Estratégia Retórica e Ética da Argumentação na Propaganda Política

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Estratégia Retórica e Ética da Argumentação na Propaganda Política Chapter · January 1994

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1 author: Wilson Gomes Universidade Federal da Bahia 16 PUBLICATIONS 23 CITATIONS SEE PROFILE

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ESTRATÉGIA RETÓRICA E ÉTICA DA ARGUMENTAÇÃO NA PROPAGANDA POLÍTICA1

Referência: GOMES, Wilson da Silva. Estratégia Retórica e Ética da Argumentação Na Propaganda Política. Organizado por BRAGA, J. L.BRASIL. COMUNICAÇÃO, CULTURA E POLÍTICA. RIO DE JANEIRO, 1994, p.117-133. Por Wilson Gomes Resumo: Este ensaio constitui a primeira parte de uma investigação sobre a complicada relação entre ética política e propaganda eleitoral. A posição sustentada pelo autor defende a necessidade de se formular e justificar uma ética (normativa) para a propaganda política em geral. Este ensaio dá conta de um primeiro movimento nesta direção, consistindo numa elucidação dos termos da questão através da afirmação da imprescindibilidade da propaganda eleitoral massmediática e da inevitabilidade da aproximação entre propaganda eleitoral e a lógica da publicidade. O ponto de chegada deste ensaio é a evidenciação de que o problema de uma ética da propaganda política é, na verdade, a questão da relação, historicamente conhecida, entre retórica e ética. Em suma, prepara-se aqui o panorama para a proposição de uma ética que regule normativamente as interações argumentativas competitivas do campo político, inclusive as suas estratégias persuasivas.

Sumário: 1. Posição do Problema 2. Estratégias Persuasivas e Política "Massmediática" 3. Para uma Ética das Estratégias Persuasivas 1. Posição do Problema. Se houve uma unanimidade acerca da propaganda do plebiscito de 1993, certamente foi a convicção quanto ao fato de que esta "enganou" os eleitores. Os meios de comunicação esmeraram-se em apontar mentiras e distorções de fatos pelas frentes parlamentarista, presidencialista e monárquica. Dentre os políticos houve até mesmo quem propusesse o acionamento do Código de Defesa do Consumidor contra aquilo que se classificou como "propaganda enganosa". O desmedido da proposta seria patético, não fosse a idéia dominante de que havia uma estreita relação entre as "mentiras do horário político gratuito" e o fato de que os temas, os fatos e as proposições apresentadas na propaganda eleitoral foram tratados "como produtos comerciais". A reinvenção mentirosa do passado, as omissões, as análises distorcidas de eventos e situações históricas, as meias-verdades e a má-vontade argumentativa em face dos concorrentes tornaram-se evidentes mesmo aos olhos dos não versados em história e política. Como estas características são encontradas apenas nos discursos cujo propósito é o convencimento de alguém para que compre um determinado produto - a publicidade -, não há como evitar a impressão de que a propaganda eleitoral tornou-se uma espécie do gênero publicidade (ou "propaganda comercial"), com todos os elementos reconhecidos como patologias do gênero, a saber, a "propaganda enganosa" e a "contra-propaganda". Uma leitura, nestes termos, da propaganda eleitoral (particularmente do Horário de Propaganda Eleitoral Gratuito, no rádio e na televisão) revela, sem dúvida, uma coisa perturbadora para a jovem democracia brasileira. Estando as coisas assim, não nos resta que encabeçar um movimento pela abolição da propaganda eleitoral (mormente do Horário Eleitoral), pela sua submissão aos Códigos de Defesa do Consumidor Político ou, enfim, instalarmo-nos no velho e sempre sábio bordão "político não presta!". Entretanto, eis que algumas coisas nos provocam a pensar. Em primeiro lugar, é evidente que a crítica à propaganda eleitoral é normalmente inspirada num preconceito (nem sempre injustificado) arraigado na cultura brasileira (e não só nela), de que a arte e a ação políticas são um espaço de concorrência onde tudo se movimenta exclusivamente a partir de cálculos de ganho. Tais cálculos, portanto, não podem deixar de traduzir-se em expedientes de autopromoção e estratégias de desqualificação do adversário, tanto no âmbito das práticas (sabotagens, perseguições, apadrinhamentos, corrupção etc.) quanto no dos discursos (a "propaganda enganosa" e a "anti-propaganda"). Quem há de negar a pertinência deste quadro? 1

Trabalho apresentado ao GT Comunicação e Política na II Reunião Anual da Associação Nacional dos Programas de PósGraduação em Comunicação - COMPÓS. Salvador, Novembro, 1992.

Todavia, é evidente que nem só de "Odoricos Paraguassus" vive a política brasileira. Além do mais, este tipo de discurso tem um componente perigoso: os discursos moralistas e pessimistas instauram, alimentam/refletem o desprezo pelas instituições e arte políticas, deixando (quando não propondo diretamente) o espaço aberto para a possibilidade de aventuras "profiláticas", cujos exemplos vão desde a instauração de um regime de força (a fantasia do déspota que restitui a ordem e a moralidade) até a eleição do nosso recente solitário caçador de políticos/corruptos (a fantasia do cavaleiro errante, lança em riste, em defesa do bem e da honra). Mas o pior de tudo neste discurso é a convicção que nele se estabelece (e que ele ajuda a estabelecer) de que esta não é uma situação da política neste quadro preciso e dadas certas circunstâncias, mas é o estatuto mesmo da política, a sua condição essencial. Nesse caso, desistimos da democracia e nos abandonamos à s fantasias teológicas do "ordenador" do mundo: que venha o déspota iluminado de plantão ou um cavaleiro de uma qualquer Távola Redonda. Em segundo lugar, é também evidente que o propósito da propaganda eleitoral está longe de ser o de sacramentar a imoralidade discursiva no espaço público. Parece ser típico de uma situação democrática que os grupos de interesse possam interagir, mediando os próprios interesses, negociando as próprias pretensões, tendo em consideração as pretensões dos outros que lhe são concorrentes. É este "comércio comunicativo", esta mediação das pretensões e interesses antagônicos, opostos e/ou contrários, pelos diversos sujeitos socialmente reconhecidos, que constitui a dimensão pública, condição mínima da democracia política. Ora, as interações políticas em sociedades de relações sobretudo indiretas não parecem poder prescindir da propaganda eleitoral, desde que esta última seja retamente compreendida. A idéia que a sustenta é a de que vivemos numa sociedade de massa, isto é, numa sociedade com um número muito grande de "sócios", onde tornase impossível a experiência e o conhecimento imediato por parte de todos de tudo o que concerne à negociação política que afeta a cada um. Vivemos numa democracia representativa, isto é, num tipo de relação política onde a vontade individual não é chamada em causa diretamente a cada decisão no campo político, mas onde, todavia, a democracia se exerce porque as vontades singulares são solicitadas a outorgar o próprio consentimento, em determinados lapsos de tempo, a outros indivíduos que as representam nas interações políticas durante um certo período, onde o consentimento pode ser novamente outorgado ou retirado. Neste caso, estas consultas da vontade singular dos cidadãos por aqueles que se oferecem como seus representantes, de tempos em tempos, em referendos, plebiscitos e eleições gerais, tornam-se fundamentais, autêntico campo de provas onde se testa a saúde da democracia de um Estado. Por outro lado, é também evidente que a democracia representativa vivida numa sociedade de massas só é eficaz se todos os cidadãos interessados (por direito, igualmente "concernidos" pela interação política) tiverem iguais chances de conhecer, o mais profundamente possível, as possíveis alternativas que lhes são facultadas nas "consultas eleitorais". A propaganda eleitoral é uma instituição criada justamente com o propósito de "dar a conhecer", de "tornar públicos" a identidade, os propósitos, as teses e princípios daqueles que solicitam o consentimento dos cidadãos. Assim, é uma espécie do gênero propaganda política, que diz respeito ao conjunto das peças discursivas em que se propagam ou difundem idéias, visões de mundo e interesses que dizem respeito à coisa pública. Neste sentido, ela é essencial para a garantia da prática democrática em sociedades de massas fundadas na democracia representativa. Em terceiro lugar, quando se realiza a identificação entre as formas atuais da propaganda eleitoral e a publicidade corre-se o risco de pretender de uma interação discursiva muito mais do que aquilo que esta pode efetivamente dar. Partimos do pressuposto, sem dúvida correto, de que a propaganda eleitoral dá-se numa situação de concorrência entre várias alternativas discursivas, cada uma das quais representada por um grupo de interesse. Trata-se da mediação ou interação de posições alternativas, ou seja, de posições que eventualmente podem até cooperar malgrado as diferenças, mas que se caracterizam mormente por serem reciprocamente excludentes - o afirmar-se de um implica na negação da outra. A interação é, de qualquer sorte, caracterizada por um agonismo de fundo. Ora, numa situação de agonismo discursivo a atitude mais normal que se possa esperar é a competição discursiva. Para cada um grupo de interesse (ipso facto, um sujeito de locução) é essencial obter êxito, não fracassar ante a locução alternativa, o seu critério é a eficácia, que inclui o fato de que o outro é superado. As leis da ordenação de um discurso em situação de agonismo são, por conseguinte, as mesmas leis da retórica da execução: os princípios e instrumentos discursivos mais eficazes para impor a própria causa. A arte da propaganda, nesse caso, tem que ser uma arte de persuadir, de realização de convencimento. Quando se trata da propaganda tout court podemos até imaginar um estilo sossegado, possivelmente orientado pela verdade (real ou imaginada) pensemos na propaganda religiosa em estado de não-concorrência. Mas parece igualmente evidente, portanto, que a propaganda eleitoral, porque fundada numa situação necessariamente agonística, não pode prescindir de um stilus pugnax, de um estilo combativo, e que este agonismo discursivo em si não a desqualifica, mas, antes, parece ser uma propriedade de toda interlocução. É bem verdade que a identificação entre "propaganda" (que se refere à difusão de idéias) e "publicidade" (que se refere à exibição das qualidades de um produto à venda) é uma coisa em si mesma negativa e condenável. A

questão é se, ao aceitarmos esta identificação como uma fatalidade, não incorremos no risco de inferir pela "imoralidade" das formas atuais de propaganda eleitoral a "prescindibilidade" desta para a democracia brasileira, ou seja, de jogar fora a criança com a água do banho. De forma que, se a simples constatação da identificação entre propaganda eleitoral e publicidade não nos cria um problema, ao contrário, se além da constatação da identificação insistirmos que da propaganda eleitoral não se pode prescindir a não ser pondo em risco a própria democracia, bem como não se pode prescindir deste seu aspecto combativo sob pena de não entendermos a realidade do fato político, então temos uma questão teórica importante. Com efeito, tudo o que temos a fazer agora é pensar a propaganda eleitoral levando em conta esta moldura conceitual: a) a propaganda eleitoral tornou-se publicidade; b) a propaganda eleitoral é imprescindível para a democracia política nas sociedades de massa fundadas na democracia representativa; c) a propaganda eleitoral e a publicidade têm em comum um certo pathos agressivo inevitável, típico de situações de concorrência discursiva. Ao mesmo tempo ganhamos um patamar de análise, na medida em que não há como tratarmos do problema ao nível das constatações de fato (as coisas são assim, e pronto), mas apenas como problema de direito (como é que as coisas deveriam e poderiam ser?), ou uma questão normativa. 2. Estratégias Persuasivas e Política Massmediática. Dissemos há pouco que a sociedade brasileira contemporânea caracteriza-se por um número muito grande de "sócios", com contatos indiretos e frouxos entre si e com os fóruns onde se decide o jogo político, bem como por fundar-se na forma política da democracia representativa. Resta dizer que este é o caso das sociedades contemporâneas em geral; antes, é aquilo que mais do que qualquer outra coisa decide sobre a sua contemporaneidade ou não. A bem da verdade, é preciso que acrescentemos a este quadro um novo elemento, a saber, a importância dos meios de comunicação social como configuradores da sociabilidade. Se efetivamente nos parece exagerado afirmar que a sociabilidade contemporânea se configura exclusivamente a partir da sintaxe e da semântica dos meios (como se não houvesse mecanismos de retroação da sociabilidade), por outro lado, não há como negar o papel que representam os meios de comunicação em sociedades de tal forma extensas e onde, apesar disso, cada indivíduo é reconhecido como detendo uma quota de poder nas tomadas de decisões (ainda que indiretas) dos negócios públicos. É evidente que estes meios fornecem o liame fundamental entre os "sócios", os grupos de interesses reconhecidos e o campo das decisões políticas, na medida em que fornecem as condições de possibilidade para a intervenção dos indivíduos no jogo, para a sua passagem de mero concernido a participante: conhecimento dos temas em discussão (através do "agendamento"), das partes interessadas e das suas teses e princípios, das regras segundo as quais se processa o jogo político. Entretanto, todos sabemos que os meios de comunicação estão bem longe de ser meros instrumentos passivos pelos quais o indivíduo tem acesso aos fóruns, temas e regras do jogo político, já pronto e definitivo. Não apenas porque os meios são também partes interessadas na decisão no teatro político, como também porque neles a informação se processa segundo determinadas regras de combinação (determinadas "gramática" e "sintaxe") e princípios de pertinentização e segmentação (determinadas formas "semânticas"). Assim, os mass media são considerados naquilo que lhes constitui essencialmente apenas se tomados como condições de possibilidade da intervenção no teatro político, isto é, de algum modo como meios de constituição do mundo político. O teatro político, onde se dão as decisões pontuais que concernem à coisa pública, apresenta-se como possibilidade real para cada concernido (para cada "cidadão legal") não apenas "através" dos media, mas sobretudo inscrito nas possibilidades dos mass media, na sua "gramática", pela sua "sintaxe", no horizonte da sua "enciclopédia" e "dicionário". Possibilitada pelos mass media, a arte política torna-se então massmediática. A propaganda eleitoral, se eficaz, é dependente de forma completa dos meios de comunicação social. Mesmo quando são apoiados em outros media ("santinhos", panfletos, "corpo-a-corpo", comícios etc) necessitam de uma eficiente e ágil interface com os mass media para que possam ser eficazes; a não ser, é óbvio, quando se trata das decisões políticas do povoado, da pequena cidade. De resto, sem os meios de comunicação social parece consensual afirmar-se que não há idéias ou princípios capazes de atingir toda a sociedade - exceção feita à religião, que se rege a partir de outros parâmetros. A primeira característica da propaganda eleitoral é, portanto, o seu aspecto massmediático - em toda a pregnância do termo e não apenas num sentido meramente instrumental. Além disso, a propaganda política em geral e a propaganda eleitoral em particular caracterizam-se pela sua situação de agonismo. Como a política, nas sociedades democráticas, é um jogo de força em equilíbrios precários e pontuais, cada afirmação comporta a negação de qualquer alternativa atual ou virtual. Portanto a propaganda é sempre, de algum modo, interativa, enquanto visa a persuadir o seu público da superioridade da própria posição, a impor pela obtenção do consentimento a própria causa em face das outras possíveis.

Disso decorrem duas ulteriores caracterizações da propaganda eleitoral. Em primeiro lugar, o seu caráter retórico. Em segundo lugar, o fato de a propaganda tornar-se, cada vez mais, uma atividade de especialistas em publicidade. A retórica, todos o sabemos, é uma arte tão ou mais antiga que a filosofia (que historicamente foi sua concorrente direta em mais de um período histórico) e a dialética. Tradicionalmente se ocupa com o uso do discurso (rhéseis) ou, melhor ainda, com o uso da expressão ou dicibilidade das coisas (rhéton). Numa sociedade onde a dimensão pública é de tal modo importante, como na pólis grega, a "arte de persuadir pela expressão", como é entendida a retórica, é de grande importância e deve ser dominada por todos os participantes do jogo político. Desde o início, a retórica está ligada à disputa pública de teses e temas. Por isso, constitui-se como uma técnica das idéias ou tópica (a arte de inventar os temas e conceitos pelos quais se conduzirá a discussão, os arcabouços ou materiais conceituais), uma técnica dos argumentos (a arte de inventar as estratégias demonstrativas e/ou persuasivas, o ordenamento e coerência dos pensamentos na discussão), uma técnica da elocução (a arte de inventar as formas expressivas do discurso, sua apresentação em imagens e palavras). Os dois aspectos, criativo e executivo, parecem compor o quadro da arte retórica. Esta é criativa, enquanto inventa os temas, conceitos e imagens, bem como a ordenação dos argumentos necessários à exposição e defesa do próprio pleito. Mas é também executiva, enquanto dispõe todos estes elementos, vistos como instrumentos na disputa, a partir de estratégias de persuasão, com vistas a impor, da maneira mais eficaz, a própria causa. Afinal, à retórica (esta arte tão contemporânea) a obtenção do êxito é um critério essencial. Numa situação de agonismo pareceria de fato que os parâmetros pelos quais se avaliam as ações são dados pela meta da concorrência: a obtenção do consentimento/a defesa eficaz do próprio pleito/imposição da própria causa. Por eles se orientam os valores ou critérios reconhecidos intersubjetivamente como válidos em qualquer situação, como aqueles que devem impôr-se a partir de um consentimento público previamente outorgado e que normatizam os comportamentos. Em sendo a eficácia o parâmetro fundamental, a retórica da propaganda eleitoral impõe o valor de desempenho ou a performance como valor. Orientada pelo valor retórico de desempenho - o valor-performance -, a propaganda eleitoral se desvincula do compromisso com os pares éticos verdade-mentira e os critérios bom-mau. De fato, a guerra que os filósofos (ao que parece, enciumados com o sucesso dos "rhetores") desde o início travaram contra a retórica, parece, em primeiro lugar motivada por critérios gnosiológicos (os sofistas e outros "rhetores" não se importam com a verdade do discurso, mas com a vitória sobre o antagonista, diziam), mas na verdade motiva-se por critérios éticos. A ética, à diferença da retórica e da dialética, funda-se em critérios desprovidos de "agonismo": algo é verdadeiro ou bom independente da sua inserção em um argumento vitorioso numa disputa qualquer. Dominada por cálculos de ganho, a verdade, enquanto valor, vê-se substituída retoricamente pela performance como critério na propaganda eleitoral. A diferença entre um e outro está em que o valor de verdade dos discursos remete e se apóia numa relação entre o texto e algo extra-textual (é justamente quando a possibilidade de acesso ao extra-textual parece se perder que entram em crise as possibilidades da verdade, do erro e da mentira), enquanto o valor-performance, a valência performática da notícia remete e se apóia numa relação entre os textos concorrentes. Assim, do ponto de vista retórico, de uma asserção qualquer da propaganda eleitoral não se pode dizer se é falsa, mas pode-se, ao contrário, afirmar que tem um mau desempenho. Os critérios são retóricos (isto é, pertencem à esfera dos efeito dos sentidos produzidos) e não gnosiológicos (da esfera do conhecimento). Admitida a performance como valor, a asserção considerada melhor não é a asserção verdadeira, mas aquela que produz um efeito de verdade, produz convencimento. Assim, se o horizonte da ética é regulado institucionalmente (pela lei, por exemplo), o caráter retórico da propaganda eleitoral exige para ela uma outra forma institucional. Institui-se, assim, um mercado livre e liberal de enunciados, regulado exclusivamente pela concorrência e pelos automatismos homoestáticos do mercado. Nesse caso, quem ganha é certamente o mais competente e por isso deve também ser considerado o melhor e a derrota deve ser creditada a erros na estratégia de performance e à incompetência performática, de forma que o perdedor tem necessariamente que ser o pior. Mas se é um mercado liberal, é na forma "neo-liberal" (para continuar na imagem) na medida em que permite a intervenção de um árbitro para impedir as possíveis atrofias internas do mercado. Assim, a única coisa proibida é infringir as "leis do mercado", como não submeter-se ao mercado livre (pela fraude, corrupção ou mesmo a violência física e moral) ou como realizar uma pseudo-submissão a esta (o truste na propaganda eleitoral não é difícil de notar-se). Os tribunais eleitorais têm tanta força nesse mercado quanto os governos no mercado capitalista, na sua luta contra o truste, por exemplo. Submetida à lógica do "mercado da persuasão", a propaganda eleitoral não deixa margens à improvisação e ao diletantismo. O seu caráter massmediático exige o domínio das linguagens dos grandes meios e a produção de peças persuasivas compatíveis com o nível de sofisticação esperado pelo espectador "educado" por estes meios. A

persuasão massmediática, exige uma técnica das idéias ou a invenção de categorial frameworks, uma técnica dos argumentos e, sobretudo uma técnica da elocução completamente adequada à "sensibilidade mediática" do homem do nosso tempo. Ora, existe em nossa sociedade um conjunto de "experts", autênticos rhetores multimedia, especializados nas formas massmediáticas da arte de persuadir: os técnicos da publicidade. Como se por uma ironia da história, os rhetores, banidos da praça enquanto ágora pelos filósofos, nela se tivessem estabelecido de forma ainda mais competente enquanto mercado e, agora, na época dos meios de comunicação de massa, retornassem ao espaço público pelo mercado da persuasão. Também o comércio de bens materiais é um espaço de agonismo, também nele não há a possibilidade, para cada indivíduo, de acesso ao bem oferecido senão pela mão solícita da publicidade, também nele, enfim, o valor de uso do objeto é o que menos conta em face dos cruzamentos conotativos que a publicidade lhe faz suportar. Com tantas analogias, não há porque negar que o que vale para o comércio de bens em geral não possa valer para o comércio de bens políticos. O resultado disso, todos o sabemos, se expressa na tese bastante consensual, segundo a qual, conditio sine qua para vencer uma eleição ou plebiscito é contar com um boa agência de publicidade e com disponibilidade financeira para arcar com os seus custos. O problema começa apenas quando nos damos conta de que, pelo menos aparentemente, a lógica da mediação pública dos interesses parece dominada pela lógica social do consumo. Esta crítica parece fundar-se numa forma da velha objeção "católica" (em sentido weberiano) contra a mercantilização em geral. Mas a questão não é esta. O problema situa-se no âmbito das metas que orientam as ações retórico-comerciais e retórico-políticas e no nível dos decorrentes parâmetros a partir dos quais estes são avaliados. Porque é evidente que dadas certas metas de ação, decorrem certos parâmetros ou valores pelos quais os comportamentos são julgados. Admitido que a lógica da propaganda eleitoral está submetida à lógica da publicidade, inscrita, por sua vez, na lógica social do consumo, espontaneamente somos levados a reproduzir, na crítica da publicidade eleitoral, a mesma crítica à transformação dos valores na publicidade em geral. Como a publicidade pauta-se pela lógica social do consumo onde se inscreve, e como esta caracteriza-se pela substituição do valor de uso dos objetos pelo seu valor de "personalização" (para usar o termo de Baudrillard) daquele que o possui, a propaganda eleitoral hodierna parece não mais pautar-se por algo como um "valor de uso" ou real do objeto político. O objeto, diz Baudrillard, não é "consumido" em seu valor de uso mas, através dos percursos conotativos magistralmente trabalhados na publicidade, pela sua capacidade de personalizar aquele que o compra, isto é, enquanto signo que distingue o seu consumidor, inscrevendo-o a um círculo de referência ideal e excluindo-o, por conseqüência, de outro. O trabalho de "vender" um objeto (no sentido que a publicidade e as relações públicas dão a este termo) consiste em convencer os "consumidores", através de mensagens centradas nos contratos conotativos que se referem muito mais ao consumidor do que ao objeto e as respostas e soluções que ele efetivamente comporta. "Este carro não se destina a transportá-lo, mas a fazer de você um homem moderno, elegante e de sucesso" - nos diz afinal a publicidade. Na publicidade eleitoral trata-se igualmente de "vender" objetos: candidatos, idéias, princípios, compromissos, programas, "personas". Os objetos não são "vendidos" em si mesmos, em seu "valor de uso", naquilo que eles efetivamente são ou podem fazer. As mensagens que os vendem centram-se cada vez mais em mecanismos conotativos cujos contratos engajam o eleitor: o eleitor "moderno" vota em fulano, que é moderno; o eleitor "honesto" escolha tal partido etc. A personalização ou diferenciação do "consumidor" (que decorre do "consumo") não se funda na função eventualmente excercida pelo objeto político, mas obedece a um critério fundamental que consiste em inserir o consumidor numa cadeia de relações opositivas onde se jogam sobretudo a identidade (própria e grupal), o prestígio e (o resumo de ambos) o reconhecimento pelo outro. Os objetos políticos são, também estes, valores-signos, suportes conotativos que se consome sem que importe muito o "valor de uso" do objeto. As pessoas e programas reais são chamados em causa apenas quando existe já uma "imagem pública" decorrente de uma "publicidade anterior" e só no caso em que ela é vantajosa. Caso contrário, é melhor transformar (só para dar um exemplo) a idéia de "malvadeza" de ACM em Ação, Competência e Moralidade. Por outro lado, é preciso olhar com realismo o nosso próprio tempo. E muitas vezes os críticos do caráter mercantil da propaganda eleitoral acabam pecando por extemporaneidade e por defeitos teóricos. A estes agrada mostrar como a lógica social do consumo inerente à publicidade perturba, falsifica, mistifica, manipulando-a, a relação do cidadão com o objeto político propagandeado e, por consequência, com a sua cidadania que se exerce pelo voto. Pela propaganda eleitoral fica impossibilitado ao cidadão "consumir" apenas o objeto político. Não tendo ele nenhum outro acesso imediato ao objeto político deve "consumir" também - e sobretudo - alguma coisa do objeto, mas recoberto densamente pelos fantasmas e mitos apoiados nos mecanismos conotativos, resultantes do trabalho da publicidade. Antes, "consumir" na verdade é "consumir" o signo e não desfrutar da função do objeto. Não há como negar a pertinência desta crítica. Baudrillard já demonstrou (falando, naturalmente, da publicidade comercial), como ela se funda freqüentemente numa antropologia ingênua e na sua idéia principal, segundo a qual

o cidadão é um sujeito livre e consciente. Pode-se acrescentar, ademais, que há uma falsa teoria do conhecimento, segundo a qual o objeto política está aí, diante de nós, na sua pureza pré-discursiva, disponível e íntegro, de forma que poderíamos apreendê-lo nesse seu estado não fossem as interferências da retórica da publicidade. Assim, a interferência técnica da publicidade e das relações públicas emergiria como uma potência diabólica produtora de todas as "disfunções" conseqüentes. Além do mais, ela parece pressupor a possibilidade de dispensarmos a interveniência da retórica no jogo político e particularmente da contemporânea retórica massmediática. 3. Para uma Ética das Estratégias Persuasivas Desenha-se diante de nós um quadro inquietante. De um lado, há uma razoável indignação ética praticamente unânime contra o modo como se vem realizando a propaganda política em geral e a propaganda eleitoral em particular. Por outro lado, o fato de vivermos em sociedades de massas e nos governarmos através da democracia representativa parece suficiente para justificar a imprescindibilidade da propaganda eleitoral em sua forma massmediática. Enfim, como a propaganda política obedece à s leis da política, que se funda na arte de mediar interesses conflitantes, portanto, numa situação de agonismo, ela não pode prescindir do aspecto retórico. Além do mais, a política contemporânea se estabelece, como vimos, nas condições de possibilidade dos meios de comunicação de massa. Destarte, não apenas a retórica é imprescindível; esta precisa ser massmediática, sendo assim inevitável a aproximação com os códigos, princípios e lógica da publicidade. Nesse caso, a questão passa a ser a de como conciliar a exigência de uma ética da propaganda eleitoral com a imprescindibilidade da estratégia retórica que a configura. Vemo-nos, curiosamente, diante do antigo problema de como fazer intervir a ética no campo da retórica. O que, diga-se de passagem, mais que um problema operacional é um problema de legitimação: em que sentido é válido exigir que os procedimentos retóricos devam submeter-se ao juízo da ética? Sabemos como na antiguidade foi "resolvido" o problema - a fundação do partido dos "filósofos" contra os "sofistas", a submissão da "dialética" à "filosofia" e enfim, a redução da retórica a uma arte do estilo, base da arte poética e auxiliar da filosofia. A "resolução" do problema, entretanto, não deixa de ser uma confissão de que aqui há fronteiras intransponíveis. De fato, à retórica é fundamental as estratégicas de disputa. Já os critérios da ética devem ser essencialmente desprovidos de agonismo: algo é certo ou errado independente de haver um interlocutor que o sustente ou negue. Por outro lado, é verdade que embora a valoração ética não dependa do agonismo, a ética enquanto tal diz respeito aos comportamentos humanos em situação de interação, não importando se esta práxis seja conflituosa ou não. Na verdade, a ética não é, de fato, um instrumento da disputa argumentativa, nem nos torna aptos ao convencimento argumentativo dos outros. Isto porque o seu propósito, no que tange à interação, é bem outro. Com efeito, não nos torna aptos porque a sua finalidade é a regulação da interação, a discriminação das ações que se podem ou não aceitar como legítimas nas disputas argumentativas e no que concerne à s estratégias argumentativas ou demonstrativas em ato. Se à retórica inere essencialmente o esforço discursivo de persuasão, a realização de convencimentos, o acionamento dos instrumentos mais eficazes para impor a própria causa, à ética corresponde o discernimento entre comportamentos discursivos aceitáveis e inaceitáveis, independentemente da sua eficácia. Provavelmente pensando nisto, os antigos (atribui-se a Sócrates a sua origem) criaram a "dialética". A arte dialética é semelhante à retórica enquanto exige a interlocução e a disputa (reais ou imaginárias). Mas se diferencia da retórica e se aproxima da filosofia quanto ao seu télos: alcançar a verdade a respeito de um tema. A verdade não é dada inteira desde o início; se há, deve ser procurada na interlocução, através de objeções e contra-objeções. Disso decorre uma ulterior diferença em face da retórica, desta vez no que se refere aos procedimentos: o agonismo competitivo da retórica cede espaço ao agonismo colaborativo da dialética, onde as diferenças são mediadas argumentativamente em função da meta. Enquanto na retórica uma posição contrapõe-se a outra para impor-se, vencendo-a, na dialética a contraposição serve para que as posições divergentes, juntas, superem o antagonismo numa nova posição, que pode interagir com uma outra contraposição, até que se chegue a uma posição que tenha, se possível, a concordância de todos. Satisfazendo-nos com esta posição estaremos, entretanto, confundindo as coisas. A dialética antiga é mais um artifício metódico de exposição (ex eventu) da argumentação demonstrativa do que um procedimento efetivamente aplicado e aplicável à s interlocuções reais. Não há como não nos rendermos à beleza de algum dos diálogos platônicos, por exemplo, mas não podemos evitar a impressão de artificialidade, de burilamento teleológico dos argumentos - temos literatura e não interação real. Para o estabelecimento de uma ética da argumentação competitiva em campo político, não basta, portanto, oferecermos a dialética antiga como modelo. Mas o que é preciso, então? Ao meu ver - e este ensaio deve prosseguir a sua investigação nesta direção - é preciso que se evidenciem as normas, regras e parâmetros que devem governar a interação argumentativa entre os sujeitos de interesses e pretensões. Mas é preciso também que estas normas sejam justificadas como pressupostos inegáveis de qualquer interação argumentativamente mediada.

Só na medida em que formos capazes de apresentar e fundamentar as normas e regras da situação argumentativa legítima poderemos, então, estabelecer os fundamentos de uma ética da propaganda política. A seguir.

BIBLIOGRAFIA BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Trad. A. Morão. Lisboa: Edições 70, 1981. ---- O sistema dos objetos. Trad. Z. R. Tavares, São Paulo: Perspectiva, 1988 . ---- "A comunicação e os paradoxos da contemporaneidade". In: Textos de cultura e comunicação, XXVIII(1992): 11-16. OLIVEIRA, M. A. Ética e sociabilidade, São Paulo: Edições Loyola, 1992. PLEBE, A. e EMMANUELE, P. Manual de retórica. Trad. E. Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1992. ROCHA FILHO, A. F. "O espaço-público eletrônico na transição e na democracia". In: Textos de cultura e comunicação, XXVII ( 1992): 24-44. RODRIGUES, A. D. Estratégias da comunicação. Questão comunicacional e formas de sociabilidade. Lisboa: Editorial Presença, 1990. RUBIM, A. C. "Sociabilidade, comunicação e política contemporâneas". In: Textos de cultura e comunicação, XXVII (1992): 3-23.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia e professor do Departamento de Comunicação e do Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal da Bahia. No momento é bolsista do CNPq, desenvolvendo pesquisa sobre Ética da Comunicação.

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