Ética naturalizada e evolução: um ensaio sobre a «naturalização» do Direito (Parte 4)

Share Embed


Descrição do Produto

Ética naturalizada e evolução: um ensaio sobre a «naturalização» do Direito
(Parte 4)


Atahualpa Fernandez(
Marly Fernandez(


"Después de Darwin ya no hay
fundamento «ahí fuera» más allá de la
naturaleza humana." M. Ruse






Natureza e cultura
Uma vez superado por completo o darwinismo social de Spencer, os
darwinistas atuais consideram com bom sentido que a evolução por seleção
natural não é boa nem má: simplesmente, "é". Também consideram que não é
unicamente bom, senão também necessário conhecê-la. Até esta meta apontam
os atuais defensores da ética evolucionista: uma compreensão mais profunda
das causas últimas, radicadas em nossa biologia, do comportamento moral (e
jurídico) humano, pode ser muito importante para saber quais são os limites
e condições de possibilidades da moral e do direito. Depois de tudo,
estabelecer princípios ou regras morais e jurídicas que não têm nada que
ver com a natureza humana é o mesmo que condenar-lhes ao fracasso.[1]
Isto implica que todas as perguntas referentes ao sentido e à
finalidade da justiça, da moral e do próprio direito devem levar aos
fundamentos neurobiológicos da conduta humana, posto que regras jurídicas e
morais são (e funcionam) como substrato da capacidade humana de exercer
relações sociais. Quer dizer, se a justiça, a moral e também o direito
constituem estratégias sociobiológicas próprias do modus operandi da
humanidade, é muito provável - porque não dizer - que a maior parte das
propostas de fundamentação dos princípios e regras morais e jurídicas que
se formularam ao longo da história peque de inviabilidade por essa
desatenção com relação à realidade neurobiológica que nos constitui.
Esta ética evolucionista (e a consequente naturalização da própria
ética e do direito) a que nos estamos referindo começou a ser proposta com
força, e não sem a consequente polêmica, nos anos setenta, quando Edward O.
Wilson lançou seu célebre Sociobiology. Wilson foi acusado de determinismo
genético por alguns críticos, embora nunca tenha defendido que os genes
determinam nosso comportamento, senão que os seres humanos herdaram
propensões a adquirir comportamentos individuais e sociais como são: a
divisão sexual do trabalho, os laços entre pais e filhos, o altruísmo com
parentes próximos, o rechaço do incesto, o receio ante os estranhos, a
aceitação da hierarquia de dominância dentro do grupo, a agressão
territorial...
O que Wilson sugeriu literalmente é que «ainda que os indivíduos
tenham livre-arbítrio e possam eleger em várias direções a seguir, as
causas de seu desenvolvimento psicológico estão —por muito que desejemos
que fora de outro modo— mais canalizados em umas direções que outras, por
efeito dos genes». Isto não era em absoluto original, dado que em tempos
anteriores já se haviam mantido suposições similares. Mas Wilson teve a "má
fortuna" de lançar suas ideias nos anos setenta do século passado, uma
época em que as ciências sociais se haviam edificado sobre a ideia de que o
ambiente, a educação e a cultura dotam ao comportamento humano de uma
flexibilidade infinita.
Tanto na sociologia como na antropologia cultural ou na ciência do
direito se colocava a máxima atenção na cultura e nas diferenças culturais,
enquanto que a proposta de Wilson apontava até os traços comuns da natureza
humana, traços que estariam em certa medida presentes em todas as
populações humanas, apesar da diversidade cultural. As críticas que
choveram sobre Wilson não somente mal interpretaram seus argumentos
acreditando que se iam sacar conclusões relativas às diferentes aptidões ou
capacidades inatas entre as populações humanas a partir da diferença de
seus genomas - coisa que jamais Wilson sequer há insinuado -, senão que
também se pensou erroneamente que a sociobiologia humana era sumamente
perigosa, uma vez que dela se derivava que as diferenças de gênero, o
tribalismo, as guerras e o classismo (para por alguns exemplos) se estavam
começando a considerar «inevitáveis»... O «medo às diferenças», para dizer
com Steven Pinker.
Nos dias que correm a sociobiologia goza de melhor saúde e suas teses
foram integradas em outras disciplinas: a biologia evolutiva, a psicologia
evolucionista, a genética comportamental ou, melhor ainda, a etologia
evolutiva, ultimamente denominada ecologia do comportamento e etologia
cognitiva. Também as neurociências fizeram uso do enfoque fundamental da
sociobiologia, que poderia ser glosado da seguinte maneira: a conduta
social humana se transmite mediante a cultura, mas a cultura é produto da
atividade mental humana, e esta é produto do cérebro, que é produto da
evolução genética (ou da evolução por seleção natural).[2]
A neuroética, por exemplo, declara – à luz de como funciona o cérebro
e do próprio processo evolutivo – que os valores e o juízos morais derivam
somente dos seres humanos e, portanto, de sua própria biologia, e mais
especificamente dos códigos de funcionamento do cérebro em interação
constante com os demais seres humanos no contexto de uma determinada
cultura. Assim que se os juízos morais são, como parece, altamente
dependentes do bom funcionamento do córtex pré-frontal em conexão com
outras áreas corticais (e subcorticais) de associação, então entender como
participa estas áreas do cérebro na elaboração desses juízos e que
ingredientes maneja (tanto pelos códigos cerebrais herdados como por uma
informação cultural específica) deve ajudar-nos a entender, por exemplo,
como durante o desenvolvimento se interiorizam os valores e as normas
morais e jurídicas, e como estas mudam com o câmbio de culturas e de
experiências pessoais. Da mesma forma, tudo isso deve ajudar-nos a
desmitificar e liberar-nos de erros, crenças e falsas concepções sobre a
moralidade e a juridicidade.
Dito de outro modo, apesar de ser um órgão tão complexo, estruturado,
dinâmico e flexível, o cérebro apresenta uma grande quantidade de
predisposições geneticamente programadas para o aprendizado: predisposições
para aprender certas coisas melhor que outras. Estas predisposições estão
aí, são fruto da evolução do cérebro por seleção natural. E dado que a
seleção natural atua sobre os genes, os responsáveis de nossas
predisposições para o aprendizado são os genes que constroem nosso cérebro.
Não se trata, desde logo, que os genes condicionam diretamente nossa
conduta, senão que a mente humana se acha geneticamente programada para
aprender melhor (ou antes) umas coisas que outras. Aos dispositivos
neuronais biologicamente induzidos que condicionam a capacidade humana de
aprendizado, Edward O. Wilson denominou de regras epigenéticas da mente.[3]

A chave para entender tais predisposições, como para compreender
qualquer elemento de nosso fenótipo, é que são adaptativas. Agora bem: Por
que se aceita sem problemas esta relação entre genética do cérebro e
aprendizado para o caso dos animais não humanos, mas não termina de
entender-se no caso humano? Talvez o dificulte a mencionada descontinuidade
entre a amoralidade natural e a moralidade humana, que não é senão uma
especificação da tradicional oposição entre natureza e cultura.
Recordemos que (ainda quando a duras penas) a evolução do "pescoço
para abaixo" se vai admitindo (a exceção dos criacionistas) e a maioria
das pessoas aceita que a mão tem uma história ou que o olho tem uma
história. Nada obstante, com a evolução do "pescoço para arriba" a situação
é mais problemática e aqui os criacionistas não são os únicos em discuti-
la, senão que estão muito acompanhados e, curiosamente, lhes acompanha
muita gente situada no âmbito das humanidades.
Por quê? Pois porque aceitar que a evolução também ocorre "do pescoço
para arriba" supõe admitir, como dizia Darwin, que nossas faculdades
mentais têm uma história e se foram desenvolvendo de maneira gradual: o
medo tem uma história, o amor tem uma história, os ciúmes têm uma história,
a moral tem uma história, etc...etc. Nada disso aparece de golpe ou por
intervenção de alguma força sobrenatual em nossa espécie, senão que tem
precursores em outras espécies. A partir daí podemos perguntar-nos se
também o direito pode ter uma história, quer dizer, diversos estágios
conhecidos do processo evolutivo da espécie humana que deu origem ao
fenômeno jurídico. A resposta, como não pode ser de outra maneira, é um
categórico sim.
E, se é assim, haverá que aplicar ao caso dos valores humanos mais
apreciados — dignidade, justiça, liberdade, igualdade, autonomia... — a
ideia de que somente através do adequado conhecimento da natureza humana
podemos ter a esperança de fazer uma contribuição significativa à
compreensão do ser humano e da cultura por ele produzida. Não é possível
compreender o sentido profundo do direito (suas normas, princípios e
valores) sem abordar antes a complexidade de nossa mente e do cérebro que o
habilita e que o sustenta, um conjunto que administra e gera o sentido da
identidade, da personalidade, do pensamento, da conduta, da linguagem, da
percepção, da memória, do cuidado do outro e da intuição de nossa própria
condição enquanto seres morais. Somente assim poderemos penetrar
verdadeiramente a fundo na questão, como disse o sábio referindo-se à
vaselina. (D. Burnett)
-----------------------
( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent
Researcher.
( Doutora (Ph.D.) Humanidades y Ciencias Sociales/ Universitat de les Illes
Balears- UIB/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Filogènesi de la
moral y Evolució ontogènica/ Laboratório de Sistemática Humana-
UIB/España; Mestre (M. Sc.) Cognición y Evolución Humana/ Universitat de
les Illes Balears- UIB/España; Mestre (LL.M.) Teoría del Derecho/
Universidad de Barcelona- UB/ España; Investigadora da Universitat de les
Illes Balears- UIB / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto
de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] O estudo da natureza humana sempre esteve e estará rodeado de polêmica.
A teoria da seleção natural de Darwin jamais haveria encontrado tanta
oposição social se não houvesse sido aplicável (de uma forma belíssima no
sentido matemático) a nós mesmos. Em geral nos resistimos a aceitar nossa
natureza animal, mas isto é especialmente notável no que respeita a nossa
mente. Inclusive entre os acadêmicos de uma sociedade educada na ciência
encontraremos uma séria resistência ante os últimos descobrimentos acerca
da cognição em outras espécies ou ante a ilusão do livre-arbítrio. Nada
obstante, se queremos ter êxito como sociedade e que nossa sobrevivência
dependa na menor medida da sorte, necessitamos entender nossa natureza
animal. Sobre a questão de se temos ou não livre-arbítrio:
https://www.researchgate.net/publication/306893761_Aspectos_da_experiencia_n
eurojuridica_livre-arbitrio_responsabilidade_e_racionalidade_Parte_3;
https://www.researchgate.net/publication/307565847_Aspectos_da_experiencia_n
eurojuridica_livre-arbitrio_responsabilidade_e_racionalidade_Parte_4;
[2] Segundo Joseph Henrich, este baile contínuo entre genes e cultura (isto
é, o processo pelo qual os genes produzem adaptações psicológicas para a
cultura que criam produtos culturais, os quais se convertem em pressões
seletivas que levam a câmbios em nossos genes), ocorre da seguinte forma:
"La selección natural, actuando sobre los genes, moldea nuestra psicología
de una manera que ésta genera procesos evolutivos no genéticos capaces de
producir complejas adaptaciones culturales. La cultura y la evolución
cultural son consecuencia de adaptaciones psicológicas genéticamente
evolucionadas, es decir, la selección natural favoreció a los genes que
construían cerebros con mejores capacidades para aprender de otros." 
[3] A epigênesis, que originalmente era um conceito biológico, significa o
desenvolvimento de um organismo baixo a influência conjunta da herança e o
ambiente. As regras epigenéticas, para resumir muito brevemente, são
operações inatas do sistema sensorial e do cérebro; caracterizam-se por
ser um complexo de regras, prescritas pelos genes que, assegurando a
sobrevivência e o êxito reprodutor, predispõem os indivíduos a determinados
tipo de comportamento, ou seja, predispõem os indivíduos a considerar o
mundo de uma determinada maneira inata e a efetuar automaticamente umas
determinadas eleições frente a outras. Também desde o território das
neurociências se concebe a relação entre o neuronal e o cultural baixo o
conceito de epigênese: "Según la teoría de la epigénesis cultural, las
estructuras socioculturales y neuronales se desarrollan en simbiosis, y
cada una es causalmente pertinente para la otra. La arquitectura de
nuestros cerebros determina nuestra identidad y nuestro comportamiento
social, incluso nuestras disposiciones morales y los tipos de sociedades
que creamos, y viceversa: nuestras estructuras socioculturales influyen en
el desarrollo del cerebro". (K. Evers)
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.