Estrutura do território e assentamento popular – A região do Porto ao longo dos tempos

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Estrutura do território e assentamento popular – A região do Porto ao longo dos tempos Bragança, P. Oliveira, M.

Preâmbulo

Faremos uma apresentação parcialmente diferente da que fizemos no encontro de Istambul, tendo em consideração, desde logo, que não se justificaria uma comunicação extensiva da globalidade e generalidade dos temas do território que abordamos – o noroeste litoral português –, por todos exaustivamente conhecido e, em muitos casos até, alvo de estudo e desenvolvimento. Obviaremos, assim, a matéria descritiva e pouparemos o auditório a uma fastidiosa apresentação, tentando então emitir, sintética e diretamente, a matéria discutível, passível de encontrar nas naturais distâncias e aproximações um espaço de utilidade – de ressonância e crítica.

Procedemos na apresentação de Istambul a um ensaio no território complexo da região do Porto, afirmando e defendendo múltiplas racionalidades possíveis sobre ele; reconhecer não a ausência de racionalidade, não a existência de uma única racionalidade mas de um complexo de racionalidades que se acumularam de forma densa no tempo e que reagiram sucessivamente umas às outras, transformando-se e transformando. Sendo de facto, e assumidamente, a notícia de uma pesquisa – deambulatória e exploratória – em torno de temas de território, tentando destacar nele invariáveis, aspectos relevantes para a sua compreensão este texto passa a ser, também, por inerência, um registo dessa mesma pesquisa que deu origem à Dissertação de Mestrado ‘’Lugares de habitar entre a terra e o mar: temas do território no Entre Douro e Minho’’. O nosso ponto de vista baseia-se, fundamentalmente, na tentativa de compreender os lugares a partir, primeiro, da sua génese, depois, da sua transformação, entendendo a ideia de transformação em dois mundos – a terra e o mar – e dois andamentos diferentes: uma primeira modernidade, situada a partir do século XV; e uma segunda, do Iluminismo e com especial veemência na segunda metade do século XIX.

Centro, Policentro e Lugar

Temos prosseguido com a importante missão da revisão profunda dos conceitos mistificados, nunca arredando do princípio da desconfiança em relação às importações teóricas e em relação às hipóteses que foram desenvolvidas com base em contextos substancialmente diferentes do nosso. Centro, condição central, função central, periferia, condição periférica, suburbanidade – parecem não ser já um possibilidade e representam um certo esvaziamento e esgotamento teórico. Não ao Central Business District ou à hipertrofia das periferias: estão longe de responder à objectivação dos problemas com que nos defrontamos no noroeste litoral português. Aqui as cidades tiveram sempre – não é novo – um papel, não diríamos secundário, mas, pelo menos, dissolvido e relativo face a um território intensamente ocupado e disseminado. Na globalidade desta região, a maior parte da população não vive nem trabalha nos dos grandes núcleos urbanos. Há um imenso e extenso território que o nosso campo disciplinar, por atavismo ou preconceito, frequentemente recusou estudar, face ao esplendor do centro histórico como hipótese única de detenção de significado e identidade. Salvam-se as exceção que confirmam a regra. As teorizações da cidade monocêntrica e das suas relações concêntricas com uma periferia sua dependente, ou de uma cidade que cresce em mancha de óleo face a um território desocupado, não terão aqui uma correta adaptação. Alguns autores – Álvaro Domingues, Teresa Sá Marques, Nuno Portas, Manuel Fernandes de Sá – ofereceram importantes contributos à revisão do conceito de centro, ensaiando a hipótese de uma organização de tipo policêntrica, de desmultiplicação da função

central por vários espaços de um sistema urbano extensivo, maiores ou menores, que geram efeitos de atração e intensificação pontual. No encontro com o pensamento de Carlos Alberto Ferreira de Almeida vimos a possibilidade de desenvolvimento de uma hipótese de uma organização acentrada, isto é, que corresponde a uma desmultiplicação ou reprodução infinita do centro e que faz de cada posição em particular a sua própria centralidade, geradora e organizadora do um universo exclusivo de relações. Sendo que, destas posições particulares, nenhuma, ou nenhumas, se destacariam especialmente ou suficientemente para as considerarmos ordenadoras das restantes. Curiosamente, esta ideia de organização acentrada que deduzimos do texto de Ferreira de Almeida, está presente num conjunto de autores italianos a partir dos anos 90. Um deles é Elio Piroddi, que ofereceu relevantes contributos ao debate em torno da Città Diffusa, e escreveu La città senza centro1. Para compreendermos esta ideia de estrutura de povoamento acentrada revisitamos algumas ideias originadas pela tradição do pensamento complexo, designadamente os sistemas de auto-organização e recorremos a elas para as imiscuir com a historiografia clássica e o pensamento do território a partir dos lugares. Num sistema de organização desta natureza, cada parte posiciona-se em relação a ou em função de – é uma estrutura relacional que se mede por aproximações ou distanciamentos relativos e que cujo assentamento é o resultado de uma gestão e ponderação razoáveis de factores naturais ou programáticos. Esta é a base da ideia de inteligência do lugar, que recuperamos de Alexandre Alves Costa. Não é uma estética do lugar – o lugar bucólico como símbolo nostálgico de um modo de vida agro-rural – que está em causa, mas a inteligência do lugar, ‘’da escolha ao desenho’’2, o que o define enquanto entidade de organização, momento de coesão de natureza social, cultural e formal. No noroeste litoral português o lugar nem tem centro nem é uma centralidade, é um fenómeno/instância de organização popular. Para deslindarmos a estrutura do povoamento, teremos, fatalmente, de recorrer a ele. E uma incursão pelo lugar não dispensa, antes obriga, um reconhecimento da ideia de genius loci, tão presente na cultura clássica, recuperada por Aldo Rossi3 e, mais tarde novamente apresentada por Norberg-Schulz4. O locus-lugar não é aqui um apriorismo de natureza funcional ou mecânica, não se recorre de uma tratadística ou de um determinismo na sua ação. Aí reside, eventualmente, a sua complexidade e maior interesse. A inteligência do lugar é algo que está entre a razão e a arte, um encontro entre múltiplas racionalidades (que resultam da ação do poder global sobre o espaço) e o empirismo, uma espécie de consciência popular difusa – noções partilhadas e herdadas que advêm da experiência aperfeiçoada, do que se foi fazendo vagarosamente, e da maturidade que o tempo foi dando às práticas de assentamento. Um lógica, esta,

                                                                                                                1

Piroddi, Elio, La città senza centro, in Le regole della ricomposizione urbana, Costa, Alexandre Alves, Introdução ao Estudo da História da Arquitectura Portuguesa, 2.ª Ed., Faup Publicações, 2007. 3 Rossi, Aldo, L'architettura della città. Milano: Città Studi Edizioni, 1966. 4 Norberg-Schulz, Christian, Genius Loci: Towards a Phenomenology of Architecture. London: Academy Editions, 1980. 2

simultaneamente Heiddegeriana5, do lugar, espaço de construir-habitar enquanto fenómeno único. Voltamos a Carlos Alberto Ferreira de Almeida para nos debruçarmos sobre a importância da vicinidade. Conceito-chave, do nosso ponto de vista, para esclarecer a ideia, a vicinidade é um sistema de relações e de compromisso entre as partes que atribuiu coesão ao complexo-lugar. É, ao mesmo tempo, o mecanismo de variabilidade, mutabilidade e que permite ao lugar ser simultaneamente um organismo metamórfico – mais ou menos disseminado, mais ou menos concentrado, maior ou menor, mais isolado ou menos isolado –, conforme a sua circunstância e a sua natureza, mantendo toda a coesão. No mesmo sentido concorre o pensamento de Alison and Peter Smithson, em ‘’Urban Structuring’’ (1960), e o conceito de ‘’Padrões de Associação e Identidade’’.

Esta estrutura acentrada – continuamos a revisitar o texto de Carlos Alberto Ferreira de Almeida – matriz global do povoamento na sua génese, parece, porém, ser coordenada por pontos fundamentais na paisagem, coordenadas essenciais, ou, como lhes chama Max Sorre6 ‘’pontos singulares’’, onde todo o sistema de organização é posto em síntese e em exaustão. Uma geografia com outra inteligência própria, reguladora da paisagem, que não é estanque. Evidente está que poderíamos atribuir à natureza da orografia essa espécie de lugares especiais, poderiam ser quase intuídos – isto porque na plataforma litoral, território ondulante mas nunca montanhoso, compartimentado pelos rios e seus afluentes, emergem montes, pontos destacados do relevo que referenciam e território circundante: S. Gens, Santa Eufémia, S. Felix, Franqueira e por aí em diante. Surge-nos, como exemplo e para fazermos uma aproximação análoga à de Rossi em A Arquitectura da Cidade7, a geografia mariana composta pelo imenso rosário de capelas, santuários e outras estruturas religiosas que ocupam pontos significativos na paisagem, como os cabeços dos montes destacados do relevo litoral – Não se tratam de centralidades, ou novas centralidades, mas exercem um efeito de influência, de referenciação e de reconhecimento do território, por aproximação e distância face às comunidades agrícolas e marítimas. Informam todo este campo os trabalhos de Geraldo Coelho Dias e João Francisco Marques.

O mar

Desde o século XV, por motivos defensivos e para sinalizar a navegação marítima ao largo da costa, um esquema de faróis, regimentos e postos de vigia foi planeado e instalado ao longo da faixa costeira do noroeste peninsular, por uma forte parceria entre a Igreja e a Administração Real. O assunto foi amplamente estudado por inúmeros autores: Francisco Ribeiro da Silva, Amélia Polónia, Helena Osswald... Uma nova geometria sobre o território, baseada em enfiamentos visuais e num método de implantar novas infraestruturas que deu origem a novos assentamentos.

                                                                                                                5 6

Heiddeger, Martin, Building Dwelling Thinking, 1971. Sorre, Max, Géographie urbaine et écologie. Urbanisme et Architecture, 1954.

7  Rossi,  Aldo,  op.  cit.,  p.  154.  

Um dispositivo de proteção, reconhecimento e controlo do território que preencheu todo este espaço e que deu dimensão e escala à rede de povoamento – um novo estrato, uma nova idade e um novo imaginário de época. O símbolo de uma modernidade emergente. É um sistema de orientação e reconhecimento do território marítimo, por motivos defensivos e militares e para fins de navegação, mas é também um sistema de conciliação com o território terrestre. Cada um destes novos espaços era um objecto religioso (uma igreja, uma capela, um santuário...), cujo topónimo representava a sua função espiritual – um ponto significante numa paisagem cristianizada a partir dos lugares altos, de visibilidade, e que no conjunto da sua malha, presidia a todos os restantes lugares. Assim, devemos observar a importância desta rede também para as comunidades agrícolas, num fenómeno de progressiva cristianização da cultura em todos os seus sectores e espaços.

A terra

A tradição romana nos traçados marcou o perfil dos traçados e foi sendo sucessivamente replicada. As vias utilizam preferencialmente as cristas dos montes, num território ondulante mas nunca montanhoso, usando as vantagens da franca visibilidade sobre os vales, das terras mais duras e da linearidade dos traçados. Passam levemente sobre os lugares, nas suas imediações, nem demasiado perto, nem demasiado longe – uma rede local, dispositivo de controlo da proximidade, fará esse interface entre a rede e o lugar. A rede de milestones que a cada milha marcava as vias romanas estabeleceu-se como um processo de reconhecimento do território romanizado – a marcação da presença do império na terra. Na Idade Moderna a revisitação do classicismo deverá vir no seguimento do Concílio de Trento, uma visão tridentina de inspiração romana, que no contexto da contrarreforma implantou um sistema articulado de cruzeiros. Esse sistema parece assinalar a intenção de enquadramento e integração do espaço religioso cristão perante as comunidades locais. É neste contexto que surgem os padrões leguários, enunciados em ‘’Da Fábrica que falece à Cidade de Lisboa’’ (1571) – um tratado escrito por Francisco de Holanda, autor chave da Renascença Portuguesa. Estes padrões eram espaços marcados por cruzeiros que, a partir das principais cidades, de légua em légua, presidiam à passagem. Trata-se de um sistema de marcação e medida do território, mas simultaneamente de uma estratégia de extensão do poder da Igreja e de reconhecimento do espaço religioso cristão; um sistema que, articulado com as capelas e os santuários nos lugares relevantes da paisagem, como os montes, fortaleceu a presença do culto e estabeleceu uma nova ordem e cultura religiosa perante as comunidades. Tanto quanto podemos imaginar e intuir, cada uma destas estruturas, como o Padrão da Légua, tornou-se um espaço essencial na paisagem, um cruzamento no tecido viário e, de um certo ponto de vista, uma forma de desmultiplicar o centro. Ao mesmo tempo, são cruzamentos nas vias hierarquizadas, as principais, no sentido norte sul, com as secundarias, nascente poente, essenciais ao movimento entre a terra e o mar que define o ambiente anfíbio da região.

Transformações modernas

A emergência de uma nova elite intelectual baseada no liberalismo político e económico traz no século XIX um novo cenário, focado sobretudo em dois tópicos: 1) a teoria do desenvolvimentismo, que se desdobrou em inúmeras frentes, como o Fontismo, a Regeneração... e 2) o fim do poder da igreja, impulsionado por uma nova ideia de ‘’Sociedade de Indivíduos’’, a emancipação de um poder público e de uma administração do estado secularizada. Revoluções sociais e políticas que tiveram na base de profundos melhoramentos materiais. Era feito o diagnóstico de um país desconectado, com infraestruturas de comunicação obsoletas. Um novo modelo económico, baseado na produção, na manufactura, no capital e no mercado que traz para o primeiro plano um novo estrato social – a Burguesia – que vai colonizar o território a partir da sua extensa malha de caminhos e ruas. Uma nova estrutura de povoamento, com lógicas divergentes das anteriores, que transforma o território e lança as bases da transformação. O esplendor da urbanização, progressiva e extensiva, que se ocupa do espaço libertado pelas bouças, alienadas, parte dispensável de um (eco)sistema agrário tripartido e equilibrado.

Discussão A transformação é um processo negocial de mediação dos tempos, do qual surgem cedências de parte a parte, num diálogo espontâneo mas inteligente e sensível que não adquire um sentido aditivo ou impositivo. Assim, somos levados a crer que a ampla admissão e os sucessivos procedimentos operativos de integração de novos estratos que caracteriza o território português está na origem da sua complexidade contemporânea. O espaço contemporâneo é uma polifonia. Ao mesmo tempo, identificamos a presença de elementos do passado e de diferentes passados que se articulam entre si e que se transformam e transformam o seu contexto – o lugar preferencial da heterodoxia, onde reconhecemos não uma estrutura mas uma racionalidade mas um número imenso de racionalidades, de tempos diferentes e de diferentes escalas que assumem, permanentemente, uma postura operativa de cedência à realidade. Perante isto, a questão sobre a qual nos colocamos é como poderemos operar um pensamento de projeto num contexto desta natureza. Algo que nos parece imprescindível e emergente, desde logo porque reconhecemos, de certa forma, a falência generalizada de um modelo de planeamento abstracto, que se assume simultaneamente omnipresente e omnisciente. Algo difícil para o planeamento do território parece ser encontrar, mais do que um projeto, uma postura perante a incerteza e a imprevisibilidade do contexto, que, perante a fragmentação e a hibridez, seja mais do que uma estrutura de constrangimento, uma estrutura de moderação e diálogo.

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