Ética naturalizada e evolução: um ensaio sobre a «naturalização» do Direito (Parte 2)

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Ética naturalizada e evolução: um ensaio sobre a «naturalização» do
Direito (Parte 2)


Atahualpa Fernandez(
Marly Fernandez(


"Nos encanta pensar que no somos animales. La llamada
falacia naturalista no es sino un ejemplo del daño que la
filosofía del siglo XX ha hecho en su esfuerzo por sustraer
a la gente su sentido común". Steven Rhoads




Falácia naturalista (1)
Uma importante dificuldade argumentativa que se apresenta com
insistência é a objeção, tão conhecida (como utilizada) dentro da filosofia
contemporânea, que estabelece que nenhuma proposta ética ou normativa,
nenhum "deve", pode proceder de enunciados fáticos, de um "é". O intento de
fazer esta derivação, já dissemos, é conhecido baixo a denominação de
"falácia naturalista", termo procedente da obra clássica de G. E. Moore,
fundador da moderna filosofia ética, Principia Ethica (1903). Em sua
opinião, o raciocínio moral não pode aprofundar-se na psicologia e nas
ciências sociais com a finalidade de localizar princípios éticos, porque
somente produzem uma imagem causal e não conseguem iluminar a base da
justificação moral[1].
De tal forma, ao passar do descritivo que "é" ao normativo que
"deve", se comete um erro de lógica básico, posto que uma coisa é dizer que
«X existe» e outra diferente que «X é desejável». Entre a existência de
pautas de conduta geneticamente fixadas e sua justificação moral existe um
abismo no qual deve figurar a explicação de por que o inato é moralmente
desejável. Não está permitido, por exemplo, descrever uma predisposição
genética e supor que, porque é parte da natureza inata do homem (isto é, a
"natureza"), transformou-se de alguma maneira em preceito ético. O
«correto», especialmente para aqueles a quem lhes "encanta pensar que não
somos animais", é colocar o raciocínio moral em uma categoria especial e
utilizar as pautas transcendentais, seja religiosa ou profana, como se
requer (E. O. Wilson) - curioso razoamento sofístico.
Muitos dos que depreciam hoje uma abordagem naturalista (ou
evolucionista) invocam em sua oposição o nome de Immanuel Kant, que era
muito bom à hora de mostrar as deficiências de algumas outras teorias. A
sua é muito simples: é simplesmente que somos seres morais; "... por tanto
Dios existe" (C. Sagan)[2]. Uma boa maneira de delimitar o dogma
transcendental é entender a forma como Kant (a quem a história considerou o
maior dos filósofos profanos) abordou o raciocínio moral, em grande medida
como haveria feito qualquer teólogo empedernido. Os seres humanos,
ponderava, são agentes morais independentes, com uma vontade completamente
livre, capazes de obedecer à lei moral ou de transgredi-la: "Existe no
homem um poder de autodeterminação, independente de qualquer coerção
mediante impulsos dos sentidos". Nossas mentes estão sujeitas a um
imperativo categórico, dizia, de que nossas ações «deveriam ser».
O imperativo categórico é um bem em si mesmo, aparte de todas as
demais considerações, e pode ser reconhecido pela seguinte regra: "Atua
somente segundo a máxima que desejas se converta em uma lei universal". O
mais importante e transcendental é a circunstância de que o "deve" não tem
lugar na natureza. A natureza, dizia Kant, é um sistema de causa e efeito,
enquanto que a eleição moral é um assunto de livre-arbítrio, para o qual
não existe causa e efeito. Ao fazer eleições morais, ao lograr elevar-se
por cima do mero instinto, os seres humanos transcendem o reino da natureza
e penetram em um reino de liberdade que lhes pertence exclusivamente como
criaturas racionais – feitos à imagem e semelhança de um desenhador
onipotente.
Não há dúvida de que esta formulação dá uma sensação de comodidade,
muito embora não tenha o mínimo sentido em termos de entidades materiais ou
imagináveis, que é a razão pela qual Kant, inclusive sem ter em boa conta
sua torturada prosa, é tão difícil de entender. Ademais, agora já o
sabemos, não se ajusta à evidência de como funciona o cérebro humano.

Desse modo, apesar da potência desta crítica, muitos pensadores
contemporâneos, sem qualquer necessidade de realizar uma suspensão de juízo
com duplo salto mortal, têm intentado estabelecer uma ponte entre o "ser" e
o "dever ser", mas em um sentido inverso ao criticado por Moore; quer
dizer, em vez de passar do "ser" ao "dever ser", têm defendido que há um
passo, uma conexão, entre o "dever ser" e o "ser". Estas ideias tiveram
seu ponto de partida na teoria da evolução de Darwin e têm dado lugar, cada
vez com mais intensidade, a uma postura interdisciplinar cuja finalidade
última reside precisamente em estabelecer uma ponte entre a natureza e a
sociedade, a biologia e a cultura, em forma de uma explicação mais
empírica, diligente e comprometida com as ciências dedicadas ao estudo da
mente, do cérebro e da natureza humana.

E não é isto tudo. Também parece possível reduzir essa força
retórica do transcendentalismo com outra algo mais direta: Não constitui
uma soberana estupidez insistir no sofisma de que «se os fatos contradizem
uma teoria, tanto pior para os fatos»? Será a ética (assim como o direito)
um campo de investigação inteiramente autônomo? Vivem a sua maneira,
desligados dos fatos de qualquer outra disciplina ou área de conhecimento?
Surgem nossas intuições morais (e jurídicas) de algum inexplicável módulo
ético implantado em nossos cérebros? É possível superar a natureza humana
recorrendo à outra coisa? A que outra coisa? A nossa natureza divina? A uma
ética de princípios (de direitos ou de justiça), à razão humana e/ou à
cultura? E a cultura o que é, natureza extraterrestre? Ou, já que estamos,
se um «Deve» não pode derivar-se de um «É», de onde pode derivar-se
«Deve»?

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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent
Researcher.
( Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes
Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la
moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana-
UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de
les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/
Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les
Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] Deixaremos de lado todos os aspectos lógico-formais da «falácia
naturalista» que enunciou o pensamento analítico dentro da filosofia porque
já resolvidos de maneira convincente por Richard Hare. Não obstante,
conjecturar acerca do problema da «falácia naturalista» significa, em
síntese, passar dos enunciados descritivos («Pedro matou a sua mulher») aos
enunciados valorativos («Pedro deve ir à prisão»). Nada mais longe da
realidade. E duas são as circunstâncias a considerar: em primeiro lugar,
como mostrou Hare, não existe falácia lógica porque a passagem dos
enunciados descritivos aos valorativos se faz dando por suposto de maneira
implícita um enunciado intermédio («Quem mata deve ir à prisão»); em
segundo lugar, que os fatos da natureza e a história fundamentam e impõe
limites aos valores, mas não os determinam. É a mente humana a que constrói
os valores e as normas. Por último, ainda que não menos importante, talvez
seja útil recordar que, simétrica à «falácia naturalista», está a chamada
«falácia moralista». Esta falácia («moralista»), descoberta por Bernard
Davis nos anos setenta do século passado (em resposta às crescentes
demandas políticas e públicas para restringir a investigação básica),
realiza o caminho oposto à «naturalista»: enquanto esta consiste em inferir
um «dever ser» de um «ser», aquela supõe o «ser» a partir de um «dever
ser» (quer dizer, inferir um fato de um desejo, valor, imperativo ou
enunciado moral, deôntico ou jurídico). Como é óbvio, ambas são falazes e
insustentáveis logicamente; e Steven Pinker já chamou à atenção sobre a
frequência com que diversos intelectuais bem intencionados e "politicamente
corretos" caem (e/ou insistem) na «falácia moralista», isto é, na ideia de
que devemos dar forma aos fatos, de tal modo que apontem às consequências
mais moralmente desejáveis.
[2] Kant é o principal mentor de uma ética formalista, uma ética tão pura e
formal que nem sequer está feita para os seres humanos, senão para todo
"ser racional". O kantismo ético é um formalismo tautológico. Os seres
racionais em sentido kantiano fazem o que diz Kant, por definição; se não o
fazem, não são (ou não se comportam como) seres racionais. Seus "seres
racionais" atuam exclusivamente por respeito à lei moral e constituem um
reino espiritual de fins. O problema é que tais seres e tal reino não
existem. Em Kant há uma separação taxativa entre o mundo sensível e o mundo
inteligível, entre o mundo da natureza e o mundo do espírito, cuja
compatibilidade com uma visão científica do mundo é sumamente duvidosa.
Para sermos sinceros, não recordamos haver atuado nunca por respeito à lei
moral ou por consideração de um dever absoluto. Talvez tenhamos feito
alguma coisa boa em nossa vida e/ou ajudado a alguns congêneres e outros
animais, mas seguramente haveremos estado mais motivados pelo carinho e a
compaixão que por respeito à lei moral.
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