Estratégias de representação do real: um olhar semiótico às narrativas do New Journalism e de Linha Direta

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS CENTRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

ESTRATÉGIAS DE REPRESENTAÇÃO DO REAL – UM OLHAR SEMIÓTICO ÀS NARRATIVAS DO NEW JOURNALISM E DE LINHA DIRETA

Maura Oliveira Martins

Dissertação de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Fernando Andacht

São Leopoldo, janeiro de 2005

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Agradecimentos Agradeço a todos que me acompanharam e exerceram influência no processo de construção desta pesquisa. Em especial, ao meu orientador, Prof. Dr. Fernando Andacht, pela generosidade em compartilhar valiosas lições que ficarão por toda a vida; Aos professores Fernando Resende e Fabrício da Silveira, participantes da banca de avaliação, que contribuíram imensamente com a especificidade de seus olhares sobre esta dissertação.

Este trabalho é dedicado ao meu pai e à minha mãe.

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Sumário Resumo.............................................................................................................05 Abstract ...........................................................................................................06 Introdução........................................................................................................07 Capítulo 1. New Journalism – a ficcionalização da realidade cotidiana........................14 1.1. Influências literárias no estilo concreto do New Journalism.....................16 1.2. Novas técnicas narrativas – transgredindo as “convenções de Genebra do pensamento”......................................................................................................19 1.3. A dinâmica das diferentes vozes no discurso do New Journalism ............26 1.4. A desfronteirização dos limites do discurso na experiência do New Journalism .............................................................................................................................35 Capítulo 2. Estratégias de realidade no programa Linha Direta – o jogo de modalidades discursivas no texto de um reality show .................................38 2.1. Estratégias constantes no discurso de Linha Direta ...................................41 2.2. A realidade televisiva configurada em Linha Direta..................................43 2.3. Análise na estrutura efetiva de uma edição do programa ..........................49 2.4. Refletindo os conceitos de dialogismo e polifonia nos produtos contemporâneos: o caso Linha Direta ..............................................................55 2.5. O discurso de Linha Direta como lugar de polêmica ................................59 Capítulo 3. As narrativas de Linha Direta e do New Journalism – formas de representação do real em produtos recuperadores dos princípios realistas ...........................................................................................................................67 3.1. O determinismo tecnológico – uma forma de entender a narrativa midiática ...........................................................................................................................74

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3.2. Estereótipos e clichés – a função determinante dos configuradores do real na representação realista ..........................................................................................77 3.3. Em busca do desvendamento das fronteiras discursivas ..............................87 Capítulo 4. Uma abordagem semiótica à questão – os discursos de Linha Direta e New Journalism como signos complexos ................................................................ 94 4.1. Linha Direta e New Journalism como novos interpretantes dos fatos .......102 4.2. Os novos modos estéticos de expressão do discurso realista inaugurados em Linha Direta e no New Journalism ...................................................................110 4.3. O retrato do cotidiano – as origens do realismo atualizadas em produtos midiáticos contemporâneos ...............................................................................116 4.4. Comparativos entre New Journalism e Linha Direta: identificação dos movimentos e categorias analíticas mobilizadas na pesquisa............................119 Capítulo 5. Os signos de identidade – as figuras semióticas do apresentador e do narrador como índices da enunciação ..........................................................125 5.1. O preço da traição – estratégias de Linha Direta refletidas em um crime no interior................................................................................................................132 5.2. Radical Chique – ou um exercício pela busca de novos símbolos .............142 5.3. A atuação dos signos de narração na representação do real em ambas as configurações discursivas..................................................................................148 Considerações finais .........................................................................................161 Referências.........................................................................................................167

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Resumo Tomando como objetos empíricos de estudo a vertente impressa do New Journalism e o programa televisivo Linha Direta, o presente trabalho discute comparativamente as estratégias de representação da realidade observadas em diferentes linguagens midiáticas. Através da Teoria Geral dos Signos formulada por Charles S. Peirce, aparato teórico-metodológico adotado para essa análise, foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa visando entender as formas pelas quais o real é apresentado em duas experiências de mídia de pretensão realista, quase opostas tanto em intenções quanto em configurações estilísticas. O recorte selecionado para a problematização dessa pesquisa foca uma figura considerada central em ambos os fenômenos midiáticos analisados aqui: a questão do narrador como signo de identidade, visto como um elemento semiótico que revela a natureza do discurso em que se insere e estabelece formas de entendimento simbólico a partir de sua presença.

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Abstract Taking the slope print in the New Journalism and the tv show Linha Direta as empirical objects of study, this work discusses comparatively the strategies of representation of reality observed in different media languages. Through the Theory of Signs formulated by Charles S. Peirce – the theoretical methodology adopted for this analysis – it was conducted an approaching quality analysis intending to understand the forms by which the reality is introduced in two media experiences with realistic aims that are almost the opposite in intention and in stylistic configuration. The cutting selected for the problem of this research is focused on a figure considered central in both media phenomenona analyzed here: the matter of the narrator as a sign of identity, seen as a semiotic element that reveals the nature of the inner speech and establishes forms of symbolic understanding from its presence.

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Introdução A idéia central dessa pesquisa é compreender as estratégias de representação da realidade utilizadas em textos construídos em diferentes linguagens midiáticas. Através da análise comparativa entre o New Journalism, considerada a principal vertente jornalística a se apropriar de recursos literários, e os reality shows1, produtos de comunicação de massa hodiernos que promovem a dramatização de histórias de protagonistas anônimos e célebres, procura-se levantar considerações sobre as formas de apresentação do fato em produtos midiáticos de pretensão realista, conforme são configuradas por linguagens e intenções absolutamente distintas. Em comum, ambos se referem a um fenômeno de forte expressão nos produtos midiáticos da atualidade: a busca da exposição do real através do enfoque de momentos anteriormente desconsiderados pela mídia, cenas e situações classificadas como da esfera íntima, de bastidores (Andacht, 2003b) – num movimento que se contrapõe ao relato convencional do jornalismo, a base factual da qual partem os formatos discursivos aqui analisados. Essa procura do autêntico no retrato da vida cotidiana, porém, não seria um fenômeno recente: para Eagleton (2003), ela estaria presente na própria base da estética realista, que teria seu fundamento na representação artisticamente séria da vida cotidiana, levando as pessoas comuns para a literatura muito antes de elas terem qualquer expressão no campo político. Sob tal perspectiva, essa pesquisa tenciona estabelecer considerações sobre os modos de representação da realidade tal como são trabalhados em diferentes 1

Esse gênero é representado aqui através do programa Linha Direta, exibido pela Rede Globo desde 1999, que tem como mote a encenação dramática de narrativas criminais reais e a divulgação da resolução de alguns desses crimes, em decorrência quase sempre de sua apresentação no programa. A inserção de Linha Direta na categoria dos reality shows justifica-se no fato de que o programa, além de reconstituir fatos criminais baseados na denúncia oficial da justiça (o que é de interesse legitimamente social), reserva parte de sua narrativa à reconstrução subjetiva das personagens envolvidas no processo. Esse aspecto configura como o centro da experiência dos reality shows: o enfoque de situações anteriormente consideradas particulares e reconhecidas como autênticas, fato que encontra respaldo numa nova tendência à aceitação da exibição do privado, fenômeno que se repete em diversas outras mídias. Não se entende aqui, portanto, que os reality shows devam unir os papéis discursivos e sociais nos mesmos sujeitos; uma reconstituição feita através de atores contratados também pode pertencer a esse gênero midiático.

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tipos de linguagens midiáticas, através de uma análise focada em produtos de natureza realista configuradores de narrativas relativamente recentes. O objeto de estudo dessa pesquisa, portanto, é a comparação crítica e analítica entre New Journalism e Linha Direta. Trata-se de um esforço em abordar um confronto de mídias – no caso, de mídias televisiva e de jornalismo impresso, através da análise tanto do paralelismo quanto do contraste entre os diferentes modos pelos quais esses produtos midiáticos constróem narrativas híbridas (entre o real e o ficcional, o informativo e o lúdico) que, ao derivarem da tradição estética realista, apresentam-se (e convencem) como verdadeiras. A escolha dos dois objetos empíricos, mesmo realizada por caminhos absolutamente distintos2, torna-se pertinente ao assimilar-se que, mesmo histórica e discursivamente distantes, os dois fenômenos midiáticos em questão podem ser considerados possuidores das mesmas bases de construção narrativa: ambos estruturam textos baseados no reprocessamento de fatos e na revelação (parcial e falível, por diversos princípios – como o melodrama, o estilo popularesco – que não afetam no essencial desses formatos enquanto gêneros jornalísticos) da verdade através da reconstituição estilística fundamentada nos preceitos da estética realista, operando narrativas que se relacionam tanto com os princípios do entretenimento3 quanto da busca à informação. Não se pretende negar aqui as diferenças discursivas entre os dois gêneros que, a priori, já partem de aparatos tecnológicos absolutamente diferentes (a linguagem televisiva e do jornalismo impresso); um sustenta sua existência na busca inegável do lucro, enquanto o outro explicita motivações mais nobres, como 2

A proposta inicial deste projeto era a de investigar os antecedentes históricos literários do estilo de texto desenvolvido no New Journalism. Esse intuito refletia uma pesquisa anterior, no qual estabeleci um primeiro contato com essa linha de jornalismo impresso e reconheci, definitivamente, meu interesse em trabalhar com configurações jornalísticas de tratamento diferenciado da informação, com narrativas construídas através de experimentações estilísticas e pelo viés do entretenimento. Após o ingresso no Programa de Pós-Graduação, a questão dos reality shows foi incorporada como objeto apropriado à análise pretendida ao novo problema de pesquisa, conforme é explicitado acima. 3 Pois é inegável que os modos de consumo tanto do New Journalism quanto de Linha Direta passam pelo viés do divertimento – seja pela apreciação de reportagens redigidas com apuro estilístico diferenciado (em relação aos textos convencionalmente encontrados na imprensa), seja pelo prazer de sentir medo com uma história tensa, ou de assistir a uma história real construída através de um gênero discursivo já assimilado (no caso, a novela).

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o esforço em gerar relatos mais sofisticados, menos padronizados em relação ao jornalismo convencional (embora também nunca se desconecte da lógica comercial que baseia todas as mídias, inclusive as com pretensões artísticas). A analogia apreendida aqui está no fato de ambos configurarem diferentes estratégias de apresentação da verdade em textos esteticamente trabalhados, que se afastam das configurações originais dos gêneros dos quais se originam. Portanto, a intenção desse trabalho é realizar uma comparação entre dois produtos midiáticos que, em comum, apontam a formas de representação do real operadas por narrativas situadas em pontos limítrofes entre as realidades factual e ficcional. O recorte selecionado para a problematização dessa pesquisa passa, assim, numa figura considerada central em ambos os fenômenos midiáticos analisados aqui: a questão do narrador como signo identitário, visto como um elemento semiótico que manifesta a natureza do discurso em que se insere e estabelece formas de entendimento simbólico a partir de sua presença. Nossa observação constata que a figura do narrador-jornalista (Resende, 2002, p. 90) na experiência do New Journalism – ou seja, a inserção do repórter (como autor, como personagem e como recurso de estilo) no texto diferenciado dessa corrente jornalística – mostra-se análoga ao papel discursivo representado pelo apresentador do programa Linha Direta que, como a figura dos autores na linha jornalística abordada anteriormente, possui função determinante dos modos de interpretação considerados convencionais para o público receptor. A proposta é que se entenda a figura do narrador e do apresentador como signos-guia4, carregados de uma carga significativa mais expressiva do que outros elementos contidos nessas produções textuais, cuja função estaria na autenticação desses textos como pertencentes ao real e no encaminhamento de seu público receptor ao trajeto interpretativo oficial ou preferencial. Na construção de tal análise, por fim, considera-se a Teoria dos Signos estruturada por Charles Peirce como aparato teórico-metodológico fundamental para o empreendimento. Em sua essência, a semiótica peirceana voltou-se à investigação dos métodos humanos de revelação da realidade (Ransdell, 2004b) – 4

Idéia apresentada no quinto capítulo deste trabalho.

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referindo-se, pois, à mesma natureza a qual essa análise intenta: verificar de que modos os produtos midiáticos escolhidos constróem, através de narrativas diferenciadas, textos com pretensões de desvelar o real nos objetos a que se referem. Através do entendimento da estrutura narrativa de ambas as experiências midiáticas, acredita-se ser possível atingir o objetivo dessa pesquisa: levantar considerações relevantes sobre os modos de funcionamento dos tipos de linguagem midiática em foco, contribuindo, em particular, para um maior conhecimento da natureza dos dois produtos em questão. Assim, pretende-se realizar uma análise semiótica que explicite as semelhanças e diferenças entre os modos pelos quais os fenômenos enfocados em ambos os discursos midiáticos serão representados em seus textos concretos. Em comum, tais configurações discursivas baseiam sua referência ao real pelos elementos indiciais que carregam. A ênfase na figura do índice justifica-se pelo fato de que essa categoria sígnica pode ser entendida como elemento semiótico fundamental no relato realista, pois tem a função de contextualizar a existência concreta do fato, numa relação causal, real e eficiente entre signo e objeto. Nesse sentido, Barthes (1988) teorizou o efeito do real, no qual entende a função do pormenor supérfluo – elemento literário cuja função diegética era ignorada pelas teorias da época, sendo considerado como um mero adorno nãofuncional da prosa literária – como a busca pela denotação do real concreto no discurso realista, causando o efeito de um acesso sem mediações a esse real em estado puro e autêntico. Esse elemento que, na semiótica peirceana, pode ser compreendido como o índice, fundamenta os próprios princípios da estética realista: é através da representação indicial5 que um relato pode comprovar sua referência ao real, convencendo-se assim como verossímil. Ao mesmo tempo, esses textos têm no elemento icônico – que opera como a categoria da experiência qualitativa, compartilhando traços do objeto e funcionando por relações de analogia e semelhança, apontando aqui a inovação estética que tais discursos trazem – a base de suas diferenças e a razão de seu afastamento de seus gêneros jornalísticos originais. 5

Essa comprovação também envolve ícones e símbolos, mas isso não modifica a predominância indicial no discurso realista.

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Vislumbrando as perspectivas dessa pesquisa, acredita-se que seus objetivos podem ser delineados nas seguintes questões: 1.! Assumindo-se que as formas de representação da realidade encontradas tanto no New Journalism quanto no programa Linha Direta são descendentes dos modos representacionais exigidos pela tradição da estética realista, quais são os procedimentos do realismo trabalhados em ambas as experiências discursivas? 2.! De que forma a natureza tecnológica de ambos os objetos de pesquisa (as mídias impressa e televisiva) exercem determinação no tipo de relato que estruturam? 3.! Considerando que os estereótipos e os clichés operam como símbolos de função mimética (pois se baseiam no respaldo que possuem no sistema sociocultural do leitor) e como uma espécie de recorte social e natural do real (já que selecionam traços coletivamente reconhecíveis, pois o objeto a que se referem jamais poderia ser apresentado em sua totalidade), a representação realista deve sempre aproveitá-los, para concretizar o intuito de construir personagens verossímeis? 4.! De que forma as figuras do narrador e do apresentador nos respectivos relatos do New Journalism e de Linha Direta – que podem ser compreendidas como uma espécie de signos-guia, ou seja, como interpretantes já inclusos nos signos complexos que são os produtos midiáticos aqui enfocados – orientam simbolicamente uma interpretação privilegiada para esses discursos realistas em que estão inseridos, funcionando como índices de enunciação que personificam a voz da instância produtiva? Que sentidos são gerados a partir de sua presença? 5.! De que classe de realismo estamos tratando nessas duas experiências discursivas? 6.! A que conceito de objetividade esses textos provenientes do jornalismo obedecem?

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7.! De alguma forma, os objetos dinâmicos6 determinam a forma de representação? A própria natureza dos eventos exige formas diferentes de apresentação dos fatos? 8.! Há classes do realismo que nos aproximam mais do real que outras? Entre essas duas formas absolutamente distintas de representam – o modo sofisticado e cheio de sutilezas das reportagens impressas do New Journalism, e a construção popularesca de ampla acessibilidade das histórias de Linha Direta – há alguma que torna mais acessíveis os objetos dinâmicos a que apresentam? 9.! E a questão central, que perpassa todos os momentos dessa pesquisa: quais são os limites discursivos entre a realidade e ficção trabalhados nos dois produtos midiáticos em questão? Para as análises apresentadas nessa dissertação, investigou-se as edições de Linha Direta veiculadas entre o período de 18 de setembro de 2003 e 16 de dezembro de 2004, podendo-se assim levantar considerações acerca das características tanto da versão convencional do programa (com casos envolvendo pessoas anônimas, ainda não resolvidos) quanto da edição mensal Linha Direta Justiça (com casos nacionalmente conhecidos). Dentre as edições compreendidas nesse período, são evidenciadas análises realizadas em programas específicos cujas configurações tornaram pertinente sua seleção como representativas das edições observadas nessa investigação. Não se trabalhou com um corpus mais extenso por se acreditar que a análise pretendida aqui está vinculada às constantes discursivas do programa – expressas na seleção dessas edições – e não a um resgate histórico, quantitativo. Sob essa mesma perspectiva, a análise envolveu a investigação de quatro obras do New Journalism: Décadas púrpuras, de Tom Wolfe, publicado originalmente em 1982, Radical Chique & O Terror dos RPs, também de Wolfe, de 1970, A Sangue Frio, de Truman Capote, de 1966, e Aos olhos da multidão, de 6

O objeto dinâmico é a experiência total, o objeto em si próprio, fora de qualquer consideração; “é a Realidade que, de alguma forma, realiza a atribuição do Signo à sua representação” (Peirce apud Santaella, 1995, p. 53).

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Gay Talese, de 1964. A limitação atribuída ao trabalho desses três autores – não enfocando escritores igualmente associados a essa vertente, como Norman Mailer e Hunther Thompson – deve-se à constatação de sua representatividade enquanto vozes oficiais de tal empreendimento jornalístico. Dessa forma, o presente trabalho será estruturado em cinco capítulos. O primeiro, New Journalism – a ficcionalização da realidade cotidiana, resgata a situação histórica da vertente de jornalismo literário enfocada nessa análise e estabelece considerações sobre as especificidades narrativas de seu gênero discursivo. O segundo capítulo, Estratégias de realidade no programa Linha Direta – o jogo de modalidades discursivas no texto de um reality show, apresenta o segundo objeto de pesquisa, explicitando suas constantes discursivas em seu texto concreto, ao mesmo tempo em que determina os diferentes gêneros midiáticos que são recuperados em sua estrutura narrativa. No terceiro capítulo, As narrativas de Linha Direta e do New Journalism – formas de representação do real em produtos recuperadores dos princípios realistas, são expostos os passos de uma análise comparativa entre a estrutura narrativa das duas experiências discursivas

contrastadas

aqui

e

o

princípio

do

desenvolvimento

dos

questionamentos assinalados nos objetivos dessa pesquisa. O quarto capítulo, Uma abordagem semiótica à questão – os discursos de Linha Direta e New Journalism como signos complexos, aproxima a investigação ao aparato teórico-metodológico empregado para essa análise, o modelo semiótico triádico desenvolvido por Charles S. Peirce, e levanta considerações sobre a questão do realismo conforme configurada em ambos os discursos. Por fim, o último capítulo, Os signos de identidade – as figuras semióticas do apresentador e do narrador como índices da enunciação, apresenta a análise realizada nos signos observados como centrais nesses processos semióticos – os elementos narrativos – encaminhando considerações conclusivas sobre os modos pelos quais a experiência do real é representada nos textos midiáticos em foco.

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1. New Journalism – a ficcionalização da realidade cotidiana Ao começar os anos sessenta, um novo e curioso conceito, vivo o bastante para inflamar os egos, havia começado a invadir os confins da esfera profissional da reportagem. Esse descobrimento, a princípio modesto e humilde, poderíamos dizer, consistia em tornar possível um jornalismo que... pudesse ser lido igual a um conto7 (Wolfe, 1976, p. 18). De forma quase singela, Tom Wolfe8 assim relata o início do New Journalism, um dos mais conhecidos empreendimentos com pretensões de produzir relatos híbridos entre o jornalismo e a literatura. Surgido nos anos 60, o New Journalism logo mostrou que sempre iria passar longe da ingenuidade empregada por Wolfe em sua introdução. Oriundos de um contexto em que os movimentos de contracultura estavam em ebulição nos Estados Unidos – tais como a revolução sexual, os Panteras Negras, a geração beatnik, o movimento feminista da década de 70 e o movimento ambientalista – os Novos Jornalistas9 tiveram a seu dispor uma das mais extraordinárias décadas na história da América no que diz respeito às mudanças nos costumes e éticas, nos modos de viver e nos cenários políticos. Puderam, assim, explorar em seus relatos o surgimento de grupos minoritários, o abandono das normas e todas as demais modificações que vieram a determinar o mundo no século XXI. Restabelecem com seu estilo uma relação que sempre será de conflito entre literatura e jornalismo10. Os Novos Jornalistas acreditam que a aproximação 7

Tradução pessoal da versão em espanhol do livro. Tom Wolfe pode ser considerado o porta-voz e teórico da vertente (inclusive é sua a obra The New Journalism, um postulado no qual documentou o processo de surgimento e estabelecimento dessa corrente jornalística), assim como um dos seus principais representantes. Ph.D. em estudos literários americanos pela Universidade de Yale, tem entre suas obras O teste do ácido do refresco elétrico (The electric kool-aid acid test), Décadas púrpuras (The purple decades) e Radical chic e o terror dos RPs (Radical chic & mau-mauing the flak catchers). 9 A expressão Novos Jornalistas é utilizada aqui em referência aos membros do New Journalism. Não se refere, assim, ao termo cunhado por Nelson Traquina no livro O estudo do jornalismo no século XX, para designar os participantes do jornalismo cívico. 10 Não se considera o New Journalism como um marco inaugural no jornalismo literário, mas sim como um dos momentos (ou mesmo o principal evento histórico) em que este estilo discursivo esteve em destaque. Como explica Resende, “o jornalismo literário já era recurso utilizado nos primórdios da imprensa, mas, dessa vez, parecia acontecer uma retomada mais consciente e que deixava transparecer um confronto mais diário entre os dois campos” (2002, p. 28). 8

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entre o jornalista e a pauta seria o melhor método para a obtenção de grandes reportagens. Assim, rompem com um dos paradigmas do jornalismo ao marcar a presença do autor no texto (a observação atuante) e reproduzir falas textuais dos seus entrevistados, relatando mesmo monólogos interiores das personagens de suas matérias. Segundo Talese (1973), essa visão interior poderia ser representada através do incessante contato com os indivíduos e seria registrada através de um envolvimento maior com os entrevistados, que desse modo revelariam pensamentos absolutamente íntimos. Sua intenção, nesse sentido, era criar reportagens11 que provocassem o leitor, instigando-o no plano emocional e intelectual. Foram acusados de utilizar o trabalho jornalístico como um modo de se realizar como escritores, de considerar o jornal como “um motel onde se passa a noite em sua rota até o triunfo final (...), o romance”12 (Wolfe, 1976, p. 12). O estilo ainda foi combatido por membros da literatura, que já viam a classe jornalística como funcionários pagos ao dia que extraíam pedaços de informação bruta para melhor uso de escritores de maior sensibilidade. Segundo Wolfe (id), os suplementos dominicais dos jornais (primeiro espaço cedido às grandes reportagens) eram mal conceituados, ficando só abaixo da imprensa sensacionalista, na hierarquia formada pelos jornalistas. Os literatos seriam os únicos escritores criativos e teriam o acesso exclusivo à alma do homem, às emoções profundas e aos mistérios eternos. Os Novos Jornalistas eram chamados de lumpemproletariado – em referência ao termo da sociologia marxista que 11

Pode-se dizer que a necessidade de romper com o discurso padronizado sempre esteve presente na imprensa, a julgar pelo próprio conceito da reportagem - primeiro espaço convencionado como propício para o exercício da criatividade de certos jornalistas. Ela não tem o mesmo caráter imediato da notícia, pois pode oferecer detalhamento e contextualização àquilo que é anunciado. Para Faro (1999), a reportagem permite ao jornalista superar os limites impostos pelos padrões de conteúdo e de linguagem da objetividade informativa. Medina (1978) ressalta que, na reportagem, as linhas de tempo e espaço se enriquecem: enquanto a notícia fixa o aqui, o já, a grande reportagem abre o aqui num círculo mais amplo, reconstitui o já no antes e depois, deixa os limites do acontecer para um estar acontecendo atemporal ou menos presente, levando a um quadro interpretativo do fato. Lima (1995) ainda atenta ao livro-reportagem, que funcionaria com um espaço de extensão e encontro entre jornalismo e literatura: para ele, o livro-reportagem - que ainda não teria no Brasil a mesma força que possui em vários países - teria sua própria autonomia dentro do jornalismo, o que lhe possibilitaria experimentações impraticáveis dentro das redações comuns. 12 Tradução pessoal da versão em espanhol do livro.

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designa a camada social carente de consciência política e desprovida da produção social – e seu estilo foi chamado de abominável gênero novo (ibid). Sua configuração discursiva, portanto, esteve sempre vinculada a uma tentativa de transgressão ao jornalismo convencional que, em decorrência de diversos fatores como os prazos de entrega, a atualidade da notícia e a linha editorial do meio de comunicação, concretizava em sua prática uma tendência a reprimir os intuitos criativos do repórter. Essa idéia é corroborada pela fala de Tom Wolfe, que estima que metade de seus contemporâneos no trabalho jornalístico envolvia-se com a imprensa “na crença de que seu destino era o de ser escritores”13 (Wolfe, 1976, p. 16). A experiência do New Journalism, pois, foi perpassada por uma espécie de sentimento de crise e frustração quanto aos valores e práticas do jornalismo tradicional, proporcionando assim o impulso para que certos jornalistas pudessem tentar estruturar novos estilos diferenciados de tratamento das notícias – sendo que o primeiro mito jornalístico a ser questionado foi a proposta da objetividade do relato, visto como uma espécie de camisa de força que aprisionava e burocratizava o trabalho do jornalista. Na tentativa de concretizar tal empreendimento, os praticantes do New Journalism buscaram inspiração em linhas literárias de importância histórica. A especificidade dos estilos recuperados na experiência dos Novos Jornalistas baseia-se em pesquisas anteriores – em especial, na fundamental investigação realizada por Edvaldo Pereira Lima em Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura (1995) – e na própria fala de Tom Wolfe, conforme teorizado em algumas de suas obras. Analisa-se brevemente, em seguida, as relações mantidas pelo relato do New Journalism com as correntes literárias em questão.

1.1. Influências literárias no estilo concreto do New Journalism

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Tradução pessoal da versão em espanhol do livro.

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Sendo vertente que flerta com os modos de representação da realidade utilizados no relato ficcional, é justamente nos literatos que os Novos Jornalistas encontram inspiração para inovar tanto o jornalismo quanto a literatura produzidos em sua época. Segundo Lima (1995), uma das fontes que inspiraram a narrativa dos Novos Jornalistas é o Realismo Social, praticado por Honoré de Balzac, Mark Twain, Gustave Flaubert, Nikolay Gógol, Charles Dickens e Stendhal, entre outros. Essa vertente surge na segunda metade do século XIX, em uma Europa marcada por uma série de transformações econômicas, científicas e ideológicas. O contexto possibilita o surgimento de uma estética anti-romântica, no qual o artista é um participante do mundo ou, ao menos, um observador do mundo, que procura examiná-lo à luz de teorias sociológicas, psicológicas ou biológicas. Para Lima (1995), já haveria um embrião do que se poderia chamar de reprodução fiel do cotidiano social na literatura inglesa do século XVIII, publicada por autores como Daniel Defoe, Henry Fielding e Tobias Smollet. As obras de tais romancistas redundariam no Realismo Social, quando o romance finalmente conquistou sua posição de gênero literário de prestígio. Essa vertente impulsionou o jornalismo literário e contribuiu para o livro-reportagem moderno. Os Novos Jornalistas apropriaram-se, sobretudo, de quatro recursos técnicos – considerados por Tom Wolfe como o centro da configuração discursiva do New Journalism – utilizados pelos autores do Realismo Social: o registro fiel do cotidiano, como costumes, gestos cotidianos, hábitos, estilo de comer, comportamentos, status social, estilo de andar (Balzac olha os indivíduos sempre como representantes de certos grupos sociais, enquanto Stendhal desenvolve o método analítico de observação psicológica, no qual seus personagens são construídos através de pormenores mínimos, de pequenas apreciações, obrigando o leitor a completá-los e a reinterpretá-los); a construção cena por cena, contando a história saltando de uma cena à outra e recorrendo o menos possível à narração histórica; o diálogo realista, considerado a forma mais completa de mostrar a fala do personagem ao leitor; e o ponto de vista autobiográfico em terceira pessoa, ou seja, a técnica de apresentar cada cena ao leitor através dos olhos de um personagem particular e fazê-lo sentir a realidade emotiva da cena. Os Realistas

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acreditavam que o uso da terceira pessoa favorecia a impressão de que as personagens realizam seus destinos sem a interferência do sujeito que as criou. Para Wolfe (1976), os romancistas do Realismo Social realizavam um verdadeiro trabalho de captação do real, como se fossem repórteres em seu tempo. Após o definhamento do Realismo Social na Europa, na década de 20 do século XX, a vertente lançaria raízes nos Estados Unidos dos anos 30, através de nomes como William Faulkner, Mark Twain, John Steinbeck, Ernest Hemingway e John dos Passos. Os autores ficcionistas também contribuíram para a imprensa produzindo peças jornalísticas. Wolfe (1976) destaca textos jornalísticos e autores que enveredaram nesse caminho: Sketches by Boz, de Dickens; com suas descrições do dia-a-dia de figuras londrinas típicas; Innocents abroad de Mark Twain, no qual o escritor se colocava como repórter, com a idéia de registrar cenas e diálogos; Os dez dias que abalaram o mundo, de John Reed; Down and out in Paris and London, de George Orwell; e reportagens de Ernest Hemingway, do mesmo período. Segundo Lima (1995), o New Journalism também encontrou respaldo na literatura hispano-americana dos anos 50 e 60, o chamado Realismo Mágico ou Fantástico, no qual destacaram-se autores como Julio Cortázar, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Alejo Carpentier e outros. A narrativa da “rica geração de 55” (Jozef, 1971) apresenta um espírito crítico e uma visão interpretativa do mundo, combinando realidade e o imaginário popular. Essa vertente apresenta vários pontos em comum com o New Journalism: ambas as linhas recuperam a capacidade do texto de emocionar, trabalham com os aspectos objetivo e subjetivo da realidade e incorporam uma sensualidade em seus relatos, seduzindo seus leitores e provocando-os. Os Novos Jornalistas utilizaram técnicas literárias muito semelhantes às empregadas pelos hispânicos, conceituadas por Jozef (1986): a vivacidade da linguagem, o ponto de vista imprevisível, a mudança de foco narrativo, o monólogo interior, o flashback, a sobreposição de tempos, vozes e lugares. Lima (1995) ainda sugere que o New Journalism teria recebido forte influência da chamada geração beat, considerada o primeiro movimento de

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contracultura de forte importância histórica e cultural nos Estados Unidos. Ocorrida na década de 50, reuniu autores como William S. Burroughs, Allen Ginsberg, Gregory Corso, Neal Cassady e Jack Kerouac. Assim como os beatniks, os Novos Jornalistas redigiam suas obras em longas viagens, nos quais acompanhavam

seus

personagens,

observando-os

à

exaustão,

até

que

espontaneamente ocorriam as cenas do cotidiano relevantes aos seus relatos: nesse intuito, Truman Capote14 passaria cinco anos reconstruindo a história do crime que deu origem ao livro A Sangue Frio. A influência dos beatniks, no entanto, não é reconhecida pelo próprio Capote que, em uma entrevista, declarou que Kerouac não fazia “literatura, mas datilografia” (Clarke, 1993, p. 296).

1.2. Novas técnicas narrativas – transgredindo as “convenções de Genebra do pensamento” A experiência do New Journalism caracterizou-se por uma constante procura por novas configurações tanto de formato narrativo quanto de discurso – rompendo especialmente com os paradigmas do jornalismo, mas também com os modelos já consagrados na literatura. Priorizavam, assim, uma profunda imersão na realidade de suas personagens, a fim de captar mais recursos, objetivos e subjetivos, para melhor enquadrá-los em suas novas formas de narração. Com o apuro de suas técnicas de captação, seria possível mesmo reproduzir monólogos interiores com exatidão – sendo essa técnica uma das principais críticas que o estilo sofreu em seu surgimento. Imaginei que já era hora de que alguém violasse o que Orwell chamava de “as convenções de Genebra do pensamento”... um protocolo que havia encerrado o jornalismo e de forma mais geral a não-ficção em um tedioso cárcere durante tanto tempo. Descobri que coisas 14

Escritor de ficção por formação, incursionou nos caminhos do jornalismo com o livro A Sangue Frio (In cold blood), no qual retratou o assassinato de uma família no interior dos Estados Unidos, num trabalho de investigação jornalística que durou cinco anos. Essa obra – classificada por Truman Capote como um romance de não ficção – é considerada o marco do estilo do New Journalism.

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como os sinais de exclamação, as letras cursivas, as mudanças bruscas, as síncopes e os pontos contribuíam para criar a ilusão de que uma pessoa não só falava mas também de que uma pessoa pensava15 (Wolfe, 1976, p. 36) A possibilidade de transgredir essas “convenções” passava, por sua vez, por procedimentos comuns, seguidos com mais ou menos freqüência por todos os Novos Jornalistas. Wolfe (2001) esquematizou técnicas que considerava essenciais na narrativa dessa vertente: a construção cena por cena, contando a história saltando de uma cena à outra e recorrendo o menos possível à narração histórica; o diálogo realista como a forma mais completa de mostrar a fala do personagem ao leitor; o chamado ponto de vista em terceira pessoa, ou seja, a técnica de apresentar cada cena ao leitor através dos olhos de um personagem particular e fazê-lo sentir a realidade emotiva da cena; observar e retratar detalhes simbólicos dentro de uma cena, como costumes, gestos cotidianos, hábitos, estilo de comer, comportamentos, estilo de andar. Ao enfocar esses novos procedimentos de tratamento da informação, Tom Wolfe chama a atenção para uma nova forma de recorte do real experimentado nessa vertente, ponto crucial a ser trabalhado em seu tipo de relato: A relação de gestos cotidianos, hábitos, modos, costumes, estilos de mobília, de vestir, de decoração, estilos de viajar, de comer, de lidar com a casa, modos de comportamento com as crianças, empregados, superiores, inferiores, iguais, além das diversas aparências, olhares, passos, estilos de andar e outros detalhes simbólicos que podem existir no interior de uma cena. Simbólicos do quê? Simbólicos, em termos gerais, do status de vida das pessoas, empregando este termo no sentido amplo do esquema completo de comportamento e bens através do qual as pessoas expressam sua posição no mundo (...). A relação de tais detalhes não é meramente um modo de adornar a prosa. Encontra-se tão perto do núcleo da força do realismo como qualquer outro procedimento da literatura16 (Wolfe, 1976, p. 52).

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Tradução pessoal da versão em espanhol do livro. Tradução pessoal da versão espanhola. Grifos nossos.

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O que Wolfe chama de “detalhes simbólicos” talvez deva ser entendido, segundo a teoria semiótica desenvolvida por Charles S. Peirce, como detalhes icônicos (visto que, no caso, são notações qualitativas, imediatas ou, em categorias peirceanas, de primeiridade) e indiciais (já que guardam uma fundamental relação de existência com seu objeto, sem o qual não existiriam) que tendem a evoluir à categoria simbólica, como forma de construir uma cenografia plausível e completa dos fatos em foco. Dessa forma, operam como elementos que funcionam quase como índices visuais retratados por palavras. O interesse dessa vertente, como explicita Wolfe em sua fala, está em dar ênfase ao esmero na representação de detalhes (considerados determinantes nesse tipo de narrativa), que apresentam aqui duplo propósito: possuem função estética marcante, embora não sejam usadas simplesmente como um procedimento mecânico de preencher lacunas textuais (“não é meramente um modo de adornar a prosa”); por outro lado, apontam a um intuito de apresentar o objeto em si, sem mediações (o “núcleo da força do realismo”), propósito que é trabalhado pelo New Journalism através da exploração de um novo verossímil, que permite associar a exigência do real com todo tipo de jogos de linguagem, como a ironia e a jocosidade. Assim, tenta-se causar um efeito quase visual, possibilitando que o leitor esteja perto de enxergar as personagens e os cenários em que elas se inserem. Mesmo as técnicas jornalísticas corriqueiras de captação de dados foram colocadas à prova pelos Novos Jornalistas. Truman Capote acreditava que a visão de um bloco ou de um gravador inibia qualquer tipo de franqueza e que as pessoas só se revelavam em conversas aparentemente casuais. Durante o trabalho em A Sangue Frio, Capote e Nelle Harper Lee, sua auxiliar, separavam-se e registravam no papel o que haviam conseguido. Cada um escrevia sua versão das entrevistas feitas durante o dia; à noite, comparavam suas anotações, num método desgastante, mas, conforme acreditavam, mais produtivo (Clarke, 1993). Para contar a história real do assassinato de uma família no interior dos Estados Unidos, o escritor entrevistou, pesquisou, conquistou a confiança dos habitantes da cidade, levantou pormenores, aproximou-se dos policiais e dos dois assassinos, Perry Smith e Dick Hickock, que são enfocados no texto com a mesma ênfase que

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a família assassinada. A princípio, em A Sangue Frio, Truman Capote não procurava revelar os culpados do assassinato no Kansas, e sim retratar o impacto do crime numa cidade do interior dos Estados Unidos – e acabou envolvido durante cinco anos com o relato dessa história. Através do uso de tais técnicas, o New Journalism enfrentava como grande desafio penetrar objetivamente na subjetividade de suas personagens para saber o que pensavam ou sentiam. Para os Novos Jornalistas, um repórter poderia se aproximar da verdade da vida interior de seu entrevistado através de métodos de observação e persistência: permanecer em contato com as pessoas que serão enfocadas, durante dias, semanas ou mesmo meses, tomando notas, entrevistando, observando detalhes simbólicos, que se encontrariam no centro do realismo trabalhado nessa vertente. Dessa forma, Wolfe redigiu a história de O Teste do Ácido do Refresco Elétrico e Gay Talese escreveu perfis como o de Frank Sinatra, que começa com a descrição de um resfriado do cantor. O jornalista Hunter S. Thompson conviveu com o grupo de motoqueiros Hell’s Angels durante nove meses para escrever a obra Hell’s Angels: A Strange and Terrible Saga. Embora nos interesse aqui o entendimento do New Journalism como texto midiático concreto, convém lembrar que suas modificações ultrapassavam as fronteiras discursivas para infiltrar-se nos próprios parâmetros de captação e tratamento da realidade. Gay Talese17, sob tal perspectiva, criticou o impacto das novas tecnologias de comunicação no exercício do jornalismo. Em entrevista recente – na qual comenta a crise desencadeada em 2003 pelo repórter Jayson Blair, que publicou durante cerca de dois anos reportagens inventadas no jornal The New York Times sem ser descoberto –, questiona as conseqüências de novos recursos de documentação dos fatos no jornalismo contemporâneo: “a reportagem se tornou 17

Gay Talese é considerado pela crítica o Novo Jornalista de estilo mais sofisticado e elegante. Ex-repórter do jornal The New York Times, tem entre suas obras A Mulher do Próximo (Thy Neighbor’s Wife), O Reino e o Poder (The Kingdom and the Power), Aos Olhos da Multidão (Fame and Obscurity) e Honrados Mafiosos (Honor thy father). Recentemente, a revista americana Esquire, numa edição comemorativa de 70 anos da publicação, considerou seu artigo Frank Sinatra está resfriado (Frank Sinatra has a cold, publicado em Aos Olhos da Multidão, reeditado no Brasil em 2004 sob o nome de Fama e Anonimato) – no qual constrói um perfil de Frank Sinatra sem entrevistá-lo – como a melhor história curta já contada.

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muito tática, confiando em e-mail, telefones, gravações. Não é cara a cara. Quando eu era repórter, nunca usava o telefone. Queria ver o rosto das pessoas (...). Isso é muita tecnologia para o jornalismo. Não se anda na rua, não se pega o metrô ou um ônibus, um avião, não se vê, cara a cara, a pessoa com quem se está conversando” (Talese apud Dias, 2003, p. A23). Tais facilidades tecnológicas, em sua visão, estimulariam uma conduta incompetente por parte dos jornalistas e motivariam o surgimento de fraudes. Em seu posicionamento, expressa-se uma idéia conservadora que, de certa forma, contrasta com as modificações propostas ao texto: é preciso, sim, inovar os métodos de descrição e interpretação dos fatos como forma de realizar uma aproximação mais completa ao real, mas tal objetivo só pode ser buscado através das mais antigas técnicas de captação. Em conformidade com a prática do New Journalism, Talese acredita que entrar na atmosfera de seus entrevistados seria a melhor maneira de descobrir fatos sobre eles. Posso seguir discretamente o objeto de minhas reportagens, observando-o em situações reveladoras, anotando suas reações e as reações dos outros a ele. Tento absorver todo o cenário, o diálogo, a atmosfera, a tensão, o drama, o conflito e então escrevo tudo do ponto de vista de quem estou focalizando, revelando inclusive, sempre que possível, o que os indivíduos pensam nos momentos que descrevo. Esta visão interior só pode ser obtida naturalmente, com a plena cooperação do sujeito, mas se o escritor goza de confiança daqueles que focaliza, isto se torna viável por meio de entrevistas, onde a pergunta certa é feita no momento exato. É assim possível saber e registrar o que se passa na mente das pessoas (Talese, 1973, p. 9). Nota-se, pois, a tentativa de rompimento com outro princípio básico da atividade jornalística, concernente à própria temporalidade da profissão e ao conceito de atualidade: para os Novos Jornalistas, seu tipo de relato demandava de um envolvimento com os fatos por prazos estendidos, desvinculando-se dos prazos do jornalismo diário. Explicita-se também a busca por registrar o que não pode ser registrado, o inefável; trata-se, portanto, de assumir uma postura mais

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livre como jornalista, podendo documentar – e assumir – suas impressões pessoais (através de imaginações, abduções, abstrações, associações metafóricas) como interpretantes legítimos para a aproximação do fato. Marca-se ainda uma quebra do mito do repórter imparcial, insinuando que apenas a proximidade às personagens (muitas vezes, tendo que conviver com elas durante meses) possibilitaria o conhecimento verdadeiro do fenômeno em seu contexto, que se revelaria através de relações de intimidade e cumplicidade com os entrevistados. O produtor do discurso passaria também a ser um dos participantes do evento – questionando assim os lugares convencionais da enunciação jornalística. Resende argumenta que esse manifesto contra a pretensão da imparcialidade tornaria o relato mais sincero. O fato é comunicado com eficácia, e, no entanto, o repórter não tem que se fingir ausente ou imparcial, e nem o texto é, necessariamente, menos objetivo. O que esse tipo de texto certamente possibilita, pelo menos de forma mais transparente do que o texto jornalístico tradicional, que procura recalcar a figura do repórter, é uma maior transitoriedade – portanto um campo de significância mais amplo, que não permite uma análise unilateral do ato comunicativo (Resende, 2002, p. 76). Em sua fala, o autor aborda a idéia jornalística da associação do texto objetivo ao repórter que busca concretizar um relato no qual seu ponto de vista não se expressa ou não é assumido. Com sua experiência, os Novos Jornalistas tentam provar que é possível organizar um texto verídico que ao mesmo tempo assuma a intervenção subjetiva que perpassa a construção de todo o tipo de discurso configurado por um indivíduo. Remete, dessa forma, à argumentação proposta por Peirce (1868) ao reconhecer que o mundo se apresenta para nós como uma manifestação sígnica de nós mesmos e de algo externo; assim como o arco-íris é, ao mesmo tempo, a manifestação do sol e da chuva (id), percebemos os fenômenos simultaneamente como uma manifestação de nossa capacidade (para captá-los e interpretá-los) enquanto sujeitos intérpretes e como algo relativo ao mundo exterior, que existe independentemente de toda consideração. Nesse sentido, os escritores dessa vertente reconhecem em sua prática jornalística que

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essa característica duplamente mediada e direta de todo tipo de percepção dos objetos do mundo não impede que se possa relatá-los de forma objetiva. O estilo trabalhado pelo New Journalism teve boa parte de sua força no uso da ironia, um importante recurso empregado em suas técnicas para representar a realidade – um artefato que possibilitava a constituição de um jogo discursivo sutilmente estruturado, no qual valores morais socialmente estabelecidos podiam ser expostos e transgredidos através da marcação da contrariedade entre a voz do autor e o sentido do que é dito. O uso do discurso de duplo sentido – que não se refere apenas ao objeto identificado de modo imediato, mas também ao discurso objetificado ou representado, que se remete ao contexto do outro e que não está explícito nas palavras concretizadas na fala, como entende Bakhtin (1997b/ 1929, p. 186) – foi um dos principais pontos explorados na experiência dos Novos Jornalistas. Convém ainda assinalar que Calvino, ao discorrer sobre os grandes valores da literatura que deveriam ser preservados nesse milênio, ressalta a virtude da leveza, que possibilita explicitar raciocínios complexos e críticos através de elementos sutis, que determinam um alto grau de abstração e são mais acessíveis aos leitores que a linguagem “dura”, com “peso histórico”. Segundo ele, “assim como a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor é o cômico que perdeu peso corpóreo (...) e põe em dúvida o eu e o mundo, com toda rede de relações que os constituem” (Calvino, 2002, p. 32). Dessa forma, o New Journalism, com suas figuras de linguagem, pode ser visto como um exemplo da leveza valorizada por Calvino. A sutil ironia adotada por Gay Talese em trabalhos jornalísticos conseguiu expor hipocrisia e tabus da sociedade americana frente a uma revolução sexual e social. Talvez esses textos não obtivessem tamanho impacto se não utilizassem recursos como o efeito cômico e o retrato das personagens dentro de seus próprios contextos. A tendência dos Novos Jornalistas é, seguindo tal raciocínio, de explorar em seus relatos o surgimento de grupos minoritários – como os grupos de resistência negra (em Radical Chique & O Terror dos RPs – Radical Chic & Mau-mauing the Flak Catchers, 1970, e Décadas púrpuras – The purple decades, 1982), hippies (em O teste do ácido do refresco elétrico – The electric kool-aid

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acid test, 1968), feministas, pornógrafos e adeptos ao casamento coletivo (em A mulher do próximo – Thy neighbor’s wife, 1980), mafiosos (em Honrados mafiosos – Honor thy father, 1971), socialmente excluídos (em A Sangue Frio – In Cold Blood, 1966) e celebridades do showbizz hollywoodiano (em Aos olhos da multidão – Fame and obscurity, 1964) – intentando expor a sociedade americana vigente na sua época de origem ao choque causado por novos padrões comportamentais instaurados por esses grupos. Sua ambição era a de realizar uma espécie de autópsia social, recuperando o caráter realista da obra de novelistas como Balzac, Gogol e Dickens. Como confirma Tom Wolfe, queriam “mostrar ao leitor a vida real – Venha aqui! Veja! Assim é como vivem as pessoas nesses dias! Essas são as coisas que fazem! – tendendo a isso de forma espontânea”18 (Wolfe, 1976, p. 53). Na base da experiência do New Journalism, portanto, encontra-se a busca de uma expressão das mais diferentes vozes sociais retratadas com semelhante ênfase. Mas como ocorre o engendramento dessas vozes no discurso concretizado por essa corrente jornalística? O entendimento dessa questão – que nos traz pistas sobre as formas em que o real será apresentado em sua narrativa – parece apontar à necessidade da recuperação dos conceitos de Bakhtin e suas reflexões sobre dialogismo e polifonia nos produtos culturais de sua época.

1.3. A dinâmica das diferentes vozes no discurso do New Journalism Para Bakhtin, toda forma lingüística sempre se apresenta em contextos ideológicos precisos19, pois “na realidade, não são palavras o que pronunciamos, mas verdade ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis 18

Tradução pessoal da versão espanhola. Grifos de Tom Wolfe. Seu posicionamento é menos determinista que o dos marxistas clássicos, pois não atribuía à ideologia a possibilidade de falsear a realidade. Sua visão de ideologia é mais abrangente, e o signo é visto como o espaço de reflexão e refração no qual a luta de classes ocorre. Para Bakhtin, as palavras estão sempre carregadas de carga ideológica precisa, refletindo as condições sócioeconômicas que cercam a existência de seu enunciador na sociedade. Esse caráter ideológico de seu pensamento o faz postular que a consciência humana existe sempre enquanto fato social, marcado por relações de poder. 19

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ou desagradáveis” (1995/ 1929, p. 95). A análise do material discursivo deveria passar, portanto, por uma atenção ao seu contexto cultural e histórico, assim como as condições ideológicas marcadas em seu texto concreto. Dessa forma, a perspectiva de Bakhtin torna-se bastante clara: interessa-o o reconhecimento do sujeito enquanto ser social, heterogêneo, que modifica seu discurso através do contato e da predição de outros discursos. A fala do sujeito, portanto, não é vista como a primeira fonte do sentido, pois ela jamais corta relações com as falas que a antecedem. Porém, dentre esse grande número de contextos possíveis expressos na singularidade de cada enunciação, há, para Bakhtin, um aspecto considerado universal e que deve ser observado em toda situação de uso da linguagem: o fato de que as palavras só adquirem sentido e produzem efeitos dentro de uma condição de comunicação entre um emissor individual e um destinatário de sua fala. Sua atenção está voltada para o estudo das formas pelas quais a situação social a qual a palavra está vinculada determinam os modos de seu uso: É preciso, fundamentalmente, inserir (a linguagem) num complexo mais amplo e que o engloba, ou seja: na esfera única da relação social organizada. Assim como, para observar o processo de combustão, convém colocar o corpo no meio atmosférico, da mesma forma, para observar o fenômeno da linguagem, é preciso situar os sujeitos – emissor e receptor do som –, bem como o próprio som, no meio social. Com efeito, é indispensável que o locutor e o ouvinte pertençam à mesma comunidade lingüística, a uma sociedade claramente organizada. E mais, é indispensável que estes dois indivíduos estejam integrados na unicidade da situação social imediata, quer dizer, que tenham uma relação de pessoa para pessoa sobre um terreno bem definido (Bakhtin, 1995/ 1929, p. 70). Assim, para a análise de Bakhtin interessa o momento em que surge o diálogo: quando o discurso se materializa e se torna enunciado (sua unidade mínima) e ganha um autor, ainda que coletivo, inserido em contextos sociais que vão definir diferentes condições de interpretação. Sendo o enunciado a unidade do discurso privilegiada por Bakhtin, convém ressaltar que sua existência é

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situacional, pois ocorre quando a fala se individualiza numa situação de emprego, entrando em contato com a realidade e com outros enunciados que o precedem ou sucedem e gerando necessariamente uma atividade responsiva do outro, mesmo que não imediata. A metáfora do diálogo é adotada por Bakhtin como forma a representar o funcionamento do universo da cultura, estabelecido como um sistema de enunciados e respectivas respostas. O conceito não remete a uma idéia de consenso ou entendimento (significado a que o termo usualmente está vinculado), mas justamente a uma forma de englobar os confrontos e dissonâncias das relações humanas concretizados na esfera discursiva. A idéia contida nesse conceito é a de que todos os enunciados (cotidianos ou artísticos) guardam algum tipo de relação dialógica entre eles. Segundo Bakhtin, todos sabemos reconhecer essas faces dialógicas da fala no discurso cotidiano, na vida real. Para ele, “na prática cotidiana, ouvimos de modo muito sensível e sutil todas essas nuanças nos discursos daqueles que nos rodeiam, nós mesmos trabalhamos muito bem com todas essas cores da nossa paleta verbal” (1997b/ 1929, p. 202). Seu interesse, portanto, é o de sistematizar um conhecimento de domínio social e analisar sua ocorrência na fala literária. Na aplicação empírica do conceito sobre a literatura, Bakhtin conclui que a obra do escritor russo Fiodor Dostoiévski seria a única a concretizar a sua idéia de polifonia, construindo situações humanas ricas em ângulos dialógicos: há sempre no mínimo duas vozes que dialogam na fala de cada personagem que povoa seus romances e contos. A concretização do diálogo em sua obra atende aos pressupostos do conceito, ou seja, não se refere apenas à interação de duas pessoas, mas a um discurso interior, no qual a voz do outro está presente de forma inseparável e aparentemente invisível do pensamento do sujeito. Para o pensador, nos romances de Dostoiévski “tudo se reduz ao diálogo, à contraposição dialógica enquanto centro. Tudo é meio, o diálogo é o fim (...). Duas vozes são o mínimo de vida, o mínimo de existência” (1997b/ 1929, p. 257). Assim, para Bakhtin, a questão central é entender de que modo a fala do autor se configura e revela através das falas das personagens nos tipos de discurso que emprega. No discurso literário convencional, conclui, a voz do autor é

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apresentada de forma simples: através da reunião de diferentes vozes, o autor organiza o texto de forma a se apresentar como um fio condutor, como o dominador a quem as falas das personagens refletem e estão submetidas. A inovação de Dostoiévski é abrir mão desse paradigma da literatura e realizar exatamente o oposto disso, ou seja, deixar suas personagens falarem orientadas para diversos fins, por si próprias, apresentando-se não apenas como objetos do discurso do autor, mas como os sujeitos desse discurso diretamente proferido pelos seus próprios sujeitos – causando, por fim, um efeito de independência do autor. Em sua obra, Dostoiévski “deve ser visto como o orquestrador das vozes de personagens que estão a seu lado em completa liberdade, e capazes de discordar de seu criador e até de rebelar-se contra ele” (Stam, 1992, p. 36-37). Essa seria a razão maior de seus romances: dar espaço à multiplicidade de vozes sem que estejam interligadas por sua vontade e intuito finais, assim concretizando, afinal, a metáfora polifônica de Bakhtin. Torna-se pertinente aqui observar de que forma essa dinâmica de vozes ocorre no discurso do New Journalism, pois sua experiência propunha essencialmente a suspensão da posição moral do autor que, não podendo deixar de existir, deveria aparecer no texto implicitamente, como um fio condutor que amarrasse as falas sem afetá-las ou alterá-las, para que o leitor pudesse tirar suas próprias conclusões de forma mais autônoma. Para Joe David Bellamy, em seu texto “Wolfe nunca nos diz exatamente no que acreditar; em vez disso, nos mostra exemplos da boa e (com mais freqüência) má conduta. Sempre apresentou estas perspectivas humanísticas e morais em seus temas” (apud Wolfe, 1989, p. 12). A dissimulação do posicionamento moral do autor não significa, porém, a ausência de seu ponto de vista no relato. Porém, muitas vezes ele não se expressa nas falas das personagens, e sim em comentários sutilmente irônicos que costuram o texto e terminam por conduzir a história. Wolfe (1976) – o Novo Jornalista que mais ousou em termos de estilo de texto – criou técnicas narrativas para fugir do que chamava de “narração bege” e “voz tranqüila de locutor médio”, entre as quais se destaca a de usar o próprio sotaque das personagens na narrativa, a fim de levar o leitor ao local da história. Ele classificava seu foco de texto como “o narrador insolente”, pois acreditava

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não tratar o leitor nem suas personagens de forma passiva. “Gostei da idéia de começar um artigo fazendo com que o leitor, através do narrador, falasse com os personagens e os xingasse”20 (id, p. 29). Em seus textos, esse autor explora com constância o recurso do skaz – segundo Bakhtin (1997b/ 1929), estilo bastante utilizado por Dostoiévski –, um tipo de narrativa em primeira pessoa em que a voz autoral simula a fala da personagem numa linguagem coloquial. Trata-se de um discurso bivocal que é introduzido precisamente em função da voz do outro: o autor do texto simula essa voz, socialmente determinada, portadora de certos pontos de vista, geralmente de um narrador de classes sociais mais baixas, que traz consigo o discurso popular. É como se o autor entrasse na pele da personagem; mesmo com a aparente fusão entre as falas, há uma situação de conflito entre as duas vozes, que se expressa sob a forma da paródia, pois expressa “o emprego irônico e todo emprego ambíguo do discurso do outro (...), revestindo-a (a afirmação de outro interlocutor) de novo acento e acentuando-a a seu modo com expressões de dúvida, indignação, ironia, zombaria, deboche, etc” (Bakhtin, 1997b/ 1929, p. 195). Assim, Wolfe tenta tomar a voz da classe que retrata, revestindo essa fala com uma ironia que muitas vezes é velada – necessitando uma chave (a experiência colateral21 com o contexto enfocado na história, ou mesmo o conhecimento do caráter atrevido e petulante do texto de Wolfe) para que o duplo sentido desse discurso seja captado. Um exemplo desse recurso de estilo é observado na reportagem Radical Chique (publicada no livro Radical Chique & O Terror dos RPs), na qual Tom 20

Tradução pessoal da versão em espanhol do livro. Proveniente da semiótica, o conceito de experiência colateral, segundo Peirce, “constitui o prérequisito para conseguir qualquer idéia significada do signo. Por observação colateral, refiro-me à intimidade prévia com aquilo que o signo denota” (apud Santaella, 1995, p. 50). Trata-se de uma idéia fundamental para reconhecer a que gênero de discurso um texto está referindo. O exemplo trazido por Bergman (2004, p. 11) é esclarecedor: se uma pessoa A diz “George Bush é um idiota” para uma pessoa B, tal sentença só fará sentido se B possui alguma experiência com os objetos envolvidos. Se B não conhece George Bush, ou nunca conheceu um idiota, os signos escolhidos não atingirão seu propósito de comunicação – que só ocorrerá quando A referir a objetos dos quais B possui experiência. Da mesma forma, o conhecimento colateral dos objetos colocará limitações no entendimento desses signos: por exemplo, se B tiver alguma idéia sobre George Bush (que será, assim, seu objeto imediato nessa semiose), não poderá interpretar esse signo como “uma pessoa que chegou recentemente de Marte”. Assim, a experiência colateral comprova que a interpretação dos signos não é arbitrária; caso não haja qualquer familiaridade com a informação veiculada pelo signo, “o veículo desse tipo de informação não será, nesse contexto, denominado signo” (Peirce, 1975, p. 97). 21

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Wolfe retrata uma elite nova-iorquina do final dos anos 60, cuja moda intelectual em vigor era expressar o apoio a causas radicais emergentes do ambiente de contracultura dessa década. O movimento apoiado pela elite representada pelo milionário casal Leonard e Felicia Bernstein é o Panteras Negras, um dos mais violentos grupos de valorização da cultura afro-americana surgidos na seqüência da luta pelos direitos civis dos negros. O ápice dessa relação é observado (e retratado por Wolfe, presente no evento) na festa oferecida pelo casal Bernstein em seu apartamento dúplex na Park Avenue, na qual socialites e Black Panthers convivem tensamente e simulam uma aparente naturalidade cercada de razões hipócritas: o comportamento radical chique. Nessa reportagem, o que se observa é a tentativa de apresentação das personagens através de algumas nuanças expressas no registro cotidiano e fidedigno de suas falas. No seguinte trecho, Wolfe introduz a elite radical chique através de padrões notados em seus componentes e que denotam seu estilo de vida: Custasse o que custasse, a pessoa devia sempre ter um endereço decente, uma decoração decente e empregados domésticos (...). Não há opção. A pessoa tem de ter empregados. Ter empregados se torna uma necessidade psicológica de tal ordem que há muitas mulheres na Sociedade hoje que reclamam, com toda a honestidade, da dificuldade de encontrar uma babá diarista para cobrir a folga da babá regular. Há a famosa Sra. C. – uma das viúvas mais ricas de Nova York, proprietária de um dúplex de dez peças em Sutton Place, a parte mais fina de Sutton Place em oposição à parte que lembra Miami Beach, entenda-se, mas que por alguma razão é veneno para os empregados e onde não se consegue conservar nenhum, exceto diaristas, e constantemente se ouvem pessoas a lamentar: “De que adianta todo o dinheiro do mundo se voltamos para casa à noite e não tem ninguém para pendurar nosso casaco nem nos preparar um drinque?” Há uma verdadeira angústia por trás desse comentário!22 (Wolfe, 1997/ 1970, p. 38-39).

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Grifos nossos.

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Mesmo que as vozes falem soltas, há uma voz maior que se posiciona moralmente quanto a elas – um posicionamento do autor que se expressa nem sempre de modo explícito ou facilmente reconhecível. No caso observado, essa voz do autor opera como um fio condutor do texto, oferecendo, de modo sutil, formas de entendimento dessas personagens: no trecho final, Wolfe abre mão da voz das figuras retratadas (cujo ponto de vista era reproduzido em todo o parágrafo – como se Wolfe fosse ele mesmo um radical chique) para tomar novamente sua voz como autor-personagem no comentário irônico que sugere uma interpretação de ridículo e de comicidade no comportamento dessas pessoas. Predomina em seu texto o discurso bivocal, visto por Bakhtin como o único tipo de discurso verdadeiramente dialógico, pois remete sempre a dois contextos, ao objeto (o que se diz) e ao discurso do outro (cujo diálogo vai determinar o que se diz). As vozes retratadas por Wolfe falam sempre em diálogo com vozes distintas, agindo por determinação do julgamento pré-reconhecido do outro. Essa preocupação com o discurso alheio aparece na própria observação das roupas usadas pelos convidados da festa de Lenny Bernstein, meticulosamente escolhidas para atingir o ideal radical chique: Obviamente ninguém quer usar uma roupa frívola e pomposamente cara, como um vestido de festa de Gerard Pipart. Por outro lado ninguém quer chegar de pobretão, vestindo uma ridícula blusa de gola rulê e um jeans boca de sino comprados na rua Oito Oeste, como se fosse “funk” ou pertencesse ao “povão” (...). Felicia Bernstein parece compreender melhor as coisas. Olhem só Felicia. Está usando o pretinho mais despojado que se pode imaginar, sem o menor enfeite, exceto um colar de ouro simples. É perfeito. Digno mas sem nenhum simbolismo classista explícito (Wolfe, 1997/ 1970, p. 15). Dessa forma, as figuras da elite radical chique observadas na reportagem homônima agem constantemente por antecipada reação aos seus convivas – e a Wolfe interessa explicitar de que forma a crítica do outro está prevista na fala (e atos) de suas personagens. Sua voz é notavelmente distinta da voz de suas personagens, mas, mesmo contendo posicionamentos claros e nunca aparecendo em fusão com a voz de seus heróis, ela não impõe direcionamentos significativos

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ao discurso; após a leitura de tal reportagem, pode-se de fato tomar o sentido de ridículo como certo (esse parece ser o sentido predominante oferecido pelo texto), mas ainda assim é possível questionar a posição de Wolfe e a pertinência do retrato moral que aqui concretiza. As diferentes vozes presentes no texto podem ser entendidas ou julgadas de diversas formas, mesmo que haja o reconhecimento claro da opinião do autor; o interesse das obras do New Journalism parece ser, assim como já foi dito sobre Dostoiévski, em “forçar visões de mundo aparentemente incompatíveis a dirigirem-se umas às outras no espaço de um mesmo livro, resultando numa nova mistura de vozes, num novo diálogo” (Stam, 1992, p. 37). Esse novo diálogo é observado tanto entre as personagens enfocadas (pois o que se nota nos relatos dessa vertente é o constante encontro de grupos antes inseparáveis, como alta sociedade e Panteras Negras, pornógrafos e puritanos, celebridades e anônimos) quanto entre as personagens e a voz autoral que as apresenta. Nos casos em que a voz do autor tem tom mais informativo que opinativo, o que se observa é o mesmo interesse em deixar que as personagens falem independentemente, sem a costura de um sentido unificador do discurso, de forma que o leitor possa interpretá-las de acordo com seu próprio julgamento. No livroreportagem A Sangue Frio, de Truman Capote, um dos assassinos da história, Perry Smith, recorda sua infância: Nossa, que frio! Papai e eu dormíamos abraçados, envoltos em cobertores e peles de urso. Antes que o sol raiasse, de manhã, eu arrumava café, biscoitos de mel, carne frita. Depois a gente ia cavar a vida. Teria sido bom, se eu não tivesse crescido. Quanto mais velho ficava, menos apreciava papai. Sabia tudo, por um lado, mas por outro não sabia nada. Papai não sabia nada de uma porção de coisas a meu respeito. Não compreendia um til. Como eu consegui tocar logo da primeira vez que peguei numa gaita. E guitarra também. Eu tinha um jeito enorme para música. Papai não reconhecia isso. Nem se importava. Eu gostava de ler. Melhorar meu vocabulário. Compunha canções. E desenhava também. Mas nunca me incentivara; nem ele, nem ninguém. Eu ficava acordado de noite, em parte tentando controlar minha bexiga, em parte porque não conseguia parar de pensar. Sempre que fazia muito

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frio, de não se poder respirar, eu pensava no Havaí. Um filme que eu vi. Com a Dorothy Lamour. Lá é que eu queria ir. Onde fazia sol. E só se usa grama e flores (Capote, 1975/ 1966, p. 153). Pode-se dizer que o retrato descrito no trecho em pouco parece com a apresentação de um assassino conforme costuma ocorrer no jornalismo convencional, que tende a gerar relatos maniqueístas no qual se recorta apenas traços indubitavelmente maus ou ambíguos do acusado. Mas não há aqui um entendimento correto a ser desenvolvido sobre Perry Smith: o que sua fala significa? Um índice do cinismo e da calculada dissimulação de uma mente meticulosa? Ou a evidência de que se tratava antes de uma vítima social do que realmente um culpado? Essas respostas não parecem estar contidas no texto, e sim no espaço a ser preenchido ativamente pelo leitor, que participa do relato como um “leitor-investigador” (Resende, 2002, p. 111), que coleta dados de sua própria experiência para completar o sentido da história. Dessa forma, observa-se na experiência do New Journalism um esforço consensual para a concretização de um relato polifônico, no qual a dinâmica de vozes se realize de forma conflitante – entre as personagens, entre o autor e as personagens e, principalmente, entre o texto e seu público leitor – de modo a deixar vir à tona não uma síntese das idéias apresentadas, mas justamente a dissonância entre as diversas consciências que se cruzam nesse processo. Assim, a busca por dar espaço à multiplicidade de vozes governadas para seus próprios sentidos aponta a uma tendência por um recorte diferenciado do real circundante às pessoas aqui representadas, através da geração de novos interpretantes – conforme será analisado na seqüência desse trabalho.

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1.4. A desfronteirização dos limites do discurso na experiência do New Journalism No final dos anos 70, com o fechamento do contexto histórico de contracultura ao qual se vinculava, o New Journalism perde boa parte de sua força. Não parecia mais tão interessante escrever sobre hippies nômades ou grupos que viviam em casamentos coletivos, se esses comportamentos já pareciam culturalmente assimilados pela sociedade à qual escreviam, dissolvido o impacto do choque inicial. Seu legado histórico está difundido nos espaços abertos aos relatos autorais, às experiências jornalísticas que ousam romper com os padrões da notícia normalmente reconhecidos tanto pela instância produtiva quanto pelo público leitor. O dilema levantado por essa vertente, porém, segue vivo, gerando discussões até hoje: quais seriam os limites do relato jornalístico? Até que ponto o exercício criativo do autor pode ser executado sem que se perca o vínculo com a primeira premissa do jornalismo, o compromisso com a verdade? E – questão, para nós, considerada mais interessante – será que os limites entre o jornalismo e a ficção são facilmente ultrapassados, como acreditavam os críticos do New Journalism e atualmente postulam os defensores das idéias pós-modernas23? Algumas pistas podem ser encontradas na fala dos próprios jornalistas organizadores desse gênero discursivo híbrido. Um propagado embaralhamento das barreiras entre o real e o ficcional é negado por eles, visto que seu trabalho obedeceria aos mesmos parâmetros rígidos do discurso jornalístico convencional. Gay Talese assim define a natureza de seu relato: O New Journalism, embora possa ser lido como ficção, não é ficção. É, ou deveria ser, tão verídico como a mais exata das reportagens, buscando embora uma verdade mais ampla que a possível através da mera compilação de fatos comprováveis, o uso de citações diretas, a adesão ao 23

Pois essa vertente teórica acredita que na contemporaneidade, nas palavras de Connor (1993), “os signos são libertos por inteiro de sua função de referir-se ao mundo, o que produz a expansão do poder do capital no domínio do signo, da cultura e da representação” (p. 45). Na concepção dos autores pós-modernos, as barreiras discursivas estariam rompidas, o que possibilitaria a existência de signos sem respaldo na realidade e, consequentemente, a impossibilidade de uma diferenciação concreta entre textos reais e falsos.

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rígido estilo mais antigo. O New Journalism permite, na verdade exige, uma abordagem mais imaginativa da reportagem e consente que o escritor se intrometa na narrativa se o desejar, conforme acontece com freqüência, ou que assuma o papel de observador imparcial (Talese, 1973, p. 9). A expressão de auto-consciência na fala de Gay Talese traz relevantes pistas para o entendimento dessa vertente jornalística. Assim, o New Journalism teve como base funcional de sua experiência um movimento de reflexão sobre o jornalismo conforme é tradicionalmente entendido. A importância desse tipo de relato passa pela busca de uma “verdade mais ampla que a possível através da mera compilação de fatos comprováveis”, entendida aqui como uma aproximação maior ou mais completa ao objeto dinâmico ao qual se refere (o fato em si, fora dos limites de sua representação) e que só poderia ser obtida pela atenção aos elementos subjetivos que circundavam as personagens e os eventos enfocados e pela documentação de outros objetos dinâmicos no relato, que normalmente seriam periféricos, supérfluos (como a apresentação das roupas e das gestualidades) – o que não impossibilitaria a autenticidade do texto, que poderia ser “tão verídico como a mais exata das reportagens”. Está sempre presente no New Journalism, portanto, a idéia de um discurso que sempre remete à reconsideração do próprio jornalismo. Nossa premissa é que essas fronteiras discursivas são menos permeáveis do que acreditam seus críticos24. A natureza de um relato não se modifica necessariamente através do tratamento ficcional pelo qual é trabalhado, pois o compromisso de um texto é antes com a esfera discursiva a que se encontra submetido (por exemplo, as regras às quais as práticas jornalísticas se submetem para serem comprovadas enquanto discurso factual), além da elaboração estilística pela qual é concretizado (Carroll, 1996, p. 231). Assim, a nosso ver, será 24

Inicialmente, essa crítica foi manifesta pelo próprio Tom Wolfe, que reagiu combativamente ao ler o artigo Joe Louis: o rei na meia-idade, no qual Gay Talese narra diálogos íntimos entre um lutador e sua mulher: “minha reação foi instintiva, de defesa, fui pensar que o homem havia adornado, inventado o diálogo, talvez inventado cenas inteiras, o mentiroso sem escrúpulos... o engraçado desse caso é que foi precisamente essa minha reação que incontáveis jornalistas e intelectuais literários expressaram durante os nove anos seguintes em que o New Journalism adquiriu impulso” (Wolfe, 1976, p. 21). Tradução pessoal do texto em espanhol.

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necessário rediscutir os conceitos de objetividade e subjetividade conforme são comumente considerados, e mesmo o entendimento sobre as idéias de realidade e ficção. O conceito de ficção, por outro lado, deve ser discutido em relação à idéia de representação – pois caso possa-se consentir que toda linguagem representa (no sentido de ser sempre mediada pela subjetividade humana, um recorte do real muitas vezes distorcido), não se pode concordar que toda linguagem seja ficcional. É apenas sobre essas bases de definição que é possível diferenciar o discurso verdadeiro do discurso falso, assim como entender as possibilidades de estruturação estilística de um discursivo e sua relação com o comprometimento à verdade. A proposta dessa pesquisa, portanto, é de entender as formas pelas quais o New Journalism constrói um discurso comprometido tanto com os preceitos jornalísticos quanto com os valores literários de estilo, compreender os modos de representação da realidade estruturados em uma narrativa cuja função é misturar essas fronteiras discursivas sem apagá-las ou invertê-las e – mais que isso – confrontá-los com as formas de representação realista trabalhadas nos reality shows, produtos midiáticos operados pela lógica televisiva. Para tanto, exige-se a análise das estratégias de ambas as experiências discursivas.

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2. Estratégias de realidade no programa Linha Direta – o jogo de modalidades discursivas no texto de um reality show Cena do programa Linha Direta Justiça25, veiculado no dia 25 de setembro de 2003: um ator a interpretar o cirurgião plástico Hosmany Ramos, hoje condenado por oito inquéritos a 47 anos de prisão (pela razão de ter trocado “o bisturi por uma arma”, conforme enunciado no programa), é mostrado durante um dos assaltos que realizou em sua breve carreira de criminoso. Ao fim do ataque, Hosmany depara-se com um espelho e tem um déjá vu (construído com o recurso estilístico do flashback), lembrando de seus tempos de estudante ambicioso e vil (idéia que perpassa todos os momentos da reconstituição de sua história) quando, também à frente de um espelho, sussurrou “eu quero ser o melhor”. Na especificidade dessa cena, assiste-se a dois tipos de reconstrução discursiva realizados em um programa cujo tema central é a dramatização de crimes envolvendo pessoas comuns ou ilustres, e o incentivo a denúncias sobre o paradeiro dos acusados foragidos: o primeiro é a reconstrução do assalto, o fato baseado na denúncia oficial da justiça, o crime como discurso histórico que repete continuamente aconteceu (Barthes, 1988), documentado com pretensões de objetividade e de correspondência a uma verdade tida como exterior, apoiada em elementos de natureza indicial. O segundo tipo pode ser entendido como a reconstrução subjetiva das personagens, a apresentação icônica de eventos sobre os quais ocorre o processo criminal em questão e que não podem ser capturados de maneira indiscutível, sendo assim potencialmente lugar natural para a interferência discursiva por parte de seus produtores (em relação a outras formas do discurso midiático, nas quais a intervenção ao real realizada na instância produtiva obedece a critérios claramente sistematizados e exigidos pelo 25

Edição mensal do programa Linha Direta, exibido pela rede Globo às quintas-feiras à noite; diferencia-se da versão padrão do programa por apresentar casos nacionalmente conhecidos, normalmente ocorridos há décadas, mas que possuem ainda algum elemento a ser solucionado – como pontos não explicados do crime ou acusados que ainda não foram punidos.

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jornalismo informativo) e para a instalação de suas intenções e estratégias de sentido. Nessa pesquisa, considera-se o programa em questão como um formato dos reality shows – produtos relativamente novos de mídia televisiva, que promovem a construção narrativa da vida íntima e cotidiana de protagonistas anônimos e célebres –, que sugerem configurar como um interessante evento discursivo para a análise das formas de representação do real nos produtos hodiernos da mídia, em especial os elaborados pela linguagem audiovisual. A classificação deste programa sob tal gênero encontra justificativa na atenção dada, em seu texto, não apenas aos crimes, mas à reconstituição da vida subjetiva das pessoas envolvidas nos processos criminais enfocados, gerando uma narrativa repleta de cotidianidade e de apelo popular, fundamentada no retrato de pessoas simples, geralmente desfavorecidas economicamente. Segundo terminologia cunhada por Cavender (2004), o tipo de programa representado por Linha Direta se insere numa subcategoria do gênero por ele denominado reality crime programs, que engloba dois formatos televisivos: um formato contínuo, no qual a câmera acompanha o policial que soluciona o crime como uma testemunha em primeira pessoa; e um formato em que se reencena crimes dramaticamente, solicitando-se a ajuda dos telespectadores para solucionálos. Dessa forma, Linha Direta apresenta-se como um reality crime program que se enquadra no segundo formato. Corner (2004) sugere que a base do fundamento (e da polêmica) dos programas do gênero reality show26 pode ser apontada no aproveitamento de três termos: o “ordinário”, o “real” e o “honesto” (2004, p. 8). O ordinário é uma referência à inclinação do gênero ao retrato das pessoas comuns, geralmente membros de classe social baixa, em situações igualmente ordinárias, como comer, dormir, ou simplesmente conviver com outras pessoas – e, no caso de Linha Direta, em realização de crimes que parecem ser justificados por sua inserção em

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Corner desenvolve essa idéia baseada no programa Big Brother – provavelmente o formato de reality show com maior sucesso e repercussão mundiais – mas, como se pretende demonstrar, ela pode ser aplicada com êxito aos demais formatos do gênero, como a subcategoria de reality crime program, à qual pertence o programa Linha Direta.

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tal classe social, fazendo com que lidem com situações de tensão através da violência. O real aponta o dever de tais programas de indicar, por contraste, o que a televisão não é. Sendo assim, os reality shows acabam por revelar a artificialidade do meio, já que não podem apresentar as cenas da esfera íntima sem interferência da câmera (no caso de Big Brother, essas cenas ocorrem em um ambiente artificialmente construído e, no caso de Linha Direta, são totalmente reconstituídas), embora isso não impossibilite a exposição de momentos reais. Já a honestidade parece ser, para Corner, o ponto central dessa tríade: encontra-se aqui o reconhecimento do quão honestas são as representações e as interações das pessoas envolvidas nesses programas e, por outro lado, o quão honestos os produtores do reality show estão sendo com essas pessoas. Entra nesse ponto, portanto, a questão da autenticidade tão buscada nessa experiência discursiva: em que medida os participantes desses programas estão sendo eles mesmos? No caso de Linha Direta, essa expectativa é transferida para a instância produtiva – que comanda toda a reconstituição do caso – e para o depoimento de coadjuvantes das histórias contadas (familiares e demais pessoas envolvidas nos casos), englobando questões de realismo no retrato da vida cotidiana nas histórias contadas e de suas experiências emocionais. Assim, os reality shows fundamentam-se na busca interminável do real, existente tanto na ciência quanto na vida cotidiana, que é realizada nesse formato televisivo através do jogo da procura dos “gestos, as emoções que podem ser lidas no rosto e a coreografia expressiva do corpo todo”, e que “são percebidos como um acesso privilegiado à alma moderna, ao que há de mais autêntico na pessoa” (Andacht, 2004a, p. 18). Interessa-nos aqui entender de que forma Linha Direta constrói um relato que se pretende verdadeiro através de um complexo jogo realizado entre modalidades

discursivas

diferentes,

concernentes

aos

aspectos

factuais

(dependentes da remissão ao real, o mundo em si), às estruturações ficcionais (referentes à representação fantástica ou imaginativa do real), e à estratégia reflexiva e auto-referencial adotada pelo programa (as remissões que Linha Direta realiza a si mesmo e ao seu processo produtivo).

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2.1. Estratégias constantes no discurso de Linha Direta Na grade de programação da Rede Globo há quase seis anos – sua primeira edição data de maio de 1999 –, Linha Direta configura um formato que pode ser considerado novo na emissora, descendendo de programas americanos de estrutura semelhante. Seu discurso, portanto, não é inaugural e contrai relações, segundo terminologia de Verón (1996, p. 91), sintagmáticas com os textos que o procedem ou sucedem (programas norte-americanos como America’s most wanted e Law & Order, ou mesmo o extinto brasileiro Aqui Agora, exibido entre 1991 e 1997 pela rede SBT), e associativas ou paradigmáticas através de analogias com os gêneros27 e estilos que recupera ou combina em seu formato. Como estrutura de produção televisiva, Linha Direta condiciona-se aos modos de recepção do meio a que pertence – ou seja, é configurado conforme os processos de assistência da televisão que, ao ser consumida prioritariamente em ambientes domésticos, divide permanentemente o foco da atenção com outras situações circundantes. Por não presumir condições dominantes de recepção (como o cinema, por exemplo), a televisão se vê incitada a criar formas de expressão seriadas, de modo a manter o seu espectador conectado e a viabilizar uma produção ágil e econômica. Sob essa perspectiva, Linha Direta apresenta-se como exemplo de narrativa seriada através de episódios unitários, conforme terminologia de Machado (2000, p. 40): suas edições conservam apenas o “espírito geral das histórias ou a temática”, mudando, a cada episódio, a história, as personagens, os atores, os cenários e, por vezes, até mesmo os roteiristas e diretores.

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Arlindo Machado, para discutir a questão do gênero, recupera o conceito de Bakhtin, que o entende como uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, de forma a orientar o seu uso dentro de um determinado meio e garantir a comunicabilidade dos produtos midiáticos. Funcionam como indicativos de uma produção discursiva, sendo reconfigurados e reatualizados constantemente; assim, “o gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um determinado gênero” (Machado, 2000, p. 69).

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Segundo explica Verón (1996, p. 127), o conceito de discurso caracterizase por uma configuração espaço-temporal de sentido. Sendo determinado contextualmente, um conjunto discursivo não pode ser analisado apenas em si mesmo, mas através das marcas das condições produtivas que carrega e do sentido produzido em sua materialidade. Assim, torna-se necessário um entendimento das situacionalidades da instância produtiva explicitadas na configuração do texto do programa. O formato de Linha Direta, conforme argumenta Mendonça (2002), alarga o conceito do chamado “padrão Globo de qualidade”, dando lugar a um discurso que mistura linguagens jornalísticas e dramáticas na concretização de uma narrativa de cunho policial, que muitas vezes opera como suíte28 do jornalismo diário (como, por exemplo, foi observado no programa veiculado em 21 de outubro de 2004, no qual se reconstitui a chacina de Vigário Geral, no Rio de Janeiro, após onze anos de sua ocorrência). Dessa forma, esse novo espaço na grade da emissora reflete uma tendência na Rede Globo a buscar audiência em um determinado nicho de público, o de telespectadores adeptos a programas sensacionalistas29 produzidos com maior freqüência por outras emissoras. O programa ainda encontra respaldo numa idéia socialmente disseminada de falência da instituição judiciária, que reproduz a sensação de insegurança e possibilita que Linha Direta utilize, como estratégia de validade, uma espécie de auto-delegação da tarefa de fazer justiça. Assim, o programa toma para si um sentido de força paralela em relação ao poder executivo. Esse arranjo formal tem como resultado uma ótima audiência, que aponta o programa como um dos mais vistos da emissora30.

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Entende-se como suíte o jargão jornalístico que aponta o recurso de desdobramento de matérias publicadas no passado, como forma de retomar os dados precedentes e atualizar a situação do caso noticiado. No jornalismo diário, tende-se a recuperar notícias recentes mas, no caso referido em Linha Direta, essa temporalidade é estendida para retomar um caso ocorrido há onze anos. 29 Rosa Nívea Pedroso entende o jornalismo sensacionalista como um segmento específico e próprio da imprensa popular. Caracteriza-se “pela maneira própria de engendramento discursivo, (que) estrutura, representa e permite o acesso ao mundo da liberdade pela exploração dos temas agressivos, homicidas e aventureiros, que não podendo realizar-se na vida cotidiana, submetida à lei e à censura, tendem a realizar-se, projetivamente, na leitura” (Pedroso, 2001, p. 51). 30 Em reportagem de 1999 da revista Época (disponível em http://epoca.globo.com/edic/19991129/cult3.htm), Linha Direta foi apontado como terceiro programa mais assistido da emissora, perdendo em números de audiência apenas para o Jornal Nacional e a novela Terra Nostra.

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Linha Direta, dessa forma, realiza-se através de uma complexa trama entre estratégias comunicativas (que oferecem pistas sobre seu processo produtivo) e narrativas (expressas na concretude do texto). Sua estrutura narrativa mistura jogos comunicativos entre papéis narrativos (as personagens personificadas pelos atores contratados, que se desvinculam de sua história para encenar a vida de outros) e atores sociais reais (as verdadeiras pessoas a serem representadas no texto, os depoimentos das testemunhas, a mediação significativa do apresentador). Pode-se afirmar que o ato comunicativo concretizado pelo programa organiza-se em dois níveis; social (quando faz referência a atores sociais, inclusive pela interatividade proposta ao público espectador) e discursivo (no que concerne ao interior do texto, à realidade construída dentro do próprio meio). Essa primeira estruturação constata o fato que, se ambos os níveis realizarem uma fusão entre os papéis (discursivos e sociais), isso já indicará o apagamento de certos limites entre as instâncias reais e ficcionais. Torna-se conveniente, assim, observar que níveis de realidade são trabalhados no texto do programa Linha Direta.

2.2. A realidade televisiva configurada em Linha Direta Em sua reflexão, Jost (2004) entende três níveis de realidade nos quais a experiência dos reality shows é constituída. São eles: o mundo real, nível subordinado às ocorrências do ‘mundo natural’, exterior, aos objetos existentes, englobando aqui os textos televisivos com caráter prioritariamente informativo e fundado em provas comprováveis; o mundo ficcional, submetido apenas à coerência interna do seu discurso (aos princípios que garantem sua verossimilhança e às questões de gênero), não tendo a obrigação de prestar referência ao mundo real, sendo esse o caso dos programas abertamente ficcionais; e o mundo lúdico, designado pelo jogo criado na interação com o espectador, tomando essa mediação como objeto (id, p. 40), na qual se reconhece ou questiona o nível de realidade em que o texto se insere, e aos momentos autoreferenciação televisiva, através dos quais o signo midiático refere-se a si próprio.

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Nessa constante dualidade entre referencialização e ficcionalidade, que permeia toda a sua experiência, esse subgênero de reality show determinado em Linha Direta apresenta-se como um formato híbrido, recuperador tanto de características do mais convencional dos telejornais quanto de padrões de dramatização já explorados em inúmeros programas ficcionais derivados do gênero melodrama31 (do qual as novelas aparecem como maiores expoentes, sendo um formato de absoluta importância dentro da grade da emissora), ao mesmo tempo em que se refere à eficiência de seu modelo discursivo constantemente. Como elementos pertencentes ao mundo real, pode-se identificar a presença de atores sociais convocados a dar depoimentos sobre os casos exibidos: vozes oficiais de promotores, advogados de defesa, secretários, testemunhas oculares, e a figura fundamental do Ministério Público, cuja menção das denúncias intenta legitimar a veracidade de toda simulação a ser apresentada em Linha Direta. Tratam-se de elementos vinculados ao caráter documental do programa, de sua relação intrínseca com o jornalismo informativo que, acima de tudo, conferem efeitos de objetividade e credibilidade ao relato televisivo. Ainda sobre a abordagem referente ao real verificada em Linha Direta, destaca-se o papel do apresentador, personificado na figura do repórter Domingos Meirelles.

Elemento

discursivo

típico

do

telejornalismo

tradicional,

o

apresentador padrão32 costuma participar da narrativa midiática com aparente imparcialidade, atuando apenas no momento de proferir a notícia e deixando aos entrevistados e testemunhas e aos padrões de seleção das notícias a função de 31

Entende-se aqui melodrama como o gênero surgido com os folhetins encontrados nos jornais do século XIX e logo recuperado nas radionovelas e telenovelas. Baseado na estética romântica, tem como constantes a exploração de temáticas vinculadas às emoções e na eterna oposição entre o bem e o mal (desequilíbrio sempre resolvido sempre com a punição do mal no desfecho da narrativa). Visa a produzir determinadas reações previstas no seu público, a quem deseja agradar. Nas palavras de Bucci, “o melodrama, do mais requintado ao mais elementar, cumpre uma missão sagrada, que é a de nos dar a narrativa nossa de cada dia. (...) O encanto da novela está onde sempre esteve, na sua narrativa e no uso imaginário a que ela se presta. Ela fornece fórmulas para as muitas soluções que o desejo nos pede no cotidiano: desrepressão, sublimação, denegação, o que se queira. E isso de um modo tal que a(o) outra(o) nos entende. As novelas são o que são porque dão a narrativa da vida íntima do brasileiro”(2003). 32 Atualmente se observa um maior número de apresentadores que costumam fazer comentários valorativos explícitos na exposição das notícias.

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dotar os acontecimentos de sentido. A atuação de Domingos Meirelles rompe com esse caráter de neutralidade do apresentador que, mesmo sem assumir seu papel de opinador – de voz editorial do meio ao qual está associado – expressa em sua atuação uma profusão de notações semióticas, observadas tanto na linguagem verbal quanto não-verbal de que faz uso. São elementos icônicos, indiciais e simbólicos, presentes no olhar severo do apresentador, em sua gestualidade, nas pausas, na expressão cerrada e nos efeitos convencionais causados pelo texto verbal, como momentos de fala irônica e a escolha de termos valorativos para definir os fatos. Trata-se de uma função semelhante à observada por Andacht (2003c) no programa Big Brother, cujo apresentador estabelece a interpretação oficial ou preferencial a ser gerada a partir das imagens icônico-indiciais veiculadas. Deste modo, em Linha Direta, assim como em Big Brother, o apresentador desempenha papel central no discurso, pois coopera para a determinação do entendimento simbólico do programa. Vale observar que, embora Linha Direta faça uso de elementos típicos do telejornalismo informativo, também rompe com alguns procedimentos comuns nesse tipo de discurso, como a questão da atualidade. Verón (1987) atenta a esse ponto, o qual considera como o resultado do processo produtivo de cada meio de comunicação, possibilitando que haja muitos modelos de atualidade. Assim, em relação ao jornalismo tradicional, esse conceito é expandido em Linha Direta, que prioriza não a urgência dos fatos a relatar, mas seu pertencimento às condições implícitas para a seleção dos casos (em sua grande maioria, crimes ainda não resolvidos, de caráter passional, envolvendo paixão, inveja ou traição) ou a razões externas, referentes à exposição pública (o caso de Linha Direta Justiça, que enfoca crimes já resolvidos que se tornaram nacionalmente conhecidos). Outro elemento do jornalismo informativo com o qual Linha Direta rompe é a questão da pluralidade de vozes, utilizada para dar aparente espaço a todas as versões do fato, no intuito de causar um efeito de neutralidade e de obtenção da verdade absoluta do acontecimento. Mesmo nos casos ainda em aberto, em que ainda não há confirmação oficial da justiça, o que se nota, ao contrário, é que acusados ou pessoas relacionadas a eles raramente têm direito à fala no programa, assim como suas versões, que quase nunca são simuladas. Os depoimentos

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selecionados são aqueles que, de alguma forma, corroboram o sentido pretendido pelas representações, ou seja, a culpa indiscutível do acusado e a inocência da vítima. Nos poucos momentos em que o acusado tem voz ou tem sua versão reconstituída, recebe um espaço restrito e menos privilegiado em relação ao que concerne à versão oficial ou das pessoas relacionadas à vítima – seja pelos aspectos indiciais que acompanham a reconstituição (como expressões e interpretações dos atores que representam a cena, a ausência de depoimentos que reiterem a versão, os confrontos e contradições com as perguntas dos repórteres que os entrevistam), seja pelo constante aviso de que se trata de uma versão da acusação, enunciado que, no contexto do programa, perde seu crédito por jamais coincidir com a versão da justiça. Apenas as vítimas têm passado – os acusados têm precedentes. Os momentos de inserção no mundo ficcional referem-se às construções estéticas, ao uso de efeitos de gravação e edição típicos de programas de ficção, à escolha de atores, à trilha sonora incidental (que remete aos filmes de suspense e policial), à necessária seleção e reconstituição de traços psicológicos das personagens enquadradas, às referências aos textos clássicos da literatura (efeito explorado com grande freqüência em Linha Direta Justiça) – em síntese, a todos os elementos da estrutura narrativa que não correspondem ao relato oficial dos crimes (conforme registrados na “denúncia do Ministério Público”, enunciado sempre presente nas simulações montadas e exibidas pelo programa) e dependentes de concepções subjetivas. A reconstituição no nível ficcional, assim, refere-se aos espaços do texto de Linha Direta que dependem necessariamente da interferência da instância produtiva, já que não podem ser precisados objetivamente, pela razão da própria natureza dessa espécie de construção discursiva, que impede a busca da exatidão e do incontestável. É nessa instância que a preocupação estética – em montar cenários e figurinos atrativos, verossímeis e coerentes com o que pretendem representar – manifesta-se no texto concreto do programa. É interessante observar que grande parte dos efeitos de sentido ocorre dentro desse nível, possibilitando assim a concretização das intenções do programa. É na reconstituição psicológica dos envolvidos que se materializa o

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viés maniqueísta da narrativa, a qual sempre divide em pólos antagônicos acusados e vítimas. A construção psicológica dos atores discursivos, assim, prioriza o que Ong (1998) denominou como “personagem plano”: trata-se de um tipo de personagem que não surpreende o público receptor; ao contrário, causa-lhe prazer por sempre cumprir suas expectativas. Deriva da narrativa oral primária, que só pode construir personagens desse tipo, facilmente memorizáveis e reconhecíveis. A personagem “plana” ou “forte” serve “tanto para organizar o próprio enredo quanto para lidar com os elementos não-narrativos da narrativa: assim em torno de Ulisses (da Odisséia de Homero), é possível referir-se ao conhecimento relativo à esperteza” (id, p. 170). Esse tipo de ator discursivo plano e simples cedeu lugar – com o surgimento da escrita e, no ápice, com o advento do romance – a personagens mais psicologicamente complexas e mais semelhantes “a uma pessoa real” (ibid, 1998, p. 171). Essa construção de personagens planas, oriundas das narrativas orais, configura-se como uma estratégia discursiva que visa a legitimar o caráter justiceiro proposto por Linha Direta – assim, reduz-se a potencial polissemia que as construções poderiam gerar, justificando os atos decorrentes do programa ao caráter (mostrado sempre como indubitavelmente condenável) dos acusados, invariavelmente representados como perfeitos vilões de programas ficcionais. Ao mesmo tempo, Linha Direta chama a atenção sobre a eficiência de seu modelo discursivo com grande freqüência – concretizando uma estratégia autoreferencial, na qual remete ao contato estabelecido entre a referência interna do programa e a autenticação dessa referência através do reconhecimento pelo seu público receptor. Tratam-se de momentos em que o programa passa a um movimento de reflexão interna, apontando a eficiência de sua configuração discursiva e a conseqüente concretização de seu objetivo explícito maior – a legitimação de seu sentido institucional, ou seja, da concretização final de sua ação por ‘justiça’, representada, no caso, através da captura dos foragidos exibidos no programa. O espectador é incitado a interagir e a fazer sua denúncia que, quando resulta na prisão do acusado, é ostentada com veemência nas edições seguintes. Essa convocação é direta e intimista, feita pelo apresentador Domingos

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Meirelles que, encarando o espectador, chamando-o de “você”, requer a participação no programa e a adesão implícita a um grupo que “age por justiça”. Assim, ao final de cada edição, é veiculado o quadro “Plantão”, no qual essas prisões são exibidas e é feita uma breve recuperação do caso já apresentado. Enfatiza-se o tempo levado entre a exibição no programa e a captura (principalmente caso o tempo possa ser medido em horas, evidenciando a agilidade de seu modelo), o lugar da prisão e o provável destino do acusado, e uma breve entrevista com o mesmo (normalmente, recorta-se dessa conversa os momentos em que o acusado se contradiz, demonstra insegurança ou arrependimento). A estratégia é concluída pela imagem do prisioneiro, já enclausurado, com tomadas em que as barras da cela apareçam e, quando possível, reproduzindo o som da cela sendo fechada – completando uma semiose construída desde a primeira edição de Linha Direta e instalando, em definitivo, o sentido de justiça feita. Essa proposta de interação com a instância de recepção estende-se para além dos limites semanais nos quais o programa é enquadrado. Ao acessar o site do programa (http://www.globo.com/linhadireta/), observa-se um quadro em que se lê o “número de capturados33 até o momento” (314 pessoas no instante de acesso, em 6 de janeiro de 2005) e a seção “Outros destaques”, na qual se encontra descrição detalhada da captura dos foragidos já encontrados, além de uma enquete que requisita a opinião moral dos espectadores, inserindo discussões éticas nas questões implicadas pelos casos retratados34. Esses recursos tratam-se de estratégias destinadas a reiterar a eficácia do modelo comunicacional estabelecido no programa, sendo essa uma previsão concretizada do jogo oferecido e a partilha do triunfo de sua proposta. Nas palavras de Greimas (1998, p. 122), “a comunicação é um confronto entre 33

Nota-se aqui que a palavra “capturados”, substituindo a expressão “acusados”, remete a um sentido de caça, de legitimação da prisão do inimigo, naturalmente merecedor do cárcere; assim, conota significações de acontecimento bem sucedido, resultado feliz e justificável. 34 Vale observar que os resultados das enquetes tendem a coincidir com o caráter ‘justiceiro’ das construções textuais do programa, priorizando as opções extremadas. Como exemplo, uma enquete realizada sobre a discussão gerada pelo assassinato dos adolescentes Felipe Caffé e Liana Friedenbach, em torno da inimputabilidade de menores de 18 anos: a resposta mais votada (79,8 %) defende a redução para 16 anos a idade penal em todos os crimes.

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quereres e poderes; mais do que a enunciação de verdades e falsidades, ela é uma atividade que se submete ao princípio da eficácia”. O caráter auto-referenciativo do programa acaba por fazer com que Linha Direta prove sua eficiência discursiva – pois cumpre seus objetivos expressos, de construir uma narrativa verossímil o suficiente para efetivar a captura das pessoas procuradas – e convença como produto midiático válido enquanto experiência televisiva e social.

2.3. Análise na estrutura efetiva de uma edição do programa Com o intuito de verificar a existência das estratégias apontadas acima no texto concreto de Linha Direta, pretende-se analisar a presença de tais percursos em uma edição representativa do modelo discursivo configurado pelo programa. Trata-se do primeiro caso apresentado na edição veiculada em 4 de dezembro de 2003, no qual assistiu-se à reconstituição de uma história apresentada por Domingos Meirelles sob o nome de O Casamento Frustrado. Exibiu-se, na ocasião, a história de Jaqueline, filha de um pastor evangélico da cidade de Novo Gama, em Goiás, assassinada seis dias antes de seu casamento por um dos seus amigos, Anderson, que a teria matado por ciúmes. Há uma vinculação tangencial entre a personalidade do acusado e o crime ocorrido: o assassino, Anderson, é mostrado ainda na juventude como possuidor de um caráter vil, um adolescente envolvido desde cedo com drogas e bebidas – sua personalidade é confirmada por depoimentos de parentes da vítima e por elementos icônico-indiciais, como o constante enfoque nas tatuagens do acusado e gestualidades do ator discursivo. Jaqueline, ao contrário, é representada como a própria antítese de Anderson, uma jovem correta, decente – na voz do narrador do programa, como “a única pessoa que consegue controlar o amigo”. Observando a relação que os textos contraem com outros textos, Verón (1996) categoriza as formas de diálogo entre textos como paradigmáticas ou sintagmáticas. É interessante notar que, embora conserve forte relação paradigmática com narrativas pertencentes ao gênero suspense, na unidade efetiva do programa (no nível sintagmático) há modificações significativas em relação ao

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tipo de texto com o qual se relaciona. Linha Direta rompe com o gênero ao sistematizar como formatação padrão da narrativa o começo pelo momento clímax do suspense, ou seja, a resolução da história (que, na versão pura do gênero, tende a aparecer no final). Ong (1998) observa que esse tipo de estrutura, o qual prioriza o ápice da ação como ponto inicial da história, seria originária da narrativa das culturas orais primárias. Enquanto as culturas escritas atuais julgam a narrativa típica como um enredo linear progressivo, na qual “uma ação ascendente constrói a tensão, eleva-a a um clímax (...) e é seguida por um final ou desenlace” (Ong, 1998, p. 160), a narrativa das culturas orais caracteriza-se pela ênfase na ação principal e o descaso com a seqüência temporal da história. Por ser fundamentalmente episódica, a estrutura oral não é organizada piramidalmente, de forma ascendente. Assim, Linha Direta gera uma narrativa que mistura elementos da estruturação típica das culturas orais com configurações típicas do jornalismo – no caso, faz uma espécie de uso do elemento lead, que coloca o momento principal da história como necessariamente o primeiro instante do relato. Dessa forma, quebra-se uma percepção linear de narrativa: a história contada aqui começa pelo momento em que o pai da vítima fica sabendo de sua morte, enquanto celebrava um culto evangélico; em seguida, após essa introdução pelo final, entra a reconstituição de um passado carregado de pistas e indícios sobre as razões do crime. Enfatiza-se constantemente a remissão à denúncia do Ministério Público, cujo poder como instituição legitima a reconstituição das cenas nas quais o crime – o assassinato em si – ocorre presencialmente. São nesses momentos que a marca distintiva de “simulação” é anunciada antes de sua exibição e ostentada graficamente durante toda a duração da cena, como que conferindo um efeito de autoridade e seriedade à construção promovida pelo programa. Partes que se referem à construção de uma personalidade problemática ao acusado, por exemplo, não requerem tal rótulo – sugerindo, dessa forma, serem menos perniciosas caso possam ser provadas como falsas. A seleção dos atores sociais a falar sobre o caso demonstra que o compromisso jornalístico com a pluralidade de vozes é logo subvertido: o espaço

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é cedido para parentes da vítima (pai, irmã, cunhada, noivo viúvo) que, em seus depoimentos, concedem ao caso um aspecto de “sonho que estava perto de se realizar”. Não há depoimentos favoráveis ao assassino: apenas ressalta-se que sua mulher preferiu não se pronunciar sobre o caso. Como voz oficial da justiça, há a fala de uma promotora, que não se refere ao crime conforme está documentado, mas à especulação do fato de que Anderson “tinha uma paixão doentia e secreta por Jaqueline” – provocando, assim, encontros entre o discurso estritamente documental (a voz da justiça personificada na promotora) e o discurso subjetivo, suposto, explicitado em termos valorativos (a observação psicológica sobre as razões do crime). Esse cruzamento entre atores sociais e elementos narrativos é novamente trabalhado numa das últimas cenas do caso, na qual Nilson, o noivo, fecha a porta da casa vazia em que iria morar com Jaqueline, após declarar seu amor por ela. Trata-se de uma imagem significativa (com claros indicativos de não ter sido espontânea) que reitera o sentido do sonho perdido construído durante toda a encenação. Mas a referência definitiva ao aspecto jornalístico pressuposto pela esfera do mundo real é observada através da abundância de aspectos indiciais, utilizados profusamente no discurso de Linha Direta. Desde o primeiro instante apresentado da história em questão, são enfatizados elementos que, antes de tudo, atestam a existência do caso como acontecimento concreto: a data do crime (17 de maio de 2003, no dia das mães), a cidade (Novo Gama, em Goiás, a 40 quilômetros de Brasília), o mapa que aponta a localização exata do município, a foto selecionada de Anderson (com um olhar desafiador como se zombasse das autoridades), as precisões secundárias mas fundamentais no sentido dramático que se pretende construir (o fato de a vítima ter sido morta seis dias antes do casamento, dado ressaltado quatro vezes durante a veiculação do caso). Trata-se de um elemento típico do jornalismo informativo que, nesses detalhes, indicações espaciais, temporais e nas quantificações em geral, aponta a uma apuração minuciosa do fato e à imposição de um real concreto, incontestável e passível de comprovação. Ao mesmo tempo, essas notações desempenham uma função típica dos relatos da cultura oral primária – com a qual a linguagem televisiva está profundamente relacionada –, de associar o conhecimento expresso

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com referências mais ou menos próximas da vida cotidiana real. Não se aborda, simplesmente, crimes ocorridos e documentados pelo Ministério Público, e sim crimes em cidades determinadas, localizadas em determinadas regiões, envolvendo membros de determinadas famílias. O fator humano, neste tipo de relato, está sempre presente; conforme lembra Ong, uma cultura quirográfica (...) pode distanciar e, de certo modo, desnaturar até mesmo o humano, discriminando coisas como os nomes de líderes e as divisões políticas ou uma lista abstrata, neutra, inteiramente desprovida de um contexto de ação humana. Uma cultura oral não possui um veículo tão neutro como uma lista (Ong, 1998, p. 53-54). Essa construção factual, no entanto, é materializada através dos recursos provenientes do nível do mundo ficcional, ou seja, nos cuidados da produção de Linha Direta para reconstruir uma história convincente, esteticamente verossímil, e que trabalhe em favor dos sentidos que o programa pretende causar. A configuração ficcional, portanto, refere-se aos momentos dos casos reconstituídos que não podem representados de forma independente à interferência da instância produtiva. No caso em questão, esses momentos manifestam-se na montagem dos cenários, na trilha sonora selecionada (incluindo prioritariamente temas tensos de filmes de suspense), na escolha dos atores e demais elementos constituintes da encenação estética do programa; ou em cenas que explicitam experiências pessoais subjetivas – podendo ser representadas apenas através de suposições, mas nunca objetivamente – que operam como estratégia fundamental na estruturação de sentido aspirada. Esse quesito é trabalhado, por exemplo, na exposição do começo do flerte entre Jaqueline e Nilson, seu noivo, na troca de olhares entre o casal na igreja; ou no olhar invejoso da personagem Anderson enquanto Jaqueline ocupa-se dos preparativos do casamento. O apuro dedicado às reconstruções estéticas sustenta-se no fato de que o nível concernente ao mundo ficcional colabora intensamente para que a história contada mostre-se plausível, como possuidora de persuasiva veracidade enquanto reconstituição. É na mimese de elementos indiciais vinculados aos atores sociais em questão (mostrados seja por fotos, no caso da vítima e do acusado, seja por

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imagens de sua casa, na aparência dos familiares que depõem no programa, nas classes sociais a que remetem) e facilmente reconhecíveis na instância de recepção que Linha Direta convence-se como verdadeiro. O reconhecimento desses índices – e sua posterior associação com símbolos socialmente assimilados – parece explicar a ocorrência de tal crime dentre determinado grupo de pessoas. Atentando à construção do discurso em um jornal sensacionalista, Pedroso argumenta: É natural, então, o reconhecimento do crime e da perversão no fato de a pessoa estar desempregada ou não possuir formação profissional, ser analfabeta ou ter baixo nível de escolaridade, morar em favela ou ter uma habitação desprestigiada, ser umbandista, ser negra, mulata ou mestiça, vestir-se com andrajos ou espalhafatosamente, pertencer a uma família desagregada, promíscua ou extremamente pobre. Esses são indícios, entre outros, explicitamente admitidos pela sociedade (e pelo jornal) para a identificação da delinqüência porque são nitidamente reconhecíveis nos atributos dos grupos sociais sem poder aquisitivo (Pedroso, 2001, p. 100). Assim, no caso de Jaqueline, o sotaque interiorano, as vestimentas simples, os cenários circundantes tanto aos atores sociais quanto discursivos apontam indícios de que se trata de uma família de baixa renda, de classe popular. Essas referências encontram respaldo em rituais tipicamente brasileiros, como um chá de panela do qual a noiva participa. Para Amossy e Pierrot (2001, p. 45), esses estereótipos são empregados na produção midiática para delimitar formas de reconhecimento de suas mensagens, e funcionam como mecanismos de autoridade – já que reproduzem hierarquias de superioridade e inferioridade entre as imagens e figuras difundidas, funcionando como meio de homologar a supremacia de grupos dominantes. Após o encerramento da reconstrução do caso (a conclusão é dada pelos índices do choro do pai, da irmã e do noivo, como um extravaso após o clímax concretizado na cena da morte de Jaqueline), é posto em cena a estratégia de autoreferenciação: volta a tocar a trilha sonora que identifica o programa e Domingos Meirelles requer a participação do público. Esse apelo é direto, imperativo, e

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ressalta o vínculo do programa com autoridades superiores (“suas informações serão levadas às autoridades”). Através da identificação corpórea de Anderson pela única foto sua que é exibida e pela descrição de suas tatuagens (com destaque a uma folha de maconha no braço esquerdo – reiterando o caráter delinqüente do acusado), o telespectador é convidado a participar e a concluir o propósito buscado por Linha Direta: concretizar a captura dos foragidos e legitimar a força do programa como instituição judiciária. Dessa forma, ao trabalhar competentemente com os diferentes níveis de realidade televisiva, o programa Linha Direta constrói o seu discurso e concretiza um texto realista, que convence como verdadeiro e verossímil. Ao mesclar elementos factuais, ficcionais e auto-referenciais, arquiteta-se um produto midiático híbrido e carregado de estratégias persuasivas. A realidade discursiva, através da referência incontestável do documental registrado pela denúncia oficial e da sedução já consagrada dos recursos dos gêneros ficcionais (em especial, no caso desse programa, das telenovelas), materializa-se como relato fiel dos fatos aos seus espectadores. Com a reiteração constante sobre a eficiência desse modelo, as estratégias propostas se concretizam por definitivo e colocam Linha Direta como um programa bem sucedido nos objetivos que pretende. Como experiência televisiva, Linha Direta expõe-se como duplamente eficiente: tanto na interação imediata concretizada pela captura dos foragidos quanto no retorno conferido pelos índices de audiência, o programa demonstra saber executar suas pretensões e objetivos, de persuadir enquanto re-construidora de realidades factuais e subjetivas. No cruzamento operado entre as diferentes modalidades discursivas configuradas no texto efetivo do programa, pode-se notar ênfases na justaposição de algum dos níveis: enquanto o mundo real serve como documento incontestável (sendo a própria razão de ser de Linha Direta) e os recursos provenientes do mundo ficcional concretizam tal documentação, a estratégia auto-referencial justifica sua existência e configura o formato e o estilo do programa. De certa forma, é este último nível sobreposto aos demais níveis para legitimar e confirmar essa experiência televisiva – ou seja, ao referir-se à eficácia de seu discurso, conclui-se um jogo discursivo e o programa compartilha

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seu triunfo com o público. Talvez, sem o apelo desse nível, a experiência do programa não conseguisse autenticar seu apelo à justiça. A comprovação de sua eficiência discursiva não significa, porém, que o programa cumpra efetivamente certas promessas com as quais se vincula enquanto texto de jornalismo investigativo, conforme se auto-anuncia. Destaca-se entre esses compromissos de gênero uma idéia de seriedade discursiva a ser obtida com a apresentação isenta da pluralidade de vozes envolvidas nos casos noticiados. A compreensão do panorama das diferentes falas apresentadas em Linha Direta aponta à pertinência de uma análise através dos conceitos de dialogismo e polifonia, trabalhados por Bakhtin (1997b/ 1929) no intuito de refletir sobre a dinâmica de diferentes vozes e diferentes textos presentes em toda produção cultural humana. Além de discutir questões estruturais da lingüística, tais conceitos carregam uma significação social extremamente relevante para se pensar as relações humanas e seus modos de expressão nos produtos midiáticos contemporâneos. Nesse sentido, pretende-se aqui recontextualizar os conceitos e analisar a pertinência de sua aplicação no programa Linha Direta, como modo de nos aproximarmos a uma melhor compreensão da estrutura narrativa deste objeto de pesquisa, bem como das formas pelas quais irá representar a instância do real com a qual se vincula.

2.4. Refletindo os conceitos de dialogismo e polifonia nos produtos contemporâneos: o caso Linha Direta Nesse sentido, intenta-se pensar sobre alguns aspectos dos conceitos de dialogismo e polifonia e sobre sua relevância na reflexão do programa Linha Direta. Para tal empreendimento, pretende-se trabalhar com um caso apresentado na edição veiculada em 1º de julho de 2004, considerado representativo das constantes narrativas do programa: trata-se da história do assassinato de um homem no Rio Grande do Sul, com desfecho em aberto à época de sua exibição, e que possui várias características usualmente observadas nos casos reconstituidos por Linha Direta, como elementos vinculados à sobrenaturalidade ou crendices

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populares e motivações passionais ou dramáticas para o crime (o fato de que o assassino, Álvares Brener, tenha sido o tio da vítima). Simultaneamente, são apresentados momentos de Linha Direta Justiça que apontam com clareza às faces dialógicas que o programa apresenta na completude de sua experiência discursiva. O primeiro caso referido é introduzido pelo apresentador Domingos Meirelles sob o nome Uma Superstição. O título se refere a um inusitado detalhe da vida do acusado: o fato de que sua mãe tenha visto uma de suas filhas sendo picada por uma cobra quando estava grávida de Álvares é utilizado como justificativa à personalidade condenável do acusado. Essa vinculação tangencial – pois, embora os depoimentos posteriores refiram-se ao veneno da cobra como motivo da má conduta do acusado, sua mãe nem mesmo chegou a ser mordida – encontra respaldo num elemento da cultura popular, que aceita certas razões de base sobrenatural35 como verdadeiras. Essa estratégia buscada pela instância produtiva reflete uma característica cultural do seu público, causando efeitos de verossimilhança – aceita-se como convincente essa justificativa para o comportamento de Álvares – que certamente não seriam obtidos caso o programa fosse exibido em outros ambientes. Trata-se, portanto, de uma relação dialógica contraída no encontro de duas culturas – uma popular, de traços locais (reconhecida aqui através da experiência colateral dos espectadores com essas crenças e convicções), e uma externa, vinculada principalmente à cultura norteamericana, primeiro espaço de programas policiais36 dos quais Linha Direta descende. Conforme argumenta Bakhtin, “a literatura não pode ser compreendida fora do contexto global da cultura de uma determinada época” (apud Stam, 1992, p. 75). Assumindo o programa como um enunciado completo, tornam-se claras as relações de diálogo que Linha Direta mantém com o espaço sociocultural em que 35

O viés da sobrenaturalidade é explorado com freqüência no discurso de Linha Direta. São comuns os casos em que crimes são remetidos a presságios, sonhos, superstições, intuições ou práticas religiosas. A reconstituição de Linha Direta Justiça sobre os processos resolvidos a partir de cartas psicografadas pelo médium Chico Xavier, apresentada em 4 de novembro de 2004, é paradigmática: acrescentou uma nova discussão jurídica aos crimes retratados (a questão de se aceitar mensagens dos mortos como provas) e configurou como a edição de maior audiência do programa até o momento. 36 Que, por sua vez, contraem relações com outros tipos de discurso provenientes da literatura, como os romances policiais e o estilo western, numa cadeia dialógica que segue sucessivamente.

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se insere. Como se pretende demonstrar, essas relações não ocorrem apenas entre os enunciados com marcas autorais37 e de pretensão artística, mas operam “dentro de qualquer produção cultural, seja letrada ou analfabeta, verbal ou não-verbal, elitista ou popular” (ibid). As relações dialógicas com discursos literários, por outro lado, são de fundamental importância no caso de Linha Direta Justiça. Suas histórias são quase sempre apresentadas em analogia com textos clássicos da literatura, escolhidos de modo a vincular seu enredo à natureza de cada caso. Na edição sobre a Fera da Penha (uma mulher que teria matado a filha do amante), veiculada em 30 de outubro de 2003, apresenta-se o fato de que a assassina era assídua leitora dos livros de Nelson Rodrigues. Com base nesse dado, sua história passa a ter contornos do estilo do autor – como se a própria Fera fosse uma personagem de Rodrigues. Essa intertextualidade transcende os limites da citação literária e recupera elementos de outros recortes já feitos dos textos do autor pelas mídias audiovisuais. A representação de Linha Direta Justiça remete aos filmes e minisséries produzidos a partir de obras de Nelson Rodrigues, como Asfalto Selvagem e A Dama do Lotação, através de elementos narrativos como a trilha sonora, a cenografia, a montagem temporal e a estruturação das personagens, num exercício dialógico que se relaciona com vários níveis de apresentação e reapresentação de suas obras realizadas anteriormente – há, nesse caso, vários dialogismos que se sobrepõem, causando efeitos de entretenimento ao aproximar a história (real) à narrativa típica de um filme ou novela já exibidos pela mesma empresa, a Rede Globo. Uma situação semelhante é observada no caso exibido em 25 de setembro de 2003, que conta a história de Hosmany Ramos, cirurgião plástico acusado de vários crimes na década de 80 e condenado a 47 anos de prisão. Diferentemente do episódio da Fera da Penha (cuja relação dialógica se dava com a temática geral das histórias de Nelson Rodrigues e não com um texto específico), a 37

Bakhtin lembra que “todo enunciado possui uma espécie de autor, que no próprio enunciado escutamos como o seu criador. Podemos não saber absolutamente nada sobre o seu autor real (...). uma obra qualquer pode ser produto de um trabalho de equipe, pode ser interpretada com trabalho hereditário de várias gerações” (1997b, p. 184). No caso, a tradição cultural referida no exemplo possui autoria coletiva, de domínio público.

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reconstituição é traçada através de um elemento de intertextualidade com o enredo de O médico e o monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde, 1931), filme baseado na clássica obra do inglês Robert Louis Stevenson (The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, 1886). Na história, Henry Jekyll é um cientista do período vitoriano que, através de seus estudos de medicina transcendental, consegue transmutar seu corpo entre sua personalidade normal e seu lado negro e obscuro, Mr. Hyde. Personifica, assim, duas faces de sua personalidade: uma boa, gentil, educada; e outra má, instintiva, sexual, violenta. Essa intertextualidade insinuada entre o episódio retratado e um enredo já culturalmente assimilado – como é o caso da célebre história – é utilizada como estratégia a guiar o entendimento da audiência; sendo que não há Dr. Jekyll sem Mr. Hyde, e sendo que a dupla não existe sem a analogia com os distúrbios psicológicos de personalidades múltiplas, a associação com a figura ambígua de Hosmany Ramos, conforme é retratada, sustenta-se como convincente. Os episódios de Linha Direta, dessa forma, revelam-se ricos de facetas dialógicas, mantendo relações tanto com textos autorais clássicos quanto elementos da cultura nacional, de domínio social. O reconhecimento dessas referências por parte do público torna o produto textual atraente como entretenimento e reiteram a verossimilhança de seu discurso. Quanto à questão da pluralidade de vozes contidas em Linha Direta, notase um diferente tipo de aproveitamento do conceito bakhtiniano de polifonia. No já referido episódio de Álvares Brener, observa-se nove vozes sociais que se pronunciam sobre o caso: o apresentador Domingos Meirelles, dois irmãos de Álvares, um sobrinho, o pai, a mulher e um cunhado da vítima, o promotor e o advogado de defesa. As falas trabalham para a construção de um sentido prioritário: a irrecusável culpa do acusado e a inocência da vítima. O recorte operado em suas falas (depoimentos que afirmam que Álvares “foi ruim desde criança”, “a alma dele é o dinheiro”, “repugnante”, “crime covarde e cruel”, e que a vítima era “um filho honesto e direito” e “gostava muito do tio”) corrobora para a formação de apenas esse sentido. Observa-se a presença de uma única fala que pode ser considerada como favorável ao acusado: a voz de seu advogado. É interessante notar, porém, que a apresentação de sua fala recebe tratamento

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completamente diferenciado. Seu depoimento – no qual alega que o crime ocorreu por “legítima defesa” – é o único a ser exibido sem cortes ou edição, ressaltando um efeito de hesitação e insegurança na fala do advogado. Trata-se, portanto, de um aproveitamento distorcido da idéia bakhtiniana, que aponta que o conceito de polifonia “enfatiza a consciência, em qualquer situação textual ou protextual, de uma pluralidade de vozes que não se fundem em uma consciência única (...), gerando um dinamismo dialógico entre elas próprias” (Stam, 1992, p. 96). Através da busca de um efeito de pluralidade de vozes, concretiza-se, de fato, um discurso monológico distante do “mundo de vozes plenivalentes em relações dialógicas infindas” (Faraco, 2003, p. 76) vislumbradas por Bakhtin na obra de Dostoiévski. No caso de Linha Direta, as diferentes vozes são como permeadas por um discurso dominador a determinar a pertinência de sua inserção na história, que é a própria fala narrativa do programa, sua instância produtiva. As falas, portanto, não se manifestam de forma autônoma: são escolhidas e editadas por interesses claros e específicos. Assim, em nossa observação constata-se diferentes formas de aproximação aos conceitos desenvolvidos por Bakhtin no produto cultural em foco nesta análise: se, por um lado, Linha Direta se apresenta como um interessante objeto de estudo para a recuperação da idéia de dialogismo nos textos midiáticos contemporâneos, mostra-se também possuidor de uma narrativa que distorce o conceito de polifonia, não concretizando a utopia bakhtiniana de um discurso de vozes eqüipolentes. Sendo um texto proveniente do discurso jornalístico, deixa de cumprir também com um dos ideais do jornalismo – o efeito de imparcialidade, obtido na tentativa de ceder voz a todos os lados de uma história – mas revela-se rico na sua estruturação estética, possibilitando o enfoque das múltiplas facetas de suas relações dialógicas tanto com os discursos literários quanto com as manifestações da cultura popular.

2.5. O discurso de Linha Direta como lugar de polêmica

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Uma constante que parece cercar o discurso de Linha Direta é um posicionamento crítico e combativo quanto ao programa, que o torna um dos mais polêmicos produtos midiáticos atualmente em exibição pelos meios de comunicação do país. Nesse sentido, torna-se necessário revisar brevemente essa crítica e refleti-la conforme o ponto de vista teórico adotado nesta pesquisa. Em linhas gerais, tal posicionamento parece ser enquadrado em duas distintas vertentes de pensamento. A primeira é uma crítica temática, referente aos assuntos abordados no programa e sua vinculação com conceitos de sensacionalismo e espetacularização (como a estilização da violência, o retrato de pessoas das classes populares, a tomada, por parte das emissoras de televisão, de um poder institucional a que não tem direito); a segunda diz respeito à pertença de Linha Direta à Rede Globo, a maior empresa de comunicação do Brasil e uma das maiores do mundo, o que leva muitos críticos e pesquisadores, numa espécie de iniciativa anti-conspiratória, a adotarem uma postura combativa e prejulgadora38 diante da soberania dessa emissora, que tentaria captar para si um papel de “justiceira” através de uma “despolitizante estratégia de autoridade” (Mendonça, 2002, p. 146). Diante desses posicionamentos iniciais, as críticas geradas sobre o programa acabam tomando ares de manifestos anti-Globo, e mesmo pesquisas sobre o tema são iniciadas com perspectivas de resultado já definidas, corrompendo o próprio sentido da ciência que, por si, pressupõe a observação livre de preconceitos dos objetos de investigação para que possam revelar seu caráter admirável (Silveira, 2003), e não a inquirição cercada de certezas provenientes do senso comum. Nesse sentido, a postura tomada aqui como mais correta é a que, no intuito de captar esse objeto de pesquisa na sua realidade, procura observar as estratégias narrativas e discursivas concretizadas na estrutura das edições do programa (e não nas supostas intenções de sua instância produtiva,

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No sentido que ocorre nessa postura um certo ‘envenenamento da fonte’, como se a atribuição de um programa à Rede Globo já acarretasse, por si só, um tratamento essencialmente comercial ao produto, abrindo espaço para todos os tipos de distorção e mentira na busca dos maiores números de audiência e da manutenção da hegemonia da emissora.

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que são irrecuperáveis) – numa conduta isenta de sentidos tanto de apologia quanto de injúria gratuita. Um exemplo desse comportamento combativo de Linha Direta, observado na investigação científica, é representado pela pesquisa de Mendonça (2002), que se propõe a comprovar “de que forma (Linha Direta torna) possível articular estratégias que permitam que ilustrações acabem sendo acatadas como verdades factuais (...). E o que é pior, sem que se apresente nenhuma prova tradicionalmente reconhecida e exigida pelos ritos jurídicos de averiguação da verdade”39 (id, p. 140-141). Dessa forma, o posicionamento inicial da pesquisa referida, portanto, é claro e pré-definido: como o autor relata no começo do texto, a questão de perceber e determinar as razões e os efeitos da proposta do programa em utilizar uma linguagem melodramática de gosto mais popular e flexível do que a utilizada tradicionalmente nos telejornais (...) será menos o objeto final da análise e mais o ponto de partida para que possamos trazer à luz os mecanismos discursivos que permitem ao programa este processo de produção da verdade40 (Mendonça, 2002, p. 18). Assim, sua análise foca um aspecto explicitado e quase oposto ao objetivo desta pesquisa: antes de tentar observar de que modo as estratégias produtivas geram um texto que remete à verdade através da utilização de formas narrativas comumente associadas à ficção, seu interesse é de comprovar que esses recursos narrativos levarão à produção de uma outra verdade alheia ao real, ou seja, uma ficção. Há, portanto, um sentimento de denúncia nessa posição, expondo uma concepção da instância produtiva como falsária, executora do engano em proporções massivas. Essa perda de referência com relação ao real convenceria como verdadeira através da construção de “efeitos de realidade, que serão fundamentais para o acatamento, pelo espectador, da ‘verdade’ proposta” (Mendonça, 2002, p. 42). Tais efeitos, por outro lado, estariam fundamentados na proposta de interatividade 39 40

Grifos nossos. Grifos nossos.

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do programa: se os acusados foragidos são presos através da delação do telespectador, isso comprova que não se trata de um filme ou outro tipo de obra ficcional. É o ato da denúncia que “irá coroar o efeito de realidade da ‘notícia’ veiculada e a eficácia do programa, em sua estratégia de autoridade” (id, p. 68). O entendimento sobre a proposta interativa do programa parece seguir idéia semelhante à defendida por Bucci, que vê o incentivo à delação dos criminosos como uma “proposta imoral” (2000, p. 93), cujo objetivo seria antes legitimar o poder da emissora do que realizar efetivamente um serviço social. Essas estratégias acabariam por fazer a verdade midiática prevalecer sobre a verdade jurídica, questão que leva o autor a especular sobre possíveis resultados desastrosos de pré-julgamentos operados pela mídia. Cita o caso (já clássico) da Escola Base, ocorrido em 1997, em que professores e proprietários foram acusados de abuso sexual dos alunos e, mesmo tendo sido considerados inocentes pela Justiça, tiveram sua reputação destruída – numa argumentação fundamentada em idéias do lugar comum e sem comprovação científica (já que não há provas claras de que situações de difamação preconcebida sejam exclusivas das exibições em mídia televisiva, ou tenham sua ocorrência diretamente veiculada à sua inserção no jornalismo): De modo semelhante ao programa Linha Direta, o exemplo do escândalo da Escola Base mostra claramente de que forma esta proposta – por parte da imprensa – de construção de verdade consegue assumir um status tão importante na sociedade a ponto de esta fazer justiça com as próprias mãos, sem esperar pelo resultado das averiguações da Justiça de direito, até pouco tempo soberana41 (Mendonça, 2002, p. 125).

Para Mendonça (2002), o programa trabalha seu efeito de realidade ao misturar marcas de verdade (os índices – embora esse termo não seja empregado – que denotam que o crime aconteceu) e o que chamou de marcas de mentira (id, p. 80). Assim, mesmo alguns indícios de verdade poderiam ser falseados. O objetivo 41

Grifos nossos.

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do autor, portanto, é mostrar “como todos estes elementos combinados podem construir (...) uma verdade que sequer pode ser dita” (ibid). Essas marcas da mentira, em sua concepção, seriam os casos encenados a partir de diálogos que não podem ser confirmados (como o momento em que Hosmany Ramos – exibido em Linha Direta Justiça e analisado anteriormente neste capítulo – olha no espelho e afirma que quer ser o melhor) – ou seja, o espaço da interferência criativa da produção e da liberdade poética sustentada na sua intenção de entretenimento. O mecanismo narrativo de reconstituir momentos subjetivos é típico da ficção, mas seu uso não é argumento suficiente para garantir que o programa produza uma mentira – pois as técnicas, tanto materiais quanto narrativas, não garantem por si só que um texto seja ficcional ou referente ao real. Conforme o modelo semiótico de Charles S. Peirce, pensar numa “verdade que sequer pode ser dita”, por outro lado, é negar a própria natureza da semiose, que postula que tudo, sob certas condições, é potencialmente representável por algum signo que mantenha sua relação com o objeto a que refere, não importando qual seja o tipo de representação a ser realizada. Nosso posicionamento é que estes momentos de criação produtiva não (necessariamente) tornam o texto uma ficção, pois não impedem o cumprimento dos parâmetros que devem ser obedecidos para que um discurso possa reportar o real42. Mesmo que o mito da objetividade jornalística seja combatido43, o autor parece não acreditar na possibilidade da representação do fato em um discurso real – ou ao menos não explica qual é o conceito de objetividade que adota como base para sua crítica, ao qual Linha Direta deveria obedecer para manter sua referência ao real. Portanto, se Linha Direta é falso por conter interferências produtivas que o afastam da possibilidade de gerar um texto objetivo, Mendonça (2002), numa postura de fatalismo crítico, não indica de que forma ele poderia se tornar um discurso referente ao real – já que considera o jornalismo, do mesmo modo, longe de uma possibilidade de objetividade. 42

Conforme as idéias de Carroll (1993), cuja argumentação será analisada no capítulo 3 deste trabalho. 43 Recuperando Schudson, o autor sugere que a questão a ser feita não é se os jornais são ou não objetivos, mas “que tipo de mundo é este nosso e que tipo de instituição é o jornalismo que precisa sustentar este ideal próprio de objetividade?” (apud Mendonça, 2002, p. 30).

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Interessa-o, principalmente, a questão do poder da imagem enquanto discurso: a força de Linha Direta estaria no fato de as histórias serem reconstituídas visualmente, sugerindo que o programa não obteria o mesmo efeito caso fosse, por exemplo, veiculado apenas por palavras. A imagem em Linha Direta teria importância crucial, pois seria empregada seguindo o mesmo uso padrão feito pelo telejornalismo: através de um caráter de ilustração, ela atesta o que está sendo informado pela notícia, transmitindo uma idéia de transparência que disfarça a incompletude da imagem e a iguala ao real (Mendonça, 2002, p. 44). Por trás dessa argumentação, há uma certa desconfiança iconofóbica que enfatiza a questão da imagem (mantendo relação com o viés apocalíptico das idéias pós-modernas44), desconsiderando a possibilidade do signo icônico-indicial (que, através da representação qualitativa e analógica, remete à existência causal e real de um objeto). Assim, Mendonça (id) deixa de observar a essência do programa, que é a condução narrativa do discurso, visto então como um todo (pelas imagens, palavras, sons, etc.) e não por suas partes – e acaba por não reconhecer o intuito do programa de representar o real, mesmo que seja através de uma ideologia punitiva e vinculada a valores defendidos pela emissora a qual pertence. O que se observa é uma certa confusão entre o fazer de conta e a mentira, questão observada por Jost, que, em sua análise, sugere a substituição da dúvida tradicional “o que é a ficção” por “de onde vem a ficção” (2004, p. 82). De fato, a noção de ficção provém do compromisso assumido pelo autor de um texto que se propõe a representar o real (e não do estatuto técnico em si, que pode tanto enquadrar o real quanto o fingimento). Para o autor, as “imagens enganam o espectador não por sua capacidade de substituir o real, mas porque seu autor mente quanto à natureza da realidade que testemunha” (id, p. 85). Assim, a idéia da mentira deve ser associada a uma situação de comunicação, na qual há uma intenção de testemunhar o engano. Ao concretizar em sua estrutura uma proposta de referência ao real, Linha Direta deve ser avaliado conforme os parâmetros a 44

O autor chega a se referir a força de Linha Direta às suas possibilidades de “converter a imagem em operador de simulacro” (id, p. 145).

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que deve obedecer (enquanto discurso potencialmente submetido à documentação jurídica e aos padrões do jornalismo informativo, assim como a suas conseqüentes possibilidades de averiguação) para só então ser considerado como verdadeiro ou falso; a verificação de que sua natureza tecnológica explora o uso de imagens ou que aproveita recursos estilísticos normalmente encontrados na dramaturgia não o tornam um texto ficcional. Seguindo a reflexão proposta por Jost, há duas conclusões que podem ser tomadas sobre a remissão de uma imagem (ou, numa atualização dessa idéia sugerida aqui, de qualquer tipo de texto ou discurso) ao real: A primeira é que a assinatura tem papel primordial na apreciação da imagem: o valor do pastiche sustenta-se no fato de que sei que existem dois autores, um que copia, outro que é copiado; o do falso, no fato de que acredito que há apenas um autor (a quem a obra é falsamente atribuída). A segunda conclusão é a de que é necessário o conhecimento do estilo de um pintor ou de um romancista por parte do receptor para que ele possa avaliar a qualidade da imitação (do real – a representação) (2004, p. 86). Atentando à segunda conclusão, impõe-se aqui uma questão crucial: há, certamente, diversas classes de signos para se representar o real, relacionados a inúmeros fatores, como a intenção e a competência de seus autores, a natureza técnica do meio no qual se realiza essa representação, e mesmo os interesses comerciais das empresas às quais os produtores estão vinculados. Mas quais são as diferenças entre elas? Há estilos de representação mais propícios a realizar essa aproximação do real? Os objetos enquadrados realizam algum tipo de determinação lógica em seus modos de representação? No esforço pela descoberta dessas respostas, insere-se o problema central dessa pesquisa nos dois objetos empíricos estudados: a vertente jornalística do New Journalism e o programa televisivo Linha Direta. Nosso próximo passo é o estabelecimento do confronto entre ambas as experiências midiáticas, através de invariantes comparativas observadas nos dois casos que nos tornam mais próximos de um entendimento da especificidade de cada uma dessas

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configurações discursivas, assim como das estratégias de que fazem uso para a obtenção deste buscado objeto final: o real.

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3. As narrativas de Linha Direta e do New Journalism – formas de representação do real em produtos recuperadores dos princípios realistas As reflexões sobre as diferentes formas de representação da realidade não são uma questão recente na história do pensamento humano. Na Grécia Antiga, o filósofo Platão já sustentava a idéia de que as formas de percepção são meras sombras do real, das formas do absoluto e do eterno, que se situam longe do alcance da percepção sensorial (Hebdige, 1998). No que concerne à literatura, Todorov (1967) assinala que o leitor não pode ter uma percepção direta dos acontecimentos descritos pelos livros. Para ele, os diferentes tipos de percepção reconhecíveis na narrativa – as chamadas visões – refletem a relação entre a personagem (o sujeito do enunciado) e o narrador (o sujeito da enunciação). As representações do real, portanto, seriam também determinadas pelos contextos situacionais em que são construídas e pelos diálogos que suas narrativas mantêm o tempo todo com a realidade. Esta pesquisa pretende considerar os modos de representação da realidade do New Journalism – vertente jornalística norte-americana que, nos anos 60, levou a extremos a experimentação textual através de um relato produzido de forma a confundir propositadamente as fronteiras discursivas entre o factual e o ficcional – e as maneiras utilizadas para representar o real em formas audiovisuais da mídia. Os reality shows – formato televisivo de entretenimento factual relativamente recente que envolve protagonistas anônimos (em grande maioria) em situações nas quais podem vivenciar momentos de “autenticidade” (Hill, 2002, p. 13), ou seja, ocasiões normalmente não capturadas pela lente da televisão (como a reconstrução dos crimes e da complexidade psicológica das pessoas envolvidas nos casos do programa Linha Direta¸ objeto empírico dessa pesquisa) ou instantes em que as personagens agem independentemente de roteiros programados (em programas como Big Brother Brasil) – apresentam-se como um fenômeno midiático cujas configurações podem ser confrontadas com a narrativa e estratégias de representação do real desenvolvidas pelos Novos Jornalistas.

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Embora sejam fenômenos diferentes, quase opostos em suas intenções e configurações produtivas, ambos operam discursivamente como formatos aparentemente análogos – com origens e intuitos diferentes, mas com modelos discursivos relativamente semelhantes. Tratam-se de linhas midiáticas que partem de eventos concretos para construir narrativas diferenciadas, que transcendem o registro do ocorrido (conforme ele é usualmente trabalhado no jornalismo convencional) através da recuperação de recursos dos discursos literários. Enquanto vertente de jornalismo impresso, o New Journalism caracterizou-se por um apego ao requinte no estilo literário e, consequentemente, como um outro caminho a ser seguido no jornalismo, fora dos padrões de texto normalmente utilizados nas redações. Por ser um fenômeno de mídia impressa, o New Journalism, de certa forma, ficou restrito a um público elitizado, capaz de apreciar as reportagens sutilmente irônicas desses jornalistas. De outro lado, como produto de mídia televisiva, os reality shows são regidos, a princípio, pela lógica comercial, antes da preocupação estilística – sendo, assim, produções de consumo e apelo mais acessíveis, além de um alcance infinitamente mais abrangente. Apresentam-se como um produto híbrido, associado tanto à verdade factual do jornalismo quanto aos recursos próprios da dramaturgia. Descendem, assim, de gêneros midiáticos já consolidados45, gerando um produto híbrido entre o documental e o ficcional, o jornalístico e o melodrama46, adaptando-os conforme o seu formato. Por esse ângulo, pode-se considerar que os dois fenômenos midiáticos trabalham suas configurações discursivas em pontos limítrofes entre ficção e 45

Bakhtin (1997a, p. 281) entende os gêneros do discurso como pertencentes a duas categorias: os gêneros primários, definidos pelos tipos de enunciados simples, provenientes da comunicação verbal espontânea, como a conversa, a discussão, a réplica do diálogo cotidiano; e os gêneros secundários, que englobam enunciados relativamente mais evoluídos, oriundos da comunicação cultural coletiva, como o romance, o teatro, o discurso científico. Os gêneros secundários simulariam o dialogismo da comunicação verbal dos gêneros primários em seus enunciados concretos. Para o pensador, a variedade de gêneros discursivos pressupõe também a variedade de intenções daquele que escreve ou fala. 46 Consolidado no Brasil no formato das telenovelas, esse gênero tem suas origens vinculadas aos teatros populares e o romance folhetim na França do século XVIII. Para Pina Coco, o melodrama se caracteriza pela criação de um universo dualista, no qual “a felicidade é produto da virtude e da ajuda da Providência, e o mal, agente exterior, que, embora responsável por ações abomináveis, termina reconhecido e punido” (in Olinto e Schollhammer, 2002, p. 153).

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realidade, podendo ser considerados fenômenos distintos com elementos em comum: ambos compartilham uma inclinação à descrição dos fatos através de uma narrativa complexa, em que as fronteiras entre jornalismo e elaboração estilística são embaralhadas, mas que se apresentam como variantes dos modos representacionais exigidos pela tradição da estética realista. Para Barthes (1971), a narrativa começa com a própria história da humanidade; compreendê-la, portanto, é não somente seguir o curso da história, mas reconhecer nela estágios e hierarquias de instâncias, contextualizadas pelos períodos sociais a que pertencem. Ao optar por uma narrativa com o uso de recursos literários e novas técnicas de captação e representação do real, o New Journalism não apenas escolhe romper com o texto padronizado e objetivo, geralmente encontrado no jornalismo – Tom Wolfe criticava o tipo de narração dos jornalistas de sua época, que se posicionavam no texto como “um espírito fleumático, uma personalidade apagada, sem haver forma de se livrar dessa rotina desbotada”47 (Wolfe, 1976, p. 30) –, mas também esboça reações ao contexto histórico de contracultura em que se insere. Seu entendimento, portanto, está vinculado à compreensão do momento social no qual teve seu início. Os reality shows, por outro lado, como produtos essencialmente contemporâneos, descendem de outro momento em que os veículos de comunicação buscam formar uma programação “voltada principalmente ao entretenimento, à emoção, ao gosto popular (...), numa mistura de jornalismo e entretenimento, muitas vezes em forma de sensacionalismo” (Tondato e Lopes, 2004, p. 3). Para essas autoras, esse processo teria começado no Brasil na década de 90, com a estabilização da economia brasileira (provocando um aumento do consumo de bens duráveis e, consequentemente, dos números de televisores nas casas), com o surgimento das TVs por assinatura e com a ascensão do canal aberto SBT, o que teria forçado as emissoras (inclusive a Rede Globo, então soberana absoluta) a atender às classes sociais menos favorecidas, antes consideradas públicos secundários (id). Acredita-se, portanto, que as diferentes formas de representação oriundas da tradição estética realista sejam um ponto crucial para a compreensão das

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Tradução pessoal do texto em espanhol.

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experiências do New Journalism e dos reality shows, já que a essência destes fenômenos concentra-se fundamentalmente nas novas formas introduzidas para reconstituir e apresentar o real. A análise desses modos de apresentação do real em discursos paradigmáticos da história humana, dessa forma, remete a estudos fundantes já bastante divulgados e conhecidos. Em Mimesis, clássico trabalho sobre teoria literária e estudos de narrativa, Auerbach (1976/ 1946) percorre monumentos da literatura mundial – de Homero, Dante e os textos bíblicos, a Montaigne, Cervantes, Woolf, Goethe, Stendhal e outros – para tratar das marcas de realismo encontradas nesses textos. No conhecido primeiro capítulo, A cicatriz de Ulisses, Auerbach contrasta as narrativas literárias da Bíblia e da Odisséia de Homero para descrever como o funcionamento de diversas formas de representar a realidade é determinado pelos contextos histórico, ideológico, cultural, religioso ou filosófico das obras. Na Odisséia, tanto as personagens quanto os processos físicos e psicológicos são planos, apresentados de forma visível, clara, sem espaço para reservas de informações ou elementos de tensão, refletindo assim o ideal grego de narrativa. Já na Bíblia, mesmo as personagens mais simples mostram-se psicologicamente complexas, embora apresentadas com grande economia dos detalhes – condicionando, dessa forma, o entendimento do texto ao pensamento cristão da Antigüidade. Nas palavras de Auerbach: O mais importante é a multiplicidade de camadas dentro de cada homem; isto é dificilmente encontrável em Homero, quando muito na forma da dúvida consciente entre dois possíveis modos de agir; em tudo o mais, a multiplicidade da vida psíquica mostra-se nele só na sucessão, no revezamento das paixões; enquanto que os autores judeus conseguem exprimir as camadas simultaneamente sobrepostas de consciência e o conflito entre as mesmas (1976/ 1946, p. 10). Mais do que contrastar dois textos épicos indiscutivelmente fundamentais na tradição cultural da humanidade, a análise de Auerbach parece-nos apontar pontos essenciais do estilo realista: a constatação de que, desde os seus primórdios, o realismo foi visto como a forma artística que retrata a vida da classe

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popular, a voz de um humanismo populista, anti-fascista, a representar as pessoas comuns e reais na literatura, muito antes de elas terem qualquer expressão no campo político (Eagleton, 2003, p. 8). Analisando Mimesis, Eagleton constata que “o realismo (para Auerbach) é a forma artística que mostra a vida das pessoas comuns com seriedade, em contraste com uma velha arte estática, hierárquica, sem contextualização histórica e socialmente excludente”48 (id, p. 6). Fundamentando sua análise da obra de Auerbach – um judeu refugiado dos nazistas em Istambul, que teria escrito Mimesis de acordo com crenças políticas e religiosas – Eagleton constata que, sob os modos de representação do realismo, estaria subjacente a influência do Cristianismo. Seria no próprio relato cristão, no qual Deus reencarna como pobre e indigente, que essa tendência realista teria se estabelecido, assim como a temática sempre presente das reversões carnavalescas entre alto e baixo, ricos e pobres, teria seu surgimento vinculado às personagens históricas da Bíblia. As raízes do realismo, portanto, estariam associadas à idéia de salvação cristã, aos dogmas ligados ao cotidiano como amar o próximo e ajudar os miseráveis – sob a tendência de retratar as pessoas comuns com dignidade, estaria escondida a tentativa da própria redenção. “O que aparece através do realismo é a Revelação”49, argumenta Eagleton (2003, p. 7). Ao confrontar os dois textos, Auerbach conclui que os poemas homéricos desenvolvem a idéia de que a vida só ocorre na classe senhorial a qual, por vezes, chega a esquecer seu caráter de classe para naturalizar-se como único modo de existência possível, representando a classe popular, nas raras vezes em que é retratada, através de uma perspectiva cômica. Por outro lado, a riqueza psicológica dos textos bíblicos e, consequentemente, seu caráter realista, surgem 48

Tradução pessoal do artigo original. Tradução pessoal do artigo original. O conceito de Revelação a que Eagleton se refere trata do dogma cristão pelo qual Deus faz os homens conhecerem seus mistérios e vontades. Na revelação cristã é fundamental o conceito de uma queda original do homem no começo da sua história (com o pecado original praticado por Adão e Eva, confirmando a falibilidade da natureza humana), e também o conceito de um Messias, um reparador, um redentor. A Revelação viria quando Deus assume natureza humana na figura de Cristo, para reparar o pecado original e, por conseguinte, suas conseqüências. O que o trocadilho de Eagleton parece sugerir é o próprio conceito de semiose para Peirce, cujo objetivo final é sempre o de revelar o seu objeto. Seguindo a idéia de Auerbach, o objetivo do novo modo de realismo inaugurado no relato bíblico seria o de revelar gradualmente o seu objeto referente – no caso em questão, classes sociais retratadas de forma mais fidedigna, menos deturpada ou desvinculada de interesses elitistas. 49

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ao retratar a vida do povo, pois “já desde o princípio, nos relatos do Velho Testamento, o sublime, trágico e problemático se formam justamente no caseiro e quotidiano” (Auerbach, 1976/ 1946, p. 19). Assim o autor comprova que, enquanto a cultura antiga impossibilitava o tratamento sério às pessoas comuns, o realismo moderno absorve as forças históricas (Eagleton, 2003, p. 7) para trazer à tona a vida da classe popular. Sendo assim, o realismo teria, desde suas origens, um caráter intrinsecamente político e valorativo, com potencialidades e intuitos de transformação social50. A comparação das duas narrativas sugere uma analogia entre as representações da realidade utilizadas pelo New Journalism e pelos reality shows. Trata-se do confronto de duas configurações midiáticas oriundas de diferentes tempos históricos, que aproveitam os ideais de representação realista através de formas peculiares: na primeira situação, um caso extremo de mídia impressa, proveniente de um período em que emergem movimentos de contracultura que – rompendo com os valores vigentes da época, que aprovavam um modelo de vida homologado e categorizado como American Way of Life – tomam voz nos novos relatos que surgem, retratando novos grupos oriundos dos movimentos sociais a obter espaço (tais como a revolução sexual, os Panteras Negras, o movimento feminista da década de 70 e o movimento ambientalista) normalmente não mostrados pelo jornalismo convencional, preso a outros fatores de noticiabilidade – ou, num movimento contrário, empenhado em revelar incongruências das classes superiores, das elites. Na segunda situação, um novo formato de mídia televisiva, produto da contemporaneidade, que reflete o valor do público a todo custo e promove uma celebração da exposição do privado (pois o próprio caso de Linha Direta comprova que não basta retratar o crime, de interesse legitimamente social, mas é necessário também apresentar com detalhes o contexto circundante a esse crime, ou seja, evidenciar o cenário humano sobre o qual ocorreu o processo criminal), buscando construir um retrato fiel de uma realidade normalmente

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Essa visão política do realismo como uma luta histórica em prol de um humanismo populista é um posicionamento observado por Eagleton tanto nas análises de Erich Auerbach quanto de Mikhail Bakhtin.

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desconsiderada pela mídia, numa tentativa de apresentar a natureza humana pura, sem os filtros consolidados pelos padrões estéticos da televisão vigente. Ambas

as

experiências

discursivas,

portanto,

apontam

a

um

aproveitamento da idéia de dignidade popular apresentada no estudo de Auerbach, mas sob perspectivas e contextos diferentes. O New Journalism tende a um retrato de personagens de diversas origens sociais num enfoque mutuamente trabalhado entre o conteúdo (uma busca por modos de representação dos fatos e das personagens percebidas como representativas de grupos minoritários por alguma razão considerados interessantes para este retrato) e a forma (uma escolha pela marcação dos estilos pessoais absolutamente distintos e reconhecíveis, produzindo relatos mais ou menos marcados por filtros morais e estilos literários – como ocorre nas obras de Gay Talese e Tom Wolfe, visivelmente diferentes nesses quesitos – mas sempre construídos com perspectivas críticas). De outro lado, os reality shows são produtos da mídia televisiva cuja essência pressupõe a dramatização por vezes grotesca51 da história de pessoas anônimas. A preocupação estilística nem sempre predomina. Sodré (2002) argumenta que, ao apresentar essa classe popular, o Programa do Ratinho – um dos primeiros em formato reality show bem sucedidos no Brasil – não recupera, porém, “qualquer traço de contato com o simbolismo da cultura rústico-plebéia, substituído pela expressão pura e simples da miséria existencial da periferia” (id, p. 150). Esse viés caricato, porém, não é observado na reconstituição de Linha Direta: sua narrativa baseia-se mais nos recursos de estereotipia do que numa representação cômica, conforme se espera demonstrar em seguida. Ao respaldar sua apresentação de casos envolvendo pessoas simples – algumas vezes de forma a menosprezá-las e manipulá-las, ou mesmo resumi-las a tipos marcados, o que se opõe à idéia de Auerbach de dignidade do povo – num efeito de mimese, de reflexão dos contextos sócio-econômicos em que elas se inserem, os reality shows conseguem

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Emprega-se aqui o conceito de grotesco conforme utilizado por Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002), que remete a modalidades de escatologia, à teratologia, aos excessos corporais, às atitudes ridículas e toda manifestação da paródia em que se produza uma tensão risível, por efeito de um rebaixamento de valores.

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naturalizar esse tipo de representação como convincente e tornam seu gênero válido de acordo com os padrões consolidados de sucesso televisivo. A nosso ver, o entendimento dos modos de aproveitamento dos preceitos realistas nas duas narrativas em questão deve passar por uma análise de sua natureza tecnológica. Pretende-se, assim, recolher pistas sobre de que forma seu funcionamento é impreterivelmente delimitado pelas fronteiras tecnológicas que os determinam. Acredita-se que o reconhecimento desse aspecto tornará possível entender de que maneira seu pertencimento a determinadas etapas tecnológicas exerce influência nas suas formas de representação da realidade – proporcionando uma melhor compreensão da natureza dos dois modelos discursivos em foco.

3.1. O determinismo tecnológico – uma forma de entender a narrativa midiática Como tecnologia midiática, a televisão configura-se como oriunda da última etapa evolutiva conceituada por McLuhan (2002/ 1964) na história dos meios de comunicação, classificação determinada de acordo com o surgimento de novas mídias que reconfiguram o processo comunicativo e revolucionam toda a esfera cultural e social. Para o teórico, esta linha evolutiva englobaria as fases de cultura oral, cultura letrada manuscrita, a impressão (a chamada Galáxia de Gutenberg) e, finalmente, a era eletrônica. Enquanto o surgimento da escrita encerraria a fase de cultura oral, a imprensa (entendida como o primeiro marco de um produto midiático de massa) e, posteriormente, a mídia eletrônica, teriam revolucionado profundamente as esferas cultural, social e econômica. Esse sistema determinado por McLuhan, porém, não deveria ser entendido como seqüencial, substitutivo – as fases não simplesmente superam umas às outras, mas coexistem e se atualizam numa relação de reciprocidade. Assim, o aparecimento da impressão, por exemplo, não significou o desaparecimento de todas as culturas orais, mas uma mudança a uma consciência escrita, que possibilitaria ao ser humano atingir o ápice de suas potencialidades, como o desenvolvimento da ciência e do entendimento da própria linguagem (Ong, 1998, p. 23).

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Nesse sentido, a atual era eletrônica, segundo McLuhan, recuperaria propriedades midiáticas vinculadas à palavra falada e cantada – como as capacidades corporais de ver, ouvir e sentir e a experimentação coletiva de mensagens –, originadas nas culturas orais e manuscritas e que teriam sido perdidas com a disseminação da imprensa. Para o autor, a cultura tipográfica teria relegado a segundo plano a multiplicidade de experiências sensoriais a partir da homogeneização visual da percepção, sobrepondo-se aos demais sentidos; segundo sua argumentação de que “a palavra falada envolve todos os sentidos intensamente (...). Quando se observa a ausência da pesada pressão da cultura escrita numa cultura, ocorre uma outra forma de envolvimento sensório e de apreciação cultural” (McLuhan, 2002/ 1964, p. 95-96). Assim, as transformações tecnológicas teriam o poder de construir “novos ambientes para sensibilidades, sentimentos e corpos, alterando, ao mesmo tempo, o conjunto de nossos padrões perceptivos” (Olinto in Olinto e Schollhammer, 2002, p. 65). A oralidade, ao contrário da cultura escrita, remeteria ao caráter coletivo e unificado dos fenômenos comunicativos, em oposição ao isolamento do indivíduo em relação ao grupo promovido pela leitura. Essa idéia mcluhanista é recuperada por Ong, que vê no surgimento da cultura escrita o apagamento de possibilidades de experimentação coletiva de acontecimentos e o recondicionamento da consciência humana. A oralidade primária alimenta as estruturas de personalidade que de certo modo são comunais e exteriorizadas, e menos introspectivas do que as comuns entre os pertencentes à cultura escrita. A comunicação oral agrupa as pessoas. Escrever e ler constituem atividades solitárias que atraem a psique para dentro de si mesma (Ong, 1998, p. 82). Para McLuhan (2002/ 1964), enquanto a leitura circunscreveria seus receptores à esfera do privado, as novas mídias eletrônicas promoveriam o retorno dos modos coletivos de experimentação do mundo. Assim, as mudanças tecnológicas do século XX gerariam novos ambientes para sensibilidades e retribalizações dos indivíduos, levando o teórico a perpetuar sua famosa

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formulação o meio é a mensagem – as mídias, além de representar realidades, determinam novas formas de percepção, de participação e de ações humanas, interferindo nas sociedades tanto pelos tipos de meios de comunicação que inserem, quanto pelo conteúdo, em si, do que comunicam. Toda mídia inaugurada traz consigo, além de novas reconfigurações tecnológicas, novos modos de funcionamento que determinam mudanças no contexto social em que é introduzida. A noção da descendência televisiva das culturais orais é corroborada por Machado, que contextualiza essa influência em determinados programas que recuperariam o caráter oral em linguagens inovadoras. Assim, afirma que “o retorno à oralidade – ou, mais exatamente, o advento de uma segunda fase da oralidade, mediada por tecnologias de gravação e transmissão – (...) só rendeu resultados reais em algumas propostas mais ousadas de programas, em geral praticadas por televisões que fogem do esquema das grandes redes nacionais ou internacionais” (Machado, 2000, p. 74). Para o autor, os programas televisivos que recuperam de forma criativa os preceitos da cultura oral também teriam descendência do discurso socrático que, utilizando várias técnicas como a síncrise (confrontação entre dois ou mais pontos de vista sobre o mesmo assunto) e a anácrise (método para provocar a palavra do interlocutor, levando-o a dar sua opinião claramente), procuraria relevar “aquele que talvez seja o maior drama da humanidade: a procura e a experimentação da verdade” (id). A idéia de que as formas midiáticas eletrônicas atuais teriam descendência direta das formas de expressão orais primárias parece encontrar fundamentação na análise que Ong (1998) constrói em torno da cultura oral, a qual, conclui, funcionaria por fórmulas e expressões prontas, que resolveriam o problema da retenção e da recuperação do pensamento cuidadosamente articulado e não documentado. Nessas culturas, “o pensamento deve surgir em padrões fortemente rítmicos, equilibrados (...) em conjuntos temáticos padronizados, em provérbios que são constantemente ouvidos por todos, de forma a vir prontamente ao espírito, e que são eles próprios modelados para a retenção e a rápida recordação” (id, p. 45). Preferia-se, então, expressões epitéticas e orações formulares, que deveriam permanecer intactas: a bela princesa, ao invés da princesa; o soldado valente, ao

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invés de apenas o soldado. Mesmo quando subvertidas, tais expressões formavam novos epítetos com significações fixas. Da mesma maneira, os formatos midiáticos da era eletrônica – em especial a televisão – recuperariam posteriormente essa norma de existência por formas padronizadas, pelo uso de expressões fixas e fórmulas culturalmente assimiladas como os gêneros, que nada mais são que modelos rígidos, por vezes estereotipados, que determinam certos aspectos da recepção. Os clichés e estereótipos52 são recursos que privilegiam as representações cristalizadas, os epítetos pré-fabricados, as associações automáticas e idéias adotadas sem pensar, sempre postas em oposição à questão da originalidade e das idéias autorais. Tratam-se de elementos intrinsecamente relacionados aos modos de representar a realidade em determinadas épocas, refletindo opiniões e valores sociais de momentos específicos da história. Sendo assim, os clichés e estereótipos possuem um papel fundamental no estudo da narrativa, pois operam como mediadores entre os indivíduos e a sociedade, indicando filtros do social no texto literário concreto (Amossy e Herschberg Pierrot, 2001, p. 72).

3.2. Estereótipos e clichés – a função determinante dos configuradores do real na representação realista Utilizados tanto como mecanismos de autoridade – já que promulgam hierarquias de superioridade e inferioridade entre as imagens e figuras difundidas, funcionando como meio de homologar a supremacia de grupos dominantes –, quanto como estratégias para desmitificar valores de uma sociedade (Amossy e Herschberg Pierrot, 2001, p. 72), os clichés e estereótipos realizam função central 52

Nessa pesquisa, recupera-se as categorizações delimitadas por Amossy e Herschberg Pierrot (2001): entende-se como cliché como uma expressão imediatamente reconhecível, cristalizada e imutável, associado às figuras de estilo desgastadas, como os provérbios e frases feitas. O estereótipo designa um esquema coletivo fixado, a uma parte da significação, que corresponde à idéia comum e simplificada que é associada ao exemplar típico de alguma espécie, de forma a garantir um bom uso da comunicação em uma sociedade; sendo assim, o estereótipo nem sempre é facilmente detectável na superfície do texto, podendo aparecer sob variações determinadas culturalmente.

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na estética realista: ao se referirem a normas e costumes estabelecidos, são (ou podem ser) operados de forma a revelar valores e marcas históricas em um sistema sociocultural supostamente compartilhado com o leitor, funcionando como rastros do social entre o real e o discurso humano, literário ou não (id). Sendo assim, os clichés e estereótipos são utilizados para construir mundos e personagens verossímeis, ao mesmo tempo em que podem ser operados de forma a expor normas culturais implicitamente conhecidas pelo leitor. A linguagem não existe sem essas figuras, e é apenas através do conhecimento delas que se pode subvertê-las. Tendo seu surgimento e suas configurações funcionais ligados intimamente aos modos de expressão das culturas orais, esses elementos também têm papel fundamental na linguagem televisiva. Ao analisar de que modo seu aproveitamento se dá na produção efetiva dentro dos diferentes tipos de linguagem, pode-se encontrar pistas sobre a maneira pela qual os procedimentos da representação realista são revelados através das referências culturais a que essas expressões socialmente assimiladas reportam. Sendo os clichés e estereótipos fundamentais como recursos de expressão realista, coloca-se novamente a oposição entre paraliteratura53 e literatura vanguardista através dos modos de aproveitamento das formas estereotipadas. Argumenta-se que, enquanto o leitor médio gosta de personagens estereotipados e lugares comuns facilmente reconhecíveis e assimiláveis, por suprirem sua expectativa como receptor, os textos de vanguarda, por outro lado, tendem à inovação por promoverem rupturas muitas vezes radicais com as normas estabelecidas, ou então por exporem essas normas, que estão muitas vezes subentendidas (Amossy e Herschberg Pierrot, 2001, p. 84). Tomando tal premissa como válida, questiona-se: como o programa Linha Direta se apropria de um modo de representação mais relacionado à idéia da paraliteratura, baseado numa

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Termo que designa o conjunto de textos que não se enquadra no consenso literário convencional, como as histórias em quadrinhos, as novelas, as revistas sensacionalistas, etc.; na perspectiva de Amossy e Herschberg Pierrot (2001), refere-se à literatura de massa que faz uso de formas estereotipadas, de modo a atingir um grande público através de um produto acessível.

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narrativa estereotipada, previsível, e de que forma o New Journalism busca romper com os lugares comuns para gerar um texto inovador? Desde as primeiras análises, o cliché foi associado à população simples e aos escritores sem competência, que recorriam às fórmulas pseudo-cultas. Apenas nos anos 60, com o desenvolvimento da lingüística (em especial, com a linha estruturalista), os clichés começaram a ser estudados independentemente de juízos de valor, tendo seu conceito evoluído e abordado não mais apenas em um contexto pejorativo. Para Riffaterre (o primeiro estruturalista a se interessar pelo cliché como objeto de estudo), pelo contrário, seriam os próprios valores e reações dos leitores que situariam os efeitos estéticos do cliché, que remetem assim a idéias de trivial, da falsa elegância, do gasto, do fossilizado e do déjá vu (apud Amossy e Herschberg Pierrot, 2001, p. 61). Segundo esse autor, o cliché teria dois usos principais: como elemento constitutivo da linguagem de um escritor ou de um gênero (como os clichés românticos), e no que se chamou de função mimética, ou seja, o emprego do cliché de forma a representar estilos e operar como marcas irônicas ou paródicas do autor do texto. Nota-se, pois, que o aproveitamento dos clichés e estereótipos nas experiências do New Journalism e de Linha Direta configuram-se segundo esses pólos opostos definidos por Riffaterre. O que se observa, no reality show em questão, é um uso de estereótipos já consolidados, de forma a reiterá-los, construindo personagens sobre as bases de gêneros já estabelecidos. Os papéis apresentados na história correspondem a padrões conhecidos, como a vítima indefesa e moralmente exemplar, o criminoso inescrupuloso, o político corrupto ou o jovem ambicioso; trata-se, conforme a primeira categoria designada por Riffaterre, de um uso de gênero, feito no intento de gerar um produto facilmente reconhecível e assimilável por todos. Um uso que é observado, por exemplo, numa história veiculada na edição de 2 de outubro de 2003, em que se conta o assassinato de Rodolfo, arquiteto de 26 anos que foi morto a tiros em uma festa à fantasia por Joubert, de 20 anos. Joubert é retratado como jovem violento, impune, com intenções de personificar o poder local de uma família da qual faz parte ilegitimamente (Joubert é bastardo, filho de um homem cuja família é mostrada como poderosa em uma pequena cidade do interior do Rio de Janeiro).

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Sua representação pelo ator escolhido aproxima-se à idéia comum de um cowboy, ou seja, remete à idéia de um jovem imprudente, ligado ao meio rural (denotando assim sua personalidade interiorana, caipira); os aspectos visuais concretizam materialmente essa mesma idéia e Joubert é mostrado vestindo cinto com fivela em lata, casaco de couro cru, com um revólver sempre engatilhado e em punho. Antes de se tratar de uma representação contestadora, recriadora de idéias cristalizadas, o que se observa é um aproveitamento mimético, de modo a reiterar tais concepções e tornar mais fácil o reconhecimento do caráter da personagem. O aproveitamento de estereótipos feito pelo New Journalism, de outra forma, tem viés satírico, conforme pode ser notado no trecho de abertura de uma crônica de Tom Wolfe: Ela está acenando! Com aqueles olhos negros profundos e cheios de classe! Aqui em um jantar no apartamento de Alfred Barr, numa sala cheia de homens que usam camisas lavadas a mão por 90 cents a camiseta na Forziati na East 74th Street e mulheres que começam a se aprontar para o jantar providenciando, antes de mais nada, um retoque nos cabelos às quatro da tarde no Kenneth na East 54th Street – aqui nesta sala ela acena. Liza, Liza Parkinson, Sra. Bliss Parkinson, presidente do Museu de Arte Moderna, filha de Cornelius Bliss, sobrinha de Lillie P. Bliss (...) – Liza, a própria corporificação de tudo o que é mais social, chique, da estirpe protestante e papel de carta em altorelevo com marca-d’água em toda essa badalação social do mundo da arte54 (Wolfe, 1989, p. 21). Aqui, apresenta-se um exemplo representativo do uso das formas estereotipadas numa obra de New Journalism, numa aplicação declaradamente irônica, debochada, e incontestavelmente diferente do aproveitamento dos clichés e estereótipos em Linha Direta. Tom Wolfe emprega uma própria norma de designação de status de um grupo social (a apresentação da personagem através de sua família), como se ocupasse a voz de um membro da classe retratada, para expor um verdadeiro exemplar (Liza Parkinson, a “própria corporificação de tudo o que é mais social”, quase um sinônimo de estereótipo) de uma classe a emergir, 54

Grifos nossos.

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uma nova “aristocracia” ligada à arte e aos valores estéticos do “chique” e do “social”, representada em pormenores simbólicos que remetem a todo o contexto em que essa elite se insere (“papel de carta em alto relevo com marca-d’água”). Trata-se, indubitavelmente, de uma utilização crítica, perceptiva de uma sociedade, trabalhada com efeitos de comicidade e pretensões de revelação, desmascaramento de valores consolidados. Seria possível supor que se observa no relato de Wolfe a própria construção de novos estereótipos, ainda não existentes ou não explícitos, fixando novos padrões sociais e estilos ainda não documentados. Aponta-se aqui, portanto, dois aproveitamentos polarizados do clichés e estereótipos como recursos da estética realista. Segundo a perspectiva trazida por Eagleton (2003), o realismo não pode ser analisado de forma isolada. Um texto não é realista por si só; sua relação com a realidade depende diretamente da época e do contexto social em que se insere e dos modos de representação reconhecidos como fiéis ao real pela maior parte de seu público leitor. Assim, o realismo artístico não significa a representação do mundo verdadeiro, mas sua representação de acordo com os modos convencionais da vida real de representar o mundo (id, p. 2). Entendendo os estereótipos e clichés como as idéias consolidadas, pré-existentes em uma sociedade (portanto, não necessariamente fiéis à verdade), mas vitais na relação entre os espectadores e os produtos culturais – pois não há estereótipo sem atividade de leitura, e não há atividade de leitura possível sem estereótipos (Amossy e Herschberg Pierrot, 2001, p. 79) –, seria apenas através desses elementos que se tornaria possível a concretização da estética realista? Ligados à produção massiva e à grande quantidade de espectadores, os clichés são empregados na produção midiática para delimitar formas de reconhecimento de suas mensagens. Na experiência dos reality shows, os clichés costumam ser explorados temática ou ostensivamente, tanto no texto visual quanto verbal. O programa da Rede Globo Linha Direta traz exemplos do aproveitamento dos clichés como estratégia constitutiva da linguagem televisiva. Na edição do programa veiculada no dia 18 de setembro de 2003, essa característica se torna evidente em vários momentos. A linguagem verbal, simples

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e direta, aproveita lugares comuns já desgastados em textos literários, de entendimento previsível. Ao narrar a morte de uma moça em uma clínica de aborto clandestina, ouve-se o locutor anunciar que “o taxista é a última pessoa a ver Diones com vida”, ou que “Maria Cláudia trabalhava como empregada doméstica e estava decidida a mudar de vida”. Em outro instante, as mortes de dois irmãos são vinculadas ao fato de ser, na ocasião, Sexta-feira 13 – crendice mundialmente difundida, que associa maus presságios à data em questão por remeter ao dia em que Cristo morreu e ao número de participantes de sua última ceia. Ouve-se novamente idéias comuns, frases feitas adotadas sem reflexão, facilmente reconhecíveis e já consagradas: “é o último dia na vida deles; Elias e Luís Henrique não vão chegar em casa”. Da mesma forma, é clara a relação com a linguagem empregada na cultura oral. Conforme nos mostra Ong (1998, p. 47), os métodos orais de composição de texto privilegiavam formulações simples, econômicas, com maior número de períodos aditivos que subordinativos, fazendo uso de um alto número de conectivos, para possibilitar a assimilação auditiva. O período composto e a subordinação, por outro lado, caracterizam o pensamento dentro da consciência escrita. Dentro desse modelo, ouve-se, na mesma edição de Linha Direta, a seguinte enunciação, referente a um aborto mal sucedido: “A operação dá errado. Rosineide não resiste e morre. Guilherme não tem coragem de encarar os pais de Rosineide e manda o irmão dele até a casa da namorada”. Manifesta-se aqui uma preferência por uma linguagem simples e curta, lacônica, quase telegráfica – e, certamente, mais acessível que a linguagem com pretensões literárias55. A reiteração de termos é igualmente característica exigida pelo discurso oral, que “depende da redundância e da repetição para manter tanto o falante quanto o ouvinte na pista certa” (Ong, 1998, p. 51). A própria condição tecnológica do meio televisivo – sua emissão para um público vasto, sem possibilidades de

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Aborda-se aqui uma idéia comum, não necessariamente correta, de literariedade vinculada à linguagem rebuscada, primorosa, altamente valorizada. É conveniente lembrar que a grande literatura também faz uso da linguagem direta, simples e lacônica. Um exemplo desse tipo de literatura construída com linguagem econômica e quase telegráfica (como a do jornalismo) é o conto Os Assassinos (The Killers), de Ernest Hemingway.

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retorno ou de novas assistências, como seria o caso da leitura – fazem que ele recupere a característica da redundância da expressão na cultura oral. A linguagem visual também traz pistas de como associações consagradas – as idées reçues que Flaubert priorizou em suas análises (Amossy e Herschberg Pierrot, 2001, p. 25) – são aproveitadas na produção televisiva. O que se nota, assim, é uma constante tentativa de mimetizar a vida real em elementos que encontram referência no público ao qual se destina. Em determinado instante, foca-se apenas um dos olhos da vítima (em nenhum momento se revela sua identidade nem se abre o ângulo da câmera para todo o seu rosto) que faz a denúncia. Seu olho é contornado por maquiagem, de cor rosa esfuziante, comumente associada ao mau gosto e às mulheres de classes com baixa renda. Esse tom popular é refletido em toda a simulação, e nos casos que são mostrados em seguida. Assim, personagens negras são retratados em churrascos nos quais se ouve pagode (ao invés de estilos musicais mais refinados) e se bebe cerveja56 (ao invés de bebidas mais caras), e fazem referência a bailes de funk e forró – elementos vinculados, na cultura nacional, à representação construída do brasileiro típico, de baixa renda. Esse recorte estereotipado das personagens é analisado por Andacht na experiência do reality show Big Brother Brasil, no que chamou de “efeito Arcimboldo”57 (2004a), ou seja, a caracterização do perfil do participante do programa através de uma seleção ou montagem grotesca de seus gestos, de forma a associar a personagem a tipos comuns e reconhecíveis pelo público: sua estereotipação, cuja intenção é antes generalizar do que particularizar. Para Lippman, os estereótipos são imagens culturais preexistentes que filtram o real (apud Amossy e Herschberg Pierrot, 2001). Esses elementos, assim, funcionam como uma espécie de metonímia visual (o uso de um elemento para significar um contexto, como os recortes da cena de Linha Direta exemplificados 56

Consumida em larga escala no país, a cerveja é também associada na mídia a grupos jovens. No caso exibido em Linha Direta, os demais elementos com os quais é relacionada na cena em questão (o churrasco, o baile funk, o forró) contextualizam a cerveja como signo da bebida barata, vinculada ao indivíduo de baixa renda. 57 Numa referência ao pintor italiano Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), famoso pelos retratos que fazia de figuras humanas usando animais, flores, frutas e outros objetos como elementos integrantes de sua pintura.

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acima que remetem às classes sociais das pessoas enfocadas), facilmente reconhecível, que evidencia o contexto social a que a dramatização se refere. Entendendo-se aqui os estereótipos como a significação comum de uma palavra dentro de um determinado contexto cultural, seu conceito insinua uma situação de parentesco com o funcionamento do símbolo peirceano, classe sígnica que opera como lei, entendimento comum a todos os membros de uma sociedade através da constituição da semiose completa ou genuína, ou seja, determinando uma camada interpretativa entre o mundo e o que é percebido. Embora nem todo símbolo seja um estereótipo, torna-se claro aqui que todo estereótipo tem natureza simbólica. Em Linha Direta Justiça, versão do programa veiculada mensalmente e que se apresenta como uma “série jornalística sobre os grandes crimes que chocaram o país”, nota-se um trabalho mais minucioso com os elementos visuais e verbais do texto. Sugere-se, dessa forma, que casos famosos são dignos de uma ênfase maior na produção que os desconhecidos. São utilizados recursos diferenciados, mais explicitamente vinculados à estrutura do romance policial. Os componentes fundamentais do programa também são distintos: desde a locução (realizada pela atriz Nina de Pádua) e os atores famosos convidados para encenar a história até as testemunhas consultadas, que se tratam aqui de personalidades nacionalmente conhecidas pelos crimes em que estão envolvidos. Na edição apresentada no dia 25 de setembro de 2003, já referida no Capítulo 2, foi veiculada a história de Hosmany Ramos, cirurgião plástico acusado de vários crimes na década de 80 e condenado a 47 anos de prisão. A reconstituição é traçada através de um elemento de intertextualidade com o enredo de O médico e o monstro (Dr. Jekyll and Mr. Hyde, 1931), filme baseado na clássica obra do inglês Robert Louis Stevenson. Cenas do filme são utilizadas como entretítulos (associadas a frases com O médico brilhante, O sucesso e a fama, O médico e o monstro e O último crime) para vincular Hosmany Ramos à idéia de indivíduo de dupla personalidade, de caráter duvidoso. Essa intertextualidade insinuada entre o episódio retratado e um enredo mundialmente reconhecido concretiza a intenção da instância produtiva através da recorrência a um sistema de lugares comuns e imagens estereotipadas de conhecimento geral (de forma que podem ser considerados símbolos) que

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produzem uma associação familiar ao público espectador de forma a tornar o texto coerente. Esse recurso leva a recepção a realizar um caminho oposto a uma leitura puramente denotativa. Em outros termos, os clichés garantem a coesão de um texto poético por referência a modelos de derivação, ou seja, imagens familiares que tendem a neutralizar contradições e fazer termos tornarem-se equivalentes (Amossy e Herschberg Pierrot, 2001, p. 65). As figuras de Dr. Jekyll e Mr. Hyde são aqui utilizadas como símbolo das patologias mentais recorrentes a personalidades múltiplas, tornando plausível sua conexão com o caráter dúbio de Hosmany Ramos. Para Amossy e Herschberg Pierrot (id), o cliché é um elemento legítimo da poética do texto literário e fundamenta a função metafórica. De maneira semelhante aos outros programas, na narrativa do Linha Direta Justiça sobre Hosmany Ramos são empregados uma série de signos que intentam mimetizar o contexto social em que o cirurgião se encontrava. Assim, Hosmany é apresentado dirigindo uma Mercedes branca (que simboliza o status que pretende atingir), freqüentando danceterias no qual moças recém saídas do banheiro esfregam seus narizes (em uma sutil referência a cocaína, droga vinculada aos yuppies, jovens profissionais bem sucedidos dos anos 80, época retratada na cena em questão). A reconstituição da história do cirurgião não abre espaços para outras interpretações além de um convencimento sobre a personalidade má do criminoso: Hosmany é apresentado desde a infância como uma criança desordeira, indomável, até a idade adulta, quando é apresentado como estudante sem escrúpulos, interessado apenas em sua ascensão social. É interessante observar que, por vezes, a construção de Linha Direta Justiça assemelha-se de forma clara ao estilo do New Journalism: em determinada cena, após um assalto, Hosmany depara-se com um espelho e tem um déjá vu, lembrando de seus tempos de estudante quando, também à frente de um espelho, sussurrou “eu quero ser o melhor”. Assiste-se aqui à construção televisiva do monólogo interior, recurso amplamente usado pelos Novos Jornalistas em seus relatos. No contexto de Linha Direta Justiça, trata-se de um elemento que, acima de tudo, é utilizado para corroborar a idéia que se pretende construir – no caso, o caráter vil de Hosmany Ramos.

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Não se pretende sugerir, porém, que essa descendência direta do pensamento e da expressão fundados na oralidade limite necessariamente o espaço para a originalidade no meio televisivo. Para Ong (1998), a originalidade narrativa das culturas orais e, consequentemente, da linguagem televisiva, não reside na possibilidade de construção de novas histórias, mas nos modos de criar situações singulares dentro dos mesmos formatos e de administrar seu tipo de interação especial com a audiência, pois “nas culturas orais o público deve ser levado a reagir, muitas vezes intensamente” (id, p. 53). Se na experiência das culturas orais essa reação era presencial e imediata, ela continua a existir (e, poderia se dizer, continua quase tão instantânea) na atual fase midiática através dos medidores de audiência. O julgamento de originalidade e de possibilidades de inovação, portanto, demanda de outros parâmetros em relação aos utilizados pela cultura escrita e tipográfica. Linha Direta, inserindo-se nessa perspectiva, remonta gêneros e temas já arraigados e existentes desde as poesias épicas das culturas orais primárias (como eterno maniqueísmo entre ricos e pobres, a corrupção, os crimes passionais) e concretiza-os em histórias singulares e novas, trabalhados com novos elementos, como os modernos recursos de dramaturgia de uma emissora que tem esse tipo de produção como uma de suas especialidades. Por outro lado, na experiência do New Journalism, procura-se justamente romper com epítetos e idéias consagradas. Parte dos esforços dessa vertente concentra-se na desconstrução de associações estereotipadas, que tendem ao maniqueísmo das personagens. Essa ruptura torna-se evidente no livro-reportagem A Sangue Frio que, assim como o programa Linha Direta, constrói sua narrativa na dramatização de um crime real – no caso, o assassinato de quatro membros de uma família no estado de Kansas, nos Estados Unidos. Em seu relato, Truman Capote apresenta o crime num relato jornalístico mais aprofundado em relação aos normalmente encontrados em publicações regulares, com vastas descrições de cenários e das vítimas e contextualização histórica do fato. Logo, passa ao retrato dos dois assassinos, Richard Eugene Hickock e Perry Edward Smith, enfocando seu passado e acompanhando suas rotinas até sua morte por enforcamento. Se, por um lado, a linguagem de Truman Capote ainda recupera, por vezes, idéias prontas já convencionadas na literatura (como exemplo, o título do primeiro

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capítulo do livro, “Os últimos a vê-los vivos”58, que em muito lembra as formulações explicitamente clichés observadas em Linha Direta), nota-se o empenho do autor em apresentar os assassinos sob a perspectiva de seu background, como personagens ambivalentes, vítimas de seus infortúnios, provenientes de condições sociais desfavoráveis. Assim, Dick e Perry são mostrados como indivíduos comuns, sujeitos de ações antagônicas – superando epítetos socialmente consagrados, oriundos da cultura oral, do mau bandido e da pobre vítima.

3.3. Em busca do desvendamento das fronteiras discursivas Essa própria caracterização ambígua que cerca as personagens (que não são boas nem ruins, apenas são) torna-se ponto fundamental na estruturação narrativa do New Journalism, que é intencionalmente construída como um jogo: esse jogo consiste em fazer o leitor-investigador coletar dados do seu mundo real para investigar no texto – da mesma forma que o narrador-jornalista o faz – os sinais que o coloca nas fronteiras (entre o factual e o ficcional) do próprio texto (Resende, 2002, p. 111). Sobre o texto essencialmente satírico de Tom Wolfe, o crítico Joe David Bellamy afirma que, em sua obra, sua postura moral “está tão bem disfarçada que o leitor médio freqüentemente pode não perceber que uma posição moral implícita está sendo assumida” (in Wolfe, 1989, p. 18). Assim, a associação epitética e a valorização moral não estão inseridas explicitamente no relato (como devem ser incluídas, necessariamente, nas expressões derivadas das culturas orais, como no caso da linguagem televisiva), mas encontram-se no espaço a ser preenchido, subjetiva e ativamente, pelo leitor. Acrescenta Resende: Pode-se supor que em Tom Wolfe as estratégias utilizadas para tratar das personagens que vão compor suas histórias muito contribuem para a leitura limítrofe desse texto que também se faz no entre. Este (o leitor) é, por sua vez, 58

Conforme tradução de Ivan Lessa, na edição brasileira de 1975 utilizada nesse trabalho.

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seduzido, não pelo evidente ou pelo absurdo, mas pela dúvida. Ele se coloca na fronteira, em busca do devaneio, no lugar que não se faz nem no fato, nem na ficção, mas no ato de transitar entre um e outro (2002, p. 110). Essa observação nos traz pistas de uma resolução plausível do impasse sobre a definição dos limites entre os universos factual e ficcional, questão que perpassa toda a experiência dos fenômenos midiáticos analisados aqui. O que se observa, ao contrapor os dois casos, é uma intenção diferenciada desde o início de seu desenvolvimento: na experiência do New Journalism, não se espera uma definição, a todo instante, de qual o universo a que o autor se refere; oferece-se o fato, apresentado como real, e expecta-se que o leitor continue ativamente a desvendar o que, no texto narrado, refere-se ao mundo imaginário da narrativa ficcional. Nesse sentido, Resende conclui que o texto de New Journalism, representado pela obra específica de Tom Wolfe, realiza um movimento dúbio, “pois não só espera que seu leitor aceite o fato como verdade, mas também espera que ele finja acreditar que o que excede esse fato possa ser ficção e, exatamente por se nutrir dessa ambigüidade, deixa o leitor à deriva, livre para cumprir seu papel de investigador” (2002, p. 104). Por outro lado, a produção de Linha Direta é concretizada de forma a não levantar questionamentos sobre a natureza de seu relato. Em seu texto concreto, há uma profusão de índices que apontam a uma veracidade incontestável – as constantes referências de que se trata de uma denúncia já registrada no Ministério Público, os depoimentos de autoridades ou personalidades marcantes, as falas dos parentes das vítimas –, sendo essa interpretação da verdade a única esperada. Não se deseja, pois, suscitar indagações sobre os espaços em Linha Direta cedidos ao universo ficcional. O que não equivale a falar, porém, que tudo em Linha Direta ou no New Journalism seja ficção, ou melhor, seja construção autoral, sem respaldo na realidade, com possível intuito de falsificar fatos. Não se desacredita aqui da possibilidade de elaboração de um discurso comprometido com a verdade que ao mesmo tempo faça uso das mais subjetivas técnicas estilísticas do gênero literário ou televisivo. Mesmo entendendo que nenhum texto consegue escapar da subjetividade de seu produtor (no caso do New Journalism, de uma marca

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explicitamente autoral e estilística, individual, e no caso de Linha Direta, de uma marca de gênero, coletiva, típica dos produtos de mídia televisiva), ainda assim é possível discutir conceitos de objetividade nesses textos declaradamente híbridos. Ao estudar a narrativa do filme documentário, Carroll argumenta que, no discurso de não-ficção, a objetividade nem sempre se apresenta como uma antítese à subjetividade. Um texto de não-ficção seria objetivo quando pudesse ser colocado contra parâmetros e argumentos pertencentes a uma determinada arena do discurso a que se refere. Assim, a arte (no sentido de construção estilística, com interferência da subjetividade humana) não se opõe à não-ficção: um texto documental pode ser artístico se sua elaboração estética não interferir com os seus compromissos de gênero, como os padrões de pesquisa, exposição e argumentação (Carroll, 1996, p. 231). Para Carroll, impor padrões restritos para a obtenção de um relato objetivo (como ocorria aos praticantes do objeto empírico de sua análise, o Cinema Direto, linha cinematográfica que visava a eliminar quaisquer vestígios de interferência do produtor em seus filmes) significa censurar e suprimir as potencialidades criativas naturais da produção humana em nome de uma honestidade ilusória, baseada em uma não-intervenção nos acontecimentos retratados (id, p. 237). Segundo essa perspectiva, um texto perde sua objetividade, por exemplo, quando seu produtor cria eventos que não ocorreram para causar efeitos de suspense ou de drama. Obedecendo aos parâmetros de veracidade dentro de seu gênero, não há razão pela qual o texto factual não possa fazer uso de recursos ficcionais, como reconstruções ou simulações. O fato de que Linha Direta constrói sua narrativa através de representações semelhantes às das novelas, tipo de discurso explicitamente ficcional, não compromete a sua relação com a verdade factual; o discurso do programa, na verdade, torna-se objetivo ao se submeter às normas e rotinas da área às quais sua história pertence, ou seja, ao discurso policial, de registro criminal e judicial. Da mesma forma, o New Journalism prova-se como relato factual ao obedecer a certos procedimentos de verificação da verdade do discurso jornalístico.

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É sob essa mesma perspectiva que Jost59 questiona os conceitos de ficção. Tal como são entendidos usualmente, haveria uma certa confusão entre o fazer de conta (la faire-semblance) e a mentira; a diferença entre esses conceitos estaria na forma em que os produtos midiáticos são utilizados. Assim, a falsidade deve ser distinguida da deformação – pois se toda linguagem é potencialmente deformação (já que jamais pode retratar a realidade em sua completude porque passa sempre por filtros de construção humana, entre os quais está o tratamento estético oriundo das narrativas de ficção)60, não se pode concordar que toda linguagem seja ficcional. Os elementos da esfera do real, dessa forma, aparecem inclusos na esfera da ficção. A divergência entre ambos os mundos são os estatutos lógicos a que estão submetidos: enquanto as asserções provenientes do real exigem a responsabilidade do autor com a comprovação do que afirma, numa referência ao mundo concreto que deve necessariamente ser verdadeira, o mundo ficcional pode apenas fingir fazer essa referência. Se um texto faz as referências ao real exigidas pelos postulados do mundo factual, ele não se trata de uma ficção61. Sob essa mesma perspectiva, Andacht argumenta que os textos provenientes da realidade factual não perdem seu caráter documental quando trabalhados através da distorção ou seleção de fatos, pois “os insumos básicos do gênero provêm do real (...). Mesmo que exasperados, eles estão lá, sem nenhum lugar onde se refugiar do dispositivo tecnológico do reality que os observa e registra” (2004a, p. 11). Reside também nesse ponto a importância dos índices que apontam as categorias a que esses textos pertencem. Para Jost, a inclusão de um programa em um gênero está no âmago da linguagem televisiva. O fato de que os relatos do New Journalism foram publicados pela imprensa, em revistas, jornais ou livrosreportagem, tendo sido redigidos prioritariamente por jornalistas, ou então os 59

Questões levantadas pelo prof. François Jost durante o seminário A televisão do cotidiano: entre a realidade e a ficção, realizado pelo PPGCOM da UNISINOS, em 16 de abril de 2004. 60 A semiótica peirceana observa que a experiência gradual com os objetos (pelo contato com os índices e pela experiência colateral) é o que realmente distingue o fato da ficção, e não a descrição (Bergman, 2004). 61 Jost lembra que o texto factual é aquele que funda sua base nessa referência ao real, mesmo que use recursos do mundo ficcional. O texto ficcional também pode fazer referências ao real (sendo que o número de referências fingidas e verdadeiras é o que torna um romance mais ou menos realista), mas esta não é a sua base de funcionamento. A complexidade do entendimento da ficção estaria neste ponto: no jogo que constrói entre as asserções reais e imaginadas.

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índices e ícones circundantes ao programa Linha Direta, como as chamadas de intervalo e as apresentações de imagens e nomes particulares como protagonistas dos casos, são todos elementos que já apontam, como primeira impressão (mesmo que não seja definitiva), ao caráter factual de seus textos. Carroll acredita que index original de um texto é crucial: não se pode simplesmente modificá-lo ou invertê-lo após sua apresentação (1996, p. 238). Após categorizado como proveniente da realidade factual, um texto pode tornar-se falso ou não (caso sua veracidade seja comprovada como problemática), mas isso não o torna uma ficção. Assim, os aspectos naturalmente passíveis de contestação nas experiências do New Journalism e Linha Direta – como a reconstrução subjetiva das personagens, de seus pensamentos e monólogos interiores – não os tornam, por exemplo, romances ou novelas televisivas. Carroll (1996) ainda sugere a abordagem à idéia da intenção do produto midiático, o que logo nos revela que os textos de não-ficção não podem ser categorizados homogeneamente. Os casos do New Journalism e Linha Direta apontam a uma intenção indubitável de entretenimento, pois lidam com formas diferentes de prazer e diversão (como apreciar qualitativamente um texto com traços literários, ou mesmo o prazer de assistir a uma história policial cujas personagens correspondem à antítese clássica do melodrama já tão explorada nas telenovelas, e descobrir que o criminoso foi preso graças ao programa), cuja natureza não concerne a essa análise discutir com maior profundidade. Bakhtin (1997a, p. 300) denomina esse fator de intuito discursivo ou o querer-dizer, o que determinaria a escolha do objeto e do próprio gênero em que ele é trabalhado. Esse caráter de entretenimento motivaria seus criadores a tomar licenças poéticas dos tipos de discursos aos quais pertencem para cumprir esse objetivo maior (Carroll, 1996, p. 239). Ainda que esse caráter aponte a motivações mais densas – como, por exemplo, a de acostumar um público leitor a reportagens complexas, de incitar uma paranóia de insegurança, ou simplesmente de construir produtos midiáticos facilmente assimiláveis e lucrativos –, sua primeira dimensão aponta a ambas as experiências como produtos de entretenimento factual. Mesmo com o uso de recursos estéticos, vinculados às estratégias de entretenimento, um texto de não-

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ficção ainda pode estar submetido aos parâmetros de objetividade, pois a possibilidade de distorção de um texto (por exemplo, a seleção de traços das personagens de Linha Direta ou do New Journalism, apresentando-as através de alguns aspectos de sua personalidade) não o torna uma ficção – pois a objetividade é a referência ao real, ao qual os signos naturalmente se referem e revelam, independente do recorte (que é natural, uma vez que os objetos nunca são conhecidos completamente), e não numa suposta pretensão à apresentação da verdade total – o que seria semioticamente impossível, não importando qual seja a mídia na qual se trabalha algum discurso. Uma produção considerada factual não perde seu viés documental por utilizar esquemas provenientes da ficção – os índices das categorias ou gêneros nos quais os textos se encaixam já apontam ao tipo de entendimento e expectativas pelos quais a audiência deve responder aos mesmos. Aqui se revela um conceito fundamental para a semiótica peirceana: após a concretização da semiose, já não se pode mais modificá-la, pois sua natureza é que possa criar interpretantes espontaneamente; nesse estágio, só é possível o movimento de acrescentar mais signos (por exemplo, argumentar contra alguma idéia de distorção de Linha Direta através de novos programas ou de falas vinculadas à instância produtiva veiculadas posteriormente). A tentativa de mudança de índices de categorização62 é inviável – não é porque um texto utiliza recursos normalmente ligados à ficção que ele perde sua referencialidade com o real. Há uma certa idéia nostálgica em se esperar que na atualidade haja uma nova confusão entre os limites do factual e do ficcional – tendo os produtos midiáticos, sob tal perspectiva, o poder de gerar modelos de um real sem origem nem realidade, e de propor a prevalência das formas sobre os conteúdos semânticos –, como um novo problema a ser enfrentado pelas mídias. Para Carroll (1996), discutir a validade desses produtos midiáticos enfocados aqui como textos factuais, de não-ficção, seria pressupor o debate sobre todo o tipo de relato 62

A idéia implícita aqui é que os gêneros dos textos midiáticos não são meras designações; muito mais do que isso, funcionam como sistemas ativos, em constante atualização, mas que mantêm um contato inseparável com os conceitos culturalmente assimilados por todos, limitando e determinando as expectativas que as pessoas tendem a gerar em torno deles.

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histórico. Assim como as edições de um programa que encena relatos criminais e detalhes das vidas das pessoas envolvidas nesses crimes, o relato da história presume também o trabalho de seleção, edição e interpretação dos fatos. Deduz-se, pois, que o relato documental não foi feito para ser uma mera imitação do passado – de fato, espera-se que tal relato faça uma conexão entre a história e o presente (do qual jamais se desvincula, pois não é possível a produtores contemporâneos tomar posicionamentos totalmente dissociados do momento a que pertencem); para Carroll, “não podemos recuperar precisamente o passado. Estamos presos ao presente e nossos filmes históricos recuperam as preocupações contemporâneas mais do que qualquer outra coisa”63 (1996, p. 246). Assim, a presença de algum tipo de interpretação no texto que constrói o relato documental é mais do que esperada: ela é inevitável em todos os tipos de discurso. Dentro dessa perspectiva, impõe-se como necessária uma análise de ambos os objetos de pesquisa como signos complexos, compostos por outros incontáveis signos, cuja tendência é a revelação gradual dos objetos a que remetem – o conhecimento do real – através de diferentes tratamentos interpretativos nos quais os fatos passam a ser trabalhados. No intuito de nos aproximar a esse problema, torna-se pertinente realizar uma recuperação dos conceitos semióticos que servem de aparato teórico-metodológico para o reconhecimento e o esclarecimento dessa questão.

63

Tradução pessoal do texto original.

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4. Uma abordagem semiótica à questão – os discursos de Linha Direta e New Journalism como signos complexos Na sempre polêmica discussão sobre as fronteiras entre o real e a ficção nas experiências midiáticas contemporâneas, torna-se clara a pertinência de uma reflexão voltada à Teoria dos Signos elaborada por Charles S. Peirce – que considera os métodos de alcance da verdade (the pursuit of truth) como uma busca pelo contato efetivo com a realidade, entendida aqui como o objeto de uma crença verdadeira (Ransdell, 2004c, p. 6) –, que nos traz pistas de configurar como um relevante aparato teórico-metodológico a contribuir ao esclarecimento da questão. Essa busca pela verdade, na idéia da semiótica peirceana, envolve tanto competências comportamentais para atingi-la (procedimentos desenvolvidos para a obtenção da verdade, dos quais Peirce (1877) destaca os métodos científicos, que mobilizam esforços coletivos na busca exaustiva pela opinião final e sabem lidar com a falibilidade desse processo) quanto motivações pelo alcance desse objetivo (quando a busca em si é mais satisfatória que a obtenção do resultado). Para a semiótica, os signos são elementos que, por sua relação com seus objetos, tendem a revelar gradual e falivelmente o real, e não como algo que nos afasta continuamente da verdade, como se esta fosse um limite final artificialmente construído

pelo

homem

(conforme

algumas

linhas

de

pensamento

contemporâneas, como, por exemplo, as teorias da pós-modernidade tendem a considerar)64. A tendência à busca do real é considerada por Peirce (1877) como uma característica natural do ser humano que, de modo quase inconsciente em seu cotidiano, segue certos métodos (sempre passíveis de acidentes e falhas) com intuito de se aproximar cada vez mais da verdade. Para a teoria peirceana, a busca do conhecimento é a nossa inclinação para sair de uma situação incômoda e instável de dúvida – pois abala os hábitos e convicções que a priori possuímos – 64

Essa linha tende a pensar os signos – em especial os icônicos, por sua potencialidade de geração de sentidos independentes do controle humano, em relação aos simbólicos – como simulações perigosas que nos distanciariam da realidade, num movimento conspiratório que envolveria as mais poderosas instituições. Seu posicionamento iconofóbico foi descrito pelo pesquisador Horst Bredekamp como tecnocinismo (apud Andacht, 2003c).

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em direção a um momento em que a mente atinge um estado de crença, calmo e satisfatório, que não desejamos evitar ou alterar por alguma outra crença (Peirce, 1877)65. Segundo Peirce (1877), ao inclinar-se na busca do conhecimento – ou seja, na passagem de um estado irritante de dúvida para uma situação confortável de certeza, de formação de opinião –, o ser humano tende a seguir certos métodos conhecidos para o alcance e fixação de sua crença. O primeiro método, da tenacidade, é explicado pela metáfora da avestruz que enterra a cabeça na areia no intuito de não enxergar o perigo, assim como o homem que prefere não enfrentar os riscos estabelecidos pelos argumentos contrários à crença que assume; é um procedimento associado às crenças religiosas extremistas e torna-se frágil pelo fato de só funcionar em situações de isolamento. O segundo método é o da autoridade, que ocorre quando as instituições assumem o método da tenacidade em nome da garantia dos valores e da coesão de uma comunidade. O terceiro método – chamado a priori – é em si mais refinado, mas tende a resultar em fracassos porque os sistemas de crenças construídos costumam ser submetidos não à experiência, mas ao que o gosto e a moda nos levam a acreditar. Em suma, tais métodos tendem a agir não em conformidade com a lógica, mas justamente pela rejeição de algum tipo de inquirição racional, pois, segundo Peirce, ser lógico quanto a assuntos práticos é a qualidade mais útil que um animal pode possuir, e pode, consequentemente, resultar da ação da seleção natural; mas fora disto é provavelmente mais vantajoso para o animal ter a sua mente cheia de visões agradáveis e encorajadoras, independentemente da sua verdade (1877). Assim, para a teoria peirceana, o último método – da ciência – é o que se ajusta à busca eficaz do conhecimento da realidade, pois seu sucesso depende não de sentimentos e posicionamentos pessoais, mas sim da aplicação correta do 65

Para Peirce, ambos os estados – de crença e de dúvida – geram efeitos positivos sobre nós, já que a “crença não nos faz agir imediatamente, mas coloca-nos numa posição em que nos comportaremos de certa forma, quando surge a ocasião. A dúvida não tem qualquer efeito desse tipo, mas estimula-nos a agir até que é destruída” (Peirce, 1877).

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próprio método. Sua eficiência se justifica pelo fato de mobilizar esforços conjuntos para atingir seu objetivo e para lidar com a possibilidade de falha desse processo, mas, acima de tudo, por sua submissão a um elemento externo, ao qual o pensamento humano não causa influência, já que sua existência independe de qualquer tipo de opinião que se tenha sobre ele (Peirce, 1877). Esse fator externo é, portanto, o objeto dinâmico que o método científico busca revelar, algo que nos causa curiosidade e se abstrai da nossa experiência já obtida, e a possibilidade de seu conhecimento depende de certos procedimentos. Silveira (2003, p. 1) acredita que, para conhecer um fenômeno, devemos nos deixar seduzir pelo próprio objeto e pela realidade que nele se revela, já que, para poder representá-lo com objetividade, é preciso observá-lo em seus exemplares com o maior cuidado e com a máxima isenção de ânimo (...). Nossos preconceitos assim como o acúmulo das experiências passadas impedenos de nos abrir ao objeto de percebê-lo em seu caráter admirável e digno de nossa volição. Só conheceremos com objetividade um fenômeno se formos capazes de nos despir de preconceitos e de permitir que o próprio objeto nos seduza, convidando-nos a representá-lo segundo uma forma que, provavelmente, melhor lhe couber (id). Inclui-se nesse ponto a questão dos modos de conhecimento dos objetos reais do mundo. Para que essa busca ocorra de forma eficiente, deve envolver um esforço para ser despida de preconceitos, certezas e convicções provenientes do senso comum, o que não é procedimento corriqueiro nas inquirições da vida cotidiana. Para tanto, o melhor método ao empreendimento é uma forma de conduta científica que exija o constante diálogo entre pesquisadores e a não submissão a motivações pessoais66 (que, ao contrário dos outros métodos de 66

Como lembra Silveira, “a lógica, na concepção de Peirce, não depende da convicção que pode produzir na mente que assevera (...). Nada, porém, substitui o caráter pessoal e intuitivo que se encontra na origem de todo conhecimento, se a este considerarmos como busca da verdade e formação de um hábito cada vez mais aprimorado de conduta” (2003, p. 3). Peirce não elimina a figura do sujeito no procedimento científico, mas vê o elemento humano como lugar passível de erro. As motivações pessoais existem na atividade científica assim como em qualquer outra, mas seu método deve lidar para que tais motivações não interfiram na essência dessa busca, que é o conhecimento da verdade dos objetos por si mesmos, independentemente do que se espera deles ou das conseqüências que trazem.

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fixação da crença, não fornecem o essencial para o bom exercício desta atividade), além de uma medida de autocrítica entre a comunidade científica para que os objetos possam, enfim, manifestar-se, assim como as formas adequadas para sua representação, independentemente de quais sejam as vontades de seus investigadores. Trata-se de uma mobilização pela busca dos interpretantes finais dos fenômenos analisados através de suas manifestações sígnicas, de forma a atingir, por fim, os objetos dinâmicos a que referem. Nas palavras de Savan, o ponto de inflexão mais importante na história de um signo ou conjunto de signos é o ponto no qual a avaliação crítica deliberada das próprias normas começa. É nesse ponto que o pensamento começa a ter idade e a ciência madura nasce. O que caracteriza este estágio científico final, na evolução dos interpretantes, é que os princípios orientadores são eles próprios submetidos à avaliação crítica deliberada, e que os princípios governando os métodos de avaliação são também submetidos à avaliação crítica deliberada (apud Santaella, 1995, p. 100). Essa ação contínua de investigação pelo real é entendida como o processo de causação final (final causation process), também chamado de semiose – ou o processo de interpretação do signo o qual mantém uma contínua referência a um objeto com um determinado propósito (Ransdell, 2004d, p. 7). O processo de interpretação semiótica, assim, é entendido como um continuum em que os signos evoluem a signos de outras categorias e os pensamentos se traduzem em outros pensamentos num movimento ininterrupto (Santaella, 2002), rumo a um limite virtualmente inatingível que é o conhecimento absoluto dos próprios objetos dinâmicos. O processo de causação final aponta ao aspecto télico da semiose, que sempre tende a convergir para um final – ou seja, à revelação (nunca atingida de fato, de modo perfeito ou infalível) da completude do objeto a que se refere. Para Short (2004, p. 1), deve-se entender teleologia como a doutrina segundo a qual algumas coisas devem ser explicadas pelos propósitos a que servem. Proveniente da teoria aristotélica, o conceito parte do termo grego telos, que significa o fim para o qual algo é feito ou existe (id, p. 7). Não se trata de um processo linear,

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como se o resultado final de um sistema pudesse ser resumido à soma das partes antecedentes em isolamento; a ordem télica é, por outro lado, um fenômeno relativamente objetivo, baseado numa condição física que aponta uma tendência espontânea à auto-organização e regularidade tanto em sistemas caóticos quanto em relações humanas67 ou eventos naturais (Alexander, 2004, p. 6). Mesmo a imprevisibilidade de um fenômeno (como as chances de um jogo de dados, no exemplo peirceano) revela os mais previsíveis tipos de regularidades estatísticas ao decorrer do tempo, e o sistema acaba por mostrar-se tão regular que pequenas exceções podem ser ignoradas sem afetar sua previsibilidade (id). Em sua apropriação, Peirce atualiza as idéias clássicas de teleologia (que carregariam um fundamento misterioso, relacionando-se a tendência de certos fenômenos do mundo a uma força maior – no caso, a vontade divina –, e garantiriam a antecipação dos estados futuros da natureza para quem conseguisse analisar os processos iniciais de seus fenômenos com perfeição) e proclama um novo conceito. A idéia de final causation, então, refere-se para Peirce68 ao modo em que a verdade vem à tona, não importa quais sejam os modos, já que os meios podem ser modificados para certos fins; deste modo, o conceito de teleologia refere-se a um processo que pode ser variável seqüencialmente, mas será sempre uniforme no resultado, possuindo assim um caráter de generalidade. Segundo Alexander (2004, p. 2), o conceito de teleologia envolve dois mecanismos: o primeiro, a que chama de directionality, explica de que forma o elemento télico é utilizado para manter a ordem nos sistemas; o segundo, originality, entende de que forma o fenômeno opera na descoberta de uma nova ordem. Para a pesquisadora, a falha nos conceitos clássicos de teleologia é que costumam enfocar apenas um desses mecanismos69. Analisados em conjunção, 67

Alexander (2004, p. 9) cita alguns exemplos de eventos em que padrões de organização parecem surgir espontaneamente de coletividades humanas, como negociações individuais numa bolsa de valores que acabam estabelecendo uma noção coerente de valor em conjunto. Essa tendência final – a organização do mercado – não é manipulada por um poder central institucionalmente reconhecido, e sim por uma força télica presente nesse sistema. 68 Segundo Peirce, “we must understand by final causation that mode of bringing facts about according to which a general description of result is made to come about” (apud Short, 2004, p. 15). 69 Alexander observa duas linhas distintas de pensamento sobre teleologia: os mentalists são os que possuem interesse na originalidade e, consequentemente, na arte, vendo o fenômeno telos com um fator externo; os nonmentalists são os que se preocupam com a direcionalidade e o

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podem ajudar na compreensão da originalidade e da regularidade na narrativa humana, assim como na discussão sobre o conceito de arte – que é definido pela pesquisadora como uma atividade que envolve tanto a direcionalidade quanto a originalidade, ou seja, um desenvolvimento que “(re) sintetiza elementos já existentes de acordo com as tradições, mas também envolve uma atividade imprevisível que, através do uso das regras, pode transcendê-las” (id)70. Ambos os mecanismos são interdependentes, já que a originalidade apenas pode ocorrer sobre um plano de direcionalidade, pois a criação completa – sem respaldo em estruturas pré-existentes reconhecidas – seria ininteligível. Por outro lado, o trabalho apenas direcional, como a mera repetição de um gênero, resulta muito previsível para ser considerado arte. Tal discussão envolve também a questão da intencionalidade humana – sobre se ela existe ou não, ou se humanos são simples autômatos, meros executores das tendências naturais dos sistemas do mundo –, à qual Alexander, num diálogo com Barthes, responde positivamente: os seres humanos estão submetidos às forças da linguagem e da cultura em geral, o que faz com que os textos tendam a chegar a resultados finais relativamente pouco diferentes; mas isso não impossibilita o surgimento de textos originais, que ocorrem quando as forças convencionais da linguagem são utilizadas de maneiras inesperadas, gerando novos efeitos e possibilitando uma renovação do telos (Alexander, 2004, p. 5). Essa concepção parece conformar-se à idéia da semiótica peirceana sobre os modos de criação e renovação dos signos, que tendem a partir de novas formas de manipulação dos signos já conhecidos, e não de um estado de geração completa de novos elementos. Os fenômenos teleológicos envolvem ações para certos propósitos e com a seleção de um certo tipo de resultado, que será alcançado ou não. Alexander argumenta que a força teleológica não tem uma fonte divina, como acreditavam os desenvolvimento da ciência, e entendem o telos como elemento interno intrínseco aos fenômenos (2004, p. 10). A proposta da autora é a unificação entre as diferentes ciências interessadas nos dois tipos de teleologia. As mudanças correntes no pensamento científico acabariam por revelar que ambas as abordagens – da arte e dos fenômenos objetivos – são relacionadas, e que mesmo sistemas complexos como os naturais possuem níveis de indeterminação e espaço para a criação de novos significados (id, p. 19). 70 Tradução pessoal do texto original.

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conceitos clássicos, mas sim uma fonte estética baseada em tendências de interação pelas quais a natureza opera (2004, p. 5). Para Short (2004, p. 25), essa definição também se conforma com a idéia de Darwin sobre a seleção natural, cuja explicação pode parecer tautológica, mas, de fato, acrescenta um fator de inteligibilidade ao conceito: certos eventos ocorrem em razão de um tipo de um resultado, e não em função de nenhuma idéia ou qualquer tipo de desejo intencional. Ocorrem, portanto, em decorrência do propósito para o qual ocorrem. Isso acontece tanto entre os animais irracionais, cujos atos são antes instintivos que conscientes, quanto entre os racionais, que se colocam em busca da verdade também de forma quase instintiva e, consequentemente, com fins de sobrevivência. Assim, pode-se inferir que a interpretação sígnica é um processo teleológico que se define por seu propósito, que é a busca da realidade de um determinado objeto, culminando num estágio final que é um resultado consensual comum a todos que ingressassem no mesmo empreendimento. O funcionamento desse processo teleológico, lembra Ransdell (2004d, p. 6), é antes tendencial que intencional, ou seja, após a semiose estar completa, estabelecida através de um signo complexo (por exemplo, após um produto midiático ser concretizado), as intenções do autor não mais importam: resta apenas o trabalho dos próprios signos a fazer tal convergência ao processo de interpretabilidade

(de

geração

de

seus

interpretantes).

Mesmo

que

a

intencionalidade exata de um autor seja irrecuperável – pois já não podemos lidar com outras idéias além das que são expressas em seu texto, que, por sua vez, operam sozinhas gerando interpretantes –, isso não prova que não exista, de fato, uma intenção autoral. Visto que o desenvolvimento das linguagens humanas pressupõe um propósito comum entre seus interlocutores, a falha de entendimento do receptor (quando consegue captar os interpretantes imediatos das palavras ouvidas, mas não o seu significado ou o propósito da enunciação) é também uma falha do emissor e dos signos que ele escolheu (Short, 1988, p. 84). Nesse sentido, para que um elemento possa ser considerado signo71, ele precisa estar numa relação triádica com seu objeto (a que representa ou refere) e 71

Entendendo que um signo deve, de fato, estar em relação com um interpretante e um objeto, fica claro aqui que, para a semiótica peirceana, esse signo completo designa a classe da terceiridade,

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seu interpretante (a idéia que provoca, um signo mais desenvolvido, que pode gerar novos interpretantes sucessivamente, tendo como limite um objeto absoluto – ou seja, ele precisa concretizar a idéia peirceana de causação final). Caso não haja a tendência do signo de encaminhar por si próprio a um fim, ele não é signo (pelo menos não complexo, totalizador, capaz de gerar interpretantes). Essa capacidade do signo de encaminhar o seu próprio entendimento nos remete à idéia fundamental no pensamento de Peirce, da autonomia do signo no processo semiótico. Tal noção reporta-nos ao fato de que somos, na verdade, mais observadores dos signos do que propriamente criadores dos mesmos. Como exploradores na semiosfera que habitamos, nossa ação é a de aprender a nos mover e a nos adaptar a um mundo povoado por pistas que aprendemos a perceber e decifrar, mas sem poder jamais prever de forma absoluta como agirão quando o nosso trabalho de geração de sentido sobre os signos estiver concluso. Nosso controle sobre os signos, portanto, encontra-se antes na habilidade de manipulálos e colocá-los em interação com outros signos no processo de composição da semiose, por modos que favoreçam resultados desejados por nós. O significado de um signo, dessa forma, é livre de nossas intenções, e pode ser igualado a sua capacidade de gerar interpretantes naturalmente, de modo independente da intenção de quem os manipulou (Ransdell, 2004d, p. 1). Essa intenção é relevante enquanto força manipuladora dos signos, e não criadora. Sob esse ângulo, essa tendência de auto-geração do signo, de governar seus prováveis sentidos de forma espontânea, aponta ao fato de que, no processo de construção da semiose, nunca há uma criação total de significado. Uma certa estipulação de significados a signos é possível, dentro de determinadas condições, mas não se trata de um processo natural72; é sabido que signos não são governados por regras impostas a eles, mas apenas pela regra que aponta ao seu poder de gerar interpretantes, princípio inerente em sua natureza (Ransdell, 2004d, p. 2). Toda a definida pelo elemento que se chamou de símbolo, que determina relações de convenção e interpretação. As demais categorias sígnicas de ícone e índice são entendidas como quase signos, incompletos, que designam respectivamente relações de qualidade e de reação à existência concreta de fenômenos, mas que fazem parte do funcionamento do elemento simbólico. 72 Ransdell (2004d) argumenta que um índice pode ser considerado, de alguma forma, capaz de manipular sua futura interpretação ou significado, mas lembra que um índice não é considerado um signo de fato pela caracterização definida por Peirce, conforme explicado acima.

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produção cultural humana, dessa forma, depende prioritariamente da capacidade de manipular os signos de forma a determinar ou prever sentidos prováveis (embora nunca totalmente previsíveis, pois a espontaneidade dos signos impossibilita que tenhamos controle absoluto sobre eles). A criatividade humana se sustenta antes na capacidade de manejar os signos que já se conhece do que efetivamente na criação de novos, que tendem a surgir do cruzamento dos signos já familiares.

4.1. Linha Direta e New Journalism como novos interpretantes dos fatos Os dois assuntos da presente pesquisa, dessa forma, podem ser considerados signos altamente complexos cujo telos é revelar gradualmente os objetos que os determinam – os acontecimentos e as narrativas criminais envoltas de cotidianidade popular recriadas no programa televisivo Linha Direta e as sutilezas do real recuperadas na vertente impressa do New Journalism –, sem jamais conseguir substituir a experiência presencial dos envolvidos de fato nas histórias73. São legisignos74 pois operam por convenções, ou seja, por mediações culturais que revelam a que esses signos se referem, pois é pelo reconhecimento de sistemas simbólicos socialmente difundidos e utilizados nesses discursos e pela experiência colateral com esses elementos – como a intimidade com uma linguagem televisiva e, num âmbito mais abrangente, com os princípios jornalísticos, que identificam esses textos como referentes aos fatos do real, e não como uma novela ou um romance – que o público consegue interpretá-los, associá-los de modo a gerar idéias mais desenvolvidas (seus interpretantes) que, 73

É interessante observar que mesmo os participantes dos casos não possuem um conhecimento absoluto desses objetos, já que essa é uma impossibilidade semiótica; na prática, a conclusão da semiose é sempre tendencial, nunca atingida de fato, pois é impossível, mesmo aos que experimentaram presencialmente dos eventos, ter consciência perfeita e indiscutível desses objetos dinâmicos. 74 Conforme Ransdell, “um legisigno é um signo considerado no que diz respeito a um poder que lhe é próprio de agir semioticamente, isto é, de gerar signos interpretantes, sendo que sua identidade particular se dá pela margem de signos interpretantes que ele é capaz de gerar” (apud Santaella, 1995, p. 133).

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por outro lado, podem gerar infinitamente outras idéias em níveis lógicos mais elevados, de modo a chegar num interpretante final: o próprio objeto dinâmico. Nos textos midiáticos em questão, esse objeto seria o entendimento absoluto dos próprios eventos em que suas narrativas se sustentam (o que é impossível de acontecer na prática, já que o interpretante final ou objeto dinâmico é infinitamente remoto – pois a experiência histórica nunca pode ser remontada ou captada em sua totalidade). A doutrina sinequista, desenvolvida por Peirce (1893), pressupõe a continuidade entre os fenômenos do mundo e a experiência decorrente deles; há aqui uma idéia da não separação entre a natureza e a cultura, os mundos da vida e dos signos, acessíveis a nós apenas quando combinados. Tal conceito aponta a idéia de que o processo semiótico é sempre cumulativo de experiência e de percepção, só atingindo um estado final em nível teórico – ao mesmo tempo em que essa experiência nunca pode ser reduzida, apagada, mas apenas modificada através da inserção de novos signos. Sendo que o significado de um signo é outro signo em um nível lógico mais elevado, esse processo ocorre sempre contínua e crescentemente (Santaella, 1995, p. 88). Assim, as narrativas midiáticas contrastadas aqui operam como textos contínuos, destinados a revelar novos dados sobre um evento que é sempre indefinido em relação à sua totalidade. Sua ação é a de gerar novos interpretantes a partir de eventos remotos (como a recuperação subjetiva dos perfis psicológicos de vítimas e criminosos em Linha Direta, ou o enfoque propositadamente intimista de personagens controversas nas reportagens do New Journalism), visando a possibilidade de nos aproximar mais do real, ou mesmo de gerar discussões sobre o quanto de realidade há naquilo que se observa nessas duas experiências. Nesse sentido, Short (1988, p. 81) explica que a linguagem existe sempre em mudança, numa busca perpétua para tornar-se sistemática. O telos desse processo evolutivo seria, portanto, seguir existindo como um sistema que funciona, conseguindo assim cumprir os objetivos de comunicação para os quais a linguagem é designada. Desse processo decorre o crescimento dos símbolos, ou seja, as mudanças pelas quais os legi-signos tendem a passar para seguir desempenhando seu propósito, o de ser interpretados no intuito de fornecer o acesso ao real de seus objetos. Para Peirce, esse crescimento ocorre de três

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formas: pelo nascimento de um novo símbolo a partir de signos antigos, o crescimento de significado de tal símbolo, e sua difusão pelo uso, sendo cada uma dessas etapas dedutível das precedentes (apud Short, 1988, p. 85). O crescimento dos signos se refere às mudanças sofridas no interpretante imediato de um símbolo (Short, 1988, p. 86), que ocorre para que tal signo sirva melhor ao seu objetivo de interpretação. Tal processo costuma acontecer com símbolos centrais às vidas humanas, e suas alterações decorrem dos conhecimentos adquiridos sobre o objeto ao longo do tempo que são acrescentados ao seu significado, enquanto idéias superadas vão sendo excluídas75. Esses aperfeiçoamentos, no entanto, não resultam num novo símbolo, mas no crescimento de um mesmo símbolo, pois sua identidade é definida por seu propósito

interpretativo

inicial,

que

segue

implícito

mesmo

com

o

desenvolvimento e a evolução de seu sentido original (id). Pode-se pensar na ocorrência de tal processo nos símbolos designados pelos dois objetos empíricos desta pesquisa. Em seus discursos, as experiências de Linha Direta e do New Journalism apontam a objetos imediatos (os casos reais conforme foram pesquisados e observados pela instância produtiva nos dois empreendimentos midiáticos) que nos aproximam (ou ao menos pretendem) dos objetos dinâmicos a que representam (os casos reais conforme ocorreram em sua totalidade, fora de toda representação, e que são potencialmente buscados em ambos os produtos) através da busca por gerar novos interpretantes, ou seja, signos mais desenvolvidos do primeiro signo desta semiose, que são os objetos imediatos. Os signos concretizados nos dois produtos – o programa televisivo e as reportagens impressas –, enquanto significação, podem ser considerados novos interpretantes que são acrescentados a essa cadeia semiótica. Esses signos são novos elos interpretativos inseridos nos casos, que propõem uma mudança no entendimento desses objetos através da modificação de seus interpretantes imediatos. No entendimento peirceano, o interpretante pode ser 75

Short (1988, p. 86) cita o exemplo do legisigno ‘eletricidade’, que a princípio apontava a certos efeitos físicos observados na natureza e que, em razão de investigações ocorridas com o avanço da ciência, modificou seus interpretantes, adquirindo um significado mais exato, que explica o fenômeno com maior precisão.

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classificado de acordo com os estágios internos por que passa até se converter num outro signo. Segundo Santaella (1995, p. 96), o interpretante imediato se refere à interpretabilidade particular inerente a um determinado signo, que está ao alcance de todos os seus intérpretes, independentemente de sua aplicação em uma situação comunicacional concreta e singular. É um interpretante potencial, relacionado à categoria fenomenológica da primeiridade, do possível, e designa o sentido que um signo está apto para produzir através de suas propriedades internas. Encontra-se em relação com o interpretante dinâmico (o efeito real produzido pelo signo em uma mente particular, numa situação concreta) e com o interpretante final (o estado ideal que agiria sobre uma mente se o signo fosse suficientemente considerado e conhecido). Nesse sentido, pode-se inferir que os textos de Linha Direta e do New Journalism intentam operar como novos interpretantes dinâmicos (pois já estão concretizados na primeira instância receptora desses discursos: seus próprios produtores) dos objetos a que referem. Seu sentido é o de propor um novo sentido potencial para os que participarem de sua experiência discursiva, pela transformação do símbolo normalmente oferecido ao público interessado nos eventos retratados (ou seja, a abordagem convencional do jornalismo, preocupada com a documentação estrita do fato como informação pontual e estatística) através de novos signos com interesses estéticos. Há, portanto, uma migração dos gêneros originais desse discurso em direção a outros formatos, com outros propósitos – gerando novos interpretantes, visíveis nos diferentes tipos de discussão que serão proferidos em torno desses produtos. Essas mudanças nem sempre significam renovação (mesmo com a modificação do interpretante, pode-se manter o sentido original de um símbolo – como, por exemplo, a apresentação de um crime em Linha Direta que segue apontando o mesmo sentido maniqueísta que seria gerado numa reportagem convencional), mas sim uma incorporação desse interpretante que passa a enfocar um número maior de nuanças interpretativas de um fato (nesse caso, voltadas mais a fatores subjetivos envolvidos em tais acontecimentos). O que se nota aqui são aproveitamentos dos mecanismos de teleologia apontados por Alexander (2004): através de uma certa manutenção (directionality) da ordem do gênero do qual

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partem (os formatos consolidados do jornalismo para a veiculação das notícias), tanto o discurso concretizado pelo New Journalism quanto por Linha Direta renovam algumas regras desses hábitos (originality) para criar produtos novos e reconhecíveis na sua diferença (com diferentes enfoques voltados à elaboração artística, com concretizações distintas de artefatos estéticos). Essa ampliação interpretativa não resulta, necessariamente, na perda da objetividade de um texto. Conforme argumenta Penafria (2003), ao tratar de seu objeto de pesquisa (o filme documentário e, mais especificamente, a experiência do Cinema Direto), a interferência interpretativa e mesmo criativa em um texto de não ficção não significa uma distorção contínua e conseqüente perda de sua referência ao real; ao contrário, essa intervenção é requisito essencial para que essa aproximação da verdade seja feita: O material-base do filme documentário são as imagens registadas essencialmente, in loco, mas, não é possível estabelecermos só por isso uma relação de perfeita consonância entre realidade e sua representação. Tratamse de objetos distintos (...). A intervenção interpretativa e, necessariamente, criativa, é bem-vinda. Um documentário é feito de vários documentos que são incompletos, mas que ganham sentido e interesse quando interligados uns com os outros através do recurso da montagem. Uma imagem significa, não podemos dizer que ela apenas mostra. Mas, há que procurar ou construir esse significado (2003, p. 8). O afastamento irreversível dos fatos – temporal e experimentalmente –, no entanto, não necessariamente nos distancia do conhecimento desses eventos, como se a memória fosse espaço natural para o engano e distorção da realidade76. Se tal premissa fosse verdadeira, teria que se assumir a impossibilidade de todo tipo de relato histórico. Para Peirce, a chance de erro pode ocorrer para nossos dois tipos de percepção: tanto nossa percepção primeira, qualitativa, direta e mediada (unreflected cognitional semeiosis) quanto a consciência cognitivamente 76

Um exemplo de reflexão sobre esse tipo de pensamento é encontrado no livro L´Imaginaire, de Jean Paul Sartre, no qual o filósofo apresenta nossas imagens internas como uma fuga perigosa da realidade (Andacht, 2003c, p. 9).

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estruturada (o pensamento lógico) se baseiam no próprio objeto e não numa distorção dele (Ransdell, 2004b, p. 9). Nesse sentido, é importante observar que tanto na experiência do New Journalism quanto do programa Linha Direta há inovações (em relação ao jornalismo convencional) nos métodos de obtenção dos dados factuais, como a recuperação dos acontecimentos remotos através da memória afetiva dos participantes das histórias, e a assunção do filtro interpretativo da subjetividade do jornalista que retrata o fato. A experiência de lembrar pode nos levar a pensar que a memória é distorcida – por diversos fatores, como o distanciamento temporal, o envolvimento afetivo, as limitações próprias da mente – mas esse fator subjetivo não deriva do fato de ser uma experiência de memória mais do que deriva de uma experiência não-refletida de perceber algo pelos sentidos. Ou seja, não é unicamente a lembrança que pode distorcer o fato, mas sim a própria natureza da semiose (que impede que conheçamos os objetos na totalidade). O pensamento refletido (pós-percepção direta) também não significa que o objeto conforme lembrado é diferente da coisa em si, conforme ocorre fora do pensamento – embora essa não deixe de ser uma situação possível. Assim, há uma certa redefinição da idéia do passado: embora a memória, no sentido de experiência de lembrança de eventos passados, seja limitada em aspectos importantes, não é necessário considerar que tudo que é lembrado é apenas acessível indiretamente: como afirma Ransdell (2004e), o passado não está infinitamente afastado de nós, ao menos que tenha sido completamente esquecido. De fato, não é incomum experimentar o passado mais vívida e imediatamente que o presente77 e a consciência do passado pode ser mais precisa e compreensiva do que a experiência perceptiva realizada no momento de ocorrência dos eventos (id, p. 10). A falibilidade de nossa mente não a elimina como fonte de evidências sobre a verdade, pois esse processo (de seleção e interpretação dos fatos) não é exclusivo a ela, mas a todos os tipos de funcionamentos semióticos operados pelos signos. O fato de que as situações de Linha Direta e as reportagens do New 77

Ransdell (2004e) lembra que essa situação é muito comum em portadores de algumas enfermidades mentais. Pessoas com Mal de Alzheimer, por exemplo, tendem a viver o passado mais lucidamente que o presente.

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Journalism estejam temporalmente remotos de uma experiência direta, antes de significar necessariamente uma certeza de distorção e mentira, podem acarretar, ao contrário, numa maneira de retomar e gerar novos interpretantes sobre os casos, aproximando-nos mais do real, ao invés de nos isolar dele. A base de funcionamento dos objetos dessa pesquisa, portanto, fundamenta-se essencialmente no elemento indicial, que apontará a existência concreta dos dados fornecidos em seus discursos, e na experiência colateral, necessária para que se concretize uma compreensão esperada desses textos e para que eles possam ser reconhecidos como referentes aos gêneros próprios do factual. O conceito semiótico da experiência colateral, nesse sentido, refere-se à dependência de um contexto compartilhado entre o emissor e o receptor de um discurso para que a comunicação se torne possível (Bergman, 2004, p.1). Assim, somente estando ‘educado’ para reconhecer os suportes em que os discursos de Linha Direta e do New Journalism são concretizados (como reportagens televisuais e impressas, inseridas no sistema jornalístico, o que pressupõe a documentação do que de fato aconteceu, e não que se trata de uma criação artística ficcional) é que se pode compreender esses gêneros – e mesmo realizar cobranças – de maneira pertinente. É apenas na existência dessa experiência colateral e dos elementos indiciais que se torna possível distinguir fatos de ficção (id, p. 13). Ao desenvolver a idéia de um pacto tácito existente entre emissores e destinatários que possibilitaria reconhecer um texto pelo gênero ao qual pertence, Jost nos lembra da importância do reconhecimento dessas categorias por parte dos receptores. Para ele, “o espectador pode não saber que há um pacto, o que permite concluir que o pacto não se dá no texto, não se dá no peritexto, mas em conhecimentos laterais” (Jost, 2004, p. 15). É esse conhecimento – a experiência colateral no conceito semiótico, que não ocorre através de signos no momento em que é utilizada para interpretar novos signos – que permite que o receptor possa observar de que forma um texto é classificado e passe a diferi-lo do discurso da ficção. Ao mesmo tempo é importante observar o papel fundamental do elemento icônico nos produtos midiáticos em questão, já que boa parte de suas razões de

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existência (e motivações para as críticas que sofreram e sofrem) foram as inovações estéticas que inauguraram em seus discursos: no caso do New Journalism, uma sofisticação escrita e cuidadosa do cotidiano, retratando matizes dos fatos muitas vezes inacessíveis às próprias personagens das histórias (como o viés interpretativo de cunho social), com intuito de trazer novas possibilidades sensórias e qualitativas que seus leitores não encontravam no jornalismo diário; e em Linha Direta, uma reconstituição visual de casos populares reais, vinculandose à toda polêmica que a narrativa imagética costuma trazer. Dessa forma, consideramos as duas experiências discursivas dessa pesquisa como grandes signos complexos que fundamentam sua existência no elemento indicial, tendo no elemento icônico – que aponta a inovação qualitativa que esses textos trazem enquanto artefatos estéticos – a base de suas diferenças e a razão de seu afastamento de seus gêneros jornalísticos originais. A distinção entre as duas experiências discursivas contrastadas aqui, portanto, ocorre em nível midiático (no tipo de mídia que aproveitam) e não em nível semiótico (no tipo de referência que seus signos fazem ao seu objeto): como textos provenientes do real, possuem os mesmos mecanismos de referência e bases de funcionamento, e as cobranças a que estão submetidos devem ser idênticas, não importando sua natureza material. A idéia de que Linha Direta, por ser um produto audiovisual, teria mais chances (em relação ao New Journalism) de engano e distorção do real por reconstruir eventos factuais através de imagens (menos controláveis à ação do homem, e supostamente mais ‘perigosas’ pelos diversos sentidos que podem gerar, ocasionando a possibilidade da mentira, da manipulação de seu sentido original) é uma falácia. De fato, a materialidade técnica de um texto não o torna mais ou menos ficção, pois não afeta o seu mecanismo de referência ao real através da geração contínua de interpretantes. As distinções tecnológicas exercem influência clara sobre o tipo de discurso a ser gerado, mas não modificam os insumos básicos a que devem obedecer enquanto gêneros factuais. Da mesma forma, o afastamento dos dois discursos do jornalismo convencional pela abordagem de fatos não encontrados nos informativos comuns – preferindo nuanças do real mais voltadas ao retrato do cotidiano, dos pequenos

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fatos, que não são incluídos nos padrões normais da geração de notícias – e pelo tratamento diferenciado desses dados, não os exclui das responsabilidades comuns assumidas por todos os textos que expressam78 sua referência direta ao real. Assim, não há nada de específico nessas duas classes de discursos factuais que os afaste dos outros gêneros de apresentação do real. Linha Direta sofre cobranças semelhantes às feitas a matérias convencionais sobre fatos criminosos, e aos textos do New Journalism pode-se exigir as mesmas comprovações de reportagens menos voltadas à criação estilística – além de inserir em sua experiência a possibilidade de questionamento sobre a autenticidade da reconstituição subjetiva das personagens retratadas. Mas os índices do real são encontrados em ambos os discursos, que possuem assim o mesmo potencial de verdade que as notícias diárias do jornalismo, sendo assim, também passíveis do mesmo tipo de comprovação.

4.2.! Os novos modos estéticos de expressão do discurso realista inaugurados em Linha Direta e no New Journalism O contraste entre as duas experiências discursivas se encontra antes na especificidade dos modos pelos quais o real é apresentado em cada uma dessas configurações midiáticas, ou seja, as inovações no qualisigno79 que acompanha esses textos e que os tornou alvo de polêmicas. A questão implicitamente sugerida aqui parece ser a seguinte: há, sim, diferentes modos de representar a realidade, determinados por diversos fatores, como a intenção do produtor, a necessidade de provocar certas reações em um público espectador, e mesmo o tipo de meio técnico em que se trabalha. Mas, entre esses modos já conhecidos, há algum (ou alguns) mais propício a essa tarefa, mais naturalmente adequado para realizar uma aproximação ao real? 78

Pelos índices e pela experiência colateral, como se explicou anteriormente. Para Ransdell, “um qualisigno é um signo considerado particularmente no que diz respeito à sua qualidade intrínseca – sua aparência (isto é, sua propriedade primeira) – apenas na medida em que aquela qualidade é constitutiva de uma identidade sígnica que ele carrega: não é constitutiva dele como um signo, mas sim dele como o signo particular que ele é” (apud Santaella, 1995, p. 129). 79

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É válido aqui recuperar a discussão de Carroll, quando este argumenta que nenhuma técnica cinematográfica (seu objeto de análise no trabalho, mas entendida aqui como todo texto comprometido com o factual) por si só garante a verdade, pois toda técnica pode ser usada tanto na ficção quanto na não ficção80. O que ocorre é que algumas técnicas costumam ser normalmente associadas com documentários (com os textos de não ficção, de viés histórico), mas isso não significa que sua existência esteja restrita a esse gênero discursivo (Carroll, 1996, p. 243). Da mesma forma, pode-se inferir que as técnicas vinculadas aos textos de ficção (como a experimentação estilística em uma obra literária, por exemplo), ao serem

utilizadas

em

discursos

factuais,

não

tornam

(necessariamente)

problemática a relação desses textos com o real. Carroll (1996) acredita que essa confusão entre realismo e verdade deriva de um mal entendimento sobre o que significa, a um texto, ser realista. Para o autor, o realismo não significa uma relação direta entre um texto e a realidade, mas sim uma relação entre esse texto e outros textos mais ou menos realistas, de acordo com itens que eles possuem ou não. O realismo, assim, deve corresponder a uma análise das analogias consistentes (ausentes em outros estilos) que um texto faz a aspectos da realidade, sem jamais conseguir duplicá-la. Nesse sentido, Carroll (id) afirma que há vários tipos de realismo, que se contrapõem de acordo com elementos que outras obras não possuem, o que significaria que o termo não deveria ser usado sem prefixos. Mas de que classe de realismo estamos tratando nessas duas experiências discursivas? Ao discutir o conceito de realismo, parece-nos pertinente observar a soberania do real sobre todos os tipos de discurso, não apenas sobre os que assumem sua referência direta a aspectos factuais. Mesmo textos abertamente ficcionais tendem a provar sua relevância quando, de alguma maneira, referem à 80

Penafria (2003) lembra que mesmo as técnicas consideradas mais propícias para representar a realidade ‘pura’, sem interferências produtivas, tornam-se convenções e são utilizadas por textos ficcionais. Um exemplo é o filme The Blair Witch Project (1999), que utiliza recursos do Cinema Direto – como as imagens tremidas e o som registrado na própria filmagem, sem trilha sonora – para transmitir uma sensação de realidade que confunde o reconhecimento da natureza do relato em questão. Para Jost (2004, p. 32), a percepção dos códigos apresentados no filme como típicos de um documentário vêm de um conhecimento comum do gênero; no caso de Blair Witch, o jogo de identificação dos códigos imitados é que teria tornado o filme um sucesso.

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realidade – seja através da paródia, da polêmica, da sátira, do melodrama, da fantasia ou outros estilos, o que torna um discurso interessante é o reconhecimento de que, em algum nível, ele está referindo ao real. Como nos diz Eco, “para nos impressionar, nos perturbar, nos assustar ou nos comover com o mais impossível dos mundos, contamos com nosso conhecimento do mundo real (...), precisamos adotar o mundo real como pano de fundo” (apud Resende, 2002, p. 104). Sob tal perspectiva, vale observar o conceito de markedness (que pode ser traduzido como diferenciação), derivado da lingüística, que é transferido e desenvolvido por Shapiro (2003) dentro da semiótica peirceana. Segundo tal conceito, os signos se definem em termos de oposições, por uma situação de polaridade que os determina; ou seja, os signos se revelam através de marcações em relação aos seus contrários. Desse modo, o texto elaborado estilisticamente (como é o caso das crônicas do cotidiano apresentadas pelos discursos enfocados nessa pesquisa) é percebido como um signo marcado em relação à notícia tradicional: enquanto o texto jornalístico convencional engloba a crônica como um de seus possíveis formatos, a crônica parte da notícia padrão para concretizarse, estruturando-a em formatos diferenciados. Nesse sentido, é possível inferir que a mentira (que, de fato, é o oposto marcado da verdade) não pode não referir ao real que deixa de revelar. Os signos da mentira – ou, no caso dos produtos midiáticos, os signos do faz-de-conta, da ficção – nunca deixam de prestar referência à verdade sobre a qual são gerados. Peirce lembra que todo signo não tem como não fazer referência ao real, ou seja, um objeto determina seu signo “mesmo se o signo representar seu objeto falsamente” (apud Santaella, 1995, p. 84). A descoberta do real em um signo falso torna-se possível aos que sabem reconhecer os mecanismos semióticos pelos quais a mentira se expressa; nas palavras de Santaella, “para aquele que sabe ler signos, todos os signos só revelam a verdade” (id, p. 86). Mesmo a mentira pode revelar verdades – e, em textos que mentem ou fazem de conta, o nível de revelação do real expresso em seu uso de engano parece apontar sua importância. Para Jost, faz parte de toda experiência de recepção reconhecer em que nível de realidade um determinado texto está falando:

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Em se tratando de literatura ou de cinema, a primeira questão que o receptor busca resolver é a do estatuto do documento, o que remete o elo que o une ao mundo em que vive. O documento faz realmente referência ou cria um universo imaginário? Este é o papel do gênero e, mais particularmente, do nome do gênero: fixar o grau de existência do mundo submetido ao leitor ou ao espectador. O gênero é uma promessa global sobre esta relação que vai propor um quadro de interpretação global aos autores ou aos acontecimentos representados em palavras, em sons ou em imagem (Jost, 2004, p. 35). Como se argumentou anteriormente, chamar um filme de realista é também atentar para alguns itens que outros filmes não possuem (Carroll, 1996, p. 243). Num texto televisivo como o de Linha Direta, o que se observa é a ausência de um padrão de representação jornalística, baseado em uma busca de objetividade através do retrato puramente factual, dos dados precisos e impessoais. Para Linha Direta, interessa a transcendência desses limites, recheando os fatos com o conteúdo emocional que lhes é inerente. Sua classe de realismo passa a se expressar nas marcas do gênero melodramático e na atenção ampliada a momentos de absoluta cotidianidade, de banalidade assumida que, segundo Eagleton (2003), formam a própria base da estética realista ocidental. Esses momentos normalmente não são enfocados (ou pelo menos não com tanta ênfase) mesmo em programas reservados a grandes reportagens; o realismo de Linha Direta se situa entre o melodrama (já que dificilmente o programa foge da dicotomia entre bem e mal) próprio dos novelas, e a narrativa sensacionalista81 típica dos programas policiais adaptada a um padrão de qualidade da emissora.

81

A representação de Linha Direta da cotidianidade das histórias populares parece se dar por esse viés sensacionalista, pois realiza esse retrato da vida comum através da exploração do diferente e pela legitimação do “impulso agressivo do leitor pela denúncia dos atos criminosos e pela designação dos culpados” (Pedroso, 2001, p. 51). Constrói-se uma narrativa que distancia o leitor e a realidade mostrada que, sendo associada à marginalidade e obscuridade social, tanto assusta quanto fascina. O discurso de Linha Direta, assim, realiza a “exploração desse fascínio pelo extraordinário, pelo desvio, pela aberração, pela aventura, que é suposto existir apenas na classe baixa” (id, p. 52). Essa atenção ao estranho parece ser concretizada nos casos do programa pelo envolvimento das pessoas enfocadas com práticas sociais consideradas duvidosas ou próprias das classes populares, como rituais de religiões afro-brasileiras e todos os outros tipos de convicções espirituais não associadas ao catolicismo, ou com tipos de celebrações orgiásticas, excessivas, como festas de pagode e funk, ou mesmo com a própria realização dos crimes.

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Os objetos representados no programa apontam a temas considerados tabus – como a morte, a violência, o sofrimento, os conflitos familiares – que, de certa forma, exigem uma representação determinada, já consolidada como hábito82. Não se pode pensar nesses limites de representação como algo essencialmente artificial, forçosamente homologado, já que, como lembra Peirce (1893) ao argumentar sobre a doutrina sinequista, não há uma separação nítida entre o mundo natural e o cultural. Assim, os casos de Linha Direta passam a ser representados por uma narrativa dramática, plena de sentimentalismo, com a utilização de alguns artifícios de ação angustiante do gênero de suspense; torna-se inconcebível, por exemplo, um enfoque voltado ao humor. Abre-se então um novo viés de uma tradição já culturalmente assimilada nas experiências televisivas: se desde sua origem as novelas, assim como outros produtos assumidamente ficcionais, “precisam tanto da chancela da realidade” (Abramo, 2004, p. 7)83, no discurso de Linha Direta a realidade faz o caminho inverso, utilizando estratégias consolidadas pelas novelas para construir uma representação atraente. Da mesma forma, a narrativa trabalhada na vertente do New Journalism acusava a busca de uma ampliação da idéia de realismo no jornalismo convencional – com enfoque, assim como em Linha Direta, de cenas consideradas desnecessárias, supérfluas, tangenciais aos fatos –, o que só seria obtido com o exercício de técnicas literárias84 e com a transgressão de algumas formas de representação dos fatos típicas do jornalismo. A prática desses procedimentos apontaria à quebra de um paradigma jornalístico: a associação da obtenção da verdade ao mito do discurso objetivo, imparcial e impessoal. Para essa corrente 82

Na perspectiva semiótica, hábito é considerado como as normas já consolidadas para interpretação e representação dos objetos; na explicação de Silveira, “ao insistirem (os fenômenos) com sua presença diante de nós, iniciamos um processo de figurá-los e compará-los com os hábitos representativos já por nós adquiridos. Tais hábitos não necessitam ter sido produzidos conscientemente, ou mesmo, ter tido origem em alguma experiência feita por nós individualmente. Os hábitos são compartilhados com a espécie e com o meio e para sua colaboração todos colaboramos” (2003, p. 4). 83 Em sua crítica, Abramo sugere que a fragilidade da ficção feita para a televisão obrigue seus produtores a criar vínculos constantes de suas histórias com o real, “como que para preencher o vazio”, num recurso que seria mal realizado, já que as referências “da história, da geografia e das questões sociais são marretadas no meio da trama de qualquer jeito” (2004, p. 7). Para a autora, essa característica revelaria um certo esgotamento da fórmula das novelas. 84 Em especial às do Realismo Social, linha literária que inspirou boa parte dos esforços dos Novos Jornalistas, conforme se explicou no capítulo 1.

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jornalística, ao contrário, só se chegaria mais perto do real quando o jornalista assumisse sua posição de intérprete da cena que observa. Ao mesmo tempo, sua experiência parece atentar à própria estrutura, concretizando um discurso que se auto-referencia a todo instante. Mesmo rejeitando uma idéia de objetividade, a narrativa do New Journalism pode mesmo ser considerada, sob certa perspectiva, concisa: antes de apresentar o maior número de nuanças possíveis de um fato, é preciso atentar aos limites impostos pelo estilo. O realismo aproveitado nessa experiência discursiva casa o requinte estético da forma sucinta, elaboradamente sofisticada em referências inacessíveis a muitos, com a precisão indicial típica das notícias e a constante transmutação de vários subgêneros do jornalismo diário (como a narrativa implicitamente julgadora do jornalismo policial, ou o texto lisonjeiro e adulador do colunismo social) que, relacionados entre si e com as técnicas da literatura, geram os novos formatos do New Journalism – há, assim, um esforço na quebra dos hábitos de representação comumente associados aos fatos enquadrados. Em comum, esses dois produtos midiáticos revelam a recuperação de uma característica fundamental dos meios de comunicação – a atenção à sociabilidade e às interações decorrentes entre as pessoas (Scannell, 2004, p. 6). Neste ponto estaria boa parte da razão de ser de seus discursos e a base de sua busca por um relato realista: satisfazer a necessidade da fofoca85, do prazer de falar sobre os outros, desse tipo de curiosidade que é comum em todos os tipos de sociedade, sendo assim uma inegável característica social da vida humana (id, p. 7). Para Scannell, essa necessidade estaria fundada no fato de que a avaliação sobre o sentido de uma vida – de sua existência diária, aparentemente sem significância – só pode ocorrer pelos outros, nunca pelos próprios protagonistas de uma história. A representação de momentos cotidianos nos textos midiáticos termina por mostrar que a estrutura narrativa dos eventos do mundo (temporalmente organizada, com início, meio e fim) é a mesma da existência humana; sua diferença está no fato de que, ao contrário dos eventos externos, o sentido de nossa existência não está disponível para nós mesmos, pois só ocorre após nosso 85

O termo original – gossip – não remete à conotação pejorativa geralmente dada à palavra no Brasil; é associada ao prazer de falar dos outros, não necessariamente com más intenções.

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próprio fim (ibid, p. 10). As duas experiências discursivas em questão, dessa forma, parecem apontar à realização desse tipo de sociabilidade através da mídia86.

4.3. O retrato do cotidiano – as origens do realismo atualizadas em produtos midiáticos contemporâneos Nesse sentido, os discursos de Linha Direta e do New Journalism configuram-se como produtos diferentes a realizar o exercício da busca da verdade através do enfoque da vida cotidiana. Observando a rotina alheia, geralmente de pessoas simples, de classes populares, seus espectadores operam como espécie de detetives a procurar as pistas semióticas (os índices da verdade) que podem os aproximar dos segredos e mistérios da existência humana para, de forma mais ou menos autônoma, verificar o sentido – através de sua própria experiência, num raciocínio que se encaminha do que já se sabe (como os valores pessoais, a vivência anterior) em direção ao que se desconhece, conforme aponta Peirce (1877) – dessas narrativas que, de certo modo, poderiam ser a sua. Para Corner, “extrair ‘verdades reais’ do cenograficamente elaborado (...) parece ser o que ocorre em boa parte desse tipo de audiência, mesmo que se acabe não encontrando nenhuma verdade de fato” (2004, p. 3)87. Retoma-se assim as raízes do conceito de realismo, apontadas por Eagleton (2003) através da análise da clássica obra Mimesis, de Auerbach (1976/ 1946). Numa perspectiva semelhante à desenvolvida por Carroll (1996), Eagleton observa que o realismo artístico jamais consegue representar o mundo como ele é (pois, se pudesse – se superasse o limite semiótico de todo signo – cessaria de ser uma representação), mas sim o representa de acordo com os modos da vida real de representar o mundo; esses modos de representação variam nas diferentes 86

Vale recuperar aqui a reflexão de Scannell sobre os programas reality shows, que revelariam que “o enigma fundamental da existência diária e ordinária é sua aparente trivialidade e insignificância (...). É, ao mesmo tempo, a fonte de todo o significado e sentido e ao mesmo tempo não é importante, nada demais para se escrever sobre” (2004, p. 10). Tradução pessoal do texto original. 87 Tradução pessoal do texto original.

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culturas, decorrendo assim que “não podemos comparar a representação artística com o modo que o mundo é, já que o modo que o mundo é também é uma questão de representação” (Eagleton, 2003, p. 2)88. Sua argumentação aponta à idéia trazida por Peirce (1868) de que nosso acesso ao mundo é sempre ao mesmo tempo mediado (pois só o conhecemos através dos signos) e direto (pelo modo através do qual o objeto dinâmico afeta a nossa percepção). A maneira pela qual o percebemos, assim, já parte de um primeiro processo de representação. Descrevêlo, portanto, é sempre representá-lo novamente – e mesmo a mais completa das descrições não é capaz de duplicar o real. Tendo em vista esta soberania do real em todos os gêneros, a pergunta formulada por Eagleton (2003) parece emblemática: o que há de tão especial e precioso numa arte que retrata a vida como ela é? Por que apreciamos tanto que um artefato remeta ao seu correspondente real da maneira mais fidedigna possível? Por que esse tipo de representação parece nos atrair mais que a arte que extrapola as convenções e leis da natureza? Sob tais respostas se encontraria a origem dessa estética, que teria um fundamento de convicção religiosa, de inspiração cristã: há algo de inerentemente subversivo em apresentar as classes populares e seus ambientes circundantes à sociedade, assumindo-se assim que as classes altas são conservadoras porque não têm conhecimento da vida sórdida que os economicamente desfavorecidos são obrigados a levar (id). Nesse sentido, o trabalho de Auerbach (1976/ 1946) – no qual analisa o realismo ocidental inaugurado no relato bíblico em comparação com a narrativa grega da Odisséia de Homero – aponta a um uso valorativo de natureza moral do termo realismo, visto como a forma de arte mais madura e mais politicamente revolucionária. É a partir da Bíblia que a vida diária das pessoas comuns passa a ser tomada com extrema seriedade, rompendo com uma arte anciã estática, hierárquica e socialmente exclusiva (Eagleton, 2003, p. 6), sendo esse posicionamento de influência judaico-cristã: é através do evangelho cristão, no qual Deus reencarna na Terra como pobre e indigente, que a relação entre a vida simples e a salvação começa a ser feita (id, p. 7). O retrato digno das classes 88

Tradução pessoal do texto original.

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populares é lembrado na literatura, quando uma personagem comunista de Kundera defende sua fé argumentando que “as igrejas não compreenderam que o movimento operário era a escalada dos humilhados e dos necessitados, famintos de justiça” (1992, p. 218). Baseado na tradição cultural significada pela Bíblia, o relato pertinente é o que recupera esse caráter populista inaugurado no mais antigo dos textos realistas. Além de concretizar o ideal realista, o retrato das pessoas comuns permitiria um maior trabalho por parte do autor e uma maior liberdade para a seleção e criação dos signos para representá-las, já que não haveria uma grande experiência colateral com a personalidade observada que determinasse seu entendimento. Nesse sentido, o Novo Jornalista Gay Talese expressou sua preferência pelo enfoque de desconhecidos, ao invés de célebres: “é mais desafiante escrever sobre pessoas anônimas (...). Quando se escreve sobre uma pessoa famosa, o leitor tem um retrato em sua mente. Mas se o escritor está lidando com o que você chamou de pessoas anônimas, então necessita apresentar essas figuras da forma que um romancista faria. É preciso fazer um retrato em palavras” (apud Brasil, 2004, p. 1). Observando os objetos de estudo dessa pesquisa, o que se nota são aproveitamentos semelhantes dessa perspectiva ocidental de realismo. Sendo a semiose definida como a busca da verdade ou última opinião (sendo essa uma característica natural do ser humano, segundo a idéia peirceana) através de um processo de causação final, tende-se sempre a procurar (mesmo na ficção ou na mentira) o referente real que determina o signo. A vida real, nesse sentido, é aquela que nos apresenta a experiência ‘da verdade’, do diferente e exótico, que ocorre apenas na vida do mais pobre (ou, na experiência contraposta, do mais rico). A procura desses momentos de ‘vida de verdade’ é o telos que ambos os relatos buscam, através da mistura das fronteiras entre pólos opostos (o jornalismo escrito da imprensa tradicional e o telejornal clássico, e no outro lado da fronteira a ficção clássica do romance policial), com diferentes objetivos e modos de representação, com o uso de signos específicos e a busca de novos interpretantes, que vão levar a formas distintas – por vezes até contrastantes – de entendimento desses textos.

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4.4. Comparativos entre New Journalism e Linha Direta: identificação dos movimentos e categorias analíticas mobilizadas na pesquisa À

conclusão

desse

capítulo,

pretende-se

sistematizar

o

trajeto

desenvolvido nesse trabalho através da identificação de categorizações analíticas que englobam a totalidade dos movimentos da pesquisa. Não se trata de apontar categorias estanques (pois elas se perpassam por vários momentos da análise, sendo apenas consideradas momentos-chave do texto), mas sim de tentar sintetizar e organizar os passos dados nesse percurso e tornar claros as analogias e confrontos visualizados nas experiências do New Journalism e de Linha Direta, de modo a viabilizar a realização do objetivo final desse estudo: verificar quais as diferenças observadas nas estratégias escolhidas por ambos os produtos midiáticos para representar o real. 1.! Paralelismo inicial constatado por essa pesquisa – as premissas propulsoras para tal comparação Ambos são produtos midiáticos realistas (pois mantêm em sua essência o objetivo de realizar um retrato fidedigno, plausível e verossímil da realidade) configurados como signos que se propõem a buscar o real através do enfoque de cenas consideradas supérfluas, do cotidiano, e situações classificadas como da esfera íntima, de bastidores, entendidas como momentos de pura autenticidade – representando tais fatos através de relatos estilisticamente diferenciados que tendem a misturar as fronteiras discursivas do real e da ficção. Esse embaralhamento provém de uma certa confusão comumente feita entre o fazer de conta e a mentira (Jost, 2004). A mistura desses limites, porém, não significa que os textos percam seu caráter documental, como relatos que se referem a fenômenos reais do mundo – pois o trabalho estético diferenciado não impede o cumprimento dos parâmetros que devem ser obedecidos para que um discurso possa reportar o real (Carroll, 1996).

120

Tal busca remete, nos dois casos, à discussão clássica trazida por Auerbach (1976/ 1946) e reformulada recentemente por Eagleton (2003): trata-se de uma retomada das origens dos preceitos da estética realista, cujo fundamento estaria vinculado à representação das minorias, das classes populares, como forma de fazer vir à tona a essência da existência humana. Dessa forma, assemelham-se na essência do seu relato que se interessa tanto pelos mais pobres (concretizando o caráter populista subjacente aos critérios de Auerbach, conforme a tese apresentada por Eagleton) quanto pelos mais ricos (no movimento contrário mas com mesmo propósito, como uma tentativa de revelar as incoerências de seu estilo de vida). 2.! Observação da estrutura narrativa dos objetos de pesquisa

2.1. Enquanto concretizadores de diferentes linguagens midiáticas, com distintas naturezas tecnológicas – discussão trazida por McLuhan (2002/ 1964) e Ong (1998): NJ

LD

Mídia impressa, circunscrita à esfera do privado; faz uso da consciência instaurada pela escrita e, desse modo, pode tirar proveito de modelos lingüisticos mais complexos, já que não mais depende da repetição proveniente da oralidade. Descendente das propriedades sensoriais de experimentação coletiva provenientes das culturas orais; sendo assim, deve fazer uso de recursos normalmente empregados nessa cultura, como as formulações simples, a redundância, a limitação das personagens em poucas características suas (Ong, 1998).

2.2. Em relação ao uso das formas consolidadas para representar o mundo (Amossy e Herschberg Pierrot, 2001): NJ

Busca pela quebra das formas fixas consolidadas, na tentativa de criar novas expressões (como radical chique, marxista rococó) e novos modelos de estereótipos ligados aos grupos emergentes de seu contexto social.

121

LD

Uso de gênero, ligado aos procedimentos das culturas orais (Ong, 1998); reiteração de fórmulas socialmente assimiladas e expressões fixas para determinar aspectos da recepção.

2.3. Em relação à dinâmica de vozes concretizada em seu discurso (Bakhtin, 1997b/ 1929):

NJ

LD

Concretização de um discurso polifônico, no qual as falas são oferecidas; a voz do autor aparece como fio condutor da história, mas não as regula segundo uma forma de entendimento que deve ser concretizada na instância de recepção. O interesse é justamente de trazer ao discurso a dissonância, o conflito entre as consciências que se cruzam nesse processo: a voz das personagens, o autor, o texto em sua integralidade, o público leitor. Construção de um discurso monológico, já que, em sua narrativa, as falas selecionadas pelos depoimentos são sintetizadas em uma única voz, ou seja, a fala do próprio programa, que opera como o discurso dominador a determinar a inserção de cada fala nessa narrativa de acordo com interesses específicos, de forma a reiterar um único sentido.

2.4. Classes de realismo concretizadas em seu discurso (Carroll, 1996):

NJ

Realismo construído através da transmutação e matização de vários subgêneros jornalísticos, situado entre o requinte sucinto da forma, a interpretação subjetiva e a precisão no maior número possível de dados captados.

LD

Idéia de um realismo que mimetiza elementos das classes populares, concretizado através de uma narrativa dramática construída entre os recursos do suspense, o melodrama típico das telenovelas e um caráter de serviço, de execução de uma tarefa cívica.

3. Observação semiótica

3.1. Paralelismo observado:

122

NJ E LD

Narrativas do New Journalism e Linha Direta como signos complexos – marcados em relação ao seu gênero de origem, o relato jornalístico convencional (Shapiro, 2003) – cujo telos é revelar gradualmente seu objeto imediato, ou seja, o real conforme configurado nos temas escolhidos e captado para tais representações. Fundam-se na presença do elemento indicial (que denota a existência concreta dos dados apresentados) e da experiência colateral (Bergman, 2004) do seu leitor para provarem-se como referentes ao real, mas afastam-se de seus gêneros originais através da renovação do elemento icônico (as inovações estéticas que trazem). Ambas se encontram irreversivelmente afastadas dos fatos e dependem da reconstrução realizada por um sujeito ou uma equipe, o que não impede a legitimidade e o sucesso (mesmo que parcial e falível) de sua busca pela verdade (Ransdell, 2004e) – pois o processo de manipulação e interpretação de dados é comum a todos os discursos que se pretendem referentes ao real (Carroll, 1996) e a todos os procedimentos ou métodos escolhidos para atingir uma crença e deixar a verdade vir à tona (Peirce, 1877).

3.2. Como signo complexo: NJ

LD

Concretizado através de esquemas simbólicos do sistema lingüístico que pressupõem a presença de uma voz autoral, visto que remetem diretamente à tarefa de organizar a série de signos em todo processo comunicacional. Predominância de elementos icônico-indiciais dos recursos audiovisuais que identificam seus objetos por relações de semelhança e existência. Já que ainda não acarretam a geração de um interpretante lógico socialmente determinado, podem abrir espaço para um maior número de sentidos a ser gerados a partir de sua presença.

3.3. Interpretantes gerados a partir de sua configuração: NJ

Proposição de novos interpretantes dinâmicos aos fatos através da renovação desse telos: ao tornar visíveis as diferentes facetas de um fato, estabelece-se um esforço para que se concretize a quebra dos sentidos normalmente determinados pelas reportagens convencionais, como forma de se aproximar, de modo mais interessante e provocador, ao real.

123

LD

Proposição de novos interpretantes dinâmicos aos fatos através da manutenção do telos: no intuito de ampliar as nuanças circundantes aos fatos reportados, para que se possa estabelecer uma relação mais viva (marcando oposição ao relato ‘frio’ e impessoal do jornalismo diário) e mais próxima ao real, acabam concretizando os mesmos sentidos que seriam gerados por uma notícia do jornalismo diário.

3.4. Determinação de sua forma de representação: NJ

LD

Escolha de objetos que, em razão de sua novidade, seu ineditismo, não possuem muitos hábitos consolidados de representação, possibilitando que o autor seja mais livre para criar ou optar por novos signos para enfocá-los. Em sua experiência, reitera – assim como ocorre no caso de Linha Direta – a inovação instaurada no realismo a partir do relato bíblico, conforme aponta Auerbach (1976/ 1946), quebrando a separação entre a arte de elite e a popular através da atenção a protagonistas comuns ou não célebres. Enfoque de objetos tidos como tabus – a morte, a violência, a tragédia, as relações familiares – que já impõem limites a sua representação. Não se pode pensar, por exemplo, num relato humorístico para esses temas.

Seguindo nesse raciocínio, uma questão surge como pertinente: na diversidade de signos incluídos nas complexas semioses que são os processos midiáticos em questão, quais são os símbolos que possuem papel central nessas narrativas recuperadoras dos preceitos realistas, participando diretamente da interpretação desses discursos? A observação em ambos os relatos aproxima-nos do problema dessa pesquisa: o entendimento da função do narrador e do apresentador nos textos midiáticos do New Journalism e de Linha Direta, respectivamente, como signos fundamentais na formação da identidade e da interpretabilidade dessas duas variantes discursivas. Nossa proposta, para a conclusão desta pesquisa, é a de analisar os modos de funcionamento desses elementos semióticos, entendendo-os como operadores fundamentais

e

necessários

na

construção

de

narrativas

verossímeis

(relacionando-se assim ao papel simbólico dos estereótipos) e na autenticação

124

desses textos como relatos verdadeiros ou ao menos verossímeis, coerentes89 com o mundo factual no qual se baseiam. Assim, através da análise desses signos centrais em ambas as experiências discursivas, acredita-se ser possível entender, finalmente, os modos de representação do real conforme eles ocorrem nas linguagens midiáticas em foco.

89

Essa coerência é atingida de fato através dos signos icônico-indiciais que relacionam os dados apresentados no relato à existência concreta desses elementos na cena real que é descrita. Esses elementos remetem à reflexão proposta por Barthes (1988) sobre o pormenor supérfluo, ou seja, o signo indicial inserido na narrativa ficcional realista, selecionado de forma a causar a ilusão de um acesso sem mediações a um real puro e autêntico.

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5. Os signos de identidade – as figuras semióticas do apresentador e do narrador como índices da enunciação Ao entendermos essas duas narrativas como signos complexos, referimonos ao conjunto de signos de diferentes espécies (aspectos icônico-indiciais e simbólicos, como as imagens enfocadas, as qualidades estéticas, os índices de natureza jornalística e o sistema semântico e simbólico da língua) que são coordenados no produto final de forma a designar um signo unitário, unificador (no caso, o relato audiovisual das edições de Linha Direta e as reportagens impressas do New Journalism). Ransdell (2004c, p. 6) lembra que é impossível determinar com exatidão quantos signos existem em um texto concreto pois não há um número certo a ser contado, além de os limites entre os signos serem delimitados apenas vagamente e as categorias sígnicas serem relativas, dependentes do olhar investido a elas pelo analista. Há, porém, uma certa unidade definida e reconhecida pelo público receptor desses textos complexos. Impõe-se, portanto, a questão: nessa grande complexidade de signos que são os produtos dos meios de comunicação social, quais são os signos que operam de modo a trazer unidade à narrativa ou, de forma mais específica, trabalham com intuito de determinar a identidade desses dois fenômenos midiáticos? Que signos possuem papel central na interpretabilidade dos textos do New Journalism e Linha Direta? Talvez seja possível falar de uma certa hierarquia entre os signos, sugerindo que alguns representamina possam determinar de forma mais substantiva as referências contidas nesses textos – em elementos que, quase espontaneamente, possuem uma carga de significação mais expressiva se comparados com outros signos contidos no mesmo discurso. São signos que funcionam já como interpretantes, ou seja, são signos relativamente mais desenvolvidos entre os demais inseridos em certo discurso, convencionalmente reconhecíveis (através da experiência colateral possuída por seu público pelo contato com gêneros semelhantes e com conhecimentos socioculturais) enquanto elementos pertinentes para tal hábito de representação.

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Sob tal perspectiva, a investigação sobre a figura do narrador nos dois objetos empíricos aqui enfocados se apresenta como um problema de pesquisa relevante a ser examinado. A análise de tais signos aponta, dessa forma, não a uma escolha subjetiva e arbitrária, mas ao reconhecimento do elemento narrativo como parte central das estruturas sígnicas observadas, impondo sua análise como essencial para se possa compreender o entendimento desses produtos midiáticos verificado em seu público. Enquanto elementos simbólicos, esses papéis (o narrador do gênero literário no New Journalism, e seu elemento homólogo na narrativa de Linha Direta, a figura do apresentador do programa) materializam através de suas presenças a propriedade de representação da voz autoral, operando também como índices de enunciação, pois apontam a natureza do discurso estruturado e os contextos sociais que cercam esse enunciado. São, assim, a própria personificação do interesse dos meios90, cabendo a eles uma tarefa de, enquanto representantes das mídias, auto-explicar o texto que anuncia e encaminha a compreensão privilegiada. Sua relevância é refletida também no fato de que se tratam de símbolos; nesse sentido, configuram-se como signos que operam através de mediações e dependem do reconhecimento dessas convenções para que sejam decodificados apropriadamente, sendo sua função crescer nos interpretantes que gerarão. Por seu caráter de generalidade, são facilmente distinguíveis por espectadores com experiência nesses tipos de configuração discursiva. Assim, pode-se dizer que tais figuras semióticas exercem determinação central na identificação do tipo de discurso (textos jornalísticos, nos quais parece correta a inserção da figura do repórter investigativo e do apresentador de telejornais, ou da voz do jornalista que não apenas informa, mas também narra e comenta o fato) e a especificidade de sua atuação apontará a diferentes modos de entendimento e interpretação dos textos 90

No caso do New Journalism, embora seus autores tenham trabalhado em empresas de comunicação (como Gay Talese no jornal The New York Times e Tom Wolfe na revista Esquire e nos jornais The Washington Post e The New York Herald Tribune), não há vinculação direta do trabalho desses jornalistas com nenhuma instituição midiática específica, pois sua produção foi difundida prioritariamente em livros. Mesmo assim, vale atentar aqui que mesmo o trabalho jornalístico-literário configura como uma categoria da produção cultural humana que, embora seja sempre mais vinculada ao seu caráter artístico, intelectual, participa do conceito de mídia, já que, como todo meio de comunicação, está vinculado a um tipo de indústria (editorial) e atinge um público massivo.

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em que se encontram. Essa interpretação oferecida e delimitada pela voz da enunciação nem sempre será concretizada na experiência de recepção do público, mas é inegável o reconhecimento da existência de um sentido oficial ou preferível91, garantido já no processo de escolha e manipulação dos signos, que livremente concretizarão tais idéias. Ao rever as discussões em torno de teorias de interpretação e leitura, Eco nos fala sobre o “autor como modo de ser do discurso, campo de coerência conceitual e unidade estilística” (1995, p. 3), refletindo assim sobre os modos pelos quais a figura enunciativa de algum texto realiza delimitações de sentido sobre o mesmo – ainda que esse signo de enunciação não esteja nitidamente expresso na narrativa, como no caso em que a experiência colateral com o autor do discurso gera certas expectativas de recepção (por exemplo, a espera da retomada do estilo típico de um escritor, ou de algumas temáticas constantes de um autor de telenovelas92). Entende-se, pois, a figura do narrador como um signo identitário, reconhecedor do tipo de discurso do qual se trata e direcionador de entendimentos a partir de sua configuração estilística. Mais do que simples signo, opera como uma espécie de guia a determinar signos que o sucedem, delimitando interpretações prováveis ou mais aceitáveis que outras. Seu reconhecimento apontará a pertinência dos elementos seguintes no discurso. Tratam-se de signos que operam com interpretantes e apontam a funções discursivas que são 91

Essa idéia é refletida por Eco (1995) ao tratar da intentio operis, ou seja, as intenções que são concretizadas em uma obra, e que não estão em relação de dependência direta com a intenção do autor (intentio auctoris) ou os sentidos captados pelo leitor (intentio lectoris); para o autor, “isso não significa que só se possa fazer sobre um texto uma e apenas uma conjectura interpretativa. Em princípio, podemos fazer uma infinidade delas. Mas no fim as conjecturas deverão ser testadas sobre a coerência do texto e à coerência textual só restará desaprovar as conjecturas levianas” (1995, p. 15). 92 Assistiu-se recentemente a um exemplo interessante desse assunto em uma das mais emblemáticas categorias de produção midiática no país, a telenovela. Em 2003, foi ao ar a novela Celebridade, da Rede Globo, que anunciava a volta do autor Gilberto Braga. Sendo dos mais respeitados autores televisivos, houve uma expectativa em torno da obra, visto as marcas comuns nas novelas anteriores do autor, como referências a características reconhecidamente brasileiras e ao contexto político do país (como em Vale Tudo, 1988) e a busca por uma trama não maniqueísta, em que o conflito entre as forças sociais não se encerrasse pela punição do mal (em O Dono do Mundo, 1991). Surpreendentemente, Celebridade não concretizou tais expectativas e configurouse como a mais típica das telenovelas; frente à discussão gerada por essa quebra, Gilberto Braga alegou que tentava justamente não repetir a si mesmo.

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configuradas a partir de sua inclusão no relato: no caso do New Journalism, a presença de um autor comentarista dos fatos, que explicita seu posicionamento através da ironia, do jogo de palavras, das referências eruditas, da provocação; em Linha Direta, através de um apresentador que resume a história e sutilmente aponta julgamentos às personagens em foco. Nesse mesmo sentido, vale retomar as considerações de Bakhtin sobre o entendimento da individualidade de uma obra, nas quais sugere a existência de uma característica interna particular que se explicitaria por elementos estilísticos do texto. Essa característica exporia as relações de uma obra com as que a antecederam, para então revelar a atualização contida em seu próprio signo. O cunho de individualidade de uma obra, em suas palavras, “é justamente o que cria as fronteiras internas específicas que, no processo da comunicação verbal, a distinguem das outras obras com as quais se relaciona dentro de uma dada esfera cultural” (Bakhtin, 1997a, p. 298). Dessa forma, propõe-se pensar nessa categoria sígnica do narrador como uma espécie de signo-guia, já que se trata de um signo que orienta seu público à compreensão adequada do trajeto narrativo trilhado nesses textos. Configura-se como um elemento fundamental na experiência de ambas as narrativas midiáticas investigadas aqui: no caso do New Journalism, observa-se a participação do narrador como próprio ator discursivo, papel que Resende (2002) denominou de narrador-jornalista, ou seja, o repórter inserido no texto como personagem, resultando num relato que se apresenta por vezes como paratexto (que indica e explica a si mesmo, como um prólogo, apontando sua categorização enquanto produto textual jornalístico), atentando não só para as informações que transmite, mas para o estilo no qual esses dados são trabalhados. Para ele, a inserção dos Novos Jornalistas dentro de seu próprio texto “representa as dobras que, indelevelmente, acompanham o indivíduo que cumpre o papel de jornalista, desconstruindo assim a figura autoritária do repórter” (id, p. 90). No entanto, de forma mais abrangente – e não se limitando apenas às vezes em que o autor se insere no relato, técnica encontrada na obra de praticamente todos os autores dessa vertente – a figura do narrador tende a se revelar nos textos provenientes do New Journalism pela própria identificação da marca autoral de

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seu produtor, a indicação de seu estilo. É essa identificação – já contida no próprio signo textual – que permite atribuir a construção de tal reportagem a Novos Jornalistas (e não a repórteres do jornalismo convencional, que se apresentam no relato mais como informantes do que propriamente como narradores), ou possibilita a diferenciação entre as obras de Tom Wolfe e Gay Talese, possuidoras de marcas estilísticas distintas. É também essa marca que parece permitir a aceitação de tais textos como pertencentes ao sistema do jornalismo: a ‘assinatura’ de um repórter reconhecido passa a submetê-lo às cobranças do discurso factual, mesmo que seu discurso carregue uma vastidão de marcas remetentes antes ao mundo livremente construído da ficção. Por outro lado, o programa Linha Direta provém de uma lógica de produção televisiva e, dessa forma, apresenta-se como autoria coletiva, menos identificada como obra individual, conforme normalmente ocorre nos textos escritos. Não há em Linha Direta, portanto, uma marca distintiva de autor, que distinga uma edição de outra ou o trabalho de diferentes roteiristas e diretores. Sua autoria se refere à empresa que o veicula (a Rede Globo) e sua marca é de gênero e de formato midiático, que aqui definem um texto híbrido trabalhado entre o clássico relato policial encontrado nos jornais convencionais e a narrativa melodramática atualizada nas histórias abertamente ficcionais das novelas. A figura do narrador, coexistindo à narrativa do programa em questão de modo distinto ao narrador-jornalista do New Journalism, pode ser apreendida analogamente, nessa experiência televisiva, através do papel discursivo personificado na figura do apresentador93 do programa. Mesmo sendo recuperador de padrões jornalísticos do tratamento da notícia, há um certo rompimento com a figura tradicional do apresentador isento, como personagem imparcial que deixa aos entrevistados e à produção das notícias a tarefa de determinar sentidos os acontecimentos narrados. O jornalista 93

Observa-se que o programa possui ainda uma outra voz de narração, veiculada em off em cenas simuladas por uma voz masculina (na edição convencional do programa) e outra feminina (de Nina de Pádua, atriz da própria emissora, nos casos de Linha Direta Justiça). Em sua pesquisa, Mendonça (2002) constatou em entrevistas que a maior parte dos espectadores do programa nem mesmo notava que a voz em off não era de Domingos Meirelles. Dessa forma, considera-se aqui o papel do apresentador como predominante, englobando inclusive a presença do outro narrador.

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Domingos Meirelles, que desempenha a função de apresentador em Linha Direta94, personifica seu papel de forma a gerar uma fala expressiva, reconhecível e concretizadora de sentidos melodramáticos. Ainda que seja possível notar seu esforço em externar uma fala aparentemente neutra – em outra pesquisa, considerou-se que Domingos Meirelles desempenhava seu papel com “placidez” (Tondato e Lopes, 2004, p. 12) – são muitos os elementos semióticos, verbais e não-verbais, presentes em sua figura (como a iconicidade de sua expressão severa, tensa, o tom de sua voz, suas mãos sempre juntas, mostrando seriedade e ao mesmo tempo uma confiança no que está sendo exibido, seus movimentos firmes no cenário repleto de imagens de acusados e vítimas, as constantes mudanças em seu olhar) e no estilo retórico muito conhecido de sua fala (o quase inevitável proferimento de termos valorativos, expressões clichés, frases irônicas e enfáticas que corroboram a construção dramatizada do crime exibida em seguida). Meirelles ajuda a direcionar a interpretação normal ou desejada à história contada pelo programa, função também observada por Andacht (2003b) em um outro subgênero de reality show, na figura do apresentador do programa Big Brother Brasil95. Acaba por se tornar, assim, uma marca do programa, extremamente relevante na geração de sentidos dos crimes apresentados. Ao apresentador cabe um papel discursivo central, ou seja, o de restringir e encaminhar o entendimento do produto midiático – é, portanto, um elemento simbólico de importância crucial na estrutura discursiva de Linha Direta. Funciona como um legisigno, um signo que opera por lei de representação, devendo ser reconhecido como tal para poder desempenhar sua função de crescer

94

Esse papel foi exercido anteriormente pelo repórter Marcelo Rezende, um dos idealizadores do programa. Atualmente, o jornalista desempenha o papel de apresentador em outros programas de cunho investigativo-policial, vertente na qual seguiu atuando após o fim de sua participação em Linha Direta; é também, portanto, um signo a identificar esse tipo de discurso jornalístico trabalhado no programa. Numa breve exploração com espectadores antigos de Linha Direta, Rezende foi descrito como mais “carismático” que o atual apresentador Domingos Meirelles, que foi definido como mais “sério” e com tendência a deixar os limites de sentido das histórias apresentadas mais “fechados” – ou seja, previamente determinados – favorecendo uma interpretação maniqueísta dos casos. 95 Ainda que se reconheça que, no caso de Big Brother Brasil, a apresentação ocorra de forma absolutamente diferente, voltada a um relato mais leve, sedutor, humorístico – quase oposta à experiência de narração oferecida pelo apresentador de Linha Direta.

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nos interpretantes que irá gerar e dar seqüência à cadeia semiótica pretendida, de forma a tender ao conhecimento do objeto dinâmico. Mas de que forma essa determinação ocorre nessas duas variantes discursivas? Quais as diferenças observadas neste elemento semiótico central entre as duas representações elaboradas em configurações jornalísticas nitidamente distintas? Como ocorre a experiência triádica da narração (pois opera por mediações, produzindo interpretantes que delimitam a tradução dos sentidos adequados a serem captados pelos participantes dessas práticas midiáticas) na comunicação essencialmente simbólica do repórter do New Journalism (cuja relação com o texto se dá prioritariamente pelo sistema convencional da língua) e nos signos icônico-indiciais e simbólicos do apresentador de Linha Direta (corporificados na existência exterior, real e qualitativa de sua atuação)? A busca de tais respostas exige um olhar mais próximo aos textos concretos do New Journalism e Linha Direta, em momentos propostos como representativos dos dois tipos de discurso. Tendo em vista a abordagem qualitativa delineada durante todas as etapas dessa pesquisa, para tal observação pretende-se trabalhar com dois casos específicos dessas configurações midiáticas. Trata-se, no que se refere ao Linha Direta, de uma edição típica das estratégias textuais do programa. Apresenta-se aqui um caso de assassinato ocorrido em uma pequena cidade brasileira (no interior de Minas Gerais), com o envolvimento de pessoas de hábitos simples (quando não também economicamente desfavorecidas) e sempre ligadas por relações de afetividade, sendo a justificativa para tal ato de violência associada a motivações emocionais baseadas em valores claros e explicitamente condenados pela voz do programa. Já para a análise do New Journalism, toma-se como exemplo a reportagem Radical Chique (publicada em 1970 na New York Magazine e no livro Radical Chic & Mau-Mauing the Flak Catchers), na qual Tom Wolfe realiza um comentário social sobre um comportamento típico do fim dos anos 60, proveniente da assimilação dos movimentos de contracultura e de um seqüente esforço por parte de uma elite nova-iorquina em abraçar essas iniciativas, como forma de simular uma aparente modernidade e sofisticação intelectual. Considera-

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se essa reportagem como das mais significativas obras da corrente do New Journalism, visto as reações geradas em sua veiculação original e o legado observado nas posteriores obras de jornalistas interessados no relato literáriointerpretativo, assim como no próprio uso da expressão radical chique, difundido em escala mundial mesmo com seu sentido original corrompido96. Apresenta-se, então, tais edições de Linha Direta e do New Journalism como forma de trazer à tona as constantes discursivas observadas em ambas as configurações midiáticas que, em seguida, serão abordadas comparativamente quanto à questão das marcas do elemento narrativo que carregam em sua existência concreta.

5.1. O preço da traição – estratégias de Linha Direta refletidas em um crime no interior Veiculado em 11 de novembro de 2004, o caso de Linha Direta observado aqui é anunciado no início do programa pelo apresentador Domingos Meirelles como O Preço da Traição, e associado a uma espécie de subtítulo proferido pelo narrador: “um jovem mata um homem para receber 45 reais”97. Trata-se do segundo caso apresentado na edição, e conta uma história de assassinato ocorrida na cidade de Pedra Azul, no interior de Minas Gerais, na qual um homem aposentado, José Reis, foi morto numa emboscada armada por três rapazes. Um deles, Hélton Viana, 21 anos, conhecido da vítima, teria sido o comandante do crime.

96

Mesmo no Brasil observa-se uma grande difusão da expressão, nomeando lojas, marcas comerciais e todos os tipos de produto. No país, Radical Chique ainda foi o nome de uma personagem criada pelo desenhista Miguel Paiva, que figurou nas páginas de várias revistas e jornais e protagonizou um programa da Rede Globo voltado ao público jovem. A personagem não guarda qualquer coincidência com o conceito de Tom Wolfe: trata-se de uma jovem adulta que discute os problemas da “mulher moderna”, ou seja, financeira e emocionalmente independente do homem, numa abordagem antes politicamente correta do que crítica. 97 Nota-se aqui o primeiro hibridismo entre os recursos dos mundos ficcional e real: o título do episódio é essencialmente poético, não informativo, ligado às técnicas dos textos literários; o subtítulo contém apenas dados concretos, é puramente noticioso, simples e direto, típico do jornalismo diário.

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A representação do caso preenche dezessete minutos do programa. São ouvidas doze vozes distintas (o apresentador, o narrador, uma vizinha, a caseira, dois irmãos, um amigo, a filha, a mulher e o genro da vítima, o delegado e o promotor do caso), sendo que as vozes predominantes são as de Domingos Meirelles – que faz 13 inserções durante o relato, abrindo e fechando a história pela solicitação das denúncias – e do narrador anônimo. É essa voz do narrador que inicia indicialmente a descrição em off98 do acontecimento: apresenta-se aqui um fato ocorrido no interior de Minas Gerais – a princípio não há a especificação da cidade; é preciso antes de tudo delimitar essa atmosfera de interior, do homem do campo, do ambiente caipira, sertanejo. Um menino chega à casa de José Reis e grita para que o aposentado traga-lhe, como faz todos os dias, as latas de bebida vazias que costuma guardar para ele. A casa está aberta, mas ninguém vem à porta. Não obtendo respostas, o menino pede ajuda a uma vizinha para descobrir o que estaria acontecendo naquele dia com o “Zé”. Essa vizinha – chamada Ana Evarista Neves – toma a voz para explicar o que ocorreu: ao entrar na casa na companhia de um homem (cujo nome não é identificado), achou tudo muito estranho. Não havia sinal do dono da casa, os objetos estavam revirados e penas de pássaros eram vistas pelo chão (na simulação, observa-se um close no assoalho, nas gaiolas vazias dos passarinhos, que haviam sido levados. Trata-se de uma imagem fundamental, não gratuitamente escolhida, que terá forte função no sentido dessa narrativa). A chave estava na porta e as luzes estavam acesas, o que sugeriu que não se tratava de um simples assalto. A poucos quilômetros dali, um vaqueiro encontra José Reis na estrada, ainda vivo, amarrado e amordaçado. Nas palavras de Ana Evarista (que fala pausadamente, com pesar): “Foi um choque. Porque quando você mora no interior, acha que está livre disso aí, e não está... é... é desumano o que fizeram com ele”. Um irmão da vítima, José Licínio do Amaral, afirma que Reis foi pego numa emboscada, pois “o cara conhecia ele, andava com ele... foi maltratado demais”. A filha do aposentado, Marcela, com o rosto coberto, reitera a dor da perda. Entram em cena algumas imagens da agressão sofrida por José Reis pelos 98

Recurso típico do telejornalismo e do documentário, em que uma voz narra um texto coberto por imagens referentes à informação, sem que se veja o rosto de quem fala.

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três jovens, como uma espécie de lead99 – nesse caso, a ocorrência do crime, dado que enquadra o acontecimento como pertinente do discurso de Linha Direta. Volta-se ao estúdio e Domingos Meirelles (fig. 1), formalmente vestido (usa um sóbrio terno escuro), frente a uma foto amarelada de José Reis, exibida num telão formado por quatro televisores, anuncia que a vítima era conhecida “como um homem bom, alegre e sem ambições. Aos 57 anos, ele se dividia entre a família, uma pequena fazenda e os amigos. Mas José Reis foi morto de forma covarde e brutal. O assassino, Hélton Viana (aponta para uma tela razoavelmente menor, na qual se vê uma foto de Hélton, que sorri, esparramado confortavelmente em um sofá), um jovem que ele viu crescer, e para quem até arranjou um emprego. O preço da traição: 45 reais, o revólver, objetos pessoais... (longa pausa) e três passarinhos”. Fig. 1 – Domingos Meirelles no estúdio, em frente à foto de José Reis

99

Princípio jornalístico que postula a abertura de uma notícia pelas principais informações que carrega, como forma de prender a atenção do receptor.

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A gestualidade de Meirelles é sintomática: anda pelo estúdio e mantém as mãos fortemente unidas, esfregando-as eventualmente. Seu olhar muda durante a narração, arregalando-se com ênfase ao citar os três passarinhos roubados – no intuito de causar um sentido de indignação, é feita a associação direta da morte de Reis com o roubo dos pássaros e a quantidade de dinheiro levado, quase num sentido de ironia extravasada não pelo cômico, mas pelo trágico, pelo absurdo; é esse o anunciado preço da traição, um valor ínfimo para justificar as conseqüências do ato100. Em sua fala, é expresso um sistema completo de valores morais admiráveis personificados na figura da vítima e associados a um tipo popular: a alegria, a bondade (chegou mesmo a oferecer um emprego para seu assassino) e a falta de ambições, características típicas do caipira, homem da zona rural, de pouca instrução e necessidades simples; mesmo que José Reis não possa ser considerado exatamente um homem humilde (afinal, era dono de uma “pequena fazenda”), é de hábitos e valores simples, sem ganância, satisfeito com o que já conseguiu. Após a delimitação das qualidades da vítima, parte-se para a caracterização do acusado, através do depoimento de um delegado responsável pelo caso. Sua personalidade é apresentada como oposta a de José Reis: é ganancioso e desonesto, praticante de pequenos furtos. Além disso, atuou como “mentor intelectual” do assassinato (contrastando assim com a mentalidade simples do típico homem do interior, incapaz de premeditar atos dessa índole, comum no ambiente em questão; assim, é Hélton o estranho a destoar do contexto). Em seguida, volta-se à força indicial dos dados geográficos, localizando com detalhes precisos a cidade do acontecimento. Em off, a voz de Domingos Meirelles narra: “com cerca de 25 mil habitantes, Pedra Azul fica a 800 quilômetros de Belo Horizonte (mostra-se o mapa do Brasil, localizando Minas Gerais, e o próprio mapa de Minas Gerais, apontando Belo Horizonte e Pedra Azul. Ao lado dos mapas, são exibidas imagens de Pedra Azul, substituídas na seqüência por uma pequena foto – como a de um passaporte – de José Reis). José 100

Essa idéia de situação absurda é coincidentemente referida no assassinato da família Clutter narrado em A Sangue Frio, no qual se reporta o caso como “sem motivo aparente, descontando-se uma tentativa frustrada de roubo” (Capote, 1975/ 1966).

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Reis nasceu na cidade, mas percorreu o Brasil e chegou a morar no Iraque, por conta do trabalho em uma empreiteira (mostra-se uma foto em preto e branco de Reis na frente do Iraq Museum)”. Seu irmão afirma que a vítima permaneceu por quatro anos no Iraque. Inicia-se então a retomada histórica, o passado circundante ao crime. Retorna a voz do narrador, contando que Reis voltou a Pedra Azul em 1990, realizando o grande sonho de morar novamente em sua cidade natal (assiste-se então a cenas do aposentado feliz, dirigindo, buzinando e acenando para os conterrâneos, como um homem importante e querido na comunidade). Volta-se assim à idéia de um homem de interior, fiel às raízes; há aqui um sentido de localidade, em contraposição às grandes cidades. Mesmo podendo ser considerado um cidadão cosmopolita (viveu em várias cidades e noutro país), José Reis não esquece dos valores simplórios de Pedra Azul. Sua fidelidade é tanta que chega a morar sozinho na cidade, enquanto sua família mora num município próximo, conforme explica sua esposa Sandra. Essa idéia é reiterada pela fala de seu irmão José Licínio, ao afirmar que ele “gostava demais da cidade”¸ num forte acento do interior, associado à cultura caipira, ao matuto, personagem nacional ao mesmo tempo sagaz e puro, perspicaz e simpático. Enquanto Licínio fala, o gado se movimenta por trás de sua imagem, como figurantes a confirmar o contexto retratado aqui e redundando o sentido interiorano dessa história que, como tudo que se apresenta nesse relato, deve ser reiterado para assegurar o efeito direto, sem ambigüidades. Em Pedra Azul, José Reis sempre visita o escritório de contabilidade do irmão. Numa dessas visitas, conhece a família de Hélton, “gente da gente tomar café na cozinha deles”, conforme explica José Licínio. A amizade entre as famílias prenunciaria uma “trágica ironia”, nas palavras do narrador: Reis chega a brincar com seu futuro assassino, que na época ainda era uma criança. Na simulação, assiste-se à vítima empurrando Hélton num carrinho de rolimã, sob uma trilha sonora tensa. Ao lado da foto do acusado, projetada no telão, o apresentador retorna à caracterização do assassino: “Hélton cresceu e se tornou uma criança problema. Era violento com os colegas e foi expulso de várias escolas, até que abandonou

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os estudos na quarta série. Na adolescência, segundo a polícia, ele começou a praticar pequenos furtos”. Mostra-se imagens de simulação nas quais o assassino já está adulto, e realiza delitos como o arrombamento de casas e o abigeato. O irmão José Licínio confirma essa afirmação, dizendo que todos na cidade sabiam que Hélton era “terrível” e já estava sendo investigado por assaltar lojas. Após o intervalo, Domingos Meirelles retoma a voz da narrativa: “Em 2002, José Reis resolve usar o dinheiro da aposentadoria (em nenhum momento se explicita a profissão da vítima) para comprar uma pequena fazenda que apenas tinha valor sentimental. A fazenda tinha pertencido a um dos irmãos dele, um vereador assassinado anos antes por causa de uma briga política. José Reis queria dar continuidade aos planos do irmão na fazenda, mas acabaria sendo vítima do mesmo destino”. Novamente, há a agregação de valores familiares ao caráter de Reis, explicitados pela compra da fazenda que apenas tinha valor sentimental (subentende-se que não gerava lucros financeiros) e reiterados pelas cenas de convivência com os netos na fazenda. José Licínio confirma a personalidade simples da vítima: “ele queria ficar aposentado e levar a vida aqui mesmo né, rural mesmo, queria criar suas vaquinhas, suas coisas, seus animais... mas a fatalidade não deixou”. São exibidas imagens da propriedade, fechando em close nos passarinhos engaiolados, mostrados no início da história. Há ainda uma certa referência às causas sobrenaturais, inexplicáveis (sendo essa referência muito comum na experiência do programa, conforme anteriormente foi constatado), apontadas aqui pela idéia do destino que o esperava, do qual seria impossível escapar. Essa ênfase na fatalidade confirma a idéia de que Reis se configura como uma vítima anti-natural, que só poderia ser atingida por pré-destinação e acaso e não por sua própria culpa, tendo em vista sua trajetória louvável e impecável – ao contrário do passado obscuro remetido ao assassino Hélton. Em seguida, abre-se espaço na significação pretendida para informações não tão louváveis da vítima. Assim, constata-se que José Reis não cultivava apenas valores do homem do campo: gostava de ir aos bares da cidade, onde bebia e pagava cerveja aos conhecidos (na simulação, Reis fala para o garçom: “traz outra rodada, é tudo por minha conta!”). É interessante notar aqui que há a

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modificação no sentido de um símbolo, a bebida, normalmente associado nas reconstituições de Linha Direta à delinqüência e à irresponsabilidade; no gesto de José Reis, ele passa a significar um índice de sua bondade e generosidade. Seu outro irmão, Estácio Ferraz do Amaral, aponta esses valores, dizendo que o aposentado vivia razoavelmente bem e gostava de pagar bebida para os outros. Dessa forma, a vítima é mostrada brindando alegremente com amigos em uma mesa – um deles é seu assassino Hélton. Retoma a fala o delegado, cuja função é delinear o caráter do assassino (de certa forma, como se a voz da fala oficial eximisse o programa da geração de sentidos sobre o acusado): Hélton ouviu a vítima falar de suas posses, “e aí veio a cobiça”, começando a planejar “no plano intelectual” o ataque a José Reis. Nesse intuito, oferece-se a cortar capim para o gado; o aposentado concorda, apesar de conhecer a fama ruim do rapaz (há, nessa narração, uma cena que ilustra bem a liberdade subjetiva que cerca a reconstituição feita pelo programa: Hélton (fig. 2) é mostrado a observar o chefe com um olhar intimidante, debochado). Reitera esse sentido a fala do irmão Estácio: “talvez o Zé pensasse assim, em dar uma força, ver se ele largava esse tipo de coisa para lá e tal... só que o rapaz era mais ruim do que ele imaginava”. Fig. 2 – Na simulação, Hélton observa José Reis

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Entra em cena, anunciado por Domingos Meirelles, o comparsa de Hélton – um rapaz de nome Judson, também praticante de pequenos furtos, que é chamado para ajudar no trabalho. Juntos, conquistam a confiança de José Reis, que leva os rapazes para beber na cidade. O aposentado – num ato extremo de bondade e desprendimento – chega a oferecer um pedaço de terra para que Hélton crie animais. Sua ingenuidade é comprovada pelo depoimento de Cilene, a caseira da fazenda: “ele era muito inocente com os caras... nem esperava, acho que nem eu mesma esperava que eles fossem fazer isso”. Novamente, Domingos Meirelles fala (fig. 3), com expressão cerrada e mãos sempre tensas: “Hélton levou algumas semanas para convencer Judson a assaltar José Reis. Ele dizia que o patrão era rico e que guardava dinheiro em casa”. Há, portanto, outros protagonistas no crime, mas é preciso associá-lo à mente meticulosa de um planejador, como um grande vilão que comanda seus comparsas (sendo esse o próprio termo usado para definir os supostos cúmplices de Hélton). Fig. 3 – Domingos Meirelles em frente à foto de Hélton

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Transfere-se a narrativa para a véspera do crime, sete de fevereiro de 2004. Na encenação, Reis pendura as gaiolas dos passarinhos, pega a chave do carro e sai de casa para ir à fazenda. À tarde, encontra um amigo, Mário dos Santos, e juntos passam o dia em um bar. Na madrugada do mesmo dia, o aposentado vai a uma seresta101, na qual já se encontra Hélton. Nessa cena observa-se outro signo a destoar da significação que engloba José Reis: ao chegar na festa, ele abraça de modo enfático uma mulher, vestida com roupa justa na cor prata, de gosto duvidoso. Talvez seja aqui o caso de um índice de infidelidade e da conseqüente ‘humanidade’ da vítima (propenso assim a falhas de caráter), uma nuança destoante em meio a tantas perfeições que cercam seu passado, mas esse sentido não é explicitado ou retomado na narração. Ao ver o chefe, Hélton atravessa o salão para cumprimentá-lo, junto de Judson e um menor de idade não identificado. Saem da festa; o apresentador Meirelles explica: “os três jovens saíram da seresta e seguiram até a casa de Hélton. Pegaram duas cordas, uma camisa de malha azul e foram esperar José Reis”. Como claro elemento indicial – que aponta à existência concreta de seu objeto, sem impor uma interpretação convencional a seu respeito – a camisa azul rompe com a diegese narrativa, não é explicada e nem mesmo retorna à história102; trata-se de um dado preciso e existente, típico do jornalismo. Logo se assiste à reconstituição propriamente do crime. Escondidos numa casa, os três rapazes aguardam José Reis estacionar o carro no lugar costumeiro. Ao sair do veículo para abrir o portão da garagem, o aposentado leva o primeiro golpe. Mostra-se cenas dos jovens acertando a cabeça de Reis com uma pedra que, em seguida, é filmada e identificada pela voz em off de Domingos Meirelles. Os golpes se repetem até que Reis fique inconsciente. A vítima é colocada na carroceria de seu próprio carro – narra o delegado – que é levado pelos acusados. Ao chegar na estrada, o corpo de Reis rola da carroceria sem que os jovens percebam. Ao notar a ausência, retornam ao local e encontram a vítima no mato; 101

Termo popular brasileiro dado às serenatas, geralmente com a execução de músicas típicas do interior; nesse caso, lembra mais um baile, em que as pessoas dançam ao som de música sertaneja. 102 Numa alusão ao efeito de real referido por Barthes (1988) ao analisar a função do pormenor supérfluo nas clássicas narrativas realistas.

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amarram o corpo, roubam o dinheiro que Reis levava na carteira (45 reais – quantia exata do roubo que é identificada com absoluta ênfase pela voz do narrador) e colocam-no novamente na estrada. Na fala de Meirelles, “Hélton mandou os dois comparsas esconderem o carro. Enquanto isso, ele entrou sozinho na casa de José Reis” (observa-se a ênfase no fato de que Hélton estava sozinho, reiterando seu aspecto de comandante desse crime). Os dois jovens vão ao encontro de Hélton na casa de José Reis. Ao revirar os pertences e objetos do lugar, acham um revólver, dividem o dinheiro e resolvem roubar os passarinhos. Na simulação, observa-se os assaltantes roubando latas de cerveja, que denotam tanto sua mesquinharia e a inconseqüência dos assaltantes – visto o ‘preço’ tão banal do assassinato – quanto sua juventude. O depoimento do genro da vítima aponta esse sentido: “roubaram relógio, cordão, coisinhas assim que, se juntar, não deve chegar a 100, 200 reais”. A irresponsabilidade e até certa ingenuidade dos jovens retornam na fala do apresentador, que age quase como um pastor, uma voz superior a refletir moralmente sobre os fatos do mundo: “segundo a polícia, Judson e Hélton ainda retornaram ao local onde deixaram José Reis. Eles o arrastaram para a estrada, como se quisessem que o corpo fosse encontrado. Em seguida, abandonaram o carro, e foram para casa dormir”. Para a finalização no caso, retorna-se à cena inicial, na qual o menino se depara com a casa de José Reis aberta, chamando a vizinha; logo o corpo da vítima é encontrado pelo vaqueiro. No dia seguinte, Hélton visita um amigo de sua vítima e pergunta sobre o estado dele, sem levantar desconfianças (na simulação, Hélton mantém o mesmo olhar desafiante de antes, num índice de cinismo, como se não guardasse qualquer tipo de culpa). Aqui o sentido oferecido pelo orador Meirelles é reiterado pela encenação dos atores, que também colabora no direcionamento do sentido geral desse episódio, salientando o que deve ser lembrado e refletido pelo público. Voltam ao foco os passarinhos, que são vendidos para um criador pelo menor de idade. A fala de Domingos Meirelles serve de fechamento à história: “enquanto José Reis permanecia em coma no hospital, a polícia começou a investigar o caso. Os detetives chegaram aos nomes dos assaltantes através do

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criador que comprou os pássaros roubados. Quase um mês depois, José Reis morreu. No mesmo dia, Judson e o menor de idade foram presos, e confessaram o crime (...). Judson foi condenado a 20 anos de prisão. Por ser menor de idade, o outro comparsa não foi punido. Hélton... fugiu (...). Querido pelos amigos e parentes, José Reis deixou saudades em Pedra Azul”. O encerramento se dá pelo lamento dos irmãos e da mulher de José Reis que, humildemente, esperam que os assassinos “paguem um pouco” – refletindo, dessa forma, a filosofia geral do programa, que se justifica pela busca desse pagamento, dessa retribuição que deve ser cumprida pelos criminosos.

5.2. Radical Chique – ou um exercício pela busca de novos símbolos Publicado originalmente em 1970, o livro Radical Chique & O Terror dos RPs (Radical Chic and Mau-Mauing the Flak Catchers) consiste em duas grandes reportagens: Radical Chique, na qual Tom Wolfe constrói o retrato de uma elite nova-iorquina do final dos anos 60103 – cuja moda intelectual era militar ao lado de minorias emergentes do contexto de contracultura da época –, através do esmiuçamento de uma cena de convívio entre essa elite e o movimento Black Panthers; a segunda reportagem, traduzida como O Terror dos RPs, opera como contraponto ao ambiente descrito em Radical Chique, observando uma indústria informal de encenação pública de protestos e sentimentos de rebeldia nas comunidades imigrantes (bairros hispânicos, chineses, samoanos, entre outros) presentes em San Francisco – o comportamento mau-mau, em referência à revolta iniciada pela sociedade Mau Mau no Quênia em 1952 contra o controle britânico e que resultou crucial no processo de independência desse país. A reportagem Radical Chique tem início com a descrição de uma alucinação sofrida pelo conhecido maestro Leonard Bernstein: em uma noite de insônia, vê a si mesmo fazer um discurso anti-bélico durante um concerto, no qual 103

Na explicação de Tom Wolfe (1997, p. 32), trata-se de uma nova elite, proveniente do advento dos grupos de comunicação e formada basicamente por judeus e católicos, em contraste a uma antiga alta sociedade, protestante, que considerava essa nova classe como uma “horda de carreiristas”.

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seu “superego” (p. 8) – um homem negro – permanece ao seu lado, junto ao seu piano104. Corta-se então para outro momento, absolutamente distinto, já no cenário em que se passará a maior parte deste relato: a festa oferecida pelo casal Lenny e Felicia Bernstein a pessoas de sua convivência e a representantes dos Panteras Negras, organização de resistência negra criada em 1966 que logo pregaria o uso de armas e de violência em sua luta. A festa é introduzida por uma descrição predominantemente sensorial, remetendo assim à característica qualitativa do elemento icônico e logo evoluindo para a categoria triádica quando reconhecemos que os elementos apresentados são, de fato, símbolos de status (explicitados também na idéia de sofisticação das expressões em francês) a identificar o lugar social da voz que fala. Mmmmmmmmmmmmmmm. Que coisa gostosa. Pedacinhos de queijo Roquefort passados em nozes moídas. Delicioso. Muito sutil. A maneira com que a secura das nozes vai avançando, sorrateira, até se chocar com o sabor áspero do queijo, isso é que é tão gostoso, tão sutil. Que será que os Panteras Negras comem aqui como hors d’oeuvre? Será que os Panteras gostam de pedacinhos de Roquefort passados, assim, em nozes moídas, pontas de aspargos com uma pincelada de maionese, e minialmôndegas de carne au Coq Hardi, que neste exato momento as copeiras de uniforme negro e aventais engomados a mão passam, oferecendo em bandejas de prata enfeitadas... (Wolfe, 1997/ 1970, p. 8). Expressando sua voz como se fosse membro da elite retratada, Wolfe passa a descrever as personagens dessa história (a maioria é apenas citada em imensas listas – é preciso, portanto, ter um amplo conhecimento desses nomes para entender o que significa a inserção de tais pessoas na cena); a adoção do ponto de vista da elite que protagoniza esse relato (nas suas expressões elogiosas, especialmente deslumbradas e plenas de notações tidas como fúteis) é utilizada para significar o exato oposto, pois em momento algum confundimos sua voz com 104

Essa cena de alucinação volta à narrativa mais adiante, sendo concretizada na experiência da festa – “que estranho que o negro junto ao piano fosse surgir logo nessa noite!” (p. 16) –, numa idéia que certamente lembra as razões misteriosas associadas ao sobrenatural no discurso de Linha Direta.

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as dos grupos retratados (a elite Radical Chique e os verdadeiramente radicais Panteras Negras); o autor toma o ponto de vista do outro para, sutilmente, realizar a quebra de seu comportamento105. Mesmo que Wolfe nunca deixe de falar como um radical chique, sua posição é sempre a de um gozador, cujo papel é reverter idéias consolidadas: desmonta estereótipos (a elite retratada como exemplo de sofisticação e consciência política) para propor novos (o ideal radical chique como símbolo de uma mentalidade hipócrita, preconceituosa e conservadora). Logo se passa para a caracterização do ideal radical chique, que pode ser traduzido por uma luta, por parte de seus participantes, pela escolha cuidadosa de signos que tanto simbolizem um sentido aspirado (como a seleção minuciosa das roupas (p. 15) para que não pareçam nem tão sofisticados nem artificialmente pobres – mas, sim, simplesmente modernos e sintonizados) quanto por termos que, substituídos por seus correspondentes termos marcados106, deixem de apontar a situação real – de preconceito e diferença social – em que essas cenas ocorrem (essa preocupação fica clara nas palavras de uma personagem, na página 13: “dois amigos meus que por acaso não são... brancos; isto é o que eu odeio hoje em dia, os termos...”), favorecendo um sentido do politicamente correto. Mais adiante, a fala de Wolfe expressa esse constrangimento, proferindo sua colocação na primeira pessoa do plural, argumentando como um próprio membro dessa classe: quando falamos com outras pessoas... bem, instruídas, dizemos pretos, naturalmente (...). Mas, por alguma razão, quando começamos a dizer a palavra aos nossos próprios empregados brancos, hesitamos. Não conseguimos desentalá-la da garganta. Por quê? Contra-culpa! Percebemos que vamos pronunciar uma daquelas palavras que dividem os instruídos dos não-instruídos, os sintonizados dos não-sintonizados, os conscientes dos inconscientes. Assim que a palavra sai de nossa boca – sabemos antes mesmo que a primeira sílaba nos escape dos lábios – que nosso empregado vai nos classificar como um liberal de limusine, ou seja qual for o epíteto que usem (p. 14). 105

Numa estratégia que remete diretamente aos recursos dialógicos visualizados por Bakhtin (1997b/1929) na obra de Dostoiévski. 106 Conforme discussão de Shapiro (2003) trazida anteriormente.

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O discurso é assumido como o palco da luta social, conforme considerava Bakhtin (1995/ 1929); é preciso selecionar os signos que denotem essa luta ou, no caso observado, que simulem um certo desconhecimento dela. Trata-se aqui de uma busca constante por novos símbolos que, muitas vezes, através da simples substituição por seus opostos, deixam de apontar a conotação social que os cerca (não branco ao invés de negro – explicitando aqui uma conotação pejorativa ao termo negro, black ou nigger no original, mais recentemente substituído pela ordem do politicamente correto por afro-american). O radical chique torna-se, antes de tudo, um exercício semiótico, um esforço para modificar a aparência (projetando uma postura liberal, simpatizante aos grupos de resistência) do real que de fato existe (a essência conservadora dessa elite, atraindo-se pelos grupos não pelo que defendem, mas pelos sentidos de moda e prestígio – de modernidade, atualidade, de “homens de carne e osso” (p. 11) – a que remetem em determinado momento sociocultural). A narrativa de Wolfe se dá em constante diálogo com o leitor, prevendo prováveis interpretações e já contra-argumentando a esses entendimentos pela perspectiva de suas próprias personagens. Nessa altura alguma alma bem-intencionada vai perguntar, Por que não passar sem empregados se o assunto cria uma tensão tão intolerável e se você acredita realmente em igualdade? Bem, só o fato de levantar a questão revela a mais fundamental ignorância sobre a vida nos grandes condomínios e casa de cidade em East Side, na era do Radical Chique. Ora, meu Deus! os empregados não são uma mera conveniência, são uma absoluta necessidade psicológica (...). Fizemos parecer que é uma questão de conveniência, quando na verdade é uma questão pura e fundamental de – ter empregados. Compreendeu?107 (p. 13). Em seguida, os Panteras Negras são chamados à cena por Felicia Bernstein, que se refere a eles como “o pessoal da periferia” (p. 16). A narração

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Foi mantida a formatação gráfica original conforme expressa na tradução.

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muda o tom, e grandes trechos das falas de membros do grupo de resistência passam a ser reproduzidos textualmente, marcados pela ênfase na explicitação da peculiaridade de seu vocabulário e suas gírias108. Tudo corre bem – segue em vigor o mútuo deslumbramento entre negros e socialites –, e largas quantias de dinheiro são arrecadas em favor do movimento. Tem início o pronunciamento de Leon Quat, representante dos Panteras que, “curiosamente, tinha a aparência daqueles cinqüentões que operam um escritório de advocacia” (p. 18) – longe, portanto, do ideal funk de rebeldia esperada dessa categoria negra. Sua fala segue a destoar da expectativa que o circundava e adquire um tom oficialesco; o depoimento é logo seguido por diversos proferimentos de cunho altamente político. A narrativa linear seguida até o momento é quebrada por um longo trecho em que Wolfe recupera as origens precisas da era Radical Chique, realizando um percurso que abarca desde as damas da sociedade londrina que primeiro personificaram o nostalgie de la boue109, a exclusão social da nova elite judia que se formava nos Estados Unidos, a ascensão de grupos latinos com o apoio demonstrado pelo candidato norte-americano à presidência Robert Kennedy, em 1968, para enfim retratar a difusão por várias festas e acontecimentos sociais do comportamento enquadrado aqui: uma conduta que expressa tanto um desejo sincero de solidariedade aos pobres quanto uma preocupação pela manutenção de seu estilo de vida East Side. O tom adotado aqui é o do relato histórico, informativo, quase absolutamente imparcial; apenas com a descrição da especificidade da nova elite é que se retoma a fala sutilmente irônica, comentarista.

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Trata-se de um recurso típico do New Journalism, a tentativa da reprodução fiel da fala das personagens; o vocabulário idiossincrático dos Panteras, nesse caso, concretiza inovações qualitativas consideráveis, configurando-se também como um signo importante de seu prestígio entre a elite que os observa com deslumbre. No trecho de Wolfe: “todos aqui adoram os ‘entende’ e ‘você sabe’. São tão... pretos... tão funk... tão métricos... Sem mesmo tomar plena consciência todos respondem – entram em comunhão – com o uso de tais expletivos, não enfática, mas metricamente, como uma pontuação” (p. 22). 109 Na explicação, refere-se a uma expressão francesa do século XIX que significa “nostalgia da lama” (p. 30); denota a busca das classes superiores pelo primitivo, pelo simples, pelo operário, em contraposição com os valores burgueses da classe média, que eram combatidos.

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De volta à festa dos Bernstein, comentários dos presentes começam a explicitar a ‘encenação’ de que participam, “e daquele momento em diante, a noite começa a sofrer uma estranha reversão” (p. 50). A incongruência de tal reunião torna-se clara com os desejos de comunismo expressos nas falas dos Panteras e com a assunção dos valores capitalistas que sustentam o estilo radical chique de ser. O primeiro a esclarecer essa constatação é o próprio anfitrião: “nossa situação é muito paradoxal – comenta Lenny. – Ser dono deste apartamento torna possível esta reunião, e se este apartamento não existisse, você não a teria” (p. 60). A tensão entre os convidados segue suspensa no ambiente, tornando a festa uma arena discursiva a trazer à tona as dissonâncias inconciliáveis entre os grupos. Encerra-se então o relato da festa, com a conversa entre Lenny, Felicia e Don Cox, representante dos Panteras Negras, que tomam consciência de “que tinham passado por uma experiência única” (p. 66). O último grande trecho desta reportagem é reservado à reflexão de Wolfe sobre as repercussões geradas pelo fato. A primeira notícia sobre a festa – sendo assim, o primeiro interpretante dessa intrincada semiose que resultaria posterior ao evento – é publicada por Charlotte Curtis, repórter do The New York Times. Tratava-se de um texto condizente com os sentidos pretendidos pela elite promotora do evento; nas palavras do autor, “ninguém na temporada do Radical Chique poderia ter pedido uma cobertura melhor” (p. 67). O que não se contava é que a reportagem de Curtis seria veiculada pelo serviço de notícias do jornal a outras cidades dos Estados Unidos e da Europa – mudando o contexto da enunciação, o fato passou a ser recebido por “um coro de gargalhadas ou de náuseas” (p. 67), e logo “os Bernstein certamente sentiram que iam se dar mal” (p. 68). Desta primeira reportagem, outros elos interpretativos foram produzidos110 por colunistas e leitores. Gera-se ainda uma crise entre o casal Bernstein e a

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Dos quais Wolfe destaca um próprio editorial do The New York Times afirmando que “a terapia de grupo, misto de soirée beneficente, na casa de Leonard Bernstein, conforme noticiada ontem pelo nosso jornal, representa o tipo de elegante tour pela favela que degrada tanto patrocinadores quanto patrocinados (...). A presença dos Panteras Negras no alto de um pedestal da Park Avenue cria mais uma distorção da imagem negra. É pouco provável que as lideranças pretas responsáveis aplaudam enquanto o Beautiful People cria um novo mito, o de que os Panteras Negras são lindos” (p. 68).

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comunidade judaica, visto a conduta anti-semita que estava sendo mantida por grupos negros do país. Aos Bernstein, só resta a tentativa de inserir novos signos à discussão – através de uma carta enviada e posteriormente publicada pela própria New York Times – mas eles não mudam a opinião coletiva, e Lenny se vê “investido, instalado, inaugurado, instituído, transfigurado em Sr. Anfitrião dos Panteras para o resto da vida” (p. 78). A reportagem termina com o maestro sendo vaiado pelos espectadores durante um concerto; Wolfe narra a cena pelo ponto de vista de Bernstein, que desdenha mentalmente de seus espectadores, esses leitores de jornais, “um bando de cretinos” (p. 80) que o tomam por bode expiatório – fechando esse relato pela constatação de um monólogo interno do representante do radical chique que logo se tornaria o próprio estereótipo dessa tendência intelectual.

5.3. A atuação dos signos de narração na representação do real em ambas as configurações discursivas A partir dos textos reportados anteriormente, intenta-se analisar os elementos narrativos de enunciação conforme observados nos objetos empíricos dessa pesquisa. Assumindo as peculiaridades entre os papéis exercidos pelos narradores tanto na vertente do New Journalism quanto no programa Linha Direta, espera-se entender de que forma tais elementos irão determinar os modos de representação do real que serão concretizados em ambos os estilos. Torna-se claro aqui o papel determinante exercido pelas figuras de narração em ambas as experiências de discurso jornalístico. Conforme apontado, esses narradores podem ser entendidos como a encarnação dos interpretantes dinâmicos gerados em seus produtos midiáticos – ou seja, já são signos mais desenvolvidos que, ao estarem inseridos no texto, já apontam a formas mais avançadas de entendimento dessas histórias. Sendo assim, são significativamente mais expressivos que outros elementos contidos no mesmo texto, pois identificam tanto o tipo de discurso em que se inserem quanto a voz de quem os profere (visto

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que ‘encarnam’ a fala da produção em sua atuação). O reconhecimento desses signos-guia – a figura do narrador-jornalista no New Journalism (através de seu estilo marcado) e do apresentador em Linha Direta (através do contato prévio com o seu gênero) – delimitará, por si só, um modo decisivo de entendimento oficial dos respectivos textos. Mas qual será a relação guardada entre esses signos-guia e os próximos interpretantes que eles naturalmente gerarão – ou seja, que tipo de entendimento será criado a partir desses signos centrais no público desses textos? Para tornar clara essa idéia, reproduz-se um quadro cujo objetivo é esquematizar a relação observada entre esses interpretantes e o representamen dessa semiose (os produtos midiáticos conforme concretizados e veiculados). Quadro 1 – Seqüência lógica dessa semiose Objeto dinâmico Objeto imediato

Fenômenos conforme ocorridos em sua totalidade, independentemente da forma em que foram observados Fenômenos conforme captados pelas instâncias produtivas

Signo concretizado Os produtos em questão enquanto processos midiáticos Interpretantes

Signos seqüentes progressivamente gerados pelo primeiro signo concretizado, que seguem crescendo em direção à busca do objeto dinâmico. Alguns desses interpretantes já estão presentes nos incontáveis signos que formam os signos complexos enfocados nesse trabalho, como é o caso da figura do narrador nas duas experiências discursivas. Tais elementos são de fato signos naturalmente mais desenvolvidos, que já apontam o tipo de discurso no qual se inserem e identificam a voz da produção. Sendo assim, de que forma esses signos logicamente mais evoluídos determinarão os próximos que serão gerados nessa semiose?

Tomando os elementos de narração presentes nos textos do New Journalism e de Linha Direta como legisignos – pois existem por lei de representação e podem simbolizar as demais figuras narrativas presentes em outros textos da mesma espécie – pode-se observar de que forma determinarão o interpretante final que se segue à conclusão dessas experiências discursivas. Desse modo, verifica-se que os elementos em questão exercem distintas delimitações nos

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posteriores sentidos que serão oferecidos aos receptores desses signos complexos (os produtos midiáticos em sua totalidade material e discursiva). Para tal verificação, é preciso considerar esses discursos em sua concretude, ou seja, nos interpretantes dinâmicos que tendencialmente geram após a assimilação convencional dos programas e reportagens aqui enfocados (dessa forma sendo tomados como um todo, como um único signo, não observados apenas por trechos). No caso selecionado de Linha Direta, observa-se que o elemento narrativo concretiza solidamente uma determinação lógica no sentido esperado do programa, já que tende a identificar e adotar como ideologia explícita e reforçada em cada edição as máximas do vox populi (ao constatar, por exemplo, que assassinos geralmente possuem passados cercados de indícios, como fichas criminais precedentes e ações que apontam a valores ambíguos ou condenáveis). Cabe a Meirelles anunciar as características das personagens, que são assim selecionadas de forma a não ir de encontro com essas proposições do ponto de vista consensual (pois, se Hélton, ao invés de ser definido como “uma criança problema”, “violento com os colegas” e praticante de “pequenos furtos”, fosse caracterizado como um jovem esforçado, amigo, ligado à família – o que, de fato, talvez fosse, embora aqui isso não seja ressaltado – como explicar e entender coletivamente seu crime?), de forma que a associação dessas idéias socialmente consolidadas (verdadeiros clichés que se tornam pertinentes nesse contexto específico e que são reforçados num raciocínio não científico pelas edições do programa) com o caso particular observado em Linha Direta seja sempre clara e acessível a todos seus espectadores, como se eles mesmos tivessem chegado a tal conclusão. Por outro lado, a determinação exercida pelo interpretante configurado pela atuação de Wolfe na narrativa do New Journalism é, sobretudo, propositiva: o percurso de sua fala visa a recolher e apontar o maior número possível de informações (muitas vezes expressas em notações qualitativas, perceptivas, em pequenos fatos ainda não relacionados diretamente com seu objeto, como cheiros, sabores, detalhes de vestuário, modos de comportamento), mas não a organizá-las como premissas destinadas a levar a uma conclusão específica. De certa forma, é

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como se o autor fotografasse a cena – deixando o papel da interpretação aos seus posteriores observadores: O marechal-de-campo do Partido dos Panteras Negras estava sentado em uma cadeira entre o piano e a parede. Levanta-se; sem dúvida tem um ar durão; é um homem forte e alto, de pele castanha, cabelos afro, uma barbicha e uma camisa preta de gola rulê bem parecida com a de Lenny, e se coloca ao lado do piano, da flotilha banal e carésima de fotos da família de Lenny. Na realidade, há uma certa perfeição na cena em que esse primeiro Pantera Negra se levanta em uma sala de estar da Park Avenue, para apresentar o programa de dez pontos dos Panteras à sociedade de Nova York, na era do Radical Chique (Wolfe, 1997, p. 20). O signo-guia Wolfe concretiza uma atuação que é antes contemplativa e propositiva que racionalmente lógica; interessa-lhe constatar os fatos e oferecer ao leitor as informações (que devem ser extremamente precisas, comprovando sua inserção no sistema jornalístico – sendo mesmo metaforizadas, quando não podem ser apresentadas objetivamente) para que o significado final seja completado por ele que, conforme sua experiência pessoal, interpretará esses signos na narrativa de acordo com os sentidos que lhe pareçam possíveis. Não se trata de um texto configurado de forma a poder significar qualquer coisa, mas de uma narrativa ocasionada de modo a dar espaço para que as diferentes tonalidades que cercam um fato possam vir à tona. Essas diferenças na determinação exercida pelos interpretantes centrais já iniciam no primeiro contraste observável entre os estilos textuais confrontados aqui – sua concretização em suportes midiáticos distintos, o relato tipográfico e a experiência multissensorial da televisão – o que, por si só, já aponta a dissemelhanças inconciliáveis a delimitar o tipo de narração a ser concretizado em ambos os textos. Ao fazer uso das propriedades icônico-indiciais provenientes dos recursos audiovisuais, Linha Direta aproveita a corporeidade de um apresentador cuja existência no relato é física, podendo assim produzir sentidos não apenas por palavras, mas por todo tipo de expressividade sensória passível de ser observada pela prática de recepção de um texto televisivo. A significação do apresentador do

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programa, portanto, passa tanto pelo que é manifestado por sua fala quanto pelo que exprime através de sua aparência ou de sua gestualidade – podendo, inclusive, revelar aos observadores mais ‘treinados’ sentidos involuntários e não pretendidos. Para limitar esses sentidos, é preciso que se concretize uma narração sobretudo enfática e reconhecível, que cause a menor possibilidade de entendimentos divergentes das pretensões do programa. Por outro lado, o discurso de mídia impressa do New Journalism já parte de outro aparato tecnológico que pressupõe diferentes modos de inserção do elemento narrativo no discurso. Ao não poder utilizar recursos audiovisuais, a narrativa impressa é obrigada a sempre se expressar por signos simbólicos. Há, nesses sistemas, maior possibilidade natural de controle, visto que são sempre manipulados pela ação de um sujeito (tendo em vista que tudo o que está expresso deve passar pela escolha de signos feita por alguém), ao contrário da característica icônica da gramática televisiva (na qual é possível, por exemplo, simplesmente filmar um fenômeno que ocorre espontaneamente, sem produzi-lo). Por tal razão, pode-se considerar que, no texto impresso, a marca autoral é sempre mais explícita; mesmo que se reproduza as falas textuais de terceiros, há sempre uma voz maior que as organizou sob alguma forma narrativa artificialmente produzida. Já que um texto impresso não pode deixar de se referir à voz de seu autor, é preciso que seu leitor tenha algum tipo de experiência colateral com o produtor desse texto para decodificá-lo de modo apropriado. Esse reconhecimento não necessita passar, obrigatoriamente, pela identificação de um nome específico, mas sim pela constatação de uma fala pertencente a certo lugar ou contexto111. No caso do New Journalism, a identificação nominal do autor é crucial em sua prática, pois é essa individualização (o destaque da figura do repórter que se assume enquanto reconstrutor do fato) que marca a diferença entre o relato do New Journalism e o realizado nos padrões do jornalismo diário. Em suma, não se trata aqui de um simples jornalista, mas alguém cujo prestígio (por seu estilo e também por seu 111

Como, por exemplo, a voz padronizada no texto de uma revista como Veja. Em suas reportagens convencionais, não é possível ao leitor comum identificar o autor do texto. Ainda assim, é possível identificar que a autoria é de um jornalista através do estilo do texto e a identificação do meio em que a reportagem é vinculada.

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modo diferenciado de ver/recortar os fatos) acarreta que seus signos façam a diferença. Esse reconhecimento é feito pela experiência colateral com o gênero discursivo aproveitado, o que ocorre através do índice que categoriza o texto (ou seja, a distinção da reportagem do New Journalism como um “romance de nãoficção” e outros rótulos identificativos que reconhecem essa vertente como subsistema jornalístico) e pelo contato anterior com textos da mesma espécie ou com a figura do próprio autor. É por tal trajeto que se torna possível identificar a presença de uma voz que fala e ordena o percurso trilhado pela narrativa observada. Na experiência de Linha Direta, o percurso narrativo feito por Domingos Meirelles é determinado pelo gênero discursivo a que o programa representa e atualiza. Em um primeiro instante, sua presença nos remete diretamente aos apresentadores dos telejornais, formato jornalístico ao qual Linha Direta se vincula, retomando principalmente uma editoria temática, a do relato policial – assim, não é necessário que se conheça Meirelles para saber o que se esperar de sua inserção neste relato. Após essa identificação inicial, sua atuação logo se distancia do ideal de imparcialidade que normalmente cerca a figura desse representante fundamental da emissora. De fato, Meirelles opera como uma espécie de contador de histórias, um pastor televisivo cuja tarefa é extrair a conclusão moral de fatos pontuais que atingem toda a sociedade, um narrador de notícias típico das culturas orais que, como tal, faz uso tanto da expressividade do que fala quanto da entonação ostensiva que cerca todo o seu ato de narração. Sua figura física, por si só, exprime uma quantidade de sentidos: trata-se de um senhor de maneirismos sóbrios e contidos, vestido sempre em roupas escuras, que se movimenta em um cenário na maioria das vezes sombrio, cercado por retratos ampliados, em grande close, de pessoas comuns. Carrega cabelos brancos e barba112 bem aparada – denotando a figura de um pai, sábio e digno de

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De modo geral, a presença da barba costuma denotar dois sentidos: o de rebeldia, geralmente aos portadores de barba cheia (como nas figuras de Che Guevara e Karl Marx) ou de sabedoria e bondade (como nas imagens de Freud, ou na concepção dada pelos árabes). Na figura de Domingos Meirelles, os demais signos que cercam sua aparência – sua evidente idade avançada,

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respeito e credibilidade. Sua postura é reconhecível pelo gênero do programa, que exige a presença de um apresentador sisudo, e não de um brincalhão, um humorista. Sua seriedade e comedimento (o que não impossibilita que sua atuação como narrador seja enfática e gere sentidos facilmente reconhecíveis) distanciamno ainda dos outros apresentadores de programas de cunho policial, como Cidade Alerta e Brasil Urgente, que tendem ao relato espalhafatoso, estardalhaçante, ligados à prática sensacionalista (visto que geram verdadeira sensação em torno dos fatos narrados). Será o próprio objeto representado – a temática do programa, que apenas enfoca crimes e momentos de violência – que tornará pertinente esse tipo de narração. Atuando como um pregador que proclama e moraliza publicamente os fatos, é preciso que Meirelles ressalte o que neles há de mais inusitado e de fantástico, como forma de não perder a atenção de seu ouvinte nem desviá-lo do trajeto interpretativo privilegiado. As personagens narradas devem ser claras em seu caráter, facilmente assimiláveis, passíveis de ser resumidas em epítetos (o assassino ambicioso, o fazendeiro bondoso), fundadas em estereótipos socialmente assimilados e opostas entre si de maneira inconciliável (gerando assim um relato que tende sempre ao maniqueísmo, à contraposição antagônica entre personagens boas e más). Dessa forma, há um esforço para ressaltar momentos-chave dos casos contados, como uma maneira de reiterar o sentido visado. Assim, Meirelles varia sua ênfase em pontos considerados decisivos no entendimento da história que conta o assassinato de José Reis (em destaque, indica-se notações sobre a fala do apresentador): Domingos Meirelles (fig. 4) (encontra-se em pé no estúdio, num cenário escassamente iluminado, à frente de uma projeção da foto de Hélton e, durante sua fala, caminha até outra tela em que se vê a foto da vítima): – Segundo a polícia, Judson e Hélton ainda retornaram ao local onde deixaram José Reis. Eles o arrastaram para a estrada, como se quisessem que o corpo fosse encontrado (separa as mãos, até o momento sempre unidas, para fazer um movimento sua inabalável seriedade – fazem com que sua barba remeta à impressão de um homem reflexivo, dono de grande saber.

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displicente com uma delas, acompanhado de uma expressão facial a denotar irritação, como se apontasse a extrema desconsideração que os assassinos tiveram com sua vítima). Em seguida, abandonaram o carro e foram para casa dormir. Enquanto José Reis permanecia em coma no hospital, a polícia começou a investigar o caso. Os detetives chegaram aos nomes dos assaltantes através do criador que comprou os pássaros roubados. Quase um mês depois, José Reis morreu. No mesmo dia, Judson e o menor de idade foram presos e confessaram o crime (fecha os olhos e meneia a cabeça para frente, num movimento de afirmação). Judson foi condenado a 20 anos de prisão. Por ser menor de idade, o outro comparsa não foi punido (arregala os olhos). Hélton... fugiu (hesita ao falar e faz sinal desdenhoso com a mão). Querido pelos amigos e parentes, José Reis deixou saudades em Pedra Azul (voz em off). Fig. 4 – A presença icônico-indicial de Domingos Meirelles

O apresentador, antes de expressão sempre arregalada e com os punhos cerrados, abaixa os olhos ao relatar a prisão dos cúmplices, como se confirmasse a

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justiça feita na confissão – expressão que muda completamente na constatação da fuga de Hélton, fazendo sinais faciais e movimentando a mão sugerindo revolta e desdém quanto à competência das autoridades. Há uma ênfase ainda na relação da captura dos dois jovens à venda dos pássaros – ressaltando aqui a ironia subjacente nessa constatação; de modo menos explícito, há uma conexão significativa com a figura icônica dos pássaros engaiolados com a prisão dos condenados. Ao final do caso, não há dúvidas sobre a urgente necessidade da captura de Hélton. Ao tomar-se o outro exemplo, no caso do New Journalism, constata-se que a presença de Tom Wolfe em seu relato ocorre de modo perceptivelmente distinto. A assimilação da reportagem Radical Chique parece apontar à participação de Wolfe na cena como um observador quase invisível, em busca de flagrantes indiscretos, um serendipitoso (ou seja, um indivíduo de percepção aguçada, com uma sensibilidade especial para capturar informações relevantes em momentos de acaso); sua observação guarda um viés antropológico, capaz de manter seus alvos em suas posturas normais para que revelem a essência de seu comportamento. Paradoxalmente, sua fala é esfuziante, algo gritante, fazendo uso de todos os recursos gráficos que lhe parecem possíveis e apresentando o maior número de metáforas e pequenos detalhes que consegue capturar, concretizando um relato que se situa numa zona fronteiriça entre o humor e a crítica social. Mesmo que na reportagem em questão não haja referências diretas a sua inserção na história (ao contrário do que normalmente acontece na obra de outros Novos Jornalistas, que chegam a narrar a história em primeira pessoa), seu estilo idiossincrático – marcado em relação ao do jornalismo diário – torna sempre evidente que o relato se trata da tradução de sua experiência, de sua participação ativa na ação. Essa profusão de detalhes – que tenta abordar tanto as motivações e sentidos morais quanto as incoerências na vida de suas personagens – acaba por fundamentar um relato que não impõe direcionamentos determinantes ao discurso como se houvesse apenas um sentido pertinente a ser captado dessa história. Em Radical Chique, não há uma construção essencialmente maniqueísta, visto que os Panteras Negras não são retratados aqui como vítimas indefesas a ser manipuladas por uma classe intelectual que os aproxima de seu convívio; antes de

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tudo, para Wolfe convém observar o jogo de mútuos interesses que é configurado no famigerado encontro entre os grupos. O gênero jornalístico a princípio recuperado pela narrativa de Radical Chique é o do colunismo social, ou seja, o relato de notícias tidas como supérfluas através do trato sempre elogioso e louvador de personagens consideradas dignas de enfoque. No entanto, esses princípios são logo revertidos com a utilização dos recursos do gênero em questão para concretizar um discurso inverso, provocador da desordem e do burlesco e não da exaltação. Para que esse relato possa concretizar seu sentido preferencial – ou seja, para que essa semiose possa se completar – é necessário que se tenha algum tipo de contato, alguma forma de experiência prévia com a figura jornalística de Tom Wolfe. É preciso conhecê-lo enquanto figura pública, ter alguma idéia de seu estilo textual e de seu interesse em reverter as ordens estabelecidas, para poder entender coerentemente seu texto híbrido. Não se trata simplesmente de se reconhecer a reputação de Wolfe113 como escritor, mas sim de possuir uma experiência colateral com o lugar de onde esse autor fala – do mundo factual do jornalismo, dos fenômenos existentes, aqui representados em seu relato pelos filtros essencialmente criativos do estilo idiossincrático de um famoso escritor – para assim poder realizar uma interpretação adequada do gênero textual que é atualizado com sua obra. A cultura local na qual esse relato foi produzido também exerce incidência sobre a condução simbólica do narrador e o tratamento dado a essa narrativa: trata-se de uma Nova York pós-revolução sexual, consolidada como uma das mais democráticas, tolerantes e cosmopolitas cidades do mundo. A inserção da história no contexto desta cidade é o que, de certa forma, torna plausível o retrato de seu jet-set – personagens ao mesmo tempo glamourosas e efêmeras, artificialmente admiradas através das colunas sociais – através da reversão cômica. Conforme escreve Resende,

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Convém observar que esse renome é ainda explorado com afinco pela mídia editorial que comercializa suas obras. No site oficial do autor (http://www.tomwolfe.com), pode-se constatar que a arte original das capas de seus livros tendeu, nos últimos anos, a ressaltar o nome de Wolfe com maior destaque que o próprio nome da obra. A figura de Wolfe, assim, funciona como uma espécie de motor semiótico a motivar o consumo de seus textos.

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os artigos de Tom Wolfe inserem-se num contexto em que se evidencia a produção de textos marcados por uma pluralidade de formas; e se esse contexto é percebido enquanto sintoma de uma determinada época, ou seja, se autores e leitores dessa época são colocados num mesmo paradigma, relativizam-se as noções de causa e efeito, fazendo com que não seja possível determinar se o que nasce primeiro é o texto ou o desejo de recebê-lo (2002, p.95). Dessa forma, para entender esse texto, é preciso tanto considerar a plausibilidade desse novo estilo dentro do contexto sociocultural recorrente, quanto reconhecer a função de Wolfe no sistema jornalístico, ou seja, seu papel de provocador, contestador; como um trickster114, um repórter cuja função é dissipar a seriedade da notícia ‘pura’ do jornal, instaurando a desordem e o conflito pela reflexão dos costumes modernos, extravasados em sua obra normalmente através de recursos do humor. Os objetos escolhidos – o mundo luxuoso das festas de alta sociedade, a revolta ensaiada dos violentos grupos de resistência negra – permitem que se pense em um maior número de formas possíveis para descrevê-los: são temas que, em razão de seu ineditismo, não impõem hábitos consolidados de representação, dando liberdade para que os autores do New Journalism, através de sua experiência com textos esteticamente elaborados, possam trabalhá-los conforme sua vontade. Pela perspectiva semiótica, como lembra Silveira, “quanto mais estranho, singular e admirável for o fenômeno, mais exigirá que elaboremos novos signos para representá-los” (2003, p. 4). Dessa forma, é possível retratá-los tanto através de uma narração mais respeitosa, elogiosa (como a do colunismo social, gênero jornalístico do qual parte a formulação de Radical Chique), mais dramática ou de cunho político (como seria um enfoque voltado aos problemas das minorias 114

Termo que designa uma figura mitológica que se insere na narrativa popular, o trickster é originário da mitologia dos povos indígenas norte-americanos e pode ser entendido como os heróis “trapaceiros", os pregadores de peça que povoam a literatura de várias culturas. A expressão designa "aquele que conhece o trick" (truque, estratagema em inglês). Pode ser exemplificado pela figura do corvo, na cultura indígena americana, ou do Exu, na cultura afro-brasileira do Candomblé. Para Consorti (2003), “sua característica mais importante é a astúcia – é através dela que ele age ora prejudicando os homens, indignando-os; ora beneficiando o coletivo em que sua figura se insere, despertando, portanto, admiração e sendo considerado um herói civilizador”.

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negras nos Estados Unidos) ou, na escolha de Wolfe, mais satírica, humorística. A história contada em Radical Chique parte ainda de valores relativamente particulares, restritos a participantes de determinadas camadas sociais (sentimentos de status, de manutenção de uma classe social dominante através da simulação de práticas das classes inferiores), ao contrário do texto de Linha Direta, que enfoca situações universais (como a violência, o sentimentalismo, as relações familiares, etc.); sendo assim, na experiência do New Journalism, seus autores tendem a ser relativamente mais livres para propor novas formas de representação dos fatos que reconstituem. Nesse sentido, contata-se que, no estilo textual observado nessa vertente de jornalismo impresso, a fala do autor é sempre reconhecível em seu estilo e tende a aparecer sob a forma da ironia, ou seja, pelo ato de proferir enunciados sinalizando a contrariedade quanto a eles através do contexto do discurso, de modo a estabelecer o contraste entre a maneira que se diz (a forma) e o sentido do que é dito. Wolfe, particularmente, explora com afinco a mimese irônica, assumindo o ponto de vista da personagem para narrá-la na cena de forma crítica. Trata-se de um recurso sofisticado, pois depende da cumplicidade do leitor para que se reconheça, por fim, o posicionamento mantido pelo autor. No estilo do New Journalism, essa estratégia textual tende a se concretizar através do humor, da graça, do lúdico – como se a Tom Wolfe coubesse a tarefa de revelar a essência dos signos utilizados na era radical chique, desnudando essa elite e expondo-a ao ridículo: A pessoa tem uma preocupação igualmente sincera com a manutenção de um estilo de vida East Side apropriado à Sociedade de Nova York. E esta preocupação é tão sincera quanto a primeira, e igualmente profunda. Verdade. Ela se torna realmente parte da nossa psique. Por exemplo, a pessoa precisa ter uma casa de fim de semana, no campo, ou na praia, de preferência o ano todo, mas certamente de meados de maio a meados de setembro. É difícil convencer os de fora como tais necessidades aparentemente triviais são absolutas. A pessoa as sente no plexo solar (Wolfe, 1997, p. 37).

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O aproveitamento do recurso irônico também é observado no texto de Linha Direta, mas de forma distante da normalmente empregada na experiência do New Journalism. No exemplo relatado do programa, nota-se a ênfase mantida por Meirelles ao reiterar a conexão da prisão dos acusados à venda dos passarinhos roubados. Antes de concretizar um recurso lingüístico que se extravasa pelo cômico, trata-se de um uso quase didático, elucidativo ao extremo, voltado ao sarcasmo, à ironia amarga. Fica claro aqui que, na encenação televisiva de Linha Direta, não se pode deixar espaço para uma dupla significação, não se pode destoar a voz da instância produtiva (personificada na figura de Meirelles) do sentido apresentado pela concretude do programa. Dessa maneira, a ironia não pode estar na fala, mas deve estar no próprio fato – como uma espécie de ‘ironia do destino’, que se configura como um recurso melodramático (procurando causar no público a comoção e a pena) e se baseia em uma referência às razões referidas ao inexplicável, ao sobrenatural, fundamentada em uma lógica socialmente homologada que aparece com constância no discurso de Linha Direta.

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Considerações finais

A partir das análises realizadas, é possível identificar os modos pelos quais os elementos narrativos de Linha Direta e do New Journalism fornecem guias para o entendimento simbólico a ser produzido sobre tais textos, apresentando-se como figuras centrais na determinação do recorte do real a ser realizado em ambos os discursos. Não podendo captar ou representar o real em sua totalidade – já que essa é uma impossibilidade semiótica, comum a todos os signos e não apenas àqueles que pretendem cruzar os limites do real e do ficcional – torna-se imprescindível para essas experiências discursivas que talhem a totalidade do que foi observado e apreendido (ou seja, o objeto imediato conforme captado e compreendido no interpretante dinâmico), de acordo com os limites impostos tanto pelo meio em que se concretizam, quanto por seus interesses enquanto reconstrutores

diferenciados

dos

fatos.

Essa

imposição

semiótica

não

necessariamente compromete, no entanto, sua referencialidade ao real, que não deixa de existir de acordo com o estilo em que o texto é trabalhado ou pela forma adotada para a narração da história. Nos produtos midiáticos em questão, talvez se deva falar não de uma estratégia de falsidade (de uma nova interpretação que distorceria ao extremo o fato de modo a gerar outro objeto completamente distinto – uma ficção), mas de uma espécie de estratégia de recorte. Dos eventos retratados nos textos do New Journalism e Linha Direta, recorta-se aspectos e nuanças a serem enfocados de acordo com o objetivo – o telos – de cada tipo de relato: no New Journalism, um relato que se pretende abrangente, polissêmico, recortando os aspectos desconsiderados pelo jornalismo convencional (como o enfoque da experiência emocional subjetiva das personagens e as associações metafóricas raramente apresentadas pelos jornalistas comuns); em Linha Direta, um recorte possivelmente redutor, resumindo as personagens em poucas características suas, escolhidas de modo a gerar uma trama maniqueísta e de base melodramática. Esse entendimento se posiciona de acordo com a própria idéia de signo para a semiótica peirceana, definido como qualquer coisa capaz de manifestar,

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direta ou indiretamente, algum aspecto do que chamamos de seu objeto, que jamais pode ser revelado na totalidade (Ransdell, 2004a). Sendo assim, a incapacidade de revelar a integralidade da experiência real não se concentra apenas nos textos que utilizam recursos provenientes das narrativas ficcionais, mas em todo tipo de relato que se pretende histórico. É essa forma de representação do real que será limitada e apresentada pelas atuações do narrador em ambos os discursos: um recorte mais fechado, que deixa menos espaço para novos interpretantes e se impõe como discurso proveniente do real, no caso de Linha Direta; e um recorte mais extensivo, que não define sua natureza discursiva a todo instante (ou seja, não identifica de imediato os momentos em que se reporta ao mundo factual e ao mundo livre da ficção) e requer a participação ativa do leitor para que desvende seus limites entre a documentação e a criação, no caso do New Journalism. Seus próprios narradores – um apresentador quase anônimo no programa, potencialmente substituível, distinguido antes pelo gênero que por sua individualidade, e os célebres escritores-jornalistas como Tom Wolfe, Truman Capote e Gay Talese, figuras mundialmente conhecidas mesmo fora dos limites textuais – já apontam a esse sentido: é preciso reconhecer Linha Direta como programa jornalístico impreterivelmente empenhado em convencer como real para seu público alvo; já na experiência do New Journalism, o que importa é identificar a pessoa, o autor narrador como parte do entretenimento concretizado pela leitura, o superescritor interessado em re-elaborar os acontecimentos através do jogo de embaralhar as fronteiras textuais. Mesmo concretizando recortes seletivos absolutamente distintos, ambos os discursos acabam por configurar signos que atuam na mesma direção: a busca de revelar a experiência real, dos momentos autênticos, que seriam alcançados nos instantes de pura cotidianidade, nos quais as pessoas se mostram em sua essência e trazem à tona possibilidades do desvendamento dos mistérios e segredos da existência humana. Segundo a discussão sobre as bases do realismo trazidas por Eagleton (2003), são esses momentos de banalidade, de monotonia diária, que poderiam revelar a base da vida humana – sentidos que são buscados nas duas experiências midiáticas. Em Linha Direta, através do esmiuçamento do contexto circundante às pessoas envolvidas no crime como forma de compreender as razões

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para que tal fato tenha acontecido e, no New Journalism, através da atenção voltada aos pequenos momentos, às cenas de bastidores, aos fatos comuns, normalmente considerados supérfluos e desnecessários ao relato jornalístico, mas entendidos como atalhos a nos aproximar de modo preciso ao conhecimento dos fenômenos em seus contextos. Sob tal perspectiva, talvez se possa, por fim, discutir a questão da verdade, a variante central na análise comparativa realizada entre os dois objetos de estudo dessa pesquisa: a averiguação sobre qual dessas formas de representação do real, concretizadas nesses novos interpretantes dinâmicos oferecidos sobre os fatos – a narrativa sofisticada das reportagens impressas do New Journalism, e a encenação popularesca dos casos de Linha Direta – nos tornaria mais próximos, enquanto público habitual desses formatos midiáticos, dos objetos dinâmicos que descrevem. Para o exame dessa questão, é necessário retomar a argumentação proposta por Peirce (1877) sobre os quatro métodos que historicamente o homem tende a empregar em seu telos absoluto e quase instititivo na procura pela verdade – ou seja, os processos que enfrentamos na incessante busca pelo real que se revela nos objetos que nos cercam, enquanto formas usadas para acalmar a irritação da dúvida. Em suas considerações, Peirce (1877) entende o quarto método, o da ciência, como o único que verdadeiramente se ajusta com competência a essa busca, pelo fato de ser o único no qual um fenômeno externo (o objeto dinâmico) impõe-se à observação, independente das razões de natureza humana que cercam a procura desse conhecimento. Ao contrário, é essa intencionalidade humana que deve ser adaptada de modo a facilitar que a verdade do objeto possa vir à tona. A eficácia desse método científico estaria situada na aptidão em mobilizar esforços coletivos para tal empreendimento e em lidar com fatores subjetivos que o aproximam da possibilidade de erro, como os preconceitos, convicções e interesses pessoais que cercam as ações dos que trabalham nessa investigação e que, nos métodos usados na vida cotidiana, tendem a influenciar os resultados obtidos. O empenho para combater tais procedimentos, no pensamento de Peirce, deve ser perseguido e executado por toda espécie de inquirição científica que se

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pretende séria – o que significaria deixar de executar pesquisas cujas respostas já estão definidas antes mesmo que sejam iniciadas. Obviamente, não se pensa aqui nas experiências de Linha Direta e New Journalism como modelos de inquirição científica, produzidos sob rigorosa pesquisa e dirigidos por profissionais especializados nesse tipo de busca1. Porém, isso não acarreta que a busca ao real seja inacessível para esses discursos, como se sua formulação estilística voltada aos recursos ficcionais os impedisse de concretizar relatos legítimos que primem pela objetividade na sua referência à realidade, ou mesmo que esse objetivo de remissão à verdade, em razão do viés de entretenimento mantido por esses textos, seja algo sem relevância, alheio aos seus intuitos. De fato, seu caráter objetivo funda sua especificidade enquanto produto e processo midiático e se expressa em sua capacidade de representar fenômenos do mundo de acordo com o resultado consensual de uma investigação exterior à subjetividade humana – o que de fato conseguem. Prosseguindo a reflexão em torno das considerações oferecidas por Peirce (1877), pode-se dizer que a não execução de um método prioritariamente científico não se torna a certeza de um resultado falso ou enganoso. As prioridades visadas por ambos os textos estendem seus objetivos para além da busca da verdade, levando-os a caminhos paralelos na busca do real: em Linha Direta, ao interesse em moralizar os casos enfocados em suas edições, e no New Journalism, a uma proposta central de diversão, de vinculação ao prazer. Ao contrário do que se pode pensar, os discursos de Linha Direta e do New Journalism se encontram constantemente submetidos à avaliação externa: sua repercussão tanto na sociedade quanto na própria mídia, assim como os limites impostos pelas convenções do jornalismo e da criação artística, exercem o papel da contínua regulação desses produtos e da legitimação de sua pertinência enquanto experiência midiática merecedora de veiculação e audiência. Mas, antes de tudo, esses textos se subordinam a uma contínua avaliação por seus padrões internos de gênero que, recuperando a discussão sobre realismo nos textos de não1

Pode-se falar nessas experiências discursivas de uma mistura entre o quarto método (que tem como prioridade a descoberta do objeto) e os outros três métodos, que são conduzidos por fatores subjetivos, como a intencionalidade humana, a busca de fama e prestígio, etc.

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ficção trazida por Carroll (1996), são os princípios a que devem obedecer para comprovar sua veracidade. Isso equivale a dizer que Linha Direta e o New Journalism são reconhecidos como textos jornalísticos, direcionados à revelação de seus objetos, tanto por quem os assiste quanto por quem os produz, e caso se prove a existência de problemas nessas informações (como imprecisões em dados ou a encenação de momentos que comprovadamente só podem ser supostos), isso não modificará sua categorização enquanto discursos referentes ao real. Nesse sentido, pode-se inferir que, dentre essas formas de configurar os fatos, a reconstrução oferecida pelo New Journalism, a princípio, se apresenta como modo mais eficiente para a aproximação do real. Enquanto modelo discursivo, o formato do New Journalism tende a prover uma aproximação mais efetiva ao real, levando-se em conta sua própria estrutura espacial (sua extensão ampliada) e seu enfoque plural, que possibilitam a inserção de um maior número de interpretantes dinâmicos ao relato, em relação à experiência redutora e econômica provida pelo programa televisivo de narrativa policial. Ainda assim, ambas as narrativas apontam procedimentos semelhantes nos dispositivos de referência2 que, enquanto signos, fazem ao seu objeto dinâmico, dessa forma sendo passíveis aos mesmos tipos de cobrança, como textos fundados em sua relação com o real e trabalhados pelo viés da ficcionalidade e do entretenimento. Pode-se dizer, portanto, que esse trabalho evidencia a constatação de um paralelismo fundamental entre produtos culturais que, à primeira vista, apresentam-se como opostos de maneira inconciliável: na vertente de jornalismo impresso, uma narrativa de extrema sofisticação, produzida por escritores de renome, de comprovada especialização em sua tarefa de observar e comentar os acontecimentos, gerando um texto acessível apenas a leitores igualmente qualificados, configurando-se dessa forma como um modelo discursivo consensualmente admirável3, buscado pelos defensores da prática jornalística com pretensões artísticas. No contra-exemplo, o programa de viés sensacionalista, de 2

Concretizados pelos elementos indiciais de que fazem uso. Esse caráter admirável faz parte do próprio telos do relato literário; aos Novos Jornalistas, não interessa apenas produzir um texto comprovadamente verídico, mas também uma obra esteticamente notável como as dos escritores realistas em que buscaram inspiração. 3

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prioridade comercial e consumo massivo, acessível a uma vasta parcela de público ao concretizar sua existência a partir de regras culturais de representação e da mimese de elementos socialmente reconhecíveis, ocasionando um produto de apelo popular e abertamente combatido tanto pela crítica especializada quanto nos comentários gerados no próprio público que o assiste. Nesse sentido, expressa-se nessa pesquisa a intenção de realizar uma busca científica de postura analítica e não combativa ou ideologizada a favor ou contra os assuntos considerados, lançando com mesma ênfase um olhar ao entendimento de tais processos midiáticos na essência de suas estratégias textuais. Transparece, ao fim deste trajeto, a intrínseca relação de similaridade entre New Journalism e Linha Direta – um mútuo interesse em deixar vir à tona a experiência multifacetada do real que, certamente, tende a se estender para além das poucas linhas que lhes reservam os limites do jornalismo diário.

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