguistas, y cuarenta y nueve de pescadores de fuera (del mar). La Villa del Sucurijú a la vez gira alrededor de esta diferenciación y fija una pertenencia más amplia para los dos tipos de pescadores. Esto es, laguistas y pescadores son contrapuestos en el ámbito simbólico (lo que se manifiesta especialmente con ocasión de las competencias realizadas durante la fiesta de la patrona, Nuestra Señora de Nazaret), pero

36

existe también una complementariedad entre ellos en lo que respecta tanto al aporte económico como a la propia mitología de la villa, como ya fue mencionado. Como punto de referencia, la Villa es un todo, y tanto los pescadores de fuera como los laguistas son considerados pescadores. El mito de surgimiento del Sucurijú se refiere también el origen de la manera específica de vivir y el tiempo en la villa, que conjuga ritmos diferentes, debido al posicionamiento de la Villa entre el mar y los lagos. En este episodio, la Culebra-Grande, animal perteneciente al lago, dominio de las aguas quietas – desciende para abrir la boca del río, posibilitando la entrada del mar y dando origen al tránsito y al comercio necesarios para la fundación de la villa. Y el hecho de que la Villa surja junto con el río, ambos con el nombre del animal mítico, indica la importancia de la relación entre el lago y el mar en su configuración. Si el río Sucurijú es, en toda su extensión, espacio de encuentro entre el agua dulce, limpia y calmada que desciende perezosamente de los lagos, y el agua salobre, arcillosa y dinámica, que asciende a golpes violentos desde el mar, la Villa del Sucurijú expresa en su cotidianidad las influencias de estos dos ritmos diferentes. Además del ambiente, las técnicas y el aporte económico diferentes, el lago y el mar envuelven temporalidades diferentes, que se hacen sentir en el día a día de la villa. En la pesca marina lo que guía la salida, llegada y tránsito de los barcos es el flujo de las aguas, entre otras razones, porque la poca profundidad de la región permite navegar sólo en determinados lugares con la marea alta. “¡Aquí todo se da por la marea!”, dice un pescador impaciente con los cuestionamientos de un grupo de funcionarios y investigadores sobre los horarios de transporte desde Macapá. Es por eso que, para dar a entender, en un lenguaje figurado, que alguien estuvo poco tiempo en el Sucurijú, se dice que “vino y regresó en la misma marea”. El trabajo en el mar es considerado más arduo porque debe obedecer al ritmo inconstante de las aguas para la colocación y recolección de líneas y redes, quedando en un segundo plano el día, la noche y las condiciones climáticas. Ese ritmo influye en la temporalidad de la Villa, no tanto porque la marea haga que el río suba, descienda y tenga niveles de salinidad diferentes a lo largo del día, sino también porque los preparativos de los pescadores obedecen a ese ritmo, teniendo en cuenta una salida próxima, la llegada de un barco, una marea propicia que se aproxima, etc. En función de las “mareas de lanço”,

37

(durante las lunas llena y nueva) existen períodos en los cuales los barcos están en los trapiches3 y otros en los cuales casi todos están pescando. La temporalidad vivida en el Lago también puede estar presente en el día a día de la Villa. En aquel ambiente, el pescador siempre puede esperar por el día o la luz; también es posible evitar salir en los horarios más calientes del día. El flujo del agua no ejerce sobre él ningún imperativo; es el ritmo ordenado de los astros que coordina las actividades del pescador con las de los peces que persigue, estableciendo períodos muy bien definidos de trabajo y descanso. En la Villa, la evolución de los astros (y de sus efectos como la luz y el calor) también es muy importante, pues de acuerdo con ella se establece una rutina legítima de sueño, trabajo y alimentación considerada digna. La posibilidad de la rutina, y del respeto por las condiciones climáticas y por el calendario (domingos), es un elemento común al Lago y a la Villa. Pero, además de la marea y de los astros, existe otra dimensión temporal que influye en las actividades en el Sucurijú: la marcación de las horas. El sistema de medición del tiempo en horas se hace presente básicamente en tres tipos de actividades: las actividades escolares, los programas de televisión y las llamadas telefónicas. Esos son los acontecimientos que justifican la importancia del reloj en la vida cotidiana de la villa, y ellos se desarrollan en principio sin ninguna influencia del movimiento de los astros o del nivel del río. Esas tres temporalidades –mareas, astros y reloj- tienen niveles distintos de aplicación que muchas veces entran en conflicto. Una llamada telefónica convenida para una determinada hora puede no ser cumplida puesto que sube la marea y es el momento de hacer algo en el barco o de llenar los frascos en los trapiches. No es inusual que el generador de energía, que normalmente funciona entre las 6 de la tarde y el final de la novela, se dañe o se pare por falta de combustible, y entonces se pueden interrumpir las clases nocturnas por la oscuridad resultante.

3 Según el Diccionario Houaiss de la Lengua Portuguesa, “trapiche” es un término de marina que indica una bodega junto al litoral marítimo, lacustre o fluvial, que sirve como depósito de mercancías en tránsito. Nota del traductor.

38

Pero en general, la indicación del reloj es tan irrelevante para la salida de un barco tanto como la marea para el fin de una clase o la luna para el inicio de la novela. En otras palabras, son niveles de temporalidad distintos, caracterizando diferentes planos de cognición y acción. Tanto es así, que las tentativas de traducir en horas el movimiento de las aguas resultan absolutamente inexactas. Un ejemplo: un pescador, instado por mi pregunta sobre la hora de la entrada de la marea, calculó las 13:30 después de observar el río y de informarse que eran las 12:30. Pero la marea sólo estuvo llena hasta las 16. Eso comprueba, no la equivocación del pescador, sino el despropósito de la pregunta. La conversión al ritmo regular de las horas no es algo importante para la orientación de las actividades que funcionan articuladas al flujo del agua. Tripulantes y pasajeros dan un ritmo adecuado a las tareas preparativas para el embarque y se colocan en el trapiche en el momento adecuado para la salida de un barco, no porque tengan reloj, sino porque observan al río. Además, eso explica porque este investigador estuvo varias veces adelantado o atrasado, aun cuando a la hora convenida. Esta relación de predominio entre diferentes temporalidades en los tres ambientes puede ser esquematizada en el siguiente cuadro: Lago Elementos ordenadores del tiempo

astros (día/noche)

Villa astros (día/noche) marea reloj

Mar marea

LAGO Lago es la palabra que remite a una gran región con lagos, al interior de la Reserva Biológica del Lago Piratuba, en la cual existen varios lagos y ensenadas con nombres diferentes y de donde surgen riachuelos y ríos, como el propio Sucurijú (figuras 1 y 2). Como decíamos antes, el tiempo en el Lago se produce de acuerdo con los astros (noche/día), y no conforme a la marea, como acontece en el mar. En el Lago, siempre hay agua potable, en contraste con la

39

Villa, en donde el agua del río es salobre durante buena parte del tiempo. En el Lago no existe marea, esto es, el agua no se mueve. Existe una variación cercana a los dos metros entre el nivel de la época seca y el de la lluviosa, pero el agua no tiene un flujo que influencie el trabajo de la pesca, como en el mar. Es sólo en la época de sequía que las mareas lançantes invaden los lagos periféricos, dejando el agua salobre. “En el Lago la marea está quieta, el agua no corre. Allá usted puede andar a toda hora; cualquier hora es hora.” (Maço)

Además de estar asociado a la ancestralidad misma de la Villa – donde habitaban los Antiguos –, el Lago es considerado un lugar extremamente apacible en función de su belleza, para lo cual concurren con gran importancia las características de su agua – dulce, limpia y sin movimiento. “¿Ya imaginó una casa aquí [en el Lago]? ¿Debajo de un árbol de esos, con sombra, un agua bonita de esas? Sólo falta colocar un motor [generador] y una parabólica.”

Si el Lago es tematizado como lugar de la fruición estética, de la comodidad (agua dulce, descanso), también es el dominio de las apariciones y de los maleficios, y es donde existe la posibilidad de confrontar ciertos animales – representada en el peligro de los ataques del caimán, jacaré-açu, la anaconda y el jaguar. A pesar del trabajo más tranquilo, debido a una temporalidad agradable, el pescador del lago no deja de enfrentar los peligros inherentes a este lugar: “El trabajo más tranquilo para pescar es el del Lago. A una hora de estas [después del atardecer], uno ya está acostado, no tiene la marea en la hora para recoger la línea o la red [como en el mar]. Duerme uno la noche entera, si está lloviendo, no va y usted merienda con calma. En el Lago existe el peligro de que los animales te golpeen. Una culebra te puede agarrar (...). Hoy, los caimanes están como brutos...” (Seu Nestor)

En el Lago, el trabajo se desenvuelve de acuerdo con la luminosidad, el calor, el viento y el comportamiento de los animales. Los horarios preferenciales para pescar el pirarucu4 (Arapaima gigas) son al inicio de la mañana y al final 4 Según el Diccionario Houaiss de la Lengua Portuguesa, el pirarucu es un regionalismo para un pez Arapaima gigas, de la cuenca amazónica, de gran valor comercial. Nota del traductor.

40

de la tarde, en función del comportamiento de los peces, pero también porque, en esos períodos, el viento disminuye y las señales en la superficie del agua pueden ser descifrados con mayor facilidad. Para descender del Lago rumbo a la Villa, en los meses en que el río está seco, es preciso aguardar la llegada de la marea en sus cabeceras, para entonces bajar junto con ella. O, por lo menos, evitar encontrarla en el medio del descenso, principalmente en los períodos de lanço, pues existe el riesgo de la pororoca5, la cual es imposible vencer con la sola fuerza del remo. El factor negativo del descenso en el río, junto con la marea menguante, es que, cuando se llega a la Villa, el nivel del agua está bajo y entonces son más de cien metros para atravesar, con el fango a las rodillas. Cuando lleva bastante carga, el laguista queda con su montura, a rayo de sol, esperando que la marea crezca y lo lleve hasta el trapiche. Las indicaciones, tanto de la fuerza de la marea en determinado día, como del momento de su llegada a las cabeceras del río, que son esenciales para las estrategias de desplazamiento, son obtenidas por el pescador a través del movimiento y de la forma de la luna. Al estar en la región de los lagos, el pescador coordina su desplazamiento con el la luna, para llegar así a la cabecera del río en consonancia con un flujo favorable del agua. La pesca en el Lago se realiza con canoas de remo para dos personas, utilizando sobretodo el arpón, y el pez más importante es el pirarucu. Existen todavía los llamados “peces pequeños” peixinhos – Tucunaré (Cichla sp.), Aruanã (Osteoglossum bicirrhosum) y Piramutaba (Brachyplatystoma vaillant) – que son capturados con artes consideradas menores, como la tarrafa6, la red, la lanza pequeña y la línea de mano. La entidad preeminente en esta pesca es el proeiro o marinero de proa. Este pescador especialista en arponar es el que va al Lago en su montura, con su 5 Según el Diccionario Houaiss de la Lengua Portuguesa, la pororoca es un regionalismo para referirse a una onda de agua de algunos metros de altura que ocurre, en ciertas épocas, en ríos muy voluminosos, especialmente cerca de la desembocadura del Amazonas y que destruye todo lo que encuentra a su paso, causando gran estruendo y formando atrás de sí ondas menores. Nota del traductor. 6 Según el Diccionario Houaiss de la Lengua Portuguesa, una tarrafa es una red de pesca circular, de malla fina, con pesos en la periferia y un cabo fino en el centro, por el cual es tirada. Nota del traductor.

41

piloto. No sólo es la unidad a la cual se concede crédito – se dota al proeiro, no a la montura – sino, además, es el elemento identificado con los desplazamientos a través de los lagos. Se dice normalmente que “fulano está en tal lugar”, o que “se fue ayer”, sin referencia al piloto o a la montura. Mejor, estos quedan englobados por la figura del proeiro. La forma de captura también indica el papel central del proeiro, ya que la captura resulta de su duelo personal con el pirarucu, en una relación de enfrentamiento y experticia. Junto con varios otros animales del lago, como el caimán, el Sucurijú, la piraña o el machaco, el pirarucu es dotado de una personalidad específica, que se caracteriza por la activa interacción con el hombre, aun cuando todavía no como una amenaza, como ocurre con los dos primeros. Su capacidad para huir y eludir o, al contrario, el hecho de que se deje atrapar en algunos momentos, tiene como correlato el pleno involucro del laguista en un juego de interpretaciones y habilidades. En la proa de la montura, él se mantiene atento a las señales del pez, trazando estrategias y guiando al piloto a través de sus señales, en el más absoluto de los silencios. Llegado el momento oportuno, el proeiro se levanta con el arpón en su puño y lanza, para enseguida tirar al pez a través de la cuerda amarrada al arpón. Ése es el gesto principal de esa pesca, que representa el tema central de las elaboraciones sobre el trabajo en el Lago. Es importante decir que el agua de los lagos es oscura, y que el laguista debe estimar la posición del pirarucu con base en tres tipos de señales emitidas por el pez: la siriringa, burbujas blancas que emergen conforme el pez se arrastra en la materia orgánica del fondo; el carculo, ondulaciones en la superficie cuando el pez va en medio de agua; y el buio, acción que tiene un sonido característico, cuando el pirarucu viene a la superficie para respirar. Son varios los tipos de buio, clasificados de acuerdo con el comportamiento del pez: brabo (bravo), dobrado-manso (domado-manso) y bem manso (bien manso). Es a partir del momento en que el laguista identifica al pirarucu, a partir de alguna de estas señales, que realmente comienza la caza. El objetivo es encontrar la mejor posición y lanzar el asta sin ser percibido por el pez. Si, de todas formas, el animal nota la presencia del pescador, entonces todos los cuidados por pasar desapercibido se suspenden repentinamente. La situación es otra: el pez intentará huir y es imperativo perseguirlo. Esta confrontación puede ser considerada como una especie de duelo en la medida en que el

42

laguista respeta al pirarucu, valorizando sus capacidades y considerándolo un rival capaz de vencerlo. “Él se defiende. ¡Dios lo libre! ¡A veces usted lo está viendo así (...), ´pucha, yo arreglo el rumbo aquí´; en lo que usted suelta el asta de las manos, él ya se voló, se voló, ya no lo agarra más! Y el bicho es tan veloz, el pirarucu, que es un pez muy pésimo (sic) de verdad (...) En su propia vista, usted está viendo que él va andando, va atravesando, va de proa, viene de cola, pero si tú fueras a arponearlo, en el choque de tu arponada, si tú no sabes arponear, él ya se espantó allá en el frente, ya no lo agarras más, vas a agarrar sólo el rastro. Ya lo perdió (hace) mucho tiempo. En el agua clara, un pirarucu de buio, en el agua clara, es muy difícil de arponear. Es difícil porque el pez cuando buia, él buia manso, uno levanta aquí con fuerza; es levantar y él ahí mismo golpea allá, no deja ni que uno suelte el asta de la mano. Ya golpeó, ya lo percibió a uno aquí. (...) Él ve en el choque de la canoa [en el agua] que uno levanta, él conoce. Es Pirarucu. A veces, uno arponea, que cuando uno suelta el asta de la mano... El pirarucu buia con esa vara ahí, o [cerca de 15 metros] uno levanta de aquí, cuando uno va a soltar el asta de la mano, que ya va a enviar el asta, él ya golpeó allá, y el asta ya no pega en más nada. (...) Él oye, no (se) puede hablar. Por eso es que uno no habla cuando uno se topa con un pirarucu, por causa de eso. Él es muy vivo, él siente. La intención de él es sólo engañarlo a uno. Es Pirarucu. Él no tiene otra salida para él si no es engañarlo a uno.” (Maçó)

Como si no fuera bastante la fineza (astucia) del pirarucu, la arponada tiene todavía otro matiz, que le confiere al pez el lance capital de su propia captura. Y es que, en el momento en que el arpón encuentra el pirarucu, no entra a menos que el pez se espante (asuste), doblando el cuerpo y abriendo las escamas. Cuando el espanto (susto) ocurre antes, el pez se escapa de la arponada, cuando ocurre después, el arpón no penetra. Además, la pesca del pirarucu está fuertemente relacionada con los aspectos simbólicos referentes a la persona del pescador (su constitución y comportamiento) y a la forma como se usa la carne de pescado que él distribuye. Las mujeres embarazadas no deben comer el botín de pesca de un laguista, así como es arriesgado que un bebé rechace el plato con pescado que le ofrecen. Y

43

esto ocurre porque el pirarucu es muy desconfiado. Se deben tomar varios cuidados para evitar estos peligros, pues el pescador puede volverse improductivo, incapaz de pescar. “Usted puede estar bien para el pirarucu, y usted estando bien, él viene de allí y viene a morir aquí en su costado. Pero estando desconfiado con usted, él pasa por ahí. Ni lo mira a uno. Él viene, tú te encuentras con él aquí, viene, viene, viene, cuando llega aquí, él para. Puede arponear allá todo el día. Allá no está. Eso se llama estar de desconfessão, desconfianza.” (Seu Branco).

Así, son básicamente tres los signos del buen proeiro. La práctica se refiere al manejo del arpón, en la medida en que esa habilidad significa en una percepción refinada, determinada por un profundo conocimiento de las habilidades del pirarucu, incluyendo su comportamiento y su manera de reaccionar. La felicidad indica la suerte de la cual todo buen laguista depende y está ligada a un sistema simbólico marcado por temas recurrentes en la Amazonía, como los maleficios, las visiones y los dueños de los animales. Por último, el hecho de haber pilotado la canoa para proeiros de prestigio es referido por los laguistas como un hecho positivo. Pasando quinzenas7 en el Lago desde pequeños, con apenas ocho años muchos niños ya se vuelven pilotos, normalmente trabajando para algún pariente. A partir de entonces, pasan por una formación, considerada como una enseñaza profesoral por parte del proeiro, que dura por los menos seis años y termina normalmente cuando el joven constituye una unidad doméstica autónoma y pasa a ser “responsable de su trabajo”, ocupando la proa con su propia montura. La relación proeiro-piloto es extremamente valorizada; los domingos se producen, incluso, intercambios ritualizadas de posición. Esa relación es una institución central para reproducción de la pesca en el lago. Como veremos enseguida, la práctica es también importante en la pesca del mar, principalmente para la tarea de tirar el anzuelo, pero es en el Lago donde se le confiere una mayor importancia. La formación del proeiro es un

7 Término que designa un período, variable, de permanencia en la pesca. En el lago equivale a un mes, en promedio, en el mar normalmente dura hasta tres lanços, o 21 días. Nota del autor.

44

proceso largo y constante de ganar la práctica en el manejo del arpón y con el pirarucu. La práctica del pirarucu, por cierto, es considerada una ciencia, que envuelve profundo conocimiento del comportamiento del animal y de las estrategias para perseguirlo. Ya la noción de acostumbrarse, que remite a la capacidad de suportar determinada situación, en la pesca del lago está ligada a la subida y a la bajada del río a remo, consideradas como las tareas arduas de esa pesca, llegando la durar más de quince horas seguidas durante el período de la sequía. MAR En la región del Cabo Norte, el mar tiene tres características importantes, resaltadas por la población del Sucurijú. Una de ellas es el agua arcillosa, resultado de la gran cantidad de partículas sólidas vertidas por el río Amazonas; otra es el flujo intenso de las aguas, que determina una gran amplitud de variación en las mareas y el fenómeno de la pororoca; y, por fin, la poca profundidad y las modificaciones constantes de la región costera hacen que la navegación sea estrictamente dependiente de la marea y bastante arriesgada. “No hay nadie que pueda decir que conoce bien esta costa del Norte. Eso aquí cambia mucho. Si usted no pasa por un lugar durante dos años, uno ya no sabe más cómo es que está.” (Diógenes)

Por eso, el Mar es considerado como un lugar peligroso e inhóspito, donde la temporalidad de la marea es la que dicta el ritmo del trabajo y de las actividades en general. El simple hecho de estar embarcado exige esfuerzo y disposición. “La vida marítima es sacrificada, es una vida mala para quien no se está muy acostumbrado. (...) es porque, mire, nosotros aquí, nosotros estamos conversando, estamos quietos, estamos parados. Allá en el mar, nosotros podemos estar hasta conversando, pero no estamos parados así. Nosotros estamos, mira, [hace movimiento de balancear el cuerpo], para acá, para allí, conversando... conforme el mar, así estamos nosotros. Nosotros nos vamos a acostar para dormir, nosotros no dormimos sosegados, nosotros tenemos que estar dando vueltas en la cama, en

45

la litera allá de la embarcación. Igual para el que tiene [cama], pero si usted no se está quieto, uno está siempre meciéndose de un lado para el otro. Porque el mar no deja. Entonces es eso que la persona no se acostumbra. Él va para fuera, hace una quinzena, pero en la otra él ya no quiere ir más. Hay personas que no, para él, tanto hace en el mar como en tierra, es la misma cosa.” (Seu Nestor)

En el mar se utilizan barcos motorizados, de ocho a doce metros de longitud, con tres o más tripulantes, para la captura sobretodo de la Gurijuba (Arius parkerii) con red estacada y, principalmente, con espinhel (línea con centenares de anzuelos). Lo que le da valor a la Gurijuba es su vejiga natatoria, exportada para producción de pegantes, y que rinde alrededor de tres veces más que su carne. Se pesca también otros peces, como el bagre (Arius sp.), la Uritinga (Arius proops), la Pescada amarela (Cynoscion acoupa) y la Dourada (Brachyplatystoma flavicans). La entidad que organiza el trabajo en el mar es el barco, término que denota, además de la embarcación en sí, el motor, los pertrechos y la tripulación. Siendo la unidad de producción y de crédito, el barco es también el elemento que se mueve, tanto en la búsqueda de los peces a través del mar, como en su dinámica interna de trabajo. Su nombre, sus características específicas, como la velocidad y la manera de enfrentar las ondulaciones de la marea, sus historias, la calidad de sus pertrechos y de la tripulación que lo compone, todo eso opera en conjunto para delinear la identidad del barco. En el Sucurijú hay 32 barcos de 28 propietarios. En la última década, los programas de financiamiento han hecho que la propiedad esté más diseminada de lo que era antes, cuando sólo algunos patrones eran los dueños de buena parte de la flota. El barco es el que encalla, el que da vuelta, el se pega con el fondo. El relato del naufragio de un barco dice que “el Cassiporé quedó en la costa del Pará”. Y tiene características que lo singularizan: “éste es un buen barco”, o que “da vueltas” o que “es aguantador”, etc. Estas características son determinantes en el ámbito del trabajo. Y es porque un barco “caía de más en la mareada” que un joven pescador dudó durante algún tiempo en volverse encargado. Sólo después de un período como camarado, adquirió confianza en el barco, aprendió a lidiar con sus particularidades y pudo aceptar la oferta del dueño. 46

En el trabajo del barco, las actividades individuales son coordenadas en función de una acción del conjunto. Así, se aprende a pescar entrando como tripulante y empleándose en las diversas tareas que el trabajo del barco exige, pues no existe especialización, a no ser la del encargado, y a duras penas en aquello que concierne a la gerencia del trabajo y la responsabilidad por el barco. El lanzamiento de la línea al mar con los anzuelos, así no sea ejecutado por un especialista, es considerado la actividad principal de la pesca en el mar. Tarea arriesgada, su éxito depende de la habilidad del pescador para incorporarse al sistema del barco, cerrando el ciclo de un movimiento fundado en una coordinación sofisticada. Sobre la cubierta envuelta por las olas, tirando los anzuelos al mar, el pescador debe sintonizar precisamente sus movimientos a la tensión óptima de la línea, que es el resultado de la actuación de los otros camaradas (que tiran los hierros y los flotadores conectados a la línea) y de la velocidad del motor y de la marea. La coordinación es primordial: el flujo del agua, la dirección del barco, la velocidad del motor, la ligereza del tirador de anzuelo y del tirador del hierro deben estar correctamente vinculadas entre sí, constituyendo un todo armónico expresado en la tensión óptima de la línea. Ni muy tensa, capaz de atrapar al pescador o de caer enroscada al agua, ni muy floja que pueda pegar en la hélice del motor o enterrar los anzuelos en el fondo. El tirador de anzuelo es el que cierra todo este sistema. Por lo tanto, él debe ser lo bastante ágil – ni muy rápido ni muy lento – percibiendo la relación barco-agua, la fuerza de la línea y el momento en el que el hierro será tirado por el otro pescador. Un traspié en ese sistema de múltiples variables puede acarrear, no sólo la disminución de la producción, sino también la avería de los pertrechos o un accidente con el pescador que tira los anzuelos. En situaciones extremas, cuando la línea se tensa rápidamente en sus manos, resultado de algún desequilibrio en este sistema, el lanzador tendrá que decidir entre tirar la línea enrolada (disminuyendo la productividad) o intentar desembarcarla, lo que puede ocasionar que sea alcanzado por el anzuelo. Como forma de reaccionar a la posibilidad de ser atrapado por la línea, que lo llevaría al fondo, el tirador de anzuelo tiene siempre a la cintura un cuchillo para cortar la línea. Este es un tema recurrente de las conversaciones, generando adagios como aquel que advierte que “¡el anzuelo sólo tiene una vuelta, pero no se equivoca!” e inspirando la narración constante de casos ya ocurridos, como el que sigue: 47

“... cuando el anzuelo lo agarra [al pescador], él ya va con todo, la marea lo tira para fuera del barco. Mira, a ese muchacho allí lo agarro la línea por encima de la cubierta, lo tiró encima de la caseta, cayó en ese redondo [de popa], suerte que él cayó y bien del lado del cilindro [de gas] donde había un cuchillo para cortar carnada. Ahí cogió el cuchillo y se fue con él para el fondo y cortó el estrobo del anzuelo. De allá, él flotó (de vuelta).” (Júnior)

Si la habilidad del lanzador de anzuelo reside justamente en su capacidad para integrarse bien al ritmo del barco, los indicios del prestigio de un buen pescador en general son su esfuerzo y aplicación en los trabajos que la dinámica del barco impone. Especialmente porque ese trabajo obedece a una temporalidad ingrata, orientada por la dinámica de las mareas, que no respeta los horarios habituales de sueño y alimentación, los días de descanso o las condiciones climáticas. Por eso, el hecho mismo de permanecer en el mar, realizando un trabajo arduo, con los pertrechos pesados y el agua salobre y el barro agrediendo las manos, hace que el grado de disposición sea el indicador del prestigio del pescador. A eso se asocia el hecho de conocer el trabajo en el barco, lo que sale en el discurso de los pescadores, cuando exaltan su propia capacidad con base en las embarcaciones en las que han trabajado. El pescador de fuera hace siempre referencia a su cuerpo como una señal de su trabajo en el mar. Las manos gruesas por contacto con cuerdas y líneas mojadas con agua salada y gastadas por la marea, y las arrugas en el rostro de tanto “tener la para el viento”, en fin, las marcas en el cuerpo en general son signos del esfuerzo que caracteriza la pesca en el mar. Junto con la capacidad de acostumbrarse, el esfuerzo es tema central del trabajo en el mar, y es considerado como un ítem determinante para que un camarado pase ser a encargado. “Y es así que van surgiendo los maestros, los encargados de embarcación; así, por su esfuerzo.” (Manuel Vales).

La formación del encargado no tiene aquí el énfasis en el conocimiento, como ocurre en otras comunidades pesqueras, sino en el dar cuenta, en el sentido de responsabilizarse por el trabajo y por el patrimonio. En el Sucurijú, el pescador no pasa a maestro cuando aprende con otro maestro 48

o descubre un pesquero, pero llega a encargado demostrando conocer y ser activo en el trabajo del barco. Tomar cuenta del barco, es el deber principal del encargado y con lo cual demuestra su capacidad. Talvez eso sea así porque la pesca no se da más, como antes, distante de la costa, sino en lugares conocidos, cercanos a la playa. “Para ser responsable de un barco, tiene que encargarse de la embarcación, de una manera correcta, y entregar todo que lo usted recibió. Y usted es responsable por las personas que van con usted; usted tiene que traer de vuelta a todo el mundo.” (Gero).

Para trabajar en el mar es imprescindible acostumbrarse a la vida en el barco. Estar todo el tiempo atento a las mareas, de un lado para otro, coordinando las actividades (desde el caminar hasta el sueño) conforme al movimiento del agua, son elementos que requieren una adaptación que no es de la esfera de la voluntad. Quedar porre (borracho), o sea, quedar tonto, tener náuseas, son los síntomas más característicos de la no-adaptación. Pero el diagnóstico no se hace sólo en la primera experiencia, pues siempre se produce un período de adaptación, después de lo cual algunos se acostumbran, pero otros no. Y ocurre también que pescadores experimentados pierden la capacidad de enfrentar la maresia, algunas veces por causa de problemas digestivos, pero especialmente por la debilitación en la capacidad de suportar el constante desequilibrio. Es por eso que los pescadores se refieren de manera orgullosa, sobre todo los más viejos, a la postura firme sobre la cubierta, pues éste es un factor determinante del trabajo en el mar. *** Tratamos aquí sobre todo de los aspectos simbólicos y técnicos de la pesca en el Sucurijú, pero no debemos olvidar que esta actividad es el fundamento económico de la villa. Ella provee el pescado, tanto para el consumo local como para la compra de otros elementos de primera necesidad, entre los cuales está la fariña. A lo largo del siglo pasado, la pesca marina y lacustre atravesaron algunas crisis y, actualmente, existen algunos temas importantes en lo que concierne a la manutención de estas actividades y, consecuentemente, a la perma49

nencia de la villa8. En el caso del mar, existe una intensa exploración de la costa de Amapá por los barcos venidos de Belém, mejor equipados, y que limita los barcos de Sucurijú a las proximidades de la playa, donde encuentran una productividad menor. Para el lago existen dos problemas. Uno de ellos es una forma de exploración predatoria de la región, realizada por pescadores extraños a la villa, iniciada hace pocos años, y que se ha intentado enfrentar con el auxilio de IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Por otro lado, existe una relación potencialmente conflictiva con la propia legislación ambiental, ya que, en 1980, fue creado en la región de los lagos el tipo más restrictivo de unidad de conservación – la Reserva Biológica, que no prevé la actividad humana–, sin que haya sido considerada la presencia, la utilización y la relación con el área que los habitantes de Sucurijú han mantenido desde los comienzos del siglo XX.

7 Para mayor información sobre la Villa del Sucurijú se pueden consultar las siguientes publicaciones: F. S. Dias et. al., “Pescadores da Vila do Sucuriju, Estado do Amapá: características das relações entre pescadores e recursos pesqueiros”, Macapá, IEPA – Informe técnico, 2004; e Inácia M. Vieira, “Comunidade Pesqueira do Manguezal do Rio Sucuriju e a Sustentabilidade de seus recursos naturais”, publicado en: Marco Antônio Chagas. (Org.). Sustentabilidade e Gestão Ambiental no Amapá: saberes tucujus, 2002, pp. 95-110. Nota del autor.

50

Realização do projeto | Realización del projecto Amazon Conservation Team Brasil – ACT Brasil Coordenação | Coordinación ACT Brasil – Júlio César Borges Produção | Producción Melissa Viana e Juan Guillermo Buenaventura Edição | Edición ACT Brasil – Juan Guillermo Buenaventura Projeto Gráfico | Projecto Gráfico Oito Soluções Digitais – Daniel Mira Capa | Portada Oito Soluções Digitais – Daniel Mira Fotografias e Ilustrações | Fotografías Ilustraciones Carlos Emanuel Sautchuk Tradução ao espanhol | Traducción al español ACT Brasil – Juan Guillermo Buenaventura Diagramação | Diagramación Oito Soluções Digitais – Paulo Costa

Mapa Sucuriju Laboratório de Geoprocessamento. ACT Brasil –Wesley Pacheco Correção de estilo em português | Corrección de estilo en portugués ACT Brasil – Renata Carvalho Giglio Correção de estilo em espanhol | Corrección de estilo en español Luis Cayón Impressão | Impresión Gráfica Coronário Copyright © 2006 | Edição Amazon Conservation Team Brasil – ACT Brasil All rights reserved Copyright © 2006 | Textos

Carlos Emanuel Sautchuk All rights reserved Este projeto foi realizado com o patrocinio de The Richard and Rhoda Goldman Fund, com a intenção de prestar um serviço às comunidades tradicionais. Este projecto fue realizado con el patrocinio de The Richard and Rhoda Goldman Fund, con la intención de prestar un servicio a las comunidades tradicionales.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.