Estratégias polêmicas de persuasão nos scriptores artium do séc. I a.C.

June 30, 2017 | Autor: Adriano Scatolin | Categoria: Rhetoric, Cicero, Cicero De Oratore
Share Embed


Descrição do Produto

Coleção Estudos Clássicos FBN - PEC

|

PROAERA/UFRJ

|



v o lu m e 2

IAC/USP

| V e r V e / u SP

A Coleção Estudos Clássicos é um projeto editorial do Polo de Estudos Clássicos do Rio de Janeiro ( p e c - r j ) que reúne alguns laboratórios e programas de estudos em Filosofia e Letras, com fomento da Fundação de Amparo à Pequisa no Estado do Rio de Janeiro ( f a p e r j ) e apoio de duas das mais prestigiosas instituições culturais brasileiras: a Fundação Biblioteca Nacional e a Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos ( s b e c ) .

ALGUMAS VISÕES DA ANTIGUIDADE C oleção Estudos Clássicos V olum e 2

organizadores

Paulo Martins Henrique F. Cairus João Ângelo Oliva Neto

FAPERJ

Q

le tr a s

]

MELINA RODOLPHO

Embora pequenos, alguns aspectos presentes nessa écfrase se repetem nas demais ocorrências da Eneida. Além disso, o cinto ganha mais destaque quando des­ crito detalhadamente, demonstrando sua importância; afinal, é depois de contem­ plá-lo que Eneias, prestes a deixar seu inimigo vivo, encerra a luta enfurecido diante do objeto roubado de seu aliado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estabelecemos algumas características da écfrase no gênero épico, no entanto, tal estudo não se esgota nesse gênero, uma vez que é empregada em outros, demons­ trando que há ainda inúmeros mecanismos que a podem compor. A associação do meio visual com a linguagem verbal norteia o princípio da evi­ dência ou da enargia, em razão da força atribuída ao sentido da visão. A écfrase cons­ titui na retórica o procedimento adequado à presentificação do discurso; as três fun­ ções retóricas são muito bem cumpridas pela écfrase acompanhada da enargia. O caráter digressivo da descrição pode nos levar equivocadamente a pensar que o deleite seja o fim mais apropriado, entretanto, observamos que opera também o docere e o mouere dependendo do contexto na qual se insere. A Eneida, por exem­ plo, se imaginarmos a época de sua composição, é inevitável a conexão entre o con­ teúdo da obra e o elogio a Augusto - o tema das écfrases desse poema costuma reme­ ter à grandiosidade da estirpe de Eneias, cujo protagonista no canto viu é Otávio. A exaltação de Augusto deleita e comove o público, que verá na sua figura um homem superior e representante dos romanos. Embora nossas conclusões estejam sob a influência do pensamento moderno que enxerga a descrição de maneira distinta, isolando-a da narração, procuramos aqui nos ater ao princípio de que ela poderia integrar a narrativa sem necessaria­ mente subordinar-se à narração, como mero acessório.

210

Estratégias polêmicas de persuasão nos scriptores artium do séc. i a.C. Adriano Scatolin

i Neste breve ensaio,1apresento um dos resultados da pesquisa que realizei para a escrita de minha tese de doutorado, “A invenção no Do orador de Cícero - um estudo à luz de A d Familiares i, 9, 23”, defendida em maio de 2009 e sobre a qual me tenho detido desde então. Minha ideia é corrigir um juízo distorcido que tem sido feito sistema­ ticamente, desde o século xix, a respeito das estratégias persuasivas utilizadas pelos tecnógrafos latinos em geral e por Cícero em particular. Tentarei mostrar, primeira­ mente, que os críticos modernos, ao se depararem com passagens de caráter polêmico como as que vemos na anônima Retórica a Herênio e no Da invenção, de Cícero, têm demandado de tais autores modos de apresentação que correspondem antes a nossos critérios científicos modernos que às estratégias retórico-persuasivas então vigentes. Em segundo lugar, buscarei apresentar uma maneira de ler essas mesmas passagens que seja mais condizente com os critérios de produção e de recepção adotados pelos próprios autores antigos. Conforme se verá, chegaremos a uma leitura que se pretende, a um só tempo, mais rica, mais justa e, o que me parece o principal, menos anacrônica.

II

Charles Guérin, em artigo publicado em 2006, propõe categorias e divisões que nos serão úteis em nossa análise.2Em primeiro lugar, um conceito-chave em nossa leitura: a construção da autoridade por parte dos escritores antigos. Guérin, referindo-se exclusivamente ao contexto das obras sobre retórica, considera que podemos dizer que uma teoria tem autoridade se é “compreensível, utilizável e eficiente —ou, ao menos.

1 A primeira versão deste trabalho foi apresentada no 17a Congresso da Sociedade Internacional de História da Retórica, em Montreal, Canadá, com o apoio da FAPESP. 2 Embora tenhamos tido contado com este artigo apenas após o término de nossa tese e a elaboração das primeiras versões do presente trabalho, a exposição do estudioso francês, em virtude da afinidade temática, serve, a um só tempo, de embasamento teórico e complemento a nossas análises.

211

ADRIANO SCATOIIN

é percebida como tal”.3Particularmente importante para nós, conforme nossa leitura mostrará, é a ressalva de “percebida como tal”, que introduz a questão da verossimi­ lhança no que concerne à recepção de determinado texto por parte do leitor antigo. Guérin também aponta as maneiras pelas quais os autores antigos podem cons­ truir essa autoridade. Duas delas são centrais para nossa análise: 1.

“(...) O texto pode mostrar claramente que pertence a uma tradição sólida e bem estabelecida, que comprovou por anos ou séculos a sua validade por meio da repetição de ensinamentos e sua transmissão, por vezes de uma área cultu­ ral para outra. Apelar para nomes respeitados na área —como Aristóteles ou Isócrates —pode ser uma maneira de atingir isso.”

2.

“(...) Prefácios e vários metacomentários ao longo do texto podem contribuir para uma impressão de autoridade. Isso é o que podemos considerar como a produção tradicional de autoridade: ela é perfeitamente ilustrada pelo De inuentione e por seu irmão gêmeo, a Retórica a Herênio, embora eles também façam uso de suas próprias estratégias individuais para produzir este efeito.”4*

Em relação ao primeiro item, particularmente no que concerne ao uso de nomes consagrados (ou auctoritates) do passado, podemos acrescentar, de passagem, que Cícero, no prefácio ao Da amizade, observa de maneira explícita que a própria anti­ guidade parece conferir peso e gravidade às personagens ilustres do passado remoto: Genusautem hocsermonumpositum in hominum veterum auctoritate, eteorum inlustrium, plus néscio quopacto videtur haberegravitatis; itaque ipse mea legens sic adficior interdum, ut Cãtonem, non me loqui existimem.

Este gênero dos diálogos tem alicerce na autoridade dos antigos, e a dos ilus­ tres, não sei de que modo, parece ter mais gravidade; assim, eu mesmo, quando leio minhas próprias palavras, sou de tal modo afetado, que julgo que é Catão, não eu, quem está a falar.*

C., “Cicero as User and Critic of Traditional Rhetorical Patterns: structural authority from De inuentione to De oratore\ In: g a l e w i c z , C. (ed.). Texts o f Power, The Power ofthe Text—Peadings in Textual Authority Across History and Cultures. Kraków, Homini, 2006, pp. 61-5. 3 g u é r in ,

4 GUÉRIN,

C., op. cit., p. 62.

s Cic., Amic. 4. No contexto, Cícero refere-se à construção do gênero dialógico e de suas personagens, mas consideramos que a ideia de auctoritas pode ser facilmente aplicada, por analogia, ao uso de nomes de predecessores no contexto técnico dos textos retóricos.

212

ESTRATÉGIAS POLÊMICAS DE PERSUASÃO N OS SCEIPTOEES ARTIU M D O SEC. I A .C .

III

A partir de tal fundamentação, comecemos nossas análises pela Retórica a Herênio. Como se sabe, a obra foi recentemente traduzida em língua portuguesa pela primeira vez, em edição organizada por Adriana Seabra e Ana Paula Celestino Faria. Em sua introdução, as pesquisadoras apontam vários dos anacronismos a que a obra vem sendo submetida, aos quais gostaríamos de acrescentar um juízo corrente acerca de uma observação feita pelo Auctor, no proêmio do livro i, a respeito da sele­ ção do material que será apresentado na obra: Quas ob res illa quae Graeci scriptores inanis adrogantiae causa sibi adsumpserunt reliquimus. Nam illi, ne parum multa scisse viderentur, ea conquisierunt quae nihil adtinebant, ut ars difficilior cognituputaretur; nos autem ea quae videbantur ad rationem dicendi pertinere sumpsimus. Desprezamos, por isso, as coisas de que se apropriaram, por vã arrogância, os escritores gregos. Para não parecerem saber muito pouco, empenharam-se no que não era perti­ nente, a fim de que a arte fosse considerada mais difícil de conhecer. Nós, entretanto, adotamos aquilo que parece pertencer ao método do discurso [...].'6

Como se observa, já no primeiro parágrafo da Retórica a Herênio temos a oposi­ ção aos tecnógrafos gregos que o Auctor deixará sem nome ao longo de toda a obra. Nesta passagem, trata-se da questão fundamental da escolha da matéria: enquanto os mestres gregos teriam apresentado questões irrelevantes ao assunto —podemos pen­ sar, como apontam os comentadores, numa referência a elementos teóricos e filosó­ ficos, como a distinção entre thésis e hypóthesis hermagórea, bipartição que é ignorada na obra - , apenas o Auctor teria realizado um recorte totalmente pertinente à retóri­ ca.7 Nesse sentido, teríamos uma leitura literal da passagem, que poderíamos enten­ der como informativa. Parece-me, porém, haver uma outra motivação no passo, não mais de caráter informativo, mas persuasivo. Antes de tudo, por uma simples comparação com o Da invenção de Cícero, obra que guarda não poucas afinidades com a Retórica a Herênio, percebemos que as dife­ renças de doutrina entre uma e outra obra são mínimas —os autores, como é notó­ rio, chegam ao ponto de fazer uso de exemplos idênticos. Só por isso já seria possível perceber o exagero da afirmação de que, por oposição aos mestres gregos, apenas o Auctor teria feito uma seleção da matéria pertinente à ratio dicendi: é até mesmo pos6Her. i , i. Todas as traduções desta obra são tomadas à edição de Faria e Seabra ([Cícero]. Retórica a Herênio. Tradução e Introdução de Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra. São Paulo, Hedra, 2005). 7Cf. comentários de Cancelli, in: Cicerone. La Retórica a Gaio Erennio. A cura di Filippo Cancelli. Milano, Oscar Mondadori, 1992, p. 324, n. 3: “As partes supérfluas excluídas pelo autor podem ser as puramente teóricas, ou ainda as concernentes a outras disciplinas, especialmente a filosofia [...]”.

213

ADRIANO SCATOLIN

sível, para não dizer provável, que a suposta fonte comum a ambos os autores, fosse ela escrita ou não, já se contrapusesse ao uso de temas filosóficos.8Ainda que igno­ rássemos esse argumento, porém, uma segunda passagem da obra, em i, 16, parece contradizer a afirmação inicial do Auctor. Adhuc quae dieta sunt arbitror mihi constare cum ceteris artis scriptoribus, nisi quia de insinuationibus noua excogitauimus, quod eam soli nos praeter ceteros in tria têmpora diuisimus, utplane certam uiam etperspicuam rationem exordiorum haberemus. As coisas ditas até aqui, julgo que estão de acordo com o que disseram os demais escri­ tores desta arte, a não ser por termos pensado coisas novas para a insinuação, pois ape­ nas nós as dividimos em três momentos, a fim de que tivéssemos um método comple­ tamente seguro e um sistema claro de exórdios.910

Cabem aqui duas observações: primeiro, se tomarmos a passagem à letra, temos uma aparente contradição com a afirmação de i, i: de fato, passada já metade do primeiro livro, o Auctor observa que tudo o que foi dito até então concorda com o que ensinam os demais tecnógrafos, exceto pelo detalhe da apresentação dos três momentos da insinuatio — ou seja, admite estar seguindo de perto a tradição dos manuais, sem rupturas; segundo, e talvez mais importante para o que tentaremos provar, também Cícero, no Da invenção, apresenta a tríplice divisão da insinuatio.'0 Logo, se tomamos as passagens em conjunto e as lemos de maneira literal, somos forçados a concluir por sua falta de veracidade. E a partir desse tipo de leitura que os críticos vêm condenando o Auctor, com acusações diversas. Enumeremos algu­ mas delas, começando com a crítica de Marx, no final do século xx. Caplan, em sua introdução à edição Loeb da Retórica a Herênio, assim a sintetiza:

8Cabe observar, nesse sentido, que o jovem Cícero, no Da invenção-, também descarta os elementos filosóficos (se de fato o proêmio da Retórica a Herênio alude a eles), considerando “loucura” (amentia) empregá-los. C f Inv. i, 6, 8: Quas quaestiones proeul ab oratoris officio remotas facile omnes intellegere existimamus. Nam quibus in rebus summa ingenia philosophorum plurimo cum labore consumpta intellegimus, eas sicut aliquas parvas res oratori attribuere magna amentia videtur. “Julgamos que todos percebem facilmente que tais questões estão muito distantes do ofício do orador. De fato, atribuir a este, como se de trivialidades se tratasse, estudos em que, percebemos, os maiores engenhos dos filósofos foram consumidos com enorme esforço parece uma grande demência”. 9Her. i, 16. 10A diferença entre os dois tratamentos é de detalhe: enquanto o Auctor fala em têmpora-, Cícero {Inv. i, 18, 23) fala em causae da insinuatio.

214

ESTRATÉGIAS POLÊMICAS DE PERSUASÃO NOS SCS1PT0RES ARTIU M DO SEC. I A.C.

Marx considera o contexto aqui totalmente grego, mesmo que não conheçamos qual­ quer fonte grega específica para a tripartição, e lança a acusação defraude e impudência contra nosso autor [...].n

A leitura de Marx é típica da Quellenforschung, a crítica das fontes que caracte­ rizou boa parte da leitura de autores latinos no século xix e no começo do século xx, segundo a qual liam-se os textos latinos em busca de suas fontes gregas, muitas vezes perdidas (a obra filosófica de Cícero, por exemplo, era lida não por si mesma, mas para que se pudessem recuperar fontes perdidas da filosofia helenística). Repare-se que neste caso, especificamente, o pressuposto de Marx, apesar da falta de indícios apontada por Caplan, é o de que deve haver uma fonte grega de que se teria servido o Auctor, donde sua condenação como fraudulento e impudente pela afirmação inverídica da passagem em questão. Observemos agora a leitura feita pelo próprio Caplan, na década de 1950. Embora absolva o autor da Retórica a Herênio das acusações feitas por Marx, Caplan as substitui por outras, de caráter psicologizante: A doutrina da insinuação apresentada por nosso autor é grega em origem, embora não conheçamos qualquer fonte grega específica para os três momentos. O fato de Cícero, no Da invenção, apresentar uma classificação semelhante torna a afirmação de nosso autor difícil de explicar [...]. Quando, portanto, ele aponta como uma inovação a pequena distinção entre têmpora e causae, nós o consideramos culpado, não defraude, mas da autoestima exagerada que ê também sua característica em outras partes." Esse comentário de Caplan é particularmente esclarecedor para nossa exposição, porque o crítico admite que, com os instrumentos de análise que possui, tem dificul­ dades para explicar uma afirmação inverídica da parte do Auctor. Em vez de mudar seus critérios de leitura, porém, Caplan apenas muda o tipo de acusação, apontando a suposta autoestima exagerada que caracterizaria esta e outras passagens da Retórica a Herênio (o estudioso certamente se refere a passagens como a de 1, 1, apresentada acima, ou do prefácio do livro 4,*123em que o Auctor afirma que empregará exemplos próprios em lugar de seguir o método grego, o que é comprovadamente falso). Passando dos anos 1950 para o final dos anos 1980, crítica de caráter igualmente psicologizante é a feita por Achard na introdução da edição Belles Lettres da Retórica a Herênio:

in: [Cicero]. A d C. Herennium de ratione dicendi (Rhetorica ad Herennium). With an English translation by Harry Caplan. London/Cambridge, William Heinemann UD./Harvard University Press, 1954, p. xxix (itálico nosso).

n CAPLAN,

12 c a p l a n ,

op. cit.y p .

x x ix —x x x (itá lic o n o s s o ).

15Her. 4, i-io. 215

ADRIANO SCATOLIN

D e fato, deve-se supor que o Auctor não conhecia o De inuentione, pois afirma ser o pri­ meiro a distinguir três casos em que se pode empregar a insinuatio, enquanto o manual de Cícero também propõe tal distinção. Apesar da vaidade que caracteriza nosso autor, é pouco provável que se tenha expressado dessa maneira sabendo que outro autor havia apresentado, ou estava prestes a apresentar, a mesma ideia. Além disso, a AdHerennium não se refere jamais ao De inuentione. Se o Auctor tivesse conhecido o tratado ciceroniano, mais substancial que seu próprio manual, teria ficado tentado a remeter a ele para completar suas lições forçosamente mais sucintas.14

Consideremos os pressupostos deste comentário. Antes de tudo, Achard pres­ supõe a sinceridade do Auctor, bem como aquilo que chamamos modernamente de honestidade intelectual: só assim podemos compreender seu comentário de que o Auctor não afirmaria sua precedência no tratamento da insinuatio se soubesse que Cícero estava a desenvolver o mesmo raciocínio no Da invenção. Observe-se, de passagem, que Achard, talvez refletindo o esmorecimento da Quellenforschung, não considera o problema da sinceridade da afirmação do Auctor em relação ao tratamento dado à insi­ nuação pelos tecnógrafos gregos. Em segundo lugar, se não adere à crítica das fontes, Achard, à maneira de Caplan, soma-se aos estudiosos que analisam a escrita dos auto­ res antigos por um viés psicologizante: daí que faça a mesma crítica de Caplan, e de maneira menos eufemística —em lugar de autoestima exagerada, fala da vaidade da parte do Auctor, referindo-se certamente às mesmas passagens a que remetia Caplan.15 Por fim, embora não menos importante, a ideia de que o Auctor, caso conhe­ cesse o Da invenção, teria remetido seu leitor às passagens relevantes para completar suas lições, menos perfeitas do que as de Cícero, parece pressupor o mesmo critério de honestidade intelectual de que deve fazer uso um estudioso ou crítico moderno. O u seja, para o estudioso francês, parece haver uma equivalência do tipo: assim como Achard cita Caplan, também Auctor o fará com Cícero, como se estes dois últimos fossem críticos modernos. Como não o faz, pode-se concluir que o primeiro não tinha conhecimento do segundo. Passando, como último exemplo, aos anos 2000, tomemos um artigo publicado recentemente na revista Rhetorica. Trata-se de um comentário a uma passagem do proêmio do segundo livro do Da invenção, em que Cícero compara-se a ninguém menos do que Zêuxis: tal como o célebre pintor selecionara cinco das mais belas moças de Crotona para pintar o retrato de Helena, por não crer que todas as quali­ dades que pretendia combinar pudessem ser encontradas numa única pessoa —uma vez que em caso nenhum a Natureza criou algo perfeito e completo em todas as suas 14 Achard, in: [Cicéron]. Rhétorique à Herennius. Tcxtc établi et traduit par Guy Achard. Paris, Les Belles Lcttrcs, 1994, p. xlvii (itálico nosso). A primeira edição é de 1989. 15Tanto Caplan, na introdução da edição Loeb (p. xxx), como Achard, na da edição Belles Lettres (p. xlvii), enumeram várias passagens em que o Auctor teria escrito por autoestima exagerada ou vaidade.

216

ESTRATÉGIAS POLÊMICAS D E PERSUASÃO NOS SCRIPTORES ARH U M D O SEC. I A .C.

partes —, também Cícero teria feito o mesmo ao escrever seu manual, ao combinar o que encontrara de mais adequado em seus predecessores. Quod quoniam nobis quoque voluntatis accidit ut artem dicendi perscriberemus, non unum aliquodproposuimus exemplum cuius omnes partes, quocumque essent in genere, exprimendae nobis necessarie viderentur; sed, omnibus unum in locum coactis scriptoribus, quod quisque commodissime praecipere videbatur excerpsimus et ex variis ingeniis excellentissima quaeque libavimus. Ex eis enim qui nomine et memória digni sunt nec nihil optime nec omniapraeclarissime quisquam dicere nobis videbatur. Quapropterstultia visa estaut a bene inventis alicuius recedere si quo in vitio eius ojfenderemur, au tad vitia eius quoque accedere cuius aliquo benepraecepto duceremur. É que, uma vez que também nós nos dispusemos a escrever uma arte oratória, não esta­ belecemos um modelo único do qual todas as partes, qualquer que fosse sua natureza, parecesse-nos dever ser enunciadas necessariamente; mas, reunindo num único lugar todos os escritores, selecionamos aquilo que cada um parecia preceituar da maneira mais adequada e extraímos cada uma das melhores partes de engenhos variados. De fato, dentre aqueles que são dignos de renome e memória, não havia ninguém que nos parecesse não falar nada muito bem ou tudo de maneira excelente. Em razão disso, pareceu-nos tolice afastarmo-nos das boas descobertas de alguém, se estivéssemos des­ contentes com algum erro seu, ou incorrermos também nos erros daquele cujo bom preceito nos guiasse.16

Aplicando o primeiro critério que tomamos a Guérin (cf. n, item i), podemos dizer que a construção da autoridade residiria no uso da tradição e de nomes con­ sagrados (cf. qui nomine et memória digni suní). William Fortenbaugh, porém, em artigo publicado em 2005, afirma que, nesta passagem, “Cícero exagera beirando a desonestidade”, e aponta a contradição da expressão quoadfacultas tulit, “na medida de minhas possibilidades”, utilizada por Cícero logo em seguida à passagem citada, com a afirmação de que reunira todos os autores relativos ao assunto. Fortenbaugh, à maneira de Caplan, também se pergunta o motivo de Cícero se ter comparado a Zêuxis e ter feito tal observação sobre o uso de seu material, concluindo que tal vangloriar-se pode ser atribuído à juventude, mas também levanta questões quanto à credibilidade de Cícero.17

16Cic., Inv. 2, 2, 4. 17 f o r t e n b a u g h , W “Cicero as a Repórter of Aristotelian and Theophrastean Rhetorical Doctrine”. In: Rhetorica, Vol. x x i i i , Issue i, 2005, p. 44. É digno de nota o fato de, segundo o estudioso, o efeito obtido por Cícero, a perda da credibilidade, ser precisamente o oposto daquele que, segundo nossa leitura, a passagem teria sobre o leitor antigo.

217

ADRIANO SCATOUN

IV

Como podemos perceber pela leitura de todos esses exemplos, as acusações contra o Auctor e contra Cícero variam de vaidade e autoestima exagerada a desonestidade e fraude, ou seja, os críticos parecem oscilar entre os papéis de psicólogo e delegado. Porém, como propomos, há uma maneira diferente, mais justa de ler tais passagens, que é entendê-las como estratégias de persuasão tendo em vista conferir fides à obra e auctoritas a seus autores, em detrimento da autoridade de seus predecessores e da credibilidade de seus manuais. A veracidade das afirmações desses dois autores é irrele­ vante, se levarmos em conta tal leitura. Se atentarmos aos comentários de Caplan e de Achard, notaremos que demandam ao Auctor algo que não poderia oferecer a seu leitor contemporâneo sem perder precisamente aquilo que tenta estabelecer, sua própria autoridade. Suas dívidas reais a seus predecessores gregos são completa­ mente irrelevantes no contexto da passagem citada do prefácio do livro i se perceber­ mos que procura estabelecer-se como mestre de toda a tradição das artes aos olhos de seus leitores. A falsidade de tal afirmação é irrelevante em vista de seu objetivo — o que realmente importa é a criação de um efeito de verossimilhança (ou, para usar a formulação de Guérin apresentada em n, é o fato de ser percebido como eficiente pelo leitor que confere a credibilidade ao texto, ainda que essa percepção não seja baseada numa informação verdadeira). Além disso, ainda que supuséssemos, pelo argumento, que o Auctor sabia que Cícero oferecera um tratamento semelhante ao seu no Da invençãoA ele não remeteria seu leitor a esse tratamento mais amplo, como sugere Achard, uma vez que isso teria o efeito oposto do que estaria tentando fazer - mostraria a seu leitor a existência de um autor mais apto a escrever sobre o assunto e, em conseqüência, poria sua autoridade e credibilidade a perder. O Auctor, permita-se-nos a observação óbvia, não é um estu­ dioso moderno escrevendo para uma comunidade científica de acordo com critérios pré-estabelecidos de honestidade intelectual e decoro, como parecem crer Achard e os demais estudiosos a que fizemos menção, mas um escritor tentando persuadir seu público de que é mestre de toda uma tradição, malgrado o fato de estar, na realidade, tornando publica materiespriuati iuris, para usar a expressão de Horácio.1’189

18Embora sc considere que ambas as obras tenham sido escritas por volta dos anos 90-80 a.C., desconhece-se sua datação relativa. 19Hor,tArs 131.

218

ESTRATÉGIAS POLÊMICAS DE PERSUASÃO NOS SCS1PT0RES ART1UM DO SEC. I A.C.

V

Buscarei agora apontar os pressupostos teóricos antigos de minha hipótese e suas fontes. A resposta parece encontrar-se nos próprios manuais de retórica, nos precei­ tos acerca do exórdio. Como se sabe, tanto o Auctor como Cícero afirmam que, no exórdio, o orador deve tornar seus ouvintes dóceis, benévolos e atentos. O que explica suas afirmações de originalidade sobre seus predecessores são os preceitos concernentes a estes dois últimos: Adtentos habebimus, si pollieebimur nos de rebus magnis, novis, inusitatis verba facturos [...]. Benivolos auditores facere quattuor modispossumus: ab nostra, ab adversariorum nostrorum [...] persona.

Ab nostra persona benivolentiam contrahemus si nostrum officium sine adrogantia laudabimus [...]. Ab adversariorum persona benivolentia captabitur si eos in odium, in invidiam, in contemptionem adducemus. Teremos ouvintes atentos se prometermos falar de matéria importante, nova e extra­ ordinária [...]. Podemos tornar os ouvintes benevolentes de quatro maneiras: baseados em nossa pessoa, na de nossos adversários, na dos ouvintes e na própria matéria. Baseados em nossa pessoa, obteremos benevolência se louvarmos nosso ofício sem arro­ gância [...]. Baseados na pessoa dos adversários, granjearemos a benevolência se levarmos os ouvin­ tes ao ódio, à indignação e ao desprezo.20

Tendo tais preceitos em mente, consideremos, primeiramente, o brevíssimo proêmio do livro i da Retórica a Herênio. Tal como o leio, o Auctor está a usar precisamente as estratégias para obter a benevolência que apresentará posteriormente no tratamento do exórdio: ele parece estar combinando três de tais tópicos em um único parágrafo. Se considerarmos o locus ab aduersariorum persona, perceberemos que o Auctor atribui a seus predecessores três razões para escrever seus manuais tal como os escrevem: inanis adrogantia, spes quaestus e spes gloriae. Obviamente, ao fazê-lo, está tentando fazer que seus leitores sintam desprezo por seus predecessores (cf. in contemptionem adducerè). Ao mesmo tempo, se considerarmos o locus ab nostrapersona, perceberemos que o Auctor afirma explicitamente não ter sido motivado por tais baixezas. Em lugar disso, ele tentou ater-se ao que era essencial e a responder a um pedido de Herênio, 20Her. i, 7-8. Cf. também Cic., Inv. i, 16, 22-23.

219

ADRIANO SCATOLIN

ou seja, para usar seus próprios conceitos, está a louvar seu próprio ojficium sem arrogância. Por fim, se considerarmos o locus a re, se o podemos chamar assim, percebere­ mos que oAuctor tenta tornar seus leitores atentos ao dizer que apresentará seu tema de uma maneira completamente nova - segundo nossa interpretação, a falsidade (ou parcialidade) de tal afirmação é completamente irrelevante para seus objetivos.21 Se tomarmos agora o proêmio do segundo livro do De inuentione, perceberemos que Cícero deixou de lado o locus ab aduersariorum persona, fazendo uso do locus ab nostra persona e do locus a re. Ele procura apresentar-se como senhor de toda a tradi­ ção retórica; para consegui-lo, não tenta mostrar a arrogância de seus predecessores ou suas esperanças de ganho e glória, mas afirma que selecionará a melhor parte de seu tratamento e omitirá a pior, o que constitui uma combinação do locus ab nostra persona e do locus a re: ele mostrará uma mistura de elementos jamais antes vista, e isso só pode ser feito porque é senhor de toda a tradição. É claro que Cícero não usa tal expressão ou equivalente, uma vez que, segundo seu preceito, é preciso louvar seu próprio ofício sem arrogância. Sua comparação com Zêuxis não seria vista, penso eu, como um vangloriar-se arrogante, tal como a lê Fortenbaugh, mas como uma varia­ ção bastante engenhosa de uma mesma tópica. Meu palpite é que um leitor contem­ porâneo, confrontado com ambos os manuais, se deleitaria em comparar e julgar as maneiras bastante diversas de os dois autores abordarem os mesmos loci.

21 Ou, inversamente, sua veracidade, se considerarmos que, em i, i, poderia o Auctor estar se referindo à supressão de elementos teóricos e filosóficos de seu tratamento. A nosso ver, se tal é o caso, a passagem é apenas incidentalmente informativa, sendo essencialmente persuasiva.

220

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.