Estereótipos, preconceitos e homossexualidade

May 23, 2017 | Autor: Joao Marinho | Categoria: Gay And Lesbian Studies, Homosexuality, Homossexualidade
Share Embed


Descrição do Produto

Estereótipos, preconceitos e homossexualidade

Por João Marinho

Estereótipo. Essa palavra tem povoado o movimento gay desde sempre. No caso específico dos LGBTs, diz respeito às imagens e conceitos uniformes que as pessoas associam erroneamente aos homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais, o que reflete uma "preguiça" de conhecer melhor a diversidade do nosso, por assim dizer, universo, ou uma formação machista e heterocêntrica que faz uso dessas mesmas ferramentas para perpetuar todo um preconceito contra o diferente; ou ambos os motivos.
Estereótipo e preconceito estabelecem entre si uma dialética "biunívoca". É impossível pensar um estereótipo sem preconceito e é impossível pensar um preconceito sem estereótipo. Um alimenta o outro. De fato, o estereótipo se origina de algum tipo de preconceito, que precisa criar imagens e conceitos – forçosamente errôneos porque carentes de fundamentos justos – que confiram um desvalor ao grupo que dele sofre, para justificar o próprio preconceito e as ações concretas dele decorrentes (ao que chamo discriminação).
Dessa forma, também é fácil concluir que o preconceito somente subsiste mediante o estereótipo, pois, se as imagens e os conceitos errôneos se esvaírem, ele não terá como sobreviver e como se autojustificar e, portanto, não poderá gerar discriminação e nem outros estereótipos.
Nesse ponto, podemos estender a ideia de estereótipo a todo e qualquer conceito ou imagem que seja erroneamente e injustamente atribuído a um grupo como forma de dar alguma base supostamente lógica para os preconceitos de que esse grupo é vitima e deles se alimentar.
Estabelecidos, outsiders e contraestereótipos
Pode parecer que falamos a mesma coisa, mas, se analisarmos detalhadamente, a realidade é outra. Como o mundo, em si, é dialético, o estereótipo não atinge somente os grupos minoritários e/ou outsiders, ou seja, os que são vistos à margem do padrão consagrado socialmente, mas também os grupos estabelecidos e/ou majoritários, que estão no topo da pirâmide social em termos de aceitação dentro de uma determinada cultura e se constituem no "padrão" que todos deveriam seguir.
Se um preconceito determina e se alimenta de um estereótipo que atinge um grupo minoritário/outsider, este precisa, por sua vez, distanciar-se do padrão socialmente consagrado, a fim de ser mais facilmente reconhecido. Dessa forma, as regras sociais atinentes ao padrão também se cristalizam e endurecem, para que tudo fique mais claro, e os majoritários/estabelecidos identifiquem com nitidez quem pertence a este ou àquele grupo.
Ora, essa cristalização ou endurecimento é, ela mesma, um novo estereótipo. Os grupos majoritários/estabelecidos criam, assim, uma espécie de "contrapreconceito" e se tornam vítimas de "contraestereótipos", que os aprisionam, impedem de viverem outras realidades e estreitam sua visão de mundo. Os minoritários/outsiders, por sua vez, têm a visão de mundo estreitada exatamente pelo preconceito e estereótipo de que são vítimas, que impedem seu acesso a ferramentas sociais concedidas aos demais grupos e, não raramente, os constrangem a levar uma vida "subterrânea", como forma de se defender dos ataques discriminatórios, ou seja, das ações concretas de condenação, reprovação ou violência de que são vítimas.
Eis porque o preconceito não atinge, finalmente, apenas o grupo que dele sofre – mas é prejudicial para toda a sociedade, com um agravante: os grupos majoritários ou estabelecidos nem sempre se dão conta disso e sofrem seus efeitos sem identificar a origem.

Efeito rebote
Aqui, remeto, a título de exemplo, à experiência dos gays e o valor negativo atribuído à efeminação em culturas tipicamente machistas, como a do Brasil.
Ao decidirem considerar o efeminado alguém inferior, o grupo estabelecido ou padrão social constituído pelos homens heterossexuais atribui a todos os membros do grupo outsider dos homossexuais essa característica, esse estereótipo, atribuindo a eles um desvalor.
O estereótipo do homem efeminado, portanto, ganha a função de "justificar", de maneira supostamente lógica, o preconceito contra todos os homossexuais e as atitudes concretas – a discriminação – de que estes são vítimas. Ao mesmo tempo, a operação tem um efeito rebote: estabelecido o preconceito contra os homossexuais, este reforça o desvalor do estereótipo do efeminado, uma vez que ele está diretamente e indissociavelmente relacionado a um grupo que sofre desaprovação social: os homossexuais.
Entretanto, a operação não para por aí, porque é preciso perguntar o que vem a ser, afinal, um homem efeminado. Primeiramente, há de se determinar o que é um comportamento "tipicamente feminino" – e elencam-se, nesse ponto, numerosos conceitos e imagens para caracterizá-lo. Uma vez este comportamento "determinado", pode-se, afinal, definir o que é um homem efeminado e torná-lo objeto de desaprovação e de estereótipo do que é ser gay.
Acontece que determinar o que é efeminação significa forçosamente determinar o que não é. Dessa forma, elencam-se também conceitos e imagens de "não efeminação", aos quais os homens heterossexuais deverão corresponder para serem "masculinos" (o ideal seria dizer "machos") e não serem identificados como efeminados-homossexuais. Isso é o que chamo de "contraestereótipo".
Há, porém, mais um efeito rebote. Se a definição de efeminação, ou homem efeminado, é oriunda do que se considera um comportamento "tipicamente feminino", é forçoso reconhecer que esse comportamento feminino é, também, um desvalor. Mesmo que às mulheres seja permitido serem, afinal, "efeminadas", o fato de elas também serem "portadoras" desse comportamento as coloca socialmente numa posição social inferior, e mais do que isso, impede que elas tenham acesso ao comportamento "não efeminado", que é atributo exclusivo que se espera dos homens heterossexuais, que, numa sociedade machista, têm maiores possibilidades de crescimento ou ascensão.
Ser e parecer

Nessa triste realidade, muitos homossexuais, visando a serem "mais aceitos" e a se defenderem do preconceito e da discriminação, esforçam-se para seguir o padrão masculino-heterossexual e rejeitam os efeminados. A ideia é, evidentemente, serem confundidos com os primeiros e terem acesso aos benefícios que essa posição pode conceder, e os que de fato forem efeminados e não conseguirem fazer essa "transição"? Passam a ser alvejados cotidianamente, como se seu modo de ser justificasse, per se, a violência de que são vítimas, inclusive em meio a outros homossexuais.
Claro que aqui fazemos uma ilustração grosso modo, mas esse exemplo ilustra bem como funciona a dialética estereótipo/preconceito e como ela é prejudicial a todo o tecido social e aprisiona a todos em seus respectivos papéis – mesmo os homens heterossexuais que são alçados à categoria de padrão social. Essa cristalização, esse enclausuramento também os impede de terem vivências mais plenas, no fim das contas. É um empobrecimento da experiência humana. Podemos dar como exemplo o ato de tocar. Comportamento tido como feminino, é vetado aos homens heterossexuais, com raras exceções, em uma sociedade machista – e deixam eles de viver toda uma experiência corporal que é absolutamente enriquecedora, ainda que reflita necessariamente um desejo erótico por alguém do mesmo sexo.
O aspecto fluido e multifacetado da relação entre estereótipo e preconceito e de que forma eles excitam manifestações de discriminação tornam particularmente difícil combatê-los, notadamente porque há uma tendência de considerados como entre isolados, em vez de relacionados entre si, em dialética. Não raro, essa forma de combater ou um estereótipo, ou um preconceito, acaba tão-somente criando outros.
Mais atrás, citamos o exemplo dos homossexuais que, para se afastarem do estereótipo do efeminado, passam a seguir o padrão de "masculinidade", ou "macheza", estabelecido para os homens heterossexuais – e passam mesmo a discriminar os efeminados.
O resultado é um reforço do preconceito de que os efeminados são vítimas, em primeiro lugar. No entanto, em segundo lugar, esses homossexuais passam a ter o mesmo enclausuramento e empobrecimento de experiências que ocorrem nos heterossexuais "machos". Em terceiro, é uma tentativa ingrata, porque se o estereótipo do efeminado está intrinsicamente ligado aos homossexuais, ampliar a desaprovação a ele simplesmente aumenta por tabela a desaprovação aos homossexuais, e isso não muda muito a realidade do homossexual "masculino". Afinal, por mais "masculino" (ou "macho") que ele seja, falta-lhe um componente essencial para que o preconceito e a discriminação não o atinjam: ele não é hétero. Ele parece, mas não é, membro do grupo estabelecido.
O curioso é que a ausência de reflexão leva a atitudes até mesmo paradoxais em alguns homossexuais. Quantos não se sentem felizes ou aliviados quando, ao revelarem sua homossexualidade a terceiros, escutam um comentário como "mas você nem parece!". Não é absolutamente singular que haja orgulho em dissimular o que se é, em vez de ser e parecer? O que estaria errado em ser gay e parecer ser gay, se é esta a verdade sobre si?

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.