ETHOS, ENTONAÇÃO E GÊNERO: ENCRUZILHADAS DE SENTIDOS E SUJEITOS NA DISCURSIVIDADE GASTRONÔMICA DE A FESTA DE BABETTE

June 5, 2017 | Autor: Marco Villarta | Categoria: Discourse Analysis, Film Theory, Mikhail Bakhtin, Ethos, Gastronomic Anthropology
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ETHOS, ENTONAÇÃO E GÊNERO: ENCRUZILHADAS DE SENTIDOS E SUJEITOS NA DISCURSIVIDADE GASTRONÔMICA DE A FESTA DE BABETTE Marco Antonio VILLARTA-NEDER Universidade Federal de Lavras – UFLA (GEDISC) RESUMO: A presente discussão pretende inserir-se na temática do Grupo de Trabalho A noção de ethos e seus ecos: (des)encontros em diferentes vieses discursivos. Para tal, objetiva-se discutir, a partir de um viés discursivo dos estudos de filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin, como o conceito de ethos, advindo da retórica clássica e hoje presente em vieses próximos a teorias de discurso, teria possibilidades epistemológicas dentro desse campo de estudos bakhtinianos. Assim, a partir do filme A Festa de Babette, dirigido por Gabriel Axel, pretende-se problematizar as possíveis relações que constituem os sujeitos Babette e os habitantes do povoado no qual ela se estabelece; os sentidos produzidos e deslocados nessa constituição intersujeitudinal e as discursividades instauradas na maneira através da qual essas constituições intersentidurais e intersujeitudinais se enunciam. Babette é uma personagem que representa uma chef de um conceituado restaurante parisiense no final do século XIX. Fugindo das lutas da Comuna de Paris, ela se estabelece em um povoado habitado por cidadãos conservadores e melancólicos na Noruega. Após receber uma indenização expressiva, resolve dar um jantar que acaba alterando em muitos aspectos as pessoas e a vida do povoado. A proposta desta comunicação é discutir como nas entonações entre gêneros gastronômicos diferentes as relações intersujeitudinais e intersentidurais estabelecem deslocamentos e se constituem reciprocamente em um campo de discursividades. Além disso, pretende-se discutir quais as implicações epistemológicas dessa possibilidade de (re)pensar relações que habitualmente são abordadas pelo conceito de ethos mediante os conceitos bakhtinianos de entonação e gêneros discursivos. No caso desse último, quais as consequências de se reestabelecer o conceito de gêneros discursivos enquanto práticas sociais linguageiras e simbólicas que alocam e deslocam sujeitos e que, ao mesmo tempo, refletem e refratam sentidos. PALAVRAS-CHAVE: Círculo de Bakhtin; ethos; discurso gastronômico. 0. Introdução Dentro da proposta do Grupo de Trabalho A noção de ethos e seus ecos: (des)encontros em diferentes vieses discursivos, este texto objetiva discutir o filme A Festa de Babette, a partir de um viés discursivo dos estudos de filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin. O filme A Festa de Babette é uma produção dinamarquesa de 1987, dirigido por Gabriel Axel a partir de roteiro adaptado por ele a partir do conto homônimo de Karen Blixen. Teve grande repercussão internacional principalmente em vista dos prêmios que conquistou (prêmio ecumênico do Festival de Cannes de 1987; Oscar de melhor filme estrangeiro de 1988; prêmios da audiência e do Grande Júri do Festival du Cinéma Nordique de Rouen; indicação para Globo

de Ouro de 1989 e prêmio de melhor filme em língua não inglesa da British Academy of Film and Television Arts - BAFTA - de 1989). Babette é uma personagem que representa uma chef de um conceituado restaurante parisiense no final do século XIX. Fugindo das lutas da Comuna de Paris, ela se estabelece em um povoado habitado por cidadãos conservadores e melancólicos na Noruega. Após receber uma indenização expressiva, resolve dar um jantar que acaba alterando em muitos aspectos as pessoas e a vida do povoado. Os objetivos do trabalho consistem na problematização das possíveis relações que constituem os sujeitos Babette e os habitantes do povoado no qual ela se estabelece; os sentidos produzidos e deslocados nessa constituição intersujeitudinal e as discursividades instauradas no modus através do qual essas constituições intersentidurais e intersujeitudinais se enunciam. Além disso, pretende-se discutir quais as implicações epistemológicas dessa possibilidade de (re) pensar relações que habitualmente são abordadas pelo conceito de ethos mediante os conceitos bakhtinianos de entonação e gêneros. No caso desse último, quais as consequências de se reestabelecer o conceito de gêneros enquanto práticas sociais linguageiras e simbólicas que alocam e deslocam sujeitos e que, ao mesmo tempo, refletem e refratam sentidos. 1. Pressupostos teórico-epistemológicos A discussão sobre o conceito de ethos situa-se no contexto de uma revisita à Retórica e a releituras de seus conceitos sob a perspectiva dos saberes do mundo atual. Nesse sentido, notadamente as discussões surgidas a partir do surgimento da Nova Retórica, principalmente com a obra do filósofo do Direito Chaïm Perelman, no final dos anos 1950. Um exemplo dessa ótica é o comentário que Alexandre Júnior faz no prefácio da Retórica de Aristóteles na publicação das Obras Completas do filósofo grego pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda de Portugal: [...] a restauração da retórica ao seu velho estatuto de teoria e prática da argumentação persuasiva [...] tem vindo a corrigir essa noção enganosa, revalorizando-a como ciência e arte que tão logicamente opera na heurística e na hermenêutica dos dados que faz intervir no discurso, como psicologia e eficazmente se cumpre como resultante efeito de convicção e mobilização para a acção. (ARISTÓTELES, 2005, p. 11)

Assim, sob o foco dos estudos sobre argumentação, os estudos retóricos readquirem uma perspectiva mais conceitual, que dialoga mais diretamente com as complexas modificações de modalidades, suportes e práticas de linguagem que constituem identidades em nossas sociedades atuais. Ruth Amossy, que tem dedicado reflexões relevantes, utilizando conceitos retóricos sobre argumentação, aponta a relação desses estudos com a trajetória de subáreas dos estudos linguísticos: Privilegiando o emprego do enunciado em situação e a força da palavra, as diferentes correntes da Análise do Discurso e da Pragmática hoje reencontram a Retórica definida como a arte de persuadir. À maneira de Aristóteles, procuram compreender e explicar como o discurso se torna eficaz. (AMOSSY, 2005, p. 10) Em seu texto A Retórica, Aristóteles discute as provas de persuasão e as divide em três processos: aquelas que residem no caráter moral do orador (ethos); as que residem no estado de espírito da audiência (pathos) e, finalmente, aquelas que residem nos elementos do próprio discurso (lógos): As provas de persuasão fornecidas pelo discurso são de três espécies: umas residem no carácter moral do orador; outras, no modo como se dispõe o ouvinte; e outras, no próprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar. Persuade-se pelo carácter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé. (ARISTÓTELES, 2005, p. 96) Assim, para Aristóteles, a noção de ethos designa a construção de uma personagem que o orador constrói para a sua posição enunciativa (dito do ponto de vista das teorias da enunciação do nosso tempo). Amossy detalha o conceito de ethos: Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto, não é necessário que o locutor faça seu autorretrato, detalhe suas qualidades nem mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma representação de sua pessoa. Assim, deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu discurso uma apresentação de si. (AMOSSY, 2005, p.9)

A perspectiva de Amossy destaca um procedimento ipso facto da relação do sujeito com o discurso: o sujeito, mesmo sem saber, constrói uma personagem de si mesmo, uma representação do lugar que ocupa, conferindo (ou não), sempre em alguma medida, uma credibilidade, de legitimação desse lugar no qual o sujeito se instaura. Esse conceito pode articular-se com o que Bakhtin diz [...] não posso agir como se os outros não existissem: saber que o outro pode ver-me determina radicalmente a minha condição. A sociabilidade do homem funda-lhe a moral: não na piedade, nem na abstração da universalidade, mas no reconhecimento do caráter constitutivo do interhumano”. (BAKHTIN, 2011, p. XXVIII). É importante destacar que esse saber do sujeito sobre o outro se dá para além de uma percepção explícita desse outro. Pode-se dizer, assim, que o sujeito se sabe sujeito por saberse outro e por saber o outro. Ele somente é sujeito porque reage a esse outro lugar, em que outro sujeito também se constitui. Cabe perguntar-se sobre as maneiras através das quais esses sujeitos coexistem, interagem e criam, feito um jogo de espelhos; como essas personagens criadas pela posição assumida pelos sujeitos se materializam no discurso. Severo, retomando o conceito bakhtiniano de gêneros do discurso, aborda essa questão: Dado que cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciado, sendo isso que chamamos de gênero do discurso (BAKHTIN, [1952-1953] 1997, p. 179), acredito ser possível estabelecer uma aproximação entre sujeito e gênero discursivo: os sujeitos se apropriam da linguagem ao se tornarem imersos nas várias formas de comunicação verbal, que se associam a diferentes esferas da comunicação humana e que definem os infinitos gêneros discursivos existentes. Cada gênero impõe um certo ponto de vista, uma atitude, uma forma de pensamento e uma entonação, de acordo com a esfera de atividade humana à qual ele se associa. (SEVERO, 2008, p. 54) Dessa maneira, a própria existência dos gêneros discursivos como espaço de entrecruzamento de práticas sociais e de práticas de linguagem pode ser considerada como um locus enunciativo no qual os sujeitos adquirem uma entonação. É em torno do conceito bakhtiniano de entonação que este trabalho enxerga um diálogo com o conceito retórico de ethos. Severo aponta, parafraseando Volochinov que

[...] é na entonação, por ela residir na fronteira do verbal e o não-verbal, o dito e o não-dito, que a palavra faz contato com a vida e que o locutor entra em contato com os ouvintes; nesse sentido, a entonação é, necessariamente, social. (SEVERO, 2008, p. 53) Da perspectiva deste trabalho, tem-se, então, os gêneros discursivos como lugar onde se encontram – em diálogo – a entonação do sujeito com os sentidos produzidos por/para seu auditório social. O ethos/a persona de que o sujeito se (re/in) veste em seu processo de constituição não pode ser concebido sem a alteridade com o outro (sujeito). E é esse ponto de encontro que será analisado na narrativa fílmica A Festa de Babette. 2. Análise O filme inicia-se com seus créditos iniciais sobrepostos a um conjunto de imagens que situam o vilarejo norueguês em que os acontecimentos da narrativa irão ocorrer. Há um plano inicial em que aparece um cenário de litoral. Com um zoom out1 progressivo, a linha do horizonte vai coincidindo cada vez mais com a praia e, depois, com a própria aldeia. Em seguida, aparece um close up2 de peixes pendurados, secando ao sol e ao vento. A cena seguinte apresenta as futuras patroas de Babette, Martina e Filippa. Também é utilizado o recurso de zoom out. O filme possui uma narração, que introduz para o espectador o contexto da vida das duas irmãs, da sociedade religiosa fundada pelo pai delas, que era pastor e do próprio vilarejo. Enquanto linguagem visual, a própria aparição das duas irmãs, nas cenas em que elas aparecem cuidando dos doentes e dando alimento a eles, nas cenas em que demonstram fervor religioso na condução e reunião da sociedade fundada pelo pai, instaura um ethos para o espectador. E isso se dá, fundamentalmente, pela entonação. Há um tom das fisionomias compenetradas e piedosas, um meio sorriso de alegria contida. Há, também, - e esse aspecto é relevante para a análise aqui pretendida – no tom da sopa servida. A sequência de quadros em que as irmãs aparecem com uma panela de sopa, seguida por cenas em que cada uma delas aparece dentro da casa de alguém abrindo a panela e,

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ZOOM-OUT - Diminuição da distância focal da lente durante uma tomada, o que dá ao espectador a impressão deque está se afastando do elemento que está sendo filmado. (MACHADO, 1997) 2 CLOSE-UP - Plano que enfatiza um detalhe. Primeiro plano ou plano de pormenor. Tomando a figura humana como base, este plano enquadra apenas os ombros e a cabeça de um ator, tornando bastante nítidas suas expressões faciais. (MACHADO, 1997)

finalmente, o close up na tigela de sopa servida instauram o ethos da piedade contida, de uma religiosidade austera. É nessa entonação de um discurso gastronômico que constitui seus sentidos pelo insípido, pela temperança do paladar que as irmãs estabelecem esse ethos. Mais adiante esse aspecto será retomado na análise. Babette é introduzida por cenas que destacam, inicialmente, sua função servil, exercida com obediência e discrição. As cenas iniciais são seguidas por um flash back, a partir do qual o espectador tem acesso ao momento da chegada de Babette na casa de Martina e Filippa. O ethos de Babette vai se reconstruindo na narrativa fílmica, e as cenas vão estabelecendo uma progressão de uma Babette servil e solitária, para uma empregada criativa, que busca temperos na natureza, negocia preços com o vendedor de verduras e, finalmente, adquire autoridade perante os demais membros da sociedade religiosa, que se reúnem sempre na casa de Martina e Filippa. Ocorre uma cena em que Babette chega com uma bandeja para servir chá e biscoitos. Ela chega em um momento em que as pessoas, na reunião dessa sociedade, estão discutindo e culpando-se umas às outras, destoando dos princípios cristãos que alicerçam o grupo. Ela demonstra essa autoridade, chamando os presentes à responsabilidade de se tratarem com respeito. A câmera corta para as faces de Martina e Filippa, que apresentam expressão discreta de aprovação. Essa entonação que Babette vai construindo, na relação com as irmãs e com as demais pessoas do vilarejo, continua se modificando. O único contato que Babette havia mantido com a França, seu país de origem, era a renovação anual de um bilhete de loteria. Às vésperas do acontecimento do centenário de nascimento do pastor, pai de Martina e Filippa e fundador da sociedade religiosa, Babette recebe uma correspondência que continha um cheque com o valor do prêmio. Em vez de ir embora ou estabelecer-se por si mesma, Babette propõe às irmãs fazer um jantar em comemoração ao centenário do nascimento do pastor. As irmãs relutam – alegando que a comemoração seria unicamente um café da tarde bastante frugal -, mas acabam aceitando. Babette encomenda ingredientes diferentes e exóticos – para a auditório social das irmãs, dos demais membros da sociedade religiosa e das pessoas do vilarejo. Nesse momento, o ethos de Babette para as irmãs e os membros da sociedade se altera, deslocando-se para uma figura demoníaca, contrária aos princípios de fervor religioso, frugalidade e austeridade moral que os constituía como sujeitos. O recorte das cenas abaixo ilustra essa percepção:

Na reunião seguinte ao início dos preparativos para a comemoração, fica evidente esse ethos quando uma das mulheres produz um enunciado por meio do qual se pode identificar o discurso moral e gastronômico que constitui os sujeitos daquele grupo: A língua é estranho músculo que tem proporcionado ao Homem tanta honra e tanta glória e o levou a realizar grandes façanhas... porém também pode causar indomável perversidade e veneno mortal. Um outro membro da sociedade sintetiza a atitude do grupo, quando da participação no jantar: Será como se nunca tivéssemos tido o sentido do gosto. Babette era a cozinheira e a faxineira de Martina e Filippa. Tendo fugido dos efeitos da guerra civil, por ocasião da Comuna de Paris, em 1871, ela chega ao vilarejo, procura as irmãs, com uma carta de recomendação de Achille Papin. Papin tinha sido um famoso cantor de ópera e professor de canto que passou uns tempos no vilarejo, e que, tendo percebido um talento extraordinário em Filippa, deu-lhe aulas de canto, com a esperança que ela se apresentasse nas grandes óperas europeias. Babette não recebia salário. Trabalhava em troca de abrigo e alimentação. Foi orientada a arrumar a casa e preparar os alimentos típicos daquela região. Nunca havia manifestado qualquer insubordinação. Mas, no ínterim em que se ausenta para encomendar os ingredientes para o jantar, as irmãs Martina e Filippa voltam a cozinhar e preparar, inclusive, a sopa que

serviam para as pessoas doentes do vilarejo. Há algumas cenas em que os idosos reagem de maneira negativa ao sabor da sopa, indiciando que Babette havia, de alguma maneira, dado mais sabor à receita que as irmãs haviam lhe transmitido. O ponto de inflexão desse jogo de relações entre sujeitos e sentidos ocorre pela presença de outra personagem do filme. Em sua juventude, Martina conheceu um jovem oficial do exército sueco (naquela época a Noruega pertencia ao Reino da Suécia). O tenente Lorens Löwenhielm apaixonou-se pela moça e passou a frequentar a casa do pastor para vê-la e com esperanças de estabelecer compromisso afetivo com ela. No entanto, a rígida moral puritana vivida pela família não dava qualquer margem a que ele pudesse propor um namoro. Desencantado, mas Lorens resolve nunca mais voltar ao vilarejo e sublima o amor impossível pela dedicação à carreira militar. Na ocasião da comemoração do centenário do nascimento do pastor, ele já era um general muito conceituado no exército e na Corte sueca. O general Lorens e sua tia decidiram ir ao jantar, em homenagem ao que representou a convivência com aquela família em sua juventude. Muito do que ele havia conseguido, inclusive, em termos de prestígio social, deveuse às lições piedosas aprendidas nas reuniões da sociedade religiosa, que ele empregava nas recepções da Corte sueca, junto às senhoras puritanas da nobreza. Esse acontecimento – a vinda do general e antigo amigo - refrata a rejeição à realização do jantar e ao ethos dos membros da sociedade religiosa. O general Lorens, em uma cena que antecede sua ida ao jantar dialoga com o jovem tenente Lorens e desafia o seu duplo, trazido pela retrospecção de sua memória, que iria saber se o jovem havia tomado a decisão acertada. Chegado o dia do jantar, todos se encontram na casa de Martina e Filippa. Chega o general e sua tia. Finalmente o jantar é servido, de acordo com a mais sofisticada etiqueta francesa. A cada prato ou bebida servidos, Lorens vai sendo tomado de memórias e sensações. Sua bem-sucedida carreira militar, tendo servido em diversos países, inclusive na França, permitiram a ele tomar contato com os restaurantes mais sofisticados da Europa. Em um dado momento, quando são servidas as codornizes em sarcófago, prato no qual as codornizes são assadas em uma cama de massa folhada, Lorens reconhece o prático único de uma virtuosíssima chef de cozinha do Caffé Anglais, à época um dos mais renomados restaurantes parisientes. Era Babette. No dia seguinte ao jantar, ainda sob o efeito do ethos que a ceia tinha provocado no general, em sua tia e em todos os presentes, Martina e Filippa conversam com Babette, agradecem e lamentam sua partida. Babette diz que não irá embora. Elucida que gastou todo do dinheiro ganho na loteria (dez mil francos) na elaboração do jantar.

Para além do desfecho inconcluso da narrativa fílmica, cabe agora retomar a questão do discurso gastronômico. Quando reconhece o prato, pela visualização, mas, sobretudo, pelo sabor, o general Lorens relata a história de sua ida ao Caffé Anglais. Estava na ocasião, sendo homenageado por oficiais franceses por um feito de expertise no manejo de cavalaria militar. Lorens diz sobre sua experiência gastronômica à época: A chef tinha transformado o jantar em um assunto amoroso, em uma relação apaixonada na qual a pessoa acabava por não diferenciar entre apetite físico e apetite espiritual. Ao final do jantar, as relações entre as pessoas haviam se transformado. Umas se confraternizavam com as outras; antigos amigos pediam desculpas por falhas ou pequenas trapaças, casais cuja relação havia se tornado insípida expressavam carinho nos olhares e até em beijos na boca – breves, mas impensáveis no contexto puritano do vilarejo e, principalmente, da sociedade religiosa. Após a ida do general Lorens, as pessoas que eram do vilarejo, ao irem para a casa, dançaram em círculo ao redor de um poço, à luz do luar, em confraternização alegre, felizes. O ethos de Babette dialoga com a mediação do ethos que a personagem do general Lorens representa. E ambos se instauram por intermédio de um discurso gastronômico que dialoga com o discurso religioso. Em contraponto ao discurso da frugalidade para se evitar o pecado da sensualidade pela preparação dos alimentos e pelo exercício ritual da refeição, o discurso gastronômico que instaura o sujeito Babette e o general Lorens refrata os sentidos da sensualidade de um risco e um obstáculo à elevação espiritual para uma experiência em que os sentidos, o apetite do corpo dignificam o ato gastronômico e permitem ao sujeito o apetite espiritual. Há, na tradição mística, alguns exemplos de um enfoque sensual para descrever as descobertas e a trajetória espiritual. Salomão, no livro bíblico Cântico dos Cânticos e San Juán de La Cruz, na tradição cristã católica, são alguns desses exemplos. Na tradição luterana e, principalmente naquela sociedade religiosa da narrativa fílmica, tal concepção seria pouco plausível. Daí o grau de refração e como o ethos de Babette, de Lorens e do próprio acontecimento deslocaram os sentidos e os sujeitos. Ainda, há profunda refração no gênero discursivo. Ao trazer um jantar de um restaurante sofisticado, mas em um contexto profano para a experiência das práticas sociais e de linguagem que os sujeitos daquele vilarejo e – mais especificamente – daquela sociedade religiosa puritana possuíam, Babette se instaura como um sujeito que mobiliza diversas instâncias de diálogo. A entonação por meio da qual Babette se constitui como sujeito não somente dialoga com seus auditórios sociais em termos de estar em contato. Essa entonação refrata os auditórios

sociais com os quais dialoga, transformando-os e instaurando sujeitos-outros. Pensar a questão do ethos de um ponto de vista bakhtiniano pode enriquecer as possibilidades de análise. Graficamente, pode-se ter uma representação dinâmica:

Sentidos

Sujeitos Gêneros Discursivos

Entonação

REFLEXO

Auditórios Sociais

REFRAÇÃO

A relação entre os conceitos de entonação, auditório social e gêneros discursivos pode ser pensada em termos relacionais, de como atuam em diálogo. Sobretudo em semioses que não se constroem necessariamente por relações lineares, como é o caso do texto cinematográfico. Assim, a constituição dos sujeitos e dos sentidos no campo das atividades em que esses sujeitos convivem e dialogam entre si e com o mundo, se dá pela maneira como os gêneros discursivos instauram entonações que, em duplo movimento, são motivadas pelos auditórios sociais com os quais interagem e constituem e (re) formam constantemente esses auditórios sociais. É no reflexo e refração desses deslocamentos dos sujeitos e dos sentidos, em cada enunciação, que esses sujeitos se marcam pelo que dizem3, pelo modo como dizem, pelo efeito do que dizem e, finalmente, pelo efeito da maneira por meio da qual dizem.

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Cabe observar que essas relações também incluem a questão de os sentidos também se constituírem pelo silêncio. Assim, o não-dizer também implica esses mesmos processos, em uma inter-relação com dizeres e com outros nãodizeres.

Em Festa de Babette, o gênero discursivo banquete refratou-se em uma celebração religiosa. Esse deslocamento do gênero discursivo ocorre é causa, consequência e coocorrência dos movimentos dos sentidos e dos sujeitos, do deslocamento das entonações e de como os auditórios sociais dos sujeitos também mudaram de lugar. Quando a experiência do sabor de um banquete tido como profano/profanatório por aquela comunidade religiosa puritana se desloca para uma experiência mística, os sujeitos ressignificam suas relações uns com os outros. Uma última consideração, nesse âmbito, cabe ser feito em relação à memória. O general Lorens, Filippa, Martina, Babette e cada um dos participantes do jantar foram expostos a uma alteridade dos gêneros, das entonações e das representações em relação a auditórios sociais deslocados. Tal processo também se dá em relação à refração das memórias desses sujeitos. Bakhtin, ao tratar das relações entre interioridade e exterioridade, faz considerações que são pertinentes a essa discussão: Ao me vivenciar fora de mim no outro, os vivenciamento têm uma exterioridade interior voltada para mim no outro, têm uma feição interna que posso e devo contemplar com amor, sem a esquecer, assim como não esquecemos o rosto de uma pessoa (e não do modo como recordamos uma vivência passada), devo reforçar, enformar, amimar, acariciar com olhos interiores e não com olhos físicos externos. Essa exterioridade da alma do outro, como uma espécie de sutilíssima carne interior, é precisamente o que constitui a individualidade artística intuitiva e visível: o caráter, o tipo, a posição, etc., a refração do sentido na existência, a refração individual e a condensação do sentido, seu revestimento de carne interior mortal – tudo o que pode ser idealizado, heroificado, ritmado, etc. (BAKHTIN, 2011, pp. 93-94) Dessa maneira, a memória ressignificada já não pode ser encarada como mera recordação. É essa ida e volta, esse deslocamento para e do lugar do outro que fazem do recordar um laço com essa experiência estética (pela mediação do paladar), ética (pela percepção do outro pela alteridade das condições em que esse outro é percebido e recebido pelo sujeito) e mística (pela transcendência do tempo da memória e do espaço das relações afetivossociais, construída pelo deslocamento do prazer dos sentidos para o prazer da descoberta do divino). Pela memória, os acontecimentos são retomados pelos sujeitos como novos signos, em outra instância de diálogo que se dá com as entonações modificadas. 3. Considerações Finais Este trabalho teve como objetivos a problematização das possíveis relações que

constituem os sujeitos Babette e os habitantes do povoado no qual ela se estabelece; dos sentidos produzidos e deslocados nessa constituição intersujeitudinal e das discursividades instauradas na maneira através do qual essas constituições intersentidurais e intersujeitudinais se enunciam. Pretendeu-se, também, discutir implicações epistemológicas dessa possibilidade de (re) pensar relações que habitualmente são abordadas pelo conceito de ethos mediante os conceitos bakhtinianos de entonação e de gêneros discursivos. A leitura que se construiu neste trabalho é que o ethos, lido bakhtiniamente, pode ser visto como a entonação com que cada sujeito enuncia para o outro o lugar ocupado no mundo que faz dele o que é. Essa entonação é constituída e refratada pela historicidade do lugar que o sujeito ocupa, pela maneira como ele produz sentidos, pela historicidade dos lugares-outros com os quais interagiu. Também com o diálogo entre os múltiplos auditórios que construiu em cada evento de cada esfera humana de que participou interagindo com outros sujeitos. Por fim, é essa entonação refratada, refratária, refletida que constrói lugares de encontro e de passagem para sentidos que se (re) conhecem em seus percursos – os gêneros discursivos. Abordar o conceito de gêneros discursivos nessa inter-relação dinâmica entre sujeitos e sentidos, em um diálogo refratado entre a entonação e o auditório social, pode representar uma abordagem analítica promissora, tanto em termos de adequabilidade às necessidades que o acontecimento exige, quanto a um reagir a tentações de se conceber e de se utilizar tal conceito bakhtiniano como uma ferramenta meramente estrutural, silenciando a (in)tensa e dialógica relação entre práticas sociais e práticas linguageiras. Pensar o ethos nessa perspectiva pode enriquecer as complexas relações entre os sujeitos, que interagem entre si, pela/na linguagem, mas que, não menos que isso, só o podem fazê-lo porque a própria linguagem também se transmuta. Não há elementos fixos, nem há, diferentemente da tríade aristotélica (ethos, pathos e logos) elementos que se fixam. Se os gêneros discursivos, como quaisquer outros elementos envolvidos nesse processo, também se modificam e permitem, com essas modificações, que o ethos se desloque, então, depara-se com uma necessidade de não se olhar para os gêneros do discurso como mero resultado desse processo de interação, mas, como elementos também instauradores desses deslocamentos de sentidos e sujeitos.

4. Referências A FESTA DE BABETTE. Ficha técnica. Disponível em http://adorocinema.com.br. Acesso em 25 de setembro de 2015. A FESTA DE BABETTE (Babettes Gaestebud). Direção: Gabriel Axel. Produção: Panorama Film International. Intérpretes: Stéphane Audran, Jean-Philippe Lafont, Gudmar Wivesson, Jarl Kulle, Bibi Andersson, Ebbe Rode e outros. Autora da obra original: Karen Blixen. Dinamarca, 1987, 102 min, DVD. AMOSSY, Ruth (Org). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005. ARISTÓTELES. Retórica. 2. ed. revista. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2005. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. MACHADO, J. (Org). Vocabulário do Roteirista. Disponível em http://www.roteirodecinema.com.br/manuais/vocabulario.htm. Acesso em 25 de setembro de 2015. SEVERO, G. C. Sobre o sujeito na perspectiva (do Círculo) de Bakhtin. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades, UNIGRANRIO, n. XXV, v. VII, abr-jun. 2008

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