Estética e Pós-metafísica

September 3, 2017 | Autor: João Manuel Duque | Categoria: Philosophy, Metaphysics, Aesthetics, Postmodernism
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A ESTÉTICA NA ERA PÓS-METAFÍSICA “Por princípio, é devida uma elevação do sensível para o supra-sensível e, em questões de metafísica, deve-se ser impreterivelmente um anesteta; mas, na medida em que a despedida do sensível não é possível na totalidade (o que pertence à conditio humana), então, em questões irredutivelmente

estéticas,

pode-se

ser

esteta

à

vontade.

Fundamentalmente falso seria o completo abandono da elevação para o anestético; mas seria também errada, em sentido inverso, uma dissolução metafísica de todo o sensível, uma anestetização total.”1

1. O fim da metafísica Têm sido muitas a vozes filosóficas a declarar o fim da metafísica. Cada uma delas parte, necessariamente, de algum ou de alguns conceitos específicos de metafísica, que considera superados nas diversas modalidades contemporâneas de pensar a significação do mundo. A linha mais influente desta tendência filosófica é, sem dúvida, aquela que se vem traçando a partir de Heidegger – não sem forte influência de Nietzsche e de Dilthey. Segundo esta perspectiva, o percurso metafísico seria marcado, essencialmente, pela identificação entre ser e pensar, no processo de fundamentação de tudo o que é, com a correspondente redução do real ao conceito. Na modernidade, este percurso terá ganho claramente a característica de uma fundamentação do real no sujeito que o concebe. O idealismo – com a sua máxima manifestação em Hegel – terá marcado um ponto de chegada deste trajecto, em que o conceito subjectivo se identifica com o todo da realidade, na medida em que identifica toda a realidade com a consciência – a qual atinge a verdade de si e de tudo, quando atinge o nível da auto-consciência ou consciência de si (Selbstbewusstsein), enquanto consciência transcendental ou fundamentadora do ser e do pensar2. Ora, qualquer ponto de chegada é, precisamente, um ponto final. Nesse sentido, a modernidade – sobretudo na sua versão idealista – representa o ponto de chegada ou

1

W. WELSCH, Ästhetisches Denken, Stuttgart 1990, 25. Sobre o assunto, pode ler-se com muito proveito: J.-L. MARION, La science toujours recherchée et toujours manquante, in: J-M. NARBONE / L. LANGLOIS (Ed.s), La métaphysique. Son histoire, sa critique, ses enjeux, Paris: J. Vrin / Québec PU Laval, 1999, 13-36. 2

final da metafísica, colocando a nu, também, os limites dessa leitura do mundo – limites esses que residem, precisamente, na pretensão de não possuir limites, isto é, em certa configuração «totalitária» do pensamento. Sintomaticamente, foi no interior desse mesmo idealismo que se desenvolveu a convicção de que a metafísica atinge o seu apogeu precisamente na estética, enquanto unificação do sujeito e do objecto, numa visão englobante de toda a realidade e na clara afirmação de que “«verdade e bondade» sejam «irmanadas apenas na beleza», ou que o «mais elevado acto da razão» seja um «acto estético» e que a função unificante do belo deva estender-se a toda a sociedade, à humanidade e à história, na sua totalidade”3. Um programa mais metafísico para a estética seria inimaginável; mas, ao mesmo tempo, estamos perante a afirmação plena de um programa estético para a metafísica – com o qual, o pensamento metafísico parece ter dado lugar ao «pensamento estético», depois de ter sucumbido à aporia interna de não conseguir compreender plenamente o fundamento que sempre perseguiu, nem sequer como «eu transcendental» ou como «subjectividade absoluta». Quando Nietzsche, já em plena superação do idealismo, se propõe «fundamentar» o seu pensamento no seu «gosto» e não em argumentos ou na dialéctica4, está já distante da prática metafísica – mesmo que o seu modo de pensar possa ainda ser considerado uma fundamentação metafísica na «vontade de poder». Aliás, a relação entre estética e metafísica moderna assume, em Nietzsche, características especiais, de tal modo que nele se manifesta, paradoxalmente (ou aporeticamente), certo caminho nihilista da metafísica ocidental. De facto, o «pensamento estético» de Nietzsche articula-se como tomada de consciência de que o mundo – ou aquilo a que, habitualmente, chamamos realidade – não passa de uma construção humana, o que permite comparar o estatuto da nossa relação com o mundo à relação de um artista com a sua obra. Enquanto artistas, somos construtores do mundo, na medida em que originamos metáforas desse mundo, convencendo-nos, depois, que essas metáforas dizem, verdadeiramente, a realidade5. Mas não passam de ficções. E não há outro modo de pensar a realidade, senão no encadeamento e na relação mais ou menos complexa do conjunto de ficções que, po(i)eticamente, os humanos elaboram.

3

W. WELSCH, Vernunft. Die zeitgenössische Vernunftkritik und das Konzept der transversalen Vernunft, Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1996, 465. 4 Cf.: F. NIETZSCHE, Die fröhliche Wissenschaft 5 Cf.: F. NIETZSCHE, Ueber Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne, Sämtliche Werke (Colli/Montinari), München 1980, Vol I, 873-890.

Assim sendo, não podemos falar de uma realidade existente, independentemente dessas ficções. O mundo não nos é dado a conhecer; nós é que o originamos, na medida em que o «conhecemos». O mundo como ficção passa a ser, então, a compreensão máxima do nihilismo ocidental – como máxima consequência da metafísica moderna da subjectividade – já esboçada na estética transcendental de Kant, que pretendia sujeitar todo o conhecimento às categorias do espaço e do tempo. Nietzsche seria, assim, a radicalização do impulso nihilista da racionalidade moderna e da sua metafísica – por isso, a manifestação máxima e última, a mais evidente também, da metafísica ocidental. Nesse ponto extremo, o pensamento metafísico coincidiria com o pensamento estético, enquanto ficção po(i)ética da realidade. Viver a realidade seria, então, fruir profundamente os mundos permanentemente construídos pela nossa própria ficção imaginativa. De facto, é nesta dimensão da fruição que Nietzsche esboça, em recuperação da dimensão dionisíaca da realidade, pretensamente eliminada pela dimensão apolínea ou racionalizante da metafísica, também aquilo a que viria a chamar-se, mais tarde, o “pensamento estético”6 e que é apresentado como uma das características da denominada «pós-modernidade», isto é, de uma época que pretende pensar pósmetafisicamente – e de uma cultura que pretende viver como tal. Mas que poderá significar tal modalidade de pensamento e de vida, que parece marcar fortemente as sociedades contemporâneas?

2. Estética da fruição Wolfgang

Welsch

é,

sem

dúvida,

um

dos

principais

teorizadores

contemporâneos do denominado «pensamento estético». Segundo ele, a palavra-chave dessa modalidade de pensamento – que encontra realizado em inúmeras figuras da filosofia contemporânea, como Lyotard, Derrida, Foucault, Vattimo, Cacciari, Sloterdijk, Rorty, etc. – é a «percepção» (Wahrnehmung). Esta está indissociavelmente ligada aos sentidos e, por isso mesmo, ao conhecimento sensitivo. Por um lado, porque evita distanciar a interpretação do sentido da sua articulação nos sentidos e na sua referência à realidade particular; por outro, porque elabora um discurso que pretende, ele mesmo, afectar os sentidos, cuidando por isso muito mais da dimensão retórica do que da dimensão puramente lógica.

6

W. WELSCH, op. cit.

Mas esta percepção pensante vai além da sua articulação sensitiva. Poderíamos qualificá-la, antes, de modalidade simbólica do pensamento. De facto, o que se percebe na percepção sensível é mais – ou diferente – que o puro dado empírico. Assim, o pensamento estético dá preferência à formulação metafórica ou, genericamente, simbólica, sobre o discurso da descrição empírica. Nesse processo de percepção simbólica do real é atribuído importante papel à imaginação – sobretudo à imaginação produtora – que possibilita a transferência do âmbito estrito dos sentidos para o do sentido. Transferência essa que já não é elaborada ao estilo da dialéctica argumentativa – ou da demonstração e verificação empíricas – mas sim da elaboração simbólica e imaginativa. A isso poderíamos chamar, portanto, pensamento estético. E será devido a esse modo de pensar que o actual contexto cultural assenta mais em estruturas e relações simbólicas do que meramente empíricas ou materiais (como no caso típico da moda e do consumo, e respectiva estrutura significativa). Este modo «fruitivo» de ser encontrará, provavelmente, as suas raízes filosóficas num outro trajecto da superação da metafísica, que se prende com a pretensa superação da procura de fundamento. Para Gianni Vattimo, por exemplo, terá sido essa a característica da história da metafísica, que agora nos conduz a uma situação – por ela marcada, sem dúvida – de abandono dessa procura. O pensamento pós-metafísico ou pós-moderno, que Vattimo assume claramente como pensamento nihilista, é aquele pensamento que assume a sua relação com a metafísica enquanto permanente – e infindável – superação da própria actividade fundamentadora. Por isso é, antes de tudo, um “pensamento da fruição”7. Porque se trata de um pensamento que não capta – nem pretende captar – qualquer fundamento do real, nem pretende propor uma ideologia transformadora desse real, conduz a uma “ética dos bens, por oposição a uma ética dos imperativos”8. Ou seja, não se fala já em bondade transcendente, por referência à qual se torna imperativo fazer o bem, mas na pura fruição presente daquilo que nos é dado como bem – ou que acolhemos e imaginamos como tal. Esses «bens» terão valor em si mesmos, sem recurso a um fundamento fora de si, nem anterior a si (arqueologicamente), nem como meta sua (teleológica ou escatologicamente). Fruir cada momento e cada acontecimento, como se fosse único e absoluto – num sentido próximo ao do «eterno retorno» nietzschiano – será, pois, o lema desta ética estética, para além de qualquer metafísica. 7 8

G. VATTIMO, O fim da modernidade, Lisboa: Presença, 1987, 140. Ibidem.

Também Walter Schulz, após abdicar das pretensões «dualistas» de fundamentação da história da metafísica ocidental – sobretudo da moderna, que procurava fundamentar a realidade empírica na subjectividade transcendental – lança uma proposta de metafísica «pós-metafísica», que coincide com a função unificante da beleza, tal como sugerida já no projecto do idealismo tardio. Trata-se, contudo, de um processo hipotético, semelhante ao que aparece articulado na arte moderna, que permite uma visão global do sentido, não já baseando-se em fundamentação segura, mas na “abdicação da confiança no mundo, em favor da insegurança no mundo”9 . Essa insegurança coloca-nos numa situação «suspensa» (Schweben), num vaivém entre o «eu» e o «mundo», sem pretensões de colocar o fundamento nem dum lado nem do outro, mas mantendo-se na «vivência» concreta dessa situação constantemente inconstante. Certo modo de nihilismo seria, nesse sentido, a única metafísica que permitiria perceber ainda um sentido global da realidade, que residiria no puro processo ou movimento de viver esse sentido – na «fruição» do real «suspenso», indefinidamente, eternamente, num trajecto sem fundo, sem princípio e sem fim. Mas é já o próprio Welsch quem, na linha de Odo Marquard10, levanta o problema da relação deste pensamento «estético» com certa tendência «an-estética», enquanto negação da própria percepção sensível. De facto, a paradoxal situação do pensamento contemporâneo parece, ao estilo de Nietzsche, conduzir a percepção sensitiva do real particular (enquanto base imprescindível de toda a estética propriamente dita) à construção «poiética» do real como ficção ou como virtualidade. O momento a fruir, num processo de infinda suspensão, é um momento imaginário, construído virtualmente no próprio processo metafórico de o pensarmos e o dizermos. Ora isso só é possível por meio da construção artística/artificial de um mundo aparente – precisamente o mundo estético, enquanto Scheinwelt – como único mundo verdadeiro, que deve ser vivido segundo o modo do «estádio estético» da existência11. Torna-se, assim, claro que esta versão pós-moderna de “idealismo estético surge como fuga da realidade da história”12: «beleza» pode tornar-se, perigosamente, um outro

9

W. SCHULZ, Metaphysik des Schwebens, Pfullingen, 1985, 13. Cf.: O. MARQUARD, Ästhetica und Anästhetica, Paderborn 1989. 11 O que permitiria colocar a actual «sociedade da fruição» (Erlebnisgesellschft) em paralelo com a «existência estética» teorizada por Kierkegaard (Cf.: S. KIERKEGAARD, Entweder/Oder, Gütersloh 1979; G. SCHULZE, Die Erlebnisgesellschaft. Kultursoziologie der Gegenwart, Frankfurt a. M. 1992). 12 J. SPLETT, Liebe zum Wort, Frankfurt a. M., 1985, 165. 10

nome para «falsidade», mesmo na medida em que se pretende para além da distinção entre verdade e falsidade. Assim, parece evidente que a esteticização pós-moderna se perverte imediatamente em an-estética, isto é, em não-percepção da realidade, na sua verdade fenoménica. Do ponto de vista sócio-cultural, este problema manifesta-se, por um lado, na queda das fronteiras do estético, que é transformado em realidade global e, por outro lado, na transformação do mundo aparente – ou da própria aparência em si mesma – em única realidade. O primeiro movimento manifesta-se precisamente no «explosão» estética da nossa «sociedade cultural», desde o bodystyling, passando pelo urbanismo arquitectónico, até à perpétua fruição da atitude consumista. A via fruitionis torna-se sistema; a vida quotidiana, assim como todo o ambiente envolvente, tornam-se estéticos. Mas, onde tudo é estético, vai desaparecendo – até por saturação – a específica capacidade estética de percepção do real. Tal facto manifesta-se, definitivamente no mundo mediático, onde a simulação do real se tornou realidade absoluta. A “tele-ontologia”13 mostra-nos uma nova forma de ser, precisamente enquanto parecer, cujas categorias fundamentais são o «sermostrado» ou o «ser-visto». Virtualidade transforma-se em utopia da plena superação de toda a corporeidade pessoal finita. Comunicação torna-se permuta, digitalmente encenada, de nada e entre ninguém14. Ora, esta esteticização da realidade manifesta-se claramente como “último degrau…da potenciação da ilusão, no qual o estético… em vez de conduzir à «experiência estética», conduz à despedida an-estética da experiência: à anestesia do ser humano”15. Sensibilidade exageradamente encenada leva-nos, no final e por paradoxal que pareça, à própria insensibilidade.

3. Estética da negação O abandono do sensível parece pairar também sobre outra modalidade de pensamento pós-metafísico, que pretende desse modo protagonizar outra configuração do estético: trata-se da identificação do mundo estético com a dialéctica negativa. Segundo essa perspectiva – muito frequente nos pensadores da Teoria Crítica de Frankfurt, sobretudo em Horkheimer e Adorno – o que distingue a racionalidade

13

W. WELSCH, op. cit., 16. Cf.: J. DUQUE, Cultura contemporânea e cristianismo, Lisboa 2004. 15 O. MARQUARD, op. cit., 17. 14

estética das outras racionalidades – na qual se poderia incluir a metafísica, como modalidade da racionalidade instrumental – é precisamente o permanente gesto de negação do real. Numa espécie de inversão da identificação entre real e pensamento, este pensamento estético adquire a sua pertinência, na medida em que nega o real presente, não propriamente em nome de um outro real – mesmo futuro – mas como negação pura, em direcção a uma utopia, que deve permanecer rigorosamente utópica, isto é, desconhecida e inacessível. Não é difícil vislumbrar, por detrás deste pensamento negativista, para além da tradição ocidental da teologia negativa, a forte tradição do messianismo judaico. Ora, essa tradição é explicitamente invocada por Jacques Derrida, que pode considerar-se, entre os pensadores mais recentes, o mais claro defensor de uma «estética da negação», enquanto permanente gesto desconstrutor: “A desconstrução é, de uma ponta à outra, uma afirmação messiânica da vinda do impossível”16. O núcleo da questão reside na manifestação dessa «impossibilidade», para que possa ser percepcionada, isto é, para que possa entrar no mundo dos fenómenos acessíveis esteticamente. Segundo Derrida, essa impossibilidade nunca se dá, não entrando, por isso, no âmbito do fenómeno da doação, mantendo-se ausente da esfera da fenomenologia possível. Mais radicalmente ainda, a própria doação é um «fenómeno» não acessível à fenomenologia, por ser em si mesmo aporético. Isto é, na medida em que o dom se der como tal, deixa de ser dom. Porque, ao entrar no mundo dos fenómenos, entra no mundo da economia ou da permuta calculável, desaparecendo portanto como dom gratuito. E porque Derrida pensa o dom nesse contexto da economia, a única conclusão possível é a da impossibilidade de qualquer dom, ou mesmo de qualquer doação – num certo sentido, de qualquer estética e de qualquer metafísica, que assentam sempre numa qualquer doação. Mas a questão é mais complexa. Na lógica a-lógica de Derrida, isso não significaria, de modo algum, reduzir o dom àquilo que ele não é – destruindo-o, com isso – mas simplesmente salvar o dom precisamente dessa destruição, retirando-o desse horizonte e colocando-o no seu horizonte próprio – precisamente o horizonte da impossibilidade. Por essa via, torna-se então mais claro o que possa significar a impossibilidade, como horizonte da (im)pensabilidade e da (in)dizibilidade. Para a

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J. CAPUTO, «Apôtres de l’impossible: sur Dieu et le don chez Derrida et Marion», in: Philosophie 78 (2003) 33-51 (orig.: «On te Gift: a discussion between Jacques Derrida and Jean-Luc Marion moderated by Richard Kearney», in: God, the Gift and Postmodernism, Indiana Univ. Press 1999, 54-78), 34-35.

proposta de Derrida, “o impossível nunca é dado, mas sempre diferido”. O que não significa o fim de tudo, desfeito no simples nada, “porque começamos pelo impossível”17. Assim, a própria impossibilidade é a condição de possibilidade do início de tudo, e o seu fim, ainda por-vir. O recurso ao impossível pode ser lido como uma espécie de «ideia reguladora», cuja importância é, simplesmente, a dinamização do desejo. Assim, a impossibilidade primordial (início e fim de tudo) não adquire a sua pertinência pela sua presença, mas precisamente pela sua ausência: ou melhor, por estar presente sob a forma da ausência. Porque só enquanto ausente é que motiva o desejo. Nas palavras de Derrida: “O que me interessa é a experiência do desejo do impossível, isto é, o impossível como condição do desejo… nós continuamos a desejar, a sonhar, devido ao impossível”18. Jean-Luc Marion, outro pensador «pós-metafísico», pensa a possibilidade da doação de outro modo. Também ele pretende superar toda a redução da doação à permuta económica – demasiado «estética», se quisermos – que faria do dom um nãodom19. Por isso, parece aproximar-se de Derrida, quando defende que o “dom exige uma certa não-aparição ou não-fonomenalidade”20. Mas não chega a esta afirmação de modo imediato, logo de início, a partir de uma desconstrução radical. O seu percurso é o da redução fenomenológica, que parte da realidade fenoménica do dom – ou da doação presente em todo o dom, no processo de permuta entre um doador e um donatário ou receptor, por referência a algo que é doado – para trabalhar a sua doneidade (donneité, Gegebenheit), até atingir a doação em si mesma. Ora, é ao nível desta doação reduzida a si mesma que Marion constata ser uma doação independente de qualquer doador ou donatário, mesmo de qualquer dom objectivamente dado. Nesse sentido, a doação, para ser tal, não pode aparecer como um fenómeno entre os fenómenos, senão como resultado de uma redução fenomenológica que a percebe a partir de outros fenómenos. Ora, os fenómenos que nos conduzem mais facilmente à doação, como nãofenómeno, são os “fenómenos saturados”21, porque possuem em si mesmos um excesso de doação, tornando-se numa hiper-doação ou hiper-aparição. Nesse sentido, não é a

17

J. CAPUTO, op. cit., 33. Cf.: DERRIDA, Donner le temps, Paris: Galilée, 1991, 17. Cit. em CAPUTO, op. cit., 39. 19 Cf.: J.-L. MARION, «La raison du don», in Philosophie 78 (2003) 3-32; ID., Étant donné. Essai d’une phénomenologie de la donnation, Paris 1987; ID., Rédution et donnation, Paris 1989. 20 J. CAPUTO, op. cit., 45. 21 Cf.: J.-L. MARION, De surcroît. Etudes dur les phénomènes saturés, Paris: PUF, 2001. 18

percepção imediata da impossibilidade da doação, pela dinâmica do desejo, mas sim a percepção mediatizada pela saturação fenoménica da realidade dada que nos permite aceder ao mistério da própria doação, como mistério primordial de tudo o que é, sendo para além do ser ou sem ser. É claro que o caminho para atingir uma fenomenologia da doação, enquanto liberta da sua destruição económica, é também para Marion um caminho negativo ou desconstrutor, porque exige a desmontagem criteriosa e cuidadosa – também difícil e corajosa – de todos os aparelhos de compreensão conceptual dessa dimensão originária. E o principal aparelho a ser desconstruído é precisamente o aparelho metafísico, que terá pretendido reduzir a doação à presença de um dom objectivo, porque paradoxalmente objectivável no conceito subjectivo. Mas a finalidade da desconstrução não é mergulhar, de imediato, na impossibilidade de perceber a doação fenoménica da própria doação, senão a elaboração mediada da possibilidade de visibilização da invisibilidade de toda a doação, enquanto tal. Assim, o fenómeno originário da doação pode ser feito visível, sem perder a sua invisibilidade ou não-manifestabilidade, na medida em que, pela via da analogia, é mediatizado pelo ícone. Este, ao contrário do ídolo – que reduz toda a realidade invisível à sua presença visível, reduzindo-a ao campo de visão do sujeito que vê e, desse modo, apenas se vê – encontra a sua «essência» na medida em que torna visível o invisível, precisamente como invisível. Assim, o dom icónico é a presença visível da doação invisível e não-presente, porque não-manifesta. Mas, em última instância, a sua visibilidade é absolutamente absorvida pela invisibilidade do seu fundamento. Mesmo aqui, estamos ainda na presença de uma estética da negação. Estranhamente, estas posições negativistas, em última instância e de forma paradoxal, acabam por incentivar certa modalidade de pensamento dos «dois mundos», com tendência para o nihilismo. O mundo da utopia ou da impossibilidade, sendo embora um não-mundo, tem por função uma negação do mundo real, fazendo dele um não-mundo também. Nesse sentido, o que aparece ou se dá, no mundo sensível, é automaticamente «falso», sendo por isso idêntico ao nada. Mesmo a defesa de uma possibilidade icónica de manifestação do invisível no visível, não chega a aceitar uma real presença do primeiro no segundo. Por isso, a visibilidade não é verdadeiramente presença da invisibilidade, mas simples evocação da distância que separa ambas e, por esse modo dialéctico-paradoxal, uma evocação da própria invisibilidade.

Poderemos, então, considerar que estas versões do que poderíamos denominar uma «estética da negação» resultam em aproximações claramente an-estéticas da realidade. O pensamento dito «pós-metafísico» que as formula acaba por se aproximar de certa tradição metafísica que separa o mundo sensível do mundo supra-sensível, sem possibilidade de qualquer relação mútua, a não ser através de uma dialéctica negativa. O desafio que sobra destas aproximações pós-modernas da estética parece ser a procura de uma relação intrínseca entre estética e metafísica, para salvaguardar uma e outra, na sua importância própria.

4. Estética (pós)metafísica No

contexto

deste

desafio

contemporâneo

torna-se

mais

claramente

compreensível a pertinência – mesmo do ponto de vista simplesmente filosófico – do programa de Hans Urs von Balthasar. A intenção fundamental da sua estética teológica é a afirmação da possibilidade de uma doação real do todo no fragmento22. O que significa, na terminologia clássica que também é a sua, a possibilidade de uma relação intrínseca entre o belo, o bom e o verdadeiro. Só na medida em que a verdade e a bondade – em si, elementos supra-sensíveis e, em si mesmos, inatingíveis e incompreensíveis – se nos revelam realmente na particularidade dos fragmentos históricos daquilo que acontece ou se dá no tempo, é que é possível pensar em termos de verdade e de bondade. O que é fundamental, para a superação do nihilismo que, simplesmente, afirma a impossibilidade de conhecer um e outro – e, por isso, torna todos os juízos e todas as pragmáticas igualmente válidas ou igualmente falsas, como construções imaginativas, subjectivamente ou culturalmente. A incondicionalidade de uma interpelação ética, que exige uma resposta ao bem e à verdade, só nos pode atingir, se verdadeiramente se nos manifestar nas condições limitadas e particulares do espaço e do tempo. Frente a uma metafísica abstracta, que dissolve a realidade num «mundo» suprasensível ou em conceitos lógico-subjectivos, a trajectória pós-metafísica da estética contemporânea alerta para a vinculação sensível do conhecimento e da nossa compreensão do sentido, permanecendo, por isso, impreterivelmente ligada à particularidade de entes e de acontecimentos, sem o que se distanciaria nihilisticamente da própria realidade. Isso não significa, contudo, que possa prescindir completamente da 22

CF.: H. U. VON BALTHASAR, Das Ganze im Fragment, Einsiedeln 1965; ID., Herrlichkeit, I, Einsiedeln 1961, sobretudo a introdução.

dimensão metafísica desse conhecimento, se entendermos por isso a possibilidade de, na particularidade de uma doação concreta, reconhecermos uma interpelação absoluta e incondicional, por isso mesmo universal. Aliás, se assim não fosse, não poderíamos sequer falar de sentido, mas apenas de constructos parciais ou simulacros de sentido, fossem eles de ordem subjectiva ou cultural. Como tal, o debate sobre o lugar da estética num pensamento pós-metafísico reconduz-nos à busca de uma correcta articulação entre estética e metafísica – articulação que, após todo este percurso, já não é semelhante às metafísicas ou às estéticas tradicionais, mesmo que aí encontre grandes fontes de inspiração. O necessário (re)encontro «pós-moderno» entre estética e metafísica afirmaria, portanto, o valor da particularidade, acessível apenas na percepção estética, sempre sensitiva, da realidade dada como fenómeno ou acontecimento; mas afirmaria, ao mesmo tempo, a necessária relação à universalidade e à incondicionalidade, só articulável num discurso metafísico, para evitar a falácia de um perspectivismo nihilista. A este pensamento que articula a estética com a metafísica, na sua tensão específica e sem desfazer um dos pólos no outro, poderíamos denominar pensamento simbólico, enquanto pensamento articulado a partir de símbolos e simbolicamente. Teologicamente, poderíamos afirmar que é o único pensamento capaz de compreender a revelação de Deus na história dos humanos. Por isso, o debate pós-moderno atrás esboçado assume especial importância para a articulação do pensamento teológico.

João Manuel Duque – Licenciado em Teologia, pela Faculdade de Teologia da UCP-Braga, em 1987. Frequentou a pós-graduação em Teologia Fundamental na Faculdade de Teologia de Sankt Georgen, em Frankfurt, tendo concluído o doutoramento em 1996, com uma tese sobre Gadamer, sob orientação de Jörg Splett e como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. É Professor Associado da Faculdade de Teologia da UCP, e docente convidado da Faculdade de Ciências Sociais (Braga), da Faculdade de Filosofia (Braga), da Escola das Artes (Porto) da UCP e do Instituto Teológico Compostelano. Para além da tese de doutoramento (Die Kunst als Ort immanenter Transzendenz, Frankfurt: Knecht, 1997), publicou Homo credens: para uma Teologia da Fé (UCEditora, 2002, 2ª Ed. 2004), Dizer Deus na pós-modernidade (Ed. Alcalá, 2003), Cultura contemporânea e cristianismo (UCEditora, 2004) O excesso do dom: sobre a identidade do cristianismo (Ed. Alcalá, 2004) e Educar para a diferença (Ed. Alcalá, 2005).

João Manuel Duque – Nasceu em Monção em 1964. Licenciado em Teologia, pela Faculdade de Teologia da UCP-Braga, em 1987. Doutoramento em Teologia Fundamental na Phil.-Teologische Hochschule Sankt Georgen, em Frankfurt, com uma tese sobre Gadamer, sob orientação de Jörg Splett. É Professor Associado da Faculdade de Teologia da UCP, e docente convidado da Faculdade de Ciências Sociais (Braga), da Faculdade de Filosofia (Braga), da Escola das Artes (Porto) da UCP e do Instituto Teológico Compostelano. Para além da tese de doutoramento (Die Kunst als Ort immanenter Transzendenz, Frankfurt: Knecht, 1997), publicou Homo credens: para uma Teologia da Fé (UCEditora, 2002, 2ª Ed. 2004), Dizer Deus na pós-modernidade (Ed. Alcalá, 2003), Cultura contemporânea e cristianismo (UCEditora, 2004) O excesso do dom: sobre a identidade do cristianismo (Ed. Alcalá, 2004) e Educar para a diferença (Ed. Alcalá, 2005).

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