Etnografia, Arte e Imagem - Edição Completa

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Descrição do Produto

Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

PPGSA - IFCS - UFRJ

ISSN 1678 - 1813

VOL 12.1 | JUN 2013 ETNOGRAFIA, ARTE E IMAGEM

VOL 12.1 | JUN 2013 Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

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Revista dos Alunos do PPGSA Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia Largo de São Francisco nº 1, sala 420 Centro, Rio de Janeiro - RJ CEP 20051-070 [email protected] http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br

Vol. 12(1), junho 2013

Enfoques Online revista eletrônica dos alunos do Programa de PósGraduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro é uma publicação coordenada e editada pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Organização do número temático Etnografia, Arte e Imagem Ana Gabriela Morim André Demarchi Maria Raquel Passos Lima Suiá Omim Arruda de Castro Chaves

Comissão Editorial

Catalogação na fonte pela Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Alexandre Barbosa Fraga Carlos Abraão Moura Valpassos José Luiz Soares Juliana Athayde Silva de Morais Klarissa Almeida Silva Luciana Schleder Almeida Ludmila Freitas Maria Raquel Passos Lima

ISSN 1678-1813

Colaboraram neste número

1. Sociologia; 2. Antropologia; I. Universidade Federal do Rio de Janeiro; II. Centro de Filosofia e Ciências Sociais; III. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia.

Alberto Goyena Alexandre Pinheiro Ramos Ana Gabriela Morim André Demarchi Daniela Stocco Diego Madi Dias Els Lagrou Helmut Paulus Kleinsorgen Josinelma Ferreira Rolande Marcelo Ribeiro Vasconcelos Maria Raquel Passos Lima Nina Vincent Lannes Suiá Omim Arruda de Castro Chaves Theresa Miller Wecisley Ribeiro do Espírito Santo

Projeto gráfico Gérome Ibri - Studio MOVA

Imagem de capa Arte em tecido (mola) da etnia Kuna; pesquisa de Diego Madi Dias

Revisão Beth Cobra

UFRJ Reitor Carlos Antônio Levi da Conceição

Vice-Reitor Antônio José Ledo Alves da Cunha

IFCS Diretor Marco Aurélio Santana

PPGSA Coordenador Octávio Bonet

Vice-Coordenador Felícia Picanço

APRESENTAÇÃO

10 NO CAMINHO DA MIÇANGA

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arte e alteridade entre os ameríndios por Els Lagrou

50 uma teoria Kuna do corpo e da pessoa

uma exposição antropológica no Museu do Quai Branly por Nina Vincent Lannes

GROWING GARDENS towards a theory of ecological aesthetic performances in indigenous Amazonia por Theresa Miller

114 Entrevista com Roxana Waterson

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o caráter agentivo da pintura corporal Canela

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PLANÈTE MÉTISSE

“PINTA PRA FICAR BONITO” por Josinelma Ferreira Rolande

O NASCIMENTO DO DESENHO por Paolo Fortis

por Ana Gabriela Morim André Demarchi Maria Raquel Passos Lima Suiá Omim

O FASCÍNIO OCIDENTAL PELO ORIGINAL por Alberto Goyena

A RELAÇÃO ENTRE ARTES PLÁSTICAS E MARXISMO NAS CRÍTICAS DE MARIO PEDROSA À OBRA DE PORTINARI

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por Marcelo Ribeiro Vasconcelos

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a fotografia e a transmissão de ideais e valores integralistas na revista Anauê por Alexandre Pinheiro Ramos

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PERFORMANCE, LIMINARIDADE E COMMUNITAS EM AMBIENTESTELEPRESENTES por Helmut Paulus Kleinsorgen

NOVELA “PARAÍSO TROPICAL” por Daniela Stocco

reflexões a partir de uma experiência de registro audiovisual entre costureiras domiciliares de Nova Friburgo-RJ por Wecisley Ribeiro do Espírito Santo

FIXANDO VALORES

construção do Rio e do Brasil

ETNOGRAFIA, CORPO E IMAGEM

244 Entrevista com Nora Bateson

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UMA CONVERSA SOBRE A ECOLOGIA DA MENTE por Ana Gabriela Morim André Demarchi Maria Raquel Passos Lima Suiá Omim

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Apresentação

Fig. 1 | Répliques (Detalhe de estudo) Gérome Ibri

por Ana Gabriela Morim André Demarchi Maria Raquel Passos Lima Suiá Omim

APRE SEN TAÇÃO Pontos de partida. Múltiplos caminhos que podem levar a lugares inesperados, desconhecidos, familiares, recônditos. Seguimos ao longo desta apresentação os rastros de alguns desses caminhos, traçados por autores que falam a partir de diferentes contextos, que dialogam com sujeitos e teorias diversas, exprimindo assim visões de mundos particulares. Esta edição da Revista Enfoques é um ponto de encontro, onde, reunidos, editores, autores, leitores e colaboradores, são convidados a percorrer esses tantos lugares a serem conhecidos. Procuramos nesta introdução dar algumas coordenadas, oferecendo ao leitor pistas para que ele próprio trace o seu itinerário neste mapa imaginado que esboçamos. Esperamos que a experiência da leitura possa se revelar uma instigante jornada, pelos meandros dessa rede de pessoas, imagens e ideias que, através de trajetórias díspares e andamentos dissonantes, encontram seus pontos de convergência nas palavras-chave Etnografia, Arte e Imagem. Etnografia aqui, antes de ser pensada como um método específico, é entendida como um necessário deslocamento do pensamento, do corpo, do olhar. A experiência etnográfica é constituída por esses movimentos contínuos de ir e vir, no espaço e no tempo, de encontros e estabelecimento de relações, mas também de necessárias disjunções e distanciamentos. O trabalho de atravessar fronteiras entre mundos, entre visões divergentes e razões guiadas por lógicas diversas, nos força constantemente a ultrapassar os limites impostos ao pensamento, antes encerrado dentro dos contornos de suas próprias lentes. No confronto com corpos e naturezas outras, somos levados a desconstruir certos hábitos e comportamentos que eram, até então, sentidos como inatos. A etnografia, sendo esse método-rito-de-passagem, proporciona aos que nele se arriscam a saírem transformados, e fazerem dessa transformação um lócus de tradução cultural, um lugar de produção de conhecimento.

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1. INGOLD, Tim (ed.). Aesthetics is a cross-cultural category. In Key Debates in Anthropology, London: Routledge, 1996. pp. 249-293.

2. GONÇALVES, Marco Antonio. De Platão ao Photoshop. Ciência Hoje, v. 298, n.1, p. 12-17, 2010

3. LAGROU, Els. Arte ou artefato? Agência e significado nas artes indígenas. IN: Proa – Revista de Antropologia e Arte [on-line]. Ano 02, vol.01, n. 02, nov. 2010.

4. LAGROU, Els. A Fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Acre). Rio de Janeiro: Topbooks, 2007: 85-86. Ver também STRATHERN, Marilyn. The Gender of the Gift. Berckley: University of California Press, 1988.

5. GELL, Alfred. Art and agency: an anthropological theory. Oxford: Clarendon, 1998.

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Apresentação

Esse movimento de desterritorialização não significa apenas mudar de lugar, mas de ponto de referência, de perspectiva, ajustando o foco e explorando enquadramentos inusitados. Em tantos lugares, contextos e personagens, a etnografia permanece porque é trabalho no campo, seja ele um povo indígena, um site de encontros telepresenciais, um grupo de costureiras do interior fluminense, uma exposição em um museu parisiense ou um arquivo fotográfico sobre o movimento integralista brasileiro. Nesta edição comemorativa dos dez anos da Revista Enfoques, a etnografia costura estes e outros “campos”, e com eles tece sua potencialidade em desestabilizar conceitos tão enraizados na tradição ocidental, como os de arte, estética, corpo, imagem e tantos mais, fazendo emergir outras formas de expressão, reflexão e ação.

Afinal, como falar de arte a partir das produções de povos que não partilham estas noções da tradição ocidental? Ou, para evocar a monção de um famoso debate a esse respeito, seria a estética uma categoria transcultural1? Ou, ainda, como falar de imagem, este conceito evocado de Platão ao Photoshop2, para povos onde muitas vezes a noção de imagem remete a sombras, espíritos, e almas perambulantes e, não raro, é parte da pessoa? A ausência dos conceitos de arte e estética nessas sociedades, dos juízos e valores agregados a estes campos no Ocidente, não excluem as apreciações qualitativas que distinguem e produzem aquilo que é considerado simultaneamente belo e bom, expressando uma forma de gostar e um estilo de viver3. Se estas são noções cujas construções históricas e socioculturais não devem ser desconsideradas em função de uma suposta universalidade, negá-las enquanto fenômeno humano também não nos parece menos etnocêntrico. Não pretende-se aqui escolher um ou outro lado do debate, encontrar respostas ou soluções ao impasse, mas apontar a complexidade dessas questões, a partir de contextos específicos. Os leitores perceberão também, acompanhando os artigos aqui apresentados, que não nos eximimos do uso desses conceitos, de sua instrumentalidade para a reflexão. Recorremos ao olhar etnográfico, atento às categorias e concepções nativas. Um olhar que se desvia de pressupostos e definições previamente dados, capaz de ampliar os horizontes conceituais daquilo que pode ser entendido enquanto arte e estética. Adentrando pelo universo ameríndio que inaugura esta edição, a já mencionada desconstrução desses conceitos é central para a discussão proposta, a começar pela impossibilidade de apreendê-los enquanto domínios meramente contemplativos, separados da vida social: uma vez que todo o campo da interação e da produção está sujeito ao juízo estético, as próprias ações e relações ganham uma “forma esteticamente apropriada”4. A atenção se desloca do belo e do sublime, dos significados semânticos e dos discursos religiosos ou cosmológicos, para a capacidade agentiva e relacional das imagens visuais e sonoras, dos desenhos, formas e objetos5. Simultaneamente, esses artigos põem em evidência os processos ameríndios de construção da pessoa, intimamente relacionados às noções e dimensões li-

gadas à corporalidade e à alteridade. Eles se aproximam na medida em que a incorporação da alteridade se dá através da elaboração estética, sendo que é justamente essa diferença incorporada das agentividades não-humanas, o que produz a eficácia desejada na fabricação de corpos e artefatos. Em todos os artigos, a captura dessas forças exógenas segue invariavelmente uma lógica estética local. O ensaio de Els Lagrou sobre a apropriação da miçanga por diversos povos indígenas, seu papel na história, nos mitos e nos ritos, nos faz repensar o estatuto desses objetos vistos pelo ocidente como verdadeiras quinquilharias e que ganham contornos de riqueza do ponto de vista indígena. O artigo chama a atenção para a relação entre artefatos e corpos, para a importância dada ao ‘saber fazer’, ao conhecimento da origem e do papel dos donos das substâncias, das matérias primas e dos domínios do cosmos. Na mesma linha, Josinelma Rolande explora a pintura corporal Canela, sua relação com o mundo animal e vegetal, se desviando de uma conceituação a priori de arte. A autora parte de um enunciado frequente dos Canela quando indagados sobre a pintura corporal. “Pinta para ficar bonito”, dizem os Canela, e poderíamos completar, já que a beleza entre eles não se dissocia das noções de bem-estar e de sabedoria, “pinta-se para ficar saudável”. Ainda no contexto ameríndio, o artigo de Paolo Fortis, traduzido por Diego Madi Dias, apresenta o conceito Kuna de “desenho” de modo vinculado à produção de formas estéticas diversas (incluindo aqui a forma humana), envolvendo as dimensões visível e invisível do mundo Kuna. A ideia de desenho como relação, a revelar a dualidade da pessoa, distingue-se de uma abordagem identitária dos motivos e, dessa maneira, dialoga bem com as hipóteses presentes nos artigos de Els Lagrou e Josinelma Rolande. Já o artigo de Theresa Miller, introduz o tema das plantas cultivadas na discussão sobre as relações entre pessoas e coisas. Ao demonstrar como o cultivo das roças é inseparável das preocupações simbólicas, míticas, rituais e estéticas, o artigo aponta para o estatuto de “sujeito agente” que as plantas cultivadas assumem em diversos grupos indígenas Jê do Brasil Central. Ampliando a questão estética para sua dimensão performática, as relações entre humanos e plantas são inseridas naquilo que a autora chama de “encontros estéticos multissensoriais”.

Direcionando o diálogo para o contexto indonésio, vemos o debate sobre estética ganhar outros contornos à luz das formas de habitar e da reflexão sobre a arquitetura. Em entrevista concedida a Alberto Goyena, a antropóloga Roxana Waterson trata de um dos seus principais livros The living house, fruto de pesquisas etnográficas entre os povos Toraja, que põe em foco os sistemas de parentesco sob a perspectiva das habitações. Na cosmologia toraja, a casa é descrita e construída como uma entidade viva, que articula diversos aspectos da vida em sociedade, sendo possível pensá-la como tendo uma biografia. Fazendo da casa uma categoria fundamental para investigação etnográfica, a antropóloga problematiza a ideia da arquitetura como um fenômeno concernente apenas à

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herança cultural europeia e aponta as tensões entre as concepções nativas e as noções de autenticidade que orientam as políticas de preservação e patrimonialização.

6. Sobre a relação entre as teorias antropológicas e os espaços dos museus, ver GONÇALVES, José Reginaldo. “Coleções, museus e teorias antropológicas: reflexões sobre conhecimento etnográfico e visualidade”. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro: Coleção Museu, Memória e Cidadania, 2007.

7. CLIFFORD, James. “Sobre O surrealismo etnográfico”. In: CLIFFORD, James. A experiência etnográfica. (Org. GONÇALVES, José Reginaldo S.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.

8. op.cit: 2002: 154.

Neste ponto, deslocamos a discussão das estéticas e objetos indígenas para outros espaços, que recolocam, a partir de prismas distintos, o debate das relações entre arte, materialidade e estética. Desde os períodos mais incipientes da disciplina, o contato com habitantes de terras longínquas ao redor do planeta e seus costumes “exóticos”, resultou em práticas sistemáticas de colecionamento, classificação, reflexão e exibição dos objetos nativos que, recolhidos por antropólogos, tinham seus novos destinos nos espaços dos museus6. Tirados de seus contextos locais, estes objetos eram (e continuam sendo) reclassificados a partir de outras categorias, como “artefatos”, “objetos etnográficos”, “arte primitiva”, “arte popular”. Entender o colecionamento como prática cultural nos permite entender a própria história das teorias antropológicas e das concepções de cultura que orientaram e ainda orientam algumas das formas institucionais de conceber as populações enquadradas pelas narrativas museológicas. Etnografia e arte possuem relações estreitas, sobretudo em determinadas tradições antropológicas como a francesa, em que arte, literatura e etnografia ainda não eram províncias com fronteiras firmemente estabelecidas e, na Paris do entre-guerras, as vanguardas artísticas e a nascente etnologia emergiam como parte de um mesmo contexto de crítica cultural, partilhando de uma sensibilidade moderna, que via no outro, no exótico e no insólito, a possibilidade de justaposição, questionamento e embaralhamento das ordens existentes7. Nesse sentido, se “a história da etnografia francesa entre as duas guerras mundiais pode ser narrada como a história de dois museus”8, o artigo de Nina Vincent vem nos mostrar alguns desenvolvimentos desta história. No contexto do atual museu do Quai Branly em Paris, que herdou as coleções dos antigos Museu do Trocadéro e Museu do Homem, a autora demonstra como os objetos ditos de “arte” ou “etnográficos” provenientes de diferentes culturas são ali ressignificados, revelando um emaranhado de julgamentos estéticos, científicos, morais, históricos, políticos e biográficos. Contribuindo para a compreensão do lugar da alteridade nos museus ocidentais, a autora realiza uma etnografia da exposição Planète Métisse: to mix or not to mix, na qual os objetos, frutos de encontros entre europeus e povos colonizados, nos servem como espelhos que nos devolvem a imagem da alteridade incorporada do colonizador. Já no contexto brasileiro, a discussão sobre a arte envereda por outros meandros onde também encontramos uma mistura entre julgamentos estéticos e morais, que articulam ciência, política, história e subjetividades. A crítica de arte é abordada no artigo de Marcelo Ribeiro Vasconcelos através da trajetória e da obra de Mario Pedrosa, personagem importante pela sua atuação política no âmbito das esquerdas desde os anos 1930, cuja atuação também foi central para a institucionalização da crítica de arte no Brasil. Ao analisar as críticas de Mario Pedrosa à obra de Candido Portinari ao longo do tempo, o autor discute as mudanças no julgamento estético de Pedrosa, atentando especialmente para a re-

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Apresentação

lação entre marxismo e artes plásticas. As imagens de Portinari são tomadas por novos enquadramentos delineados pelas críticas de Pedrosa, ganhando outros sentidos, que refletem mudanças nas maneiras de pensar a arte e nas próprias formas de olhar.

As múltiplas dimensões ligadas ao olhar ganham destaque nos artigos desta edição, especialmente aquelas relacionadas ao papel da imagem na produção do conhecimento etnográfico e no saber próprio da antropologia. A preocupação com o registro visual buscava - ao menos desde Malinowski, Boas e Lévi-Strauss garantir uma captação do contexto pesquisado de forma complementar às descrições e observações traduzidas e transmitidas de modo preeminente pela linguagem escrita. Assim, máquinas fotográficas e aparatos similares acompanharam os pesquisadores em suas expedições a terras distantes ainda nos períodos mais incipientes da disciplina. No entanto, o estatuto conferido a este tipo de material no âmbito da produção do conhecimento antropológico permaneceu permeado de tensões e controvérsias ao longo da história. Nesta edição, certos artigos incidem sobre algumas destas tensões. Tomando como foco etnográfico o universo das costureiras domiciliares de Nova Friburgo, Wecisley Ribeiro do Espírito Santo explora a comunicação audiovisual como um meio “multissensorial” capaz de captar e reproduzir os aspectos “verbalmente inarticulados”9 da experiência humana. Wecisley transforma o detalhismo imagético das gravações de sua pesquisa de campo em um material etnográfico capaz de suscitar reflexões sobre a capacidade eminentemente pedagógica das imagens, seus modos de agir sobre as pessoas que, filmadas, podem assistir a si próprias aprendendo, objetivando e auto-objetivando formas de expressão e afeto. Também nessa linha de tensão entre imagem e texto, o artigo de Alexandre Pinheiro Ramos discorre sobre as fotografias do Movimento Integralista Brasileiro, uma espécie de fascismo tupiniquim, com seus desfiles militares e suas saudações à la Hitler – presentes nas edições da revista Anauê. A descrição e análise das fotografias impõem ao autor a necessidade de trabalhar com uma forma de leitura específica das imagens, metodologia presente nos estudos do filósofo “da caixa preta” Vilém Flusser em sua ênfase na leitura circular imposta pelas imagens, em contraposição à leitura necessariamente linear da palavra escrita10. Aqui estamos de volta aos aspectos “verbalmente inarticulados” que a experiência imagética proporciona. Desalinhar a observação de uma imagem, fazer o olho passear por ela como um scanner. É o que propõe Flusser, e com ele aproveitamos a deixa de Alexandre em seu artigo e oferecemos a possibilidade do leitor “vaguear pela superfície das imagens” presentes nesta edição. Fazer um scanning, nos dizeres de Flusser e deixar-se a observar essas “imagens simbolicamente carregadas”, prenhes de agência e abdução, como a mola Kuna que nos olha de frente na capa da Revista.

9. MEAD, Margaret. Visual anthropology in a discipline of words. In: Hockings, Paul (ed.). Principles of visual anthropology. New York: Mouton de Gruyter, 1995.

10. FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. Rio de Janeiro: sinergia Relume dumará, 2009.

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Depois deste convite, continuamos o nosso vaguear pelos artigos e para tal evocamos mais uma imagem, desta vez, advinda de um site de relacionamento telepresencial, o CAM4, onde em uma página virtual congelada de uma noite qualquer, nota-se um sem número de subjetividades em ação, inventadas e rankeadas por suas performances corporais e sexuais. Em seu artigo, Helmut Kleinsorgen lê as performances dos ambientes telepresenciais através do instrumental teórico-metodológico oferecido pela análise simbólica de Vitor Turner, enfatizando o lugar do corpo como “veículo de expressão não-verbal nas práticas sociais de produção, compartilhamento e recepção de representações identitárias audiovisuais em redes de interação mediadas pela Internet”.

11. HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência,tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, Donna. KUNZRU, Hari e TADEU, Tomaz (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 12. GONÇALVES, Marco Antônio; HEAD, Scott. Devires imagéticos: a etnografia, o outro e suas imagens. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009: 9)

13. BATESON, Gregory. Naven. Um esboço dos problemas sugeridos por um retrato compósito, realizado a partir de três perspectivas, da cultura de uma tribo da Nova Guiné. Tradução: Magda Lopes. 2º. ed. São Paulo: EDUSP, 2006 [1936]: 299.

A pregnância e indissociabilidade das telas e dos dispositivos multimídia de comunicação nos modos de vida contemporâneos permitem pensar as tecnologias como extensões do corpo humano, verdadeiras próteses que estruturam nossos hábitos cotidianos e sobre as quais apoiamos dimensões cada vez mais significativas de nossas vidas. A figura do ciborgue emerge desta maneira como chave para pensar o estatuto dos objetos técnicos na nossa sociedade e a natureza das relações que mantemos com eles11. Metáfora para a escrita etnográfica, o ciborgue permite pensar o papel das mídias audioviduais na reflexão antropológica, colocando o “problema epistemológico de como incorporar estas mídias ao ‘corpo’ de conhecimento antropológico”, e mais pragmaticamente, “como estender as fronteiras deste corpo disciplinar através destas mídias visuais, tanto como meio quanto como tema de análise”12. Diferentes artigos desta edição oferecem leituras que escapam ao aspecto verbal e escrito da comunicação humana, problematizando o estatuto de uma antropologia visual como subcampo de uma disciplina que se produz, sobretudo, por meio de palavras. Palavras que, como diria Bateson, muitas vezes não estão adaptadas “para uma descrição científica da emoção”13. Balinese Charater, o monumental trabalho fotográfico desenvolvido por Gregory Bateson em conjunto com Margaret Mead, parece ser a própria concretização de um programa de pesquisa destinado a experimentar outras formas de descrever a expressividade (emotiva, afetiva, conflitiva) da vida social. Não por acaso, Nora Bateson, filha de Gregory, escolheu fazer um filme para fabricar um retrato compósito, íntimo, afetuoso, mas não menos intelectual, de seu pai. O filme “An ecology of mind”, retoma a vasta obra multidisciplinar de Bateson de um ponto de vista emotivo que não se furta ao diálogo com alguns dos seus principais conceitos, e também não se escusa de exibi-los objetificados em imagens e diálogos. Sobre estas e outras questões do filme, da pessoa e da obra de Bateson, Nora nos fala em entrevista presente nesta edição. E por falar em filmes, falemos também de telenovelas, essa expressão audiovisual tão presente no cotidiano de milhões de pessoas, de norte a sul do Brasil. Imaginando e produzindo imagens cotidianas das nossas cidades, suas tramas e personagens participam ativamente da vida dos que diariamente se postam à frente da tevê. Transmitidos e retransmitidos no país e no mundo afora, esses imaginários poderosos se tornam parte indissociável das formas como o Brasil e os brasileiros se veem e são vistos. Daniela Stocco em seu artigo faz uma

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Apresentação

análise da novela Paraíso Tropical e apresenta alguns princípios narrativos presentes nesta e em outras novelas brasileiras, produções que fazem do bairro de Copacabana e da cidade do Rio de Janeiro, o retrato de um certo Brasil marcado pelas belezas naturais e pelo ofuscamento das desigualdades sociais. Ao fazer da paisagem e dos cartões-postais da zona sul carioca o cenário das narrativas, a novela explora o estereótipo da “cidade maravilhosa”, fabricando e atualizando uma imagem enaltecida e conciliadora do Brasil, como terra paradisíaca, onde os contrastes e antagonismos convivem em equilíbrio. Estas imagens de um pretenso paraíso tropical evocam as potências do falso, dos fatos e dos fetiches atualizados e objetificados nos folhetins audiovisuais.

Afinal, como viver em um mundo superpovoado pelas imagens e mais importante, como etnografar “esta passagem da ‘oralidade’ para uma ordem ‘imagética’”14 que vivemos atualmente? Os artigos apresentados acima tematizam esse momento presente, também para a antropologia, que afinal parece não ter saída senão a de levar a sério uma antropologia (e, sobretudo, uma etnografia) por imagens, tal como profetizada por Rouch: “a antropologia, no futuro, será audiovisual ou não será antropologia”15. De forma comemorativa pelos dez anos de experiência editorial da Revista Enfoques, esta edição vai ao encontro deste futuro antevisto por Rouch para a antropologia, apostando na arte, na estética e nas imagens não apenas como objetos de reflexão, mas em seu potencial para explorar formas alternativas de produção e divulgação do conhecimento acadêmico através das mídias disponíveis atualmente, de modo a tornar a revista mais atrativa à leitura em seu formato digital. Esta edição materializa a pesquisa sobre o uso de formas de expressão alternativas, interativas, em que textos e imagens sejam parte de um mesmo conhecimento, onde as palavras falem não apenas das imagens, mas com elas.

14. GONÇALVES, Marco Antonio, 2010: 17 . Para a referência completa ver nota 2.

15. Trecho da entrevista de Rouch extraída do filme Jean Rouch, subvertendo fronteiras, de Ana Lúcia Ferraz, citado por Wecisley Ribeiro do Espírito Santo em artigo nesta edição.

A alegria de apresentar essa edição se concretiza, assim, na concepção de uma revista virtual voltada para as múltiplas formas e linguagens oferecidas pelos meios multimídias contemporâneos e seu poder de afetar, fazer pensar e ensinar de um modo novo, não convencional, proporcionando uma forma distinta de conhecer. Esperamos que o leitor se engaje por inteiro, com todos os sentidos, e possa experimentá-la com prazer!

PARA CITAR ESSE ARTIGO DEMARCHI, A.; LIMA, M. R. P.; MORIM, A. G.; OMIM, S. Apresentação. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 10 - 17. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

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Fig. 1 | © Gérome Ibri

NO CAMINHO DA MIÇANGA arte e alteridade entre os ameríndios por Els Lagrou

Els Lagrou é professora do programa de pós-graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA, IFCS, UFRJ), bolsista do CNPq, membro do Grupo internacional de pesquisa do Musée du Quai Branly, Paris, coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Arte, Imagem e Pesquisa Etnológica (NAIPE) do PPGSA/UFRJ.

NO CAMINHO DA MIÇANGA:

arte e alteridade entre os ameríndios Resumo Este artigo visa mostrar, a partir da análise do papel da miçanga na his-

tória, nos mitos e nos ritos de diferentes grupos ameríndios, como este item pode nos permitir lançar nova luz sobre temas importantes na discussão contemporânea da etnologia e estética ameríndia, como a importância dada pelos ameríndios ao ‘saber fazer’, o conhecimento da origem e o papel dos donos das substâncias e dos domínios. Outro tema central à socialidade ameríndia é o papel da incorporação das forças agentivas da alteridade na constituição da pessoa. Mostramos que a ‘captura’ das forças exógenas contidas na miçanga segue uma lógica estética local. Por último o artigo chama a atenção para o rendimento teórico da superposição sistemática dos discursos ameríndios que dizem respeito a artefatos e a corpos, mostrando como corpos são produzidos esteticamente e artefatos existem em íntima correlação com corpos. Palavras-chave miçanga, ameríndios, arte, imagem, alteridade, estética,

produção, predação

ON THE WAY OF BEADS:

art and alterity among Amerindians Abstract Through the analysis of the role of beads in the history, mythology and

rituals of different Amerindian groups, this article intends to show how beads allow us to shed new light on important questions in contemporary Amerindian ethnology and aesthetics, such as the importance for the Amerindians of the knowledge of manufacture, of the origin of artefacts and substances and the constitutive relation with their owners (those who generated them). Another central theme of Amerindian sociality is the importance of the incorporation of the agency of others in the constitution of the person. We show that the ‘capture’ of exogenous forces contained in the beads follows specific aesthetic patterns that vary from group to group. Finally the article draws attention to the theoretical productivity of paying attention to the systematic superposition of Amerindian discourses about artefacts and bodies, showing how bodies are aesthetically produced in an artefactual mode as well as composed of artefacts and how artefacts exist in close correlation with bodies, being “almost bodies”. Keywords beads, amerindians, art, image, alterity, aesthetics, production,

predation

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No Caminho da Miçanga

Introdução A centralidade da corporalidade para a constituição da pessoa entre os ameríndios se tornou um paradigma na área de etnologia ameríndia1, mas as maneiras como artefatos são mobilizados na fabricação das pessoas e dos grupos sociais só recentemente recebeu uma atenção mais sistemática por parte dos estudiosos do campo. O estudo em profundidade do mundo artefatual que participa da fabricação do corpo ameríndio lança nova luz sobre conceitos ameríndios de corporalidade e de pessoa2. Um aspecto importante desta relação diz respeito à superposição sistemática dos discursos ameríndios que dizem respeito a artefatos e a corpos. Tanto no caso da pintura corporal quanto na decoração do corpo com colares de contas, dentes e sementes, temos o mesmo entrelaçamento do artefato com o corpo, da fabricação de um corpo com capacidade agentiva e sua decoração exterior e interior. Neste artigo visamos abordar esta questão a partir da elaboração, transformação e “pacificação” artística e semântica, pelos ameríndios, dos materiais obtidos através do contato com os brancos, mais especificamente da miçanga, as famosas contas de vidro trocadas com os viajantes desde as primeiras viagens europeias para as Américas. As miçangas são verdadeiras “pérolas de vidro”, expressão que aponta para o paradoxo da miçanga: uma preciosidade e matéria-prima na fabricação de artefatos de alto valor entre a maior parte das populações nativas do mundo e parte do escambo entre colonizadores e populações nativas, em que constatamos, desde o começo, um desencontro de perspectivas de valor. Os viajantes e colonizadores achavam estar trocando quinquilharias por preciosas matérias-primas, enquanto os nativos apreciavam muito estas contas de vidro, cujo modo de produção e origem desconheciam. Contas de materiais mais ou menos preciosos, desde o spondylus vermelho e a turquesa às contas pretas de tucum, as sementes de tiririca (Scleria macrophylla) entre os krahô e outros grupos Jê de cor creme e marrom e as contas brancas de caramujo, estiveram em uso bem antes da chegada dos brancos. O gosto indígena pelos colares de contas fez com que as contas de vidro trazidos pelos europeus caíssem em solo fértil3. Sabe-se, desde os escritos de Lévi-Strauss e Clastres, que a maior parte das sociedades ameríndias situa no exterior a fonte de inspiração artística e cultural. A obtenção e elaboração dos materiais vindos do exterior em materiais constitutivos da própria identidade grupal segue uma lógica similar, quer se trate da incorporação de pessoas, qualidades ou capacidades agentivas de pessoas (alma, canto, nome) ou de objetos. Estes elementos conquistados sobre, ou ne-

1. O paradigma da importância do discurso sobre a corporalidade para a noção ameríndia de pessoa surge a partir do texto programático, de 1979 (1991), de Seeger, DaMatta & Viveiros de Castro, em resposta à chamada lançada por Overing (em 1976) por uma abordagem teórica do material etnológico que soubesse tirar proveito da especificidade do universo indígena amazônico. 2. Precursores na valorização do mundo artefatual e sua relação com a construção da pessoa foram os trabalhos de Erikson (1986), Van Velthem (2003), Lagrou (1998, 2007) e Barcelos Neto (2008). O volume editado por Santos-Granero (2009) reúne pesquisas recentes em torno da questão, como a pesquisa de Steven Hugh-Jones (2009) sobre o corpo Tukano composto por artefatos invisíveis, e o de Joana Miller (2007) sobre a relação entre o fio de contas e a alma da pessoa. Para um ensaio teórico e comparativo sobre a relação entre pessoas e artefatos no mundo ameríndio, ver Lagrou (2009).

3. Ver, por exemplo, Dransart (1998) e Meisch (1998), sobre o uso pré e pós-hispânico de contas nos Andes e no Equador, e Graeber (2001) para os Estados Unidos.

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4. Um belo exemplo de “domesticação” dos objetos dos brancos aparece em foto tirada por Lux Vidal entre os Kayapó-Xikrin, onde vemos duas crianças xikrin segurando uma boneca de plástico. As bonecas foram pintadas com jenipapo com os motivos da pintura corporal Xikrin e decoradas com um colar de miçanga. O tratamento estético dado à boneca permitiu sua transformação em boneca xikrin (Vidal, 1992).

5. Refiro-me, aqui, à proposta museológica da exposição Brasil 500 anos (São Paulo, 1992), na qual artefatos supostamente sem interferência da presença dos brancos eram separados dos artefatos que continham miçanga. Estes últimos foram agrupados em um setor chamado hibridismos.

gociados com o exterior precisam ser pacificados, familiarizados. Este processo de transformação do que é exterior em algo interior tem características eminentemente estéticas4. O tratamento dado pelas diferentes sociedades indígenas à miçanga constitui uma manifestação privilegiada desta estética da pacificação do inimigo, porque a grande maioria das populações indígenas usa miçanga e a incorpora nas suas manifestações estéticas e rituais mais significativas. Contra uma abordagem purista que via na miçanga um sinal de poluição estética resultante da substituição de matéria-prima extraída do ambiente natural por materiais industrializados, partimos da própria concepção estética ameríndia para ver como objetos, matéria-prima e pessoas são por eles domesticados e incorporados através do processo da tradução e re-significação estéticas. Objetos rituais e enfeites que contêm miçanga não devem, portanto, ser analisados como hibridismos5, mas como manifestações legítimas de modos específicos de se produzir e utilizar substâncias, matérias-primas e objetos segundo lógicas de classificação e transformação específicas. Porque, assim como o conceito de incorporação da alteridade, enquanto processo de construção da identidade, o conceito de transformação tem grande centralidade na visão de mundo e práxis ameríndia, é preciso examinar de que maneira coisas e pessoas podem ser transformadas, domesticadas, pacificadas e incorporadas sem perderem sua relação com e referência à exterioridade. As contas constituem itens cruciais na tessitura de caminhos entre mundos diferentes e visualizam de modo exemplar as diferentes maneiras adotadas pelas populações indígenas de lidar com a alteridade, através de uma incorporação estilisticamente controlada de itens provindos do exterior. A miçanga aparece em grande parte relacionada aos mitos de origem do branco, sendo interpretada ora como fonte de beleza e riqueza, ora como veículo e origem de novas doenças. O discurso mítico e, em alguns casos, cantos rituais apontam para uma estreita relação entre a atitude frente ao branco e a atitude frente à alteridade em geral.

6. Nossa proposta de tratar artefatos como nexos de agências interrelacionadas segue Gell (1998). Ver a respeito das afinidades entre a proposta teórica de Gell e as ontologias ameríndias, Lagrou (2003, 2007, 2009).

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Este questionamento comparativo surgiu para mim a partir da análise do material Kaxinawa, povo de língua pano que vive no Brasil, Acre e Amazônia peruana. Entre os kaxinawa a estética e eficácia ritual consistem em mover os “outros”, “ex-inimigos”, na maior parte seres invisíveis yuxibu, donos de matérias-primas necessárias para a construção de um novo corpo, a ceder voluntariamente aqueles itens que foram notoriamente negados em tempos míticos, quando resultavam em guerras de conquista dos bens desejados. A estética é, neste caso, o operador relacional central que garante a eficácia ritual que consiste na transformação de inimigos em aliados, permitindo a produção de pessoas a partir de pedaços de artefatos “vivos” que carregam agência de outros seres na sua própria constituição. Pelo fato de que artefatos são produzidos para agirem dentro da rede de intencionalidades humanas na qual surgiram, constituem o índice desta rede de relações, o nó, a cristalização de um campo de forças relacionais que pode ser explorado através da análise detalhada de sua materialização6.

Contextualização da temática da miçanga: Uma história das contas de vidro Por operarem como itens cruciais na tessitura de caminhos entre mundos diferentes, as contas são um tema caro aos arqueólogos. Estão, segundo Dubin e outros estudiosos do tema, entre os mais antigos itens humanos encontrados em túmulos; e a presença de contas das mais diversas origens em túmulos antigos tem sido testemunho importante da existência de redes de intercâmbio entre a África, a Europa e o Oriente, milhares de anos antes de Cristo. Em The History of Beads, Dubin oferece uma cronologia das contas e diferentes mapas que mostram como “as contas fizeram e interligaram o mundo” (1987). As contas sempre mantiveram uma estreita relação com o comércio de longa distância, por serem fáceis de transportar e por representarem alto valor de atração subjetiva através da sua ligação com a decoração corporal. As contas se tornam, assim, excelentes candidatos para se pensar as relações entre os povos. Ao representarem itens importantes na demonstração de riqueza, apontam igualmente para a rede relacional do usuário. Deste modo, enfeites produzidos a partir de matérias-primas exóticas, raras ou de difícil acesso podem derivar seu valor do fato de virem de longe, sendo índices da capacidade de relacionamento com mundos distantes. It is remarkable how many of the things adopted as currency in different parts of the world have been things otherwise used primarily, if not exclusively, as objects of adornment. Gold and silver are only the most obvious examples: one could equally well cite the cowries and spondylus shells of Africa, New Guinea, and the Americas, the feather money of the New Hebrides, or any number of similar “primitive currencies”. For the most part, money consists of things that otherwise exist only to be seen (Graeber, 2001: 192).

Mas é exatamente nesta possibilidade de tornar visível e palpável um poder normalmente invisível que consiste, segundo o autor, a diferença entre as contas como moeda de troca e o dinheiro enquanto qualidade abstrata. Graeber chama a atenção para um complexo processo de alternância entre as políticas indígenas de ostentação e ocultamento de valores e poderes. Segundo o autor, trata-se de uma distinção recorrente entre o poder de agir diretamente sobre outros, um poder de agência que permanece invisível aos olhos, e o poder de mobilizar outros a agirem de acordo com o desejo da pessoa que se mostra, onde a pessoa usa adornos para produzir o efeito desejado sobre quem a vê. Se no Ocidente moderno o poder de ação masculino tende a se ocultar cada vez mais atrás de roupas neutras e estandardizadas, em outras épocas e outras regiões a ostentação e decoração masculinas tendiam a ser muito mais explícitas, expressando um poder de mobilizar outros a agirem de acordo com o impacto de sua aparição. Se consideramos as contas como “native currencies”, em torno dos quais se organizam relações sociais, torna-se facilmente compreensível por que sua distribuição e os modos de aquisição tendem a ser ritualizados. É por esta razão

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que, por ocasião da chegada de miçanga nas aldeias indígenas, o xamã ou chefe político, masculino e/ou feminino, ocupam frequentemente posição-chave na sua distribuição. Entre os Kaxinawa era o especialista ritual que me hospedava que cuidava da distribuição entre as mulheres da miçanga que tinha trazido. Entre os Nambikwara (Mamaindê) é o xamã que as retira da terra durante sessões de xamanismo, interpretando-as como “presentes” dos mortos (Miller, 2007). Para melhor compreender a relação dos diferentes povos com as contas de vidro, é preciso situar historicamente seu caráter “democratizante”, ou melhor, multiplicador. O mapa da circulação antiga de contas, tanto no Velho quanto no Novo Mundo, aponta para a importância dos materiais preciosos e raros: âmbar, pedras preciosas e ouro para o Velho Mundo; as conchas de Espíndola vermelho, turquesa, prata e ouro no Novo Mundo. A invenção das contas de vidro, e, antes delas, da faiança (um precursor do vidro, feito com uma cerâmica com alta concentração de quartzo que produz um brilho colorido), facilitará enormemente o acesso à matéria-prima para a produção das contas, possibilitando assim sua produção em massa. A faiança e o vidro representavam uma alternativa atrativa às pedras originais, por apresentarem qualidades próximas àquelas, como a resistência, a durabilidade, o brilho e o colorido forte; estas qualidades eram muito apreciadas nas contas por muitos povos no mundo. Estima-se que as contas de faiança (faience) foram inventadas no Egito ou na Mesopotâmia em torno de 4000 A. C. (Dubin, 1987: 43). As contas de vidro aparecem mais ou menos simultaneamente na Ásia Ocidental, na região do Cáucaso, na Mesopotâmia e no Egito, em torno de 2340 A. C. (ibidem: 38, 43). Mas é no Egito que, em torno de 1350 A. C., funcionou durante o chamado Novo Reinado a primeira fábrica de produção de contas de vidro em grande quantidade, patrocinado pelos faraós para seu consumo e o da corte. De material exótico, o vidro se torna, no entanto, rapidamente acessível para o povo comum com certo poder aquisitivo. Os romanos eram igualmente grandes produtores de contas de vidro, que levavam para todas as regiões conquistadas: Everywhere the Romans went they brought glass beads to the trade... Roman glass beads were widely coveted. Exchanged as far North as Scandinavia, and as Far East and South as China, Korea, Iran, Syria, Mali, and Ethiopia, quantities of Roman-period glass beads have been found in each of these countries, frequently raising the question of where they were originally manufactured because of their similar patterns and manufacturing techniques (ibidem:55).

Na Europa do Império Romano tardio, as contas de vidro eram usadas pelos povos indígenas, pelos imigrantes, e pelo povo comum das populações nativas (ibidem: 65). A elite continuava usando joias feitas de material precioso. De 330 a 1400 D. C. existiam vários centros de produção de contas de vidro no Norte da Europa. A Igreja, no entanto, desestimula, durante a Idade Média, a produção de bijuteria feita de contas, por considerá-la um costume pagão.

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os europeus, no entanto, este laço entre os materiais e seus donos originários a princípio não tinham nem interesse nem consequências. Também nos Estados Unidos, as contas desempenham papel crucial no mito de origem do contato, contado pelos euro-americanos: Dutch settlers, as any American schoolchild can tell you, bought Manhattan Island from the local Indians for twenty-four dollars worth of beads and trinkers. The story could be considered one of the founding myths of the United States; in a nation based on commerce, the very paradigm of a really good deal. The story itself is probably untrue (the Indians probably thought they were receiving a gift of colorful exotica as a token of peaceful intentions and were in exchange granting the Dutch the right to make use of the land, not to “own” it permanently), but the fact that so many of the people European merchants and settlers did encounter around the globe were willing to accept European beads, in exchange for land or anything else, has come to stand, in our popular imagination, as one of the defining features of their “primitiveness” – a childish inability to distinguish worthless baubles from things of genuine value. In reality, European merchants began carrying beads on their journeys to Africa and the Indian Ocean because beads had already been used there as a trade currency for centuries. Elsewhere they found that beads were the one of the few European products they could count on the inhabitants being willing to accept, so that in many places where beads had not been a trade currency before their arrival, they quickly became one afterward (Graeber, 2001:91-92).

A “história das contas” no Velho Mundo, assim como no Novo Mundo, mostra como a conta foi adquirindo gradativamente, na história das trocas, esta conotação de mercadoria – de estimável peso econômico – produzido para os outros. No século XVII encontramos, não somente em Veneza e na Boêmia, mas também em Amsterdam e em outros lugares, centros de produção em massa de contas cujas formas e cores são diretamente adaptadas ao gosto do comprador, basicamente africano, mercado este que vinha sendo tradicionalmente abastecido pelas contas de vidro vindas da Índia. Temos aqui certa inversão estética da relação predominante da Conquista e da Colonização: aqui é o colonizador, em vez de o colonizado, que fornece a matéria-prima para que o colonizado possa transformá-la em arte, em artefato. A arte Yoruba trabalha bem este paradoxo: com essas “quinquilharias” a realeza de Benin decora coroas, roupas e tronos inteiros. Muitas continhas relativamente baratas fazem um trono caro. Para os Yoruba, as miçangas indicavam poder espiritual pela capacidade de reter, refletir luz e eram os reis que monopolizavam o acesso às contas, tanto aquelas produzidas in loco quanto as trocadas com os viajantes estrangeiros (Sciama e.o., 1998). Hoje, nas capitais do mundo, estes mesmos itens retornam como objetos de colecionamento, além da própria miçanga retornar na moda e na arte popular, no design. Já no começo do século XX, vemos nos Estados Unidos um exemplo deste processo: vende-se para donas de casa kits com miçangas e instruções de como fazer pulseiras com motivos dos índios das planícies. A propaganda diz: “faça sua própria pulseira Sioux em casa...” Vemos aqui uma interessante circu-

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Fig. 2 | © Ana Gabriela Morim

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Por volta do século XI, o uso do rosário pela Igreja Católica representa a possibilidade da volta das contas (Dubin, 1987: 88-91; Dransart, 1998). O rosário ajuda na memorização do número das rezas e na concentração. O uso de colares de contas para a reza parece ser de origem hindu, datando de 300 A. C. (Dubin, 1987: 80) e ocupa um lugar importante nas religiões orientais, assim como no Islã. A partir do século XIV, o uso do rosário como colar, ou nas mãos, era atestado de fé, objeto de identificação que foi ganhando importância com o surgimento do protestantismo, que recusava o uso do rosário. Este foi igualmente importante na cristianização do Novo Mundo, onde foi rapidamente incorporado, ganhando, no entanto, novas conotações, como sua associação com os quipos nos Andes (Dransart, 1998:129-146). No século XV, com o advento da Renascença, ocorre um significativo revival da produção de contas em vidro na Europa. Aqui é importante enfatizar que, apesar da produção em massa de contas de vidro na Europa dos séculos XV e XVI, nessa mesma época “até a Revolução industrial, contas ocupam um lugar menor na ornamentação Europeia” (ibidem: 101). Ou seja, as contas são produzidas para fora. Nas cortes e nos círculos abastecidos da Europa usam-se as pedras e os materiais preciosos trazidos das Américas e da Ásia, enquanto as contas são produzidas em grande quantidade para o gosto dos povos recém-contatados. Nas Américas, a técnica de produção de vidro era desconhecida e as contas de vidro eram recebidas como preciosidades exóticas. Segundo os estudiosos do tema nos Estados Unidos, o gosto dos índios norte-americanos pelas contas ajudou os espanhóis a explorar e colonizar o Novo Mundo (Dubin, 1987: 271). Sabemos que um dos primeiros gestos de Colombo ao chegar ao Caribe em 1492 foi o de oferecer miçanga aos índios arawak. Colombo escreve: [ . . . ] percebi que eram pessoas que melhor se entregariam e converteriam à nossa fé pelo amor e não pela força, dei a algumas delas uns gorros coloridos e umas miçangas que puseram no pescoço, além de outras coisas de pouco valor, o que lhes causou grande prazer e ficaram tão nossos amigos que era uma maravilha. Depois vieram nadando até os barcos dos navios onde estávamos, trazendo papagaios e fio de algodão em novelos e lanças e muitas outras coisas, que trocamos por coisas que tínhamos conosco, como miçanga e guizos (Cristóvão Colombo, Diários da Descoberta da América, 1492).

Nota-se, deste modo, um desencontro de perspectivas que marca o encontro no Novo Mundo e que tem a miçanga como pivô: o que, para Colombo, não passava de vidro, eram pérolas para os indígenas. Enquanto os indígenas se interessavam pelos produtos feitos pelos europeus, estes só tinham olhos para as riquezas naturais que poderiam explorar nos países descobertos. Como demonstraram Strathern (1988) e Gell (1998) para a Melanésia e o Pacífico, para os indígenas os objetos mantinham sua ligação com aqueles que os tinham produzido, tornando-se extensões e objetificações da agentividade das pessoas. Para

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laridade, uma complexa dinâmica de relações de “trickle up” e “trickle down” pelo percurso das contas, em que novos valores e significados são agregados na medida em que as contas passam pelo processo de transformação estética indígena. A miçanga, sendo um objeto destinado à fabricação de colares e enfeites de uso pessoal, estabelece uma relação peculiar com seu dono sem, no entanto, perder os laços metonímicos que a unem ao seu produtor. Constitui um objeto ambíguo, quimérico, que pode vir a significar ao mesmo tempo o que há de mais próprio e mais exógeno na decoração e produção dos corpos indígenas. Como veremos, esta dupla lógica, na qual a identidade se constitui através da tradução estética da alteridade dentro e fora do corpo indígena, é altamente elaborada nos cantos rituais kaxinawa em que o iniciante pede olhos, dentes e ossos feitos de miçanga. A miçanga é atribuída, no canto ritual, ao Inka, deus canibal e destino póstumo do morto que com ele se casará, enquanto o próprio Inka é associado ao branco. A hipótese do objeto ambíguo, quimérico (Severi, 2007), me parece possuir, por causa do aspecto altamente relacional da miçanga, desde sua concepção a seus possíveis usos, uma aplicabilidade geral. Na maior parte dos grupos ameríndios, a miçanga, produto exógeno, sofrerá um processo de “domesticação” estética para poder ser incorporado na produção dos corpos sem que sua alteridade seja aniquilada. O poder de agência do enfeite, produzido a partir de cristalizações do poder agentivo do inimigo, é tanto maior quanto mais feroz for o dono que o possuiu. Esta é a lógica que associa a miçanga aos dentes de presas ou inimigos, itens de uso igualmente muito difundido na Amazônia. Veremos a seguir como o uso da miçanga exemplifica de modo exemplar a lógica relacional indígena.

Miçanga entre os ameríndios Apesar da evidente importância da miçanga para a maioria das populações ameríndias, há também aqueles que se definem por não usá-la. Meisch descreve como o uso de colares de miçanga, principalmente a de cor vermelha, tornou-se uma marca de identificação étnica para as mulheres entre os povos andinos do Equador, em contraste com outros povos andinos dos países vizinhos que não usariam colares de contas, apesar da evidência do uso abundante de contas de spondylus e outros materiais pelos povos andinos em tempos pré-hispânicos. Nos outros países com presença andina, o uso de contas se restringe aos povos amazônicos, onde tanto homens quanto mulheres usam colares de contas, às vezes em abundância, como os xamãs entre os Cofán, Siona, Sibundoy e outros (Meisch, 1998:147-175). Dransart (1998), por sua vez, mostra como o uso do rosário era generalizado entre os Aymara da Bolívia, tendo só recentemente caído em desuso. O rosário tinha sido introduzido pelos missionários desde os primeiros tempos de colonização e foi reinterpretado pelos Aymara como amuleto.

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Na América do Norte, a presença e importância da miçanga para as relações entre povos vizinhos e europeus recém-chegados foi bem documentada. O caso do wampum é paradigmático. Durante o século XVI, comerciantes holandeses e ingleses começavam a chegar na costa americana, à procura de peles, especialmente de castor. Para tanto, chegavam armados com grandes provisões de miçanga. Durante um tempo a miçanga se tornou “a regular currency of trade” (Graeber, 2001: 119). Houve uma tentativa de produzir miçanga em Massachusetts, até que ela foi substituída pelo wampum, conta já tradicionalmente produzida pelos povos de língua Algonkin da costa. O wampum era, por sua vez, trocado por peles com os povos iroqueses. Graeber descreve como estes largos cintos wampum (feitos das contas ou de miçanga) ganhavam vida própria no ritual e na política dos povos iroqueses. Os wampum eram desfeitos e refeitos na forma de diferentes tipos de colares ou cintos, dependendo do uso que se faria deles. O recebimento dos nomes dos falecidos era central na sua cosmologia e organização social, pois, ao receber o nome, parte das qualidades do falecido passavam para o nomeado. A cerimônia de nomeação consistia em “pendurar o nome no pescoço” na forma de um wampum. Cada clã possuía assim uma coleção de colares-nomes correspondendo ao estoque de nomes de cada clã. Outro uso do wampum remete ao sistema de vendeta iroquês no qual toda morte precisava ser vingada. O uso do wampum surge neste contexto como instrumento tanto de declaração de guerra quanto de paz. Para avisar o aliado de uma declaração de guerra, um cinto de wampum, tecido com motivos em branco e violeta, era enviado. O wampum servia de garantia para a veracidade das palavras a ele ligadas. If a message had to be sent, it would be spoken into belts or strings of wampum, which the messenger would present to the recipient. Such belts or strings were referred to as “words”; they were often woven into mnemonic patterns bearing on the import of the message (Graeber, 2001:125).

Uma vez acusado, a única maneira do inimigo se livrar da vingança era o envio de quantidades generosas de wampum. Somente o wampum tinha a capacidade de curar a raiva causada pelo luto. Esta capacidade está ligada ao fato de o wampum pertencer a uma categoria de objetos, considerados como incorporando vida e brilho. Estes eram trocados entre grupos que viviam a longas distâncias e eram solicitados, particularmente, por aprendizes de xamãs. O wampum não era usado como adorno; era guardado para ser usado somente em situações de importância política. Outro contexto americano em que a miçanga encontrou solo fértil para o desenvolvimento de uma verdadeira arte da miçanga foi entre os índios das planícies que possuíam a tradição de bordar motivos nas roupas de couro com os espinhos do porco-espinho (quillwork). Estas vestimentas passaram a ser bordadas com miçangas. Roupas pesadas, cobertas de contas, constituíam as rique-

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zas das famílias Lakota. Ao se tornar famosa, este arte passou rapidamente a ser procurada pelos colecionadores desde o começo do século XX. Emil Her Many Horses, índia Lakota (uma subdivisão dos Sioux), conta que entre os Dakota as avós produziam roupas cobertas de bordados de miçanga para as netas primogênitas da família. A produção de uma vestimenta podia durar até cinco anos. A autora narra a história de sua própria avó, nascida em 1909, que, ainda criança, vendeu sua vestimenta para a “Indian Agency”: “Why did mama let me sell my dress? I was crazy!” my maternal grandmother, Grace Pourier, recalled regretfully... The dress had a fully beaded yoke (the piece of the dress that is fitted around the neck and the shoulders) and was made of tanned hide (also called buckskin). This style of dress was the height of fashion among the Lakota after 1870, during the time that Native people began to be confined to reservations and reserves in both the United States and Canada (EHMH, 2007: 17).

A avó completa a descrição da peça perdida com uma qualificação do tipo de contas usadas. Estas eram em “cut glass”, o que aumentava sua qualidade brilhante. Até a sola do mocassin era “fully beaded”, coberta de miçanga (idem). Percebe-se, aqui, uma das qualidades das contas que responde pelo sucesso da miçanga em tantas regiões do mundo: sua qualidade cintilante, brilhante e imperecível. A riqueza em miçangas e a importância que estas adquiriam na vida dos índios das planícies se explica parcialmente por fatores históricos: a competição dos invasores europeus pela aliança com os índios e pelo comércio do couro. The earliest European trade beads – which arrived in the western Great Lakes region about 1675 and would eventually reach the Plains in the 1800s – were the large pony beads. Around 1850, a smaller bead, referred to as “seed bead”, was introduced. This marked the start of a new period in beadwork, as the smaller-sized beads enabled dressmakers to do elaborate work that covered more of the dress (idem).

Sioux beadwork reached its highest elaboration from the late 1800s to the early 1900s. During confinement on reservations, dressmakers found time to create what came to be known as the ‘traditional Sioux style’ of dress” (EHMH, 2007: 48-49).

As afirmações de Emil Her Many Horses realçam a relação entre a explosão artística das artes da miçanga e o confinamento dos indígenas em reservas. Neste sentido, a autora associa a miçanga, extensão da presença dos colonizadores brancos, ao começo do fim de uma tradição guerreira. Janet Catherine Berlo, por outro lado, comenta como até hoje, para homenagear os atos de coragem dos seus maridos e irmãos, as mulheres Sioux bordavam e pintavam cenas de guerra sobre suas vestimentas. “By wearing the battle dress I recognize and honor these sacrifices” (in EHMH, 2007: 139) afirma uma mulher, usando um vestido no qual tinha bordado com miçanga cenas de guerra para homenagear seu marido, ex-combatente do Vietnam.

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Nas terras baixas da América do Sul, o tema da miçanga foi, até recentemente, pouco estudado7.Na região das Guianas, o comércio em miçanga data dos primeiros anos de contato com os colonizadores. A presença da miçanga nas redes de troca da região das Guianas foi notada por Catherine Howard entre os Waiwai (2000), Lucia Van Velthem entre os Wayana (2000). A rede extensa de intercâmbio entre os indígenas das Guianas e os saramakas, ex-escravos que se refugiaram nas florestas guianenses, levou a miçanga para regiões afastadas do convívio imediato com a vida das cidades. A antiguidade da presença de artefatos feitos com miçanga é atestada por Van Velthem:

7. Desenvolvo, desde 2006 (Bolsa Legs Lelong) uma pesquisa comparativa sobre o tema da miçanga. Esta pesquisa resultou em um projeto de exposição em parceria com o Museu do Índio (FUNAI, Rio de Janeiro). Desde 2009, diversos subprojetos de pesquisa ligados ao Museu têm desenvolvido pesquisas sobre o tema, que vieram enriquecer o conhecimento sobre esta temática entre as populações indígenas do Brasil.

Le pagne de perles de verre, une parure féminine, est présent parmi d’innombrables peuples indigènes de langue carib et aruak de la région nord-amazonienne. Mentionné dès le XVIIe siècle, à la fin du siècle suivant, le Luso-Brésilien Alexandre Rodrigues Ferreira receuille parmi les Wapixana et les Makuxi du Rio Branco deux des plus anciens pagnes qu’on puisse trouver dans les musées européens (17821792) (Van Velthem, 2008: 168).

Enquanto matéria-prima conquistada sobre o exterior, a miçanga pode ser vista sob a ótica dos troféus de guerra, e uma relação com os colares feitos com dentes de caça ou até inimigos humanos se impõe. Os Kaxinawa estabelecem esta relação de modo claro e direto: ou se segue o “caminho da miçanga” (manendabanã) e, neste caso, se chegará entre os inimigos inka e/ou entre os brancos, ou se segue o “caminho dos dentes” (xetadabanã) e se chega entre parentes, outros grupos indígenas. Como demonstrou Chaumeil (2002: 120) para os Yagua, que usavam colares com dentes de inimigo ou de onça, estes colares de dentes são “bens exógenos transformados”, partes vitais dos inimigos que são incorporadas para aumentar a produtividade interna, como o são, no registro cosmológico, quase todos os artefatos na maior parte das sociedades ameríndias. Para os Yekuana, segundo David Guss (1989), e para os Wayana, segundo Van Velthem (2000), todos os motivos e técnicas foram conquistados e roubados de inimigos sobrenaturais, seus proprietários originários, e a estética consiste em sua tradução estilística: as forças do inimigo são controladas e introduzidas através de uma incorporacão que os redefine, transforma, para que possam ser postos a serviço da sociedade. Vemos aqui uma continuidade lógica com o canto do inimigo que canta no homicida entre os Araweté (Viveiros de Castro, 1986; 2002) e o tratamento dado ao sangue do inimigo que aumenta o poder reprodutivo do guerreiro wari (Vilaça, 1992, Conklin, 2001). Existe uma relação entre a fertilidade das mulheres e o sangue do guerreiro, assim como os dentes dos inimigos yagua garantem, ao modo das cabeças reduzidas dos jivaro (Taylor, 1985), uma descendência ao guerreiro e ajudam na fertilidade das plantações das mulheres. Os Huicholes mexicanos também atribuem um poder agentivo à miçanga e elaboraram uma arte e mitologia a respeito da miçanga que se aproxima do significado da miçanga para os Kaxinawa. Kindl analisa a atribuição de eficácia ritual às qualidades das contas que são apreciadas por causa da sua dureza, vivacidade e claridade, seu brilho. Cito:

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Parce qu’il permet de “voir les choses clairement”, le nierika (shamane) détermine les critères esthétiques huichol. Ainsi, par analogie avec la capacité perceptuelle qu’il confère, est belle toute chose transparente, translucide, cristalline, brillante, qui a de l’éclat, mais aussi qui ressort bien, qui est précise et nettement contrastée; en résumé, toute chose claire au sens propre comme au figuré. Ces notions se rattachent à l’idée de l’art du nierika chez les Huichol (où l’art est) un “instrument pour voir”. [l’importance de La] lumière et de l’éclat nous permettent de comprendre le goût particulier des Huichol pour les couleurs vives. Pour définir la beauté, les catégories linguistiques principales de la langue huichol utilisent les termes chititemaiki ou chipitemaiki, que l’on traduit par “c’est beau” ou “c’est magnifique” (Kindl, 1997: 49).

Sur le plan sémantique, ces qualificatifs de beauté se déclinent à partir de la racine temai, se référant à une personne jeune ou à un objet lisse et neuf. Ces termes évoquent la figure mythique de Kuka Temai, le Jeune Homme Perle, l’un des ancêtres chasseurs ayant réalisé le premier pèlerinage à Wirikuta, la terre du peyotl. Quant au terme kuka, il désigne les perles de verre utilisées pour décorer de nombreux objets: instruments cérémoniels, offrandes, bijoux ou artisanat touristique. Au dire de nombreux Huichol, “les perles signifient la vie”, idée explicitée notamment par la conception de la naissance: la force vitale ... s’introduit dans le corps du nouveau-né, tandis qu’une contrepartie de la personne vivante, appelée “perle” (tauka), reste au ciel; cette perle “se dessèche” ou “se fane” lorsque la personne meurt (Preuss, 1998 [1908]: 285). Ainsi, pour les Huichol, est beau ce qui est vivant. Les perles s’identifient également soit à des grains de maïs, soit à des gouttes d’eau (Kindl, 2005: 247).

Igualmente para os Kaxinawa, a miçanga é associada às qualidades de durabilidade, brilho e claridade, e vida durável. As mulheres solicitam suas qualidades em canto ritual para obter boa visão para tecer e pintar desenhos. No caso de invocar a dureza da miçanga, procura-se passar esta qualidade aos dentes. As contas preferidas são as de cor branca. Com estas produzem-se faixas que sustentam as juntas nos pulsos, abaixo dos joelhos e nos braços.

8. A chegada da miçanga chinesa tornou o acesso à miçanga muito mais fácil e fez com que a produção de enfeites com miçanga aumentasse. Atualmente, constata-se o fenômeno da volta da miçanga aos centros metropolitanos na forma de braceletes feitos por mãos indígenas e com motivos indígenas, vendidas em eventos ecológicos e de nova era, que contam com a presença de representantes indígenas.

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No Caminho da Miçanga

Os Kaxinawa usam a miçanga para a confecção de colares de diversas cores para a decoração diária de mulheres e crianças. Durante as festas, o número de colares aumenta; crianças doentes os usam em maior quantidade que crianças saudáveis. Os Kaxinawa contam que “antigamente” as crianças usavam pesados colares de contas cruzando seu peito, como o fazem até hoje muitos grupos amazônicos recém-contatados. Em função das mulheres valorizarem menos os colares de sementes coletadas na floresta do que os de miçanga obtidas através da troca com estrangeiros, usavam menos colares do que gostariam. Contas brancas são usadas para produzir longas fileiras que são enroladas nos pulsos, braços, tornozelos e joelhos. Outro uso da miçanga, de origem recente, é a pulseira tecida com desenho. Esta pulseira coexiste com pulseiras tecidas em algodão, igualmente com motivos. As mulheres fazem estas pulseiras com vívidos motivos tirados do estoque de motivos kaxinawa (kene kuin) e as dão de presente aos namorados, maridos ou amantes. Este tipo de pulseiras não era, até recentemente, comercializada8.

Foi no contexto da tradução dos cantos do nixpupima, rito de passagem para meninos e meninas em fase de trocar os dentes, que as “contas de vidro” chamaram minha atenção para uma reflexão nativa sobre o fascínio e sedução pelo Outro, desde a mítica figura do Inka ao atual nawa, o estrangeiro não-indígena. Nos cantos rituais as contas ligam em cadeia associativa conceitos-chave como dentes, olhos, sementes, metal, ossos, milho, kene (desenho), Inka e yuxin (princípio vital, alma, espírito) (Lagrou, 1998). O tema de fios ou desenhos tecidos com miçanga como caminhos que ligam mundos distintos9 aponta para a materialização dos laços com as várias faces da alteridade estabelecidos pelos Kaxinawa hoje em dia, incluindo aí o fenômeno das fronteiras permeáveis entre grupos e pessoas em constante fluxo e “estar entre”; pessoas que, no entanto, não se esquecem da importância de tecer caminhos, de dar nós e retornar pelos mesmos caminhos que vieram. Os mitos que coletei associam o “desejo pelas contas” ao perigo de se perder pelo caminho do inimigo, um caminho da morte, ou do tornar-se estrangeiro, um caminho pelo qual não se volta nunca mais. No rito, no entanto, esta situação é invertida. A miçanga se torna uma matéria-prima preciosa que simboliza as características de durabilidade, de vitalidade e de brilho que se quer passar para o corpo da criança. Deste modo, solicita-se ao Inka, no canto ritual, que transforme os olhos da criança em miçanga, assim como seus ossos, que empresta seu material imperecível para constituir o interior de um corpo forte e saudável que não padece facilmente.

9. Em outro lugar analiso a concepção kaxinawa do grafismo como caminhos que ligam mundos (Lagrou, 2007; 2011) e que permitem a passagem, a transformação da percepção do mundo visível para o visionário.

O Inka era dono não dos motivos, mas da arte de desenhar o corpo, e das continhas coloridas, a miçanga. As contas do Inka tinham em comum com as contas do branco seu caráter imperecível e as cores brilhantes. É importante salientar que a associação entre contas e o contato com estrangeiros não é recente, é constitutiva do significado da palavra em kaxinawa para conta, mane, que significa igualmente metal e bens não-perecíveis obtidos dos nawa, estrangeiros, em geral. Por esta razão, o prestígio da miçanga de vidro está intimamente ligado ao desejo do contato e da troca com estrangeiros, desejo expresso também nos cantos rituais e nos mitos. Este intrigante tema da miçanga ilumina bem a relação entre artefatos e pessoas, sendo uma clara manifestação do tipo de síntese que um artefato opera e de como ele pode ser lido como extensão da relação entre pessoas. Neste caso, atribui-se valor estético especial à miçanga pela distinção que a matéria-prima representa, de invocar uma relação com o mundo externo, ao mesmo tempo em que realça e mostra de forma nova, de um outro ponto de vista, motivos que de longe são reconhecidos como kaxinawa. Voltando ao tema das pulseiras, podemos ver que elas são artefatos essencialmente relacionais, fazem pontes entre mundos, entre os rapazes que as usam e

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Fig. 3 | Festa das mulheres pintadas (menire bjôk) entre os Kayapó da aldeia Môjkarakô, Sul do Estado do Pará (2010). © André Demarchi

que às vezes fornecem a própria matéria-prima, e as moças que as fazem e que fornecem o saber do desenho e da técnica. Estes emblemas da relação amorosa ligam os mundos nos quais as jovens lideranças circulam: o mundo da viagem e das cidades distantes, de onde vem a miçanga, e o mundo da aldeia para onde sempre retornam. Os motivos tecidos pelas mulheres, por sua vez, são considerados a “escrita dos yuxin” e remetem ao encontro secreto da desenhista com a jiboia ancestral, dona dos desenhos. Ou seja, tanto por parte dos homens que coletam a matéria-prima, quanto por parte das mulheres que fabricam as pulseiras, estas remetem a relações com um mundo além do mundo indígena, relações estas que têm profundos efeitos sobre o mundo interno das relações de parentesco. Também aqui, como no caso jívaro (Taylor, 2003), vemos operante uma lógica de visibilização e ocultamento de relações com o mundo humano e não-humano que constituem o sentido do eu e a autoestima, o carisma de uma pessoa. Do mesmo modo que o grafismo age ao estabelecer relações entre corpos e pessoas, como filtro ou malha protetora no corpo, guia no mundo das visões, ou armadilha da alma no sonho, os fios de miçanga agem sobre o mundo social, objetificando ou tornando visíveis redes de relações. O acesso à memória social ativada por estas imagens-signos (Severi, 2003) se dá a partir dos cantos ligados aos contextos nos quais os desenhos atuam. Estes novos objetos e imagens que estão sendo fabricados e circulados pelos Kaxinawa de ambos os lados da fronteira nos fornecem informações relacionais e afetivas (Bateson, 1972). Trata-se de verdadeiros objetos relacionais, se levarmos em conta que o próprio ser da arte ou do agir no mundo pelos Kaxinawa sempre foi movido pelo fascínio pelo outro, significando um processo de predação, incorporação e transformação do que era do outro. Todo mito de origem de imagens ou artefatos refere a esta origem exógena, fato este que explica sua ”eficácia estética”, sua aura afetiva e sua capacidade de agir até certo ponto “por conta própria”.

Fig. 4 | Mulher Kaxinawa © Deborah Castor

Na introdução ao catálogo Iconoclash, Latour mostra como a civilização ocidental teve, desde seus primórdios, problemas com a figura da mediação: quando “a mão que produz” as imagens se torna visível, a veracidade da revelação, seja ela religiosa ou científica, é questionada. O paradoxo se coloca do seguinte modo: “ou você faz ou é feito”. A procura do acesso não mediado a Deus ou à verdade é o motor da história religiosa europeia. Como se pode revelar a mão humana presente na fabricação do ídolo e ao mesmo tempo afirmar que o ídolo é deus? (Latour, 2002). Os ameríndios não estão nem um pouco interessados em eliminar a mão que faz; pelo contrário, no que segue pretendo mostrar que visam multiplicar em vez de ocultar essas mãos mediadoras, mostrando como todo produto, seja ele um artefato ou um ser humano, é o resultado de múltiplas mediações e relações. A problemática que induz aos iconoclasmos europeus não se coloca aqui. Em vez da questão de saber se o ícone é ou não um ídolo, coloca-se, aqui, a questão de indexicalidade.

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E é esta a característica que mais fascinava Lévi-Strauss na arte por ele considerada grande arte, que poderia ser encontrada tanto entre os grandes mestres da Renascença quanto entre os escultores da Costa Noroeste dos Estados Unidos. No primeiro capítulo do Pensamento Selvagem lemos que para se ter arte tem que haver “resistência”, é preciso ver a mão do artista lutando contra a resistência da matéria ou contra a irrepresentabilidade do invisível. A visibilidade da mediação humana na origem do artefato representa, para Lévi-Strauss, a força da obra de arte pré-moderna. O que interessa reter por ora da contribuição lévi-straussiana ao debate sobre a agência dos artefatos entre os ameríndios é esta ideia do fazer, da mão do artista ou do feiticeiro que faz. Como também ilustrou Taussig (1993) em Mimesis and Alterity, quanto mais você revela os truques necessários para convidar os deuses para a cerimônia, tanto mais forte é a certeza de que as divindades estejam presentes. Ou, em outras palavras, “de alguma maneira ou outra, a pessoa pode se proteger de maus espíritos ao retratá-los”, o que vem a ser que é através da cópia, da imagem, que se ganha poder sobre o modelo. Os Kaxinawa se interessam muito em saber como as coisas são feitas, quem é o dono, quem plantou as árvores que produzem os frutos que comem e os materiais que utilizam para produzir artefatos. Com relação aos objetos trazidos das grandes cidades pelos visitantes, estas são perguntas insistentes, o de saber como e onde são produzidos. Todo objeto é um artefato e foi, portanto, feito por alguém. O artefato aponta para uma relação. As substâncias utilizadas possuem uma agência própria que deriva do laço que os liga de forma permanente a seus ibu, aquele que as fez, as engendrou. Essa ideia é explicitada no nixpupima, rito de passagem de meninos e meninas. Todos os itens utilizados na remodelagem dos meninos devem ser devidamente cantados para garantir a presença dos seus donos: a água, o milho, a tinta utilizada para enegrecer os dentes, a samaúma de onde serão cortados os bancos, as ervas medicinais com os quais os meninos serão banhados.

Fig. 5 | Menina Krahô

O foco de interesse do ritual está nos dentes e nos ossos das crianças. Os ossos precisam crescer de forma rápida e vigorosa como uma planta de milho. Os dentes, endurecer como um grão de milho. Na teoria da concepção kaxinawa o sangue da mãe formará a carne e a pele da criança, enquanto o sêmen formará os ossos. Sêmen e leite materno são o que sobrou da caiçuma de milho feita pelas mulheres. Aquilo que fica na barriga do homem, depois de tomar a caiçuma, são as “sementes”, o sêmen do milho. Ficam ali para mais tarde “se tornar gente”. Quando guardadas nas vigas das casas são ditas morar em famílias, com nomes próprios pertencendo às metades.

© Ana Gabriela Morim

As sementes produzirão os ossos, olhos e dentes do bebê e pertencem ao reino do Inka. É aqui que entra o tema da miçanga; ela é onipresente no canto ritual kaxinawa. Contas estão por toda parte, constituindo a estrutura que sustenta o corpo, assim como decorando-o. A miçanga ilustra claramente que ao cons-

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truir a identidade através da tradução e incorporação estética da alteridade, é de crucial importância que esta não é nunca aniquilada. No caso kaxinawa, a agência desta alteridade não é nem controlada, nem domesticada, como fica claro nos cantos que invocam os donos da miçanga, os Inka, mas capturada através da sedução estética. Todos os donos das substâncias utilizadas no ritual são chamados pelo seu canto, seu nome, seu desenho, são convidados para a festa para alegrá-los, para que colaborem voluntariamente, fazendo com que seu yuxin permeie o produto de sua agência, dando a ele substância e vigor. Uma tinta não cantada será pálida, uma pena que cai no chão quebradiça. Miçangas presentificam o que há de imperecível no e sobre o corpo. Os cantos dizem que os ossos são feitos de inkan mane (miçanga, metal do inka) e de xeki bedu (olhos, sementes de milho), alimento prototípico do Inka, roubado em tempos míticos. Olhos e dentes são chamados de miçanga, mane, no canto ritual, pois a intenção é passar suas qualidades de dureza, brilho e durabilidade para estas partes do corpo. No rito de passagem um canto para as meninas diz: “tia, vamos fazer pulseiras e perneiras; espreme remédio de desenho, remédio de desenho nos meus olhos, faz meus olhos como miçanga, meus olhos como miçanga”10. 10. Entre os Krahô constata-se igualmente uma relação entre miçanga, osso e olho: no mito as miçangas são referidas como kenre into (olhinho-miçanga) ou simplesmente into (olho). O mito tem como um dos personagens principais os esqueletos. Isso se deve à dureza, à cor e ao brilho, mas especialmente à sua forma pequena e arredondada, o que aproxima as miçangas igualmente às fezes de lagarta (Morim de Lima, comunicação pessoal).

Com relação aos novos dentes dos jovens visa-se passar para estes a qualidade do grão de milho que endurece rápido, tornando-os duros como miçanga, para que não apodreçam rapidamente. Dentes são considerados a sede da força vital para muitos ameríndios, como Chaumeil (2002) mostrou para os Yagua, que extraíam os dentes dos inimigos para com eles produzirem colares, e que possuem um mito que conta como a humanidade primordial era mole e fraca por causa da falta de dentes. A estrutura invisível interna que sustenta o corpo, sendo a parte mais duradoura deste, é associada ao bedu yuxin, o espírito do olho. Este é o único dos espíritos que habitam o corpo que possui destino post mortem no céu entre os Inka. O canto ritual visa transformar ossos, olhos e dentes em miçanga, uma miçanga plantada no corpo, como sementes que precisam criar raízes e crescer como árvores, do mesmo modo que o espírito do olho foi plantado no coração da criança ao nascer para lá criar raízes. Estas sementes, miçangas do Inka são miçangas do inimigo; as mesmas ou parecidas com aquelas agora obtidas dos brancos, os nawa. Esta incorporação de substâncias e suas qualidades agentivas associadas à alteridade, ao inimigo, aponta para o modelo de predação ameríndio no qual o eu é constituído a partir de capacidades agentivas obtidas de fontes exteriores. Às vezes a obtenção do conhecimento é consentida. Os saberes relacionados ao controle do fluxo do sangue e ao fluxo de imagens e desenho foram doados a uma velha kaxinawa pela jiboia, assim como o foram as contas e a pintura corporal dos Inka, pelo menos em um dos mitos de origem da miçanga ao qual voltaremos.

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Quero frisar, aqui, a sobreposição sistemática de discursos relacionados à produção de artefatos e de corpos. Assim como no caso da pintura corporal, no caso da decoração do corpo com miçanga, dentes e sementes, temos o mesmo entrelaçamento do artefato com o corpo, entre a fabricação interior de um corpo vivo e pensante e sua decoração exterior. Crescente evidência etnográfica está dando força a esta ideia. Assim Van Velthem (2003) mostra como as mesmas técnicas que fazem o artefato fazem o corpo humano, e Overing (1991) mostra a estreita relação entre os colares invisíveis no interior do corpo e os colares de mulheres com muitos filhos e poderosos xamãs. As contas usadas como enfeites exteriorizam os poderes produtivos, encapsulados no interior invisível dos seus corpos. No corpo estes poderes estão igualmente estocados na forma de contas, contas invisíveis, e é o xamã que procura estas contas carregadas de energias e saberes perigosos durante suas visitas noturnas e visionárias às caixas de cristal do céu onde habitam os deuses que as possuem. O trabalho do xamã consiste em limpá-las para que possam servir somente aos objetivos construtivos da vida social, tendo em vista sua origem nos excrementos envenenados da anaconda-tapir primordial. Miller descreve processo similar entre os Maimondê – Nambikwara (Miller, 2007). Entre os maimondê, o destino da pessoa está igualmente ligado às suas contas e colares, de tal forma que o fio da vida pode ser rompido ao romper o fio do colar que se porta no pescoço. Deste modo, se uma mulher não guardou bem seus colares de contas, ela pode adoecer. A cura consiste em uma operação xamanística na qual o xamã recupera as contas perdidas no corpo da mulher que delas descuidou. O caráter de exterioridade das contas de vidro se torna evidente em caso relatado pela autora. Estas, diferentemente do próprio fio do colar e daquelas de coco de tucum feitas pelos próprios Maimondê que são reintroduzidas no corpo do paciente, são usadas pela paciente para fabricar um colar para seu marido. Também entre os grupos pano existe uma relação explícita entre saúde, poder e enfeites. Entre os Shipibo (Colpron, 2004), Kaxinawa, Sharanahua (Déléage, 2009) e Marubo (Cesarino, 2008) o xamã recebe suas coroas, colares e desenhos invisíveis dos mestres quando estes transferem para ele seus poderes. Para os Marubo, os colares de contas de caramujo constituem proteção para crianças, mulheres e homens. Recentemente, os colares brancos feitos de finos discos de caramujo podem igualmente ser feitos com PVC. Chama a atenção o fato de o PVC sofrer o mesmo processo de produção das contas que o caramujo. A conta não vem pronta como no caso da miçanga. O xamã marubo chama a atenção para a diferença entre colares de contas feitas de PVC e colares de miçanga. Se os primeiros podem substituir os de caramujo para uso no cotidiano, os segundos são tidos como produzindo coceira, “alergia”. Este exemplo aponta para a importância do fazer no processo simultâneo de produção de corpos e enfeites.

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Entre os Kaxinawa, pelo contrário, o que vem de fora é que dá força e acesso à cura. Um mito, Bixku txamiya, fala do poder de cura dos colares e enfeites de plumária. Um convalescente abandonado à morte e coberto de úlceras escapa do urubu-rei que quer comê-lo e rouba deste seus enfeites. A palavra para enfeite é dau, que significa igualmente “remédio” e veneno. O dau do urubu-rei deixa Bixku esplêndido, irreconhecível. Crianças com um problema de doença da alma são decoradas com muita miçanga para protegê-las. As contas, aliadas a banhos medicinais e o rosto pintado de urucu serviam para afastar o duplo do animal que estava tentando levá-la. O uso de contas neste contexto é significativo. Para a cura procura-se substâncias que apontam para o poder agentivo do inimigo; nas contas está encapsulado seu poder. Os Huichol e Kuna compartilham com os Kaxinawa o uso da miçanga com fins protetivos. Os poderes dos brancos encapsulados nos objetos por eles produzidos não são patogênicos em si. Você ganha poder sobre o outro imitando-o, incorporando seu poder. Já entre os entre os Desana, os mitos de origem da varíola e do sarampo contam como estas doenças são a manifestação exterior das miçangas que ao terem sido dadas às mulheres indígenas por mulheres brancas, penetraram sua pele e se exteriorizaram na forma de bolhas vermelhas na pele. Aqui o poder contagioso do branco acompanha os objetos que emanam da sua ação (Buchillet, 2000). Entre os Wayana, estudados por Van Velthem, por sua vez, o modo da miçanga agir sobre e no corpo difere tanto dos Kaxinawa quanto dos Desana. O que ressalta é uma ambiguidade explícita. Poderíamos dizer que sua característica quimérica (Severi, 2007), de mostrar na própria estrutura do objeto uma tensão não resolvida, mas constitutiva do mesmo, é aqui enfatizada. Se, de um lado, “as contas europeias não se apresentaram aos indígenas exatamente como algo desconhecido, mas, antes, como uma fonte de re-elaborações a partir de um material que os era familiar” (Van Velthem, 2008: 51), a autora nota, no uso atual do material, um potencial disruptivo: Neste processo, a apropriação indígena de motivos exógenos pode produzir resultados surpreendentes. Os missionários, católicos e protestantes, na intenção de modificar os grafismos dos ameríndios para convertê-los mais facilmente, introduziram desde o século XIX motivos europeus nas Américas. Os indígenas de língua carib das Guianas e do Norte do Brasil reproduzem até hoje nos seus enfeites tecidos de miçanga figuras e cenários em estilo realista, como cachorros, helicópteros, flores em vasos e crianças brincando com balões entre outros, inclusive motivos tradicionais de indígenas norte-americanos. Entre os Wayana, os pamila imirikut, “pinturas corporais dos livros”, constituem uma categoria à parte, porque aparecem nos catálogos de bordado, trazidos pelos missionários norte-americanos instalados no Suriname na metade do século XX. A reprodução destes motivos se limita aos enfeites feitos com miçanga, o que reforça seu caráter exógeno. Por outro lado, do ponto de vista wayana, esta conjunção amplifica os princípios ontológicos e expressivos da alteridade, o que acresce um valor estético ao enfeite (ibidem: 51-52).

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Deste modo, os homens usam cintos de miçanga com motivos listrados que representam ao mesmo tempo o arco-íris, um ser sobrenatural, e a bandeira da Suriname. Van Velthem (2000) fala de “objetos cativos” e da necessidade de domesticar estes objetos. Os objetos feitos pelos Wayana são chamados de “enfeites verdadeiros”, enquanto os objetos feitos pelos brancos são “falsos enfeites” e o serão para sempre, recebendo tratamento diferenciado. As miçangas, por outro lado, são os únicos objetos de origem ocidental a possuir um mito de origem entre os Wayana: originaram-se dos excrementos do pássaro japu (Schoepf, 1976)11. Além do mais, uma pessoa wayana não adornada com seus colares de miçanga é considerada nua, como os macacos cairara. O colar é, assim, um artefato feito pelos wayana com matéria-prima obtido dos inimigos. A miçanga não é para os Wayana um artefato em si, um enfeite, mas a matéria-prima, como uma semente ou uma pena, a partir da qual se produzem artefatos; artefatos quiméricos, que decoram o corpo ao modo indígena, isto é, o decoram com colares, em vez de cobri-lo com roupas. Estes colares e enfeites são feitos de substâncias conquistadas sobre o exterior, onde a miçanga figura como um troféu ao modo dos dentes que muitas vezes acompanha ou substitui. No Xingu, assim como entre os Kayapó, encontramos a mesma onipresença de bandeiras e símbolos de times de futebol nos cintos, no caso dos primeiros, e nas braçadeiras, no caso dos segundos, tecidos com miçanga, o que parece sugerir uma lógica similar àquela praticada pelos Wayana. No mito kaxinawa de origem da miçanga era preciso viajar para longe para encontrar as contas. Um mito conta que miçangas de todas as cores cresciam em uma árvore parecida com a samaúma, que era zelosamente guardada pelos Inka que as plantaram. Outro mito conta como o desejo conflitante de um casal, o dela por contas, o dele por dentes, produziu a separação. Há várias versões, mas o resultado é que ele segue o caminho dos dentes e ela o caminho da miçanga.

11. Em outro artigo (No Prelo, previsto para 2013) empreendo uma análise comparativa dos mitos kaxinawa e wayana da origem da miçanga onde aparece claramente a temática de uma miçanga com poderes e origem controlados pelo xamã, cujo conhecimento de como produzi-la foi perdido para os brancos. Analiso neste artigo o entrelaçamento entre os temas do saber fazer, o conhecimento xamânico e a origem exógena da miçanga. Recentemente Ana Gabriela Morim de Lima coletou um rico material a respeito desta temática entre os Krahô onde aparece a mesma relação entre a miçanga, o mundo de seres invisíveis, a relação com os mortos e com os brancos. No mito apinyé-krahô são as fezes da lagarta gigante que ficava no alto de uma grande árvore que se transformaram em miçanga de diferentes cores. Mitos sobre miçanga que cresce em árvores são encontrados entre os Kaxinawa, Tiriyó, Krahô e Kayapó (onde se trata de arbusto). No mito wayana os pássaros fazedores de miçanga moravam na grande samaúma, morada de poderoso espírito. Também entre os kaxinawa a samaúma é morada de poderosos espíritos e dos espíritos dos mortos (ver Lagrou, 2013).

A mulher não encontrou a família que procurava, mas encontrou as contas na terra dos Inkas: Ela não encontrou a família não, encontrou o Inka, vinha toda bonita. Quando chegou, procurou e achou a miçanga, foi enfiando a miçanga. Depois de enfiar miçanga, dizem que colocou os enfeites de miçanga, se pintou com miçanga. Aí pendurou no corpo todo. Amarrou o corpo com miçanga. Aí se pintou todo com miçanga (com listras na vertical). O nome dela é, aí vem seu canto: Mane tsauani, colocou a miçanga para sentar, inka mane betxia aa, encontrei a miçanga do Inka, mane uinyani, estou vendo conta... Quando começa a cantar manendabana (o canto do caminho da miçanga) canta...

Os Inkas, deuses da morte, são belamente decorados com miçangas. A imagem dos belos mortos se aproxima tanto da imagem dos brancos quanto da imagem dos ancestrais. Ou, dito de outro modo, entre os Kaxinawa os brancos

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são também os ancestrais, eles são “nossa metade perdida há muito tempo” (nawa kuin nukun bais xateni). Uma lógica parecida pode ser encontrada entre os Krahó, onde o herói criador se tornou branco. É através do seu amor pela miçanga e pelo uso único e desconhecido aos brancos que dela fazem que a maior parte dos ameríndios nos dão uma aula sobre a impossibilidade de traçar fronteiras claras e estanques entre o interior e o exterior, entre o eu e o outro. Nos ensinam que o eu é feito de uma incorporação esteticamente controlada de fontes agentivas que vêm de fora.

Conclusão Como hipótese de conclusão desta pequena viagem pelo mundo da miçanga, arrisco uma comparação. Poderíamos dizer que nas tradições ameríndias o modo de incorporar materiais exógenos é estético, enquanto nas tradições de origem africana o modo de incorporação passaria pela consagração ritual. Entre os ameríndios seria a estética que constitui o procedimento ritual por excelência. Assim, no Candomblé, os colares de miçanga comprados nas lojas devem ser preparados ritualmente por meio da manipulação ritual, onde o banho de ervas que lava a miçanga transforma sua agentividade ritual (entrevista com mãe Hilsa Mukalê). Através deste procedimento, contas ordinárias, simples e intercambiáveis, por mais que sejam cuidadosamente escolhidas por causa de sua cor e matéria-prima, se tornam contas únicas, ligadas para sempre ao orixá e à pessoa que as usa em contexto ritual ou no cotidiano, como proteção, debaixo da roupa. O método de individualização e estabelecimento de uma relação única ligando a pessoa aos seus colares de miçanga ao mesmo tempo em que o liga a seu orixá particular é, portanto, da ordem da ação ritual. Nada na aparência do colar torna visível a transformação ritual operada sobre ela. Em termos visuais, o colar antes e depois do ritual não mudou. O procedimento de individualização do laço com estes materiais de origem exógena se dá de modo diferente no contexto ameríndio. Aqui, a incorporação da agentividade estrangeira contida nas contas se dá através de um processo de elaboração estética, que não por isso é menos ritual, mas esta atividade ritual se dá no cotidiano fazendo parte dos afazeres domésticos femininos. As mulheres se encontram horas a fio ocupadas com o fiar e desfiar de colares, com o tecer e desenhar padrões a partir das minúsculas contas que parecem sementes. É a maneira apropriada de combinar os materiais vindos do exterior que permite incorporá-los de tal maneira que possam ajudar a construir um interior, um modo específico de fabricar e decorar um corpo, por dentro e por fora. Se nada no universo ameríndio é criado ex nihilo, todo fazer supõe uma bricolagem com unidades que carregam consigo os laços metonímicos das suas origens. A tecelagem da vida consiste em inserir estas contas e forças exógenas no padrão específico do desenho que com elas se quer fazer apontando, ora para dentro, ora para fora.

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No Caminho da Miçanga

PARA CITAR ESSE ARTIGO LAGROU, Els. No Caminho da Miçanga: arte e alteridade entre os ameríndios. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 18 - 49. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

Recebido em 11/11/2011. Aprovado em 16/03/2012.

Els Lagrou

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“PINTA PRA FICAR BONITO”

o caráter agentivo da pintura corporal Canela por Josinelma Ferreira Rolande

Josinelma Ferreira Rolande é Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão, com Graduação em Educação Artística pela mesma Universidade. Membro do Grupo de Pesquisa Estado Multicultural e Políticas Públicas – UFMA/CNPq.

“PINTA PRA FICAR BONITO”:

o caráter agentivo da pintura corporal Canela Resumo Abordagem sobre a agência dos padrões de pintura corporal Canela. A

prática de pintar corpos foi observada durante o ritual Ketuwajê (ritual de iniciação), o que possibilitou a análise da pintura como uma prática que se insere no processo de fabricação do corpo Canela. Analiso tal prática como uma forma de relacionamento com a alteridade, que ocorre através da incorporação daquilo que o outro tem de melhor a oferecer na construção de corpos bonitos, identificando como, entre os Canelas, a ideia de bonito está articulada à ideia de bem-estar. Palavras-chave Canela, pintura corporal, bonito, agência, alteridade.

“ONE PAINTS ONESELF TO LOOK GOOD”: the agentive role of the Canela body painting

Abstract This is an approach to the agency of the patterns of the Canela body

painting. The practice of painting bodies was observed during the Ketuwajê ritual (initiation ritual), which enabled the analysis of the painting as a practice that takes part in the construction of the Canela body. I analyze this practice as a way of relating to otherness, which occurs through the incorporation of what the other (animal/ plant) has as their best to offer for building beautiful bodies. I also identify how the idea of beauty is linked to the idea of well-being among the Canela. Keywords The Canela, body painting, beauty, agency, otherness.

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“Pinta pra ficar bonito”

Os Canelas, povo Timbira que habita na Terra Canela, localizada atualmente no município de Fernando Falcão – MA, resultam da junção de diferentes povos. De acordo com Panet (2010:23), a aldeia Escalvado reúne os seguintes povos: os Ramkokamekra, os Më mõltümre, os Iromcatêjê, os Xookãmmëkra, os Carëkãmmëkra e os Crôôrekãm Mehkra. O agrupamento destes diferentes povos é também conhecido na literatura antropológica como os Canela Ramkokamekra. Sobre o termo Canela, esta sociedade faz referência unicamente ao modo pelo qual os sertanejos os chamam, sem mencionar nenhum sentido atribuído ao termo. Porém, alguns estudiosos já arriscaram uma explicação a respeito da origem dessa palavra. Nimuedajú (1946) diz fazer referência à serra Canela; por outro lado, Paula Ribeiro (2002) acredita estar relacionado ao Rio Canela (Corda), enquanto William Crocker (1990) associa este termo às pernas compridas dos Canelas e Adalberto L. Rizzo de Oliveira sugere que: O termo “Canella Fina” seria uma referência ao uso como adorno, de uma estreita faixa de algodão amarrada abaixo dos joelhos, o que facilitaria o seu desempenho nas corridas, tornando mais ágeis esses índios (Oliveira, 2002:132).

A tentativa de explicação de Oliveira sobre a origem do termo Canela traz outro elemento que diz respeito à agilidade Canela proporcionada por um adorno. Cabe ressaltar que existe entre este povo uma variedade de adornos corporais utilizados para deixar o corpo forte ou mais ágil. Assim, proponho, neste artigo, uma análise da prática Canela de pintar corpos, demonstrando como a pintura está relacionada com os mundos animal e vegetal e estão articulados à ideia de bem-estar. Nesta abordagem, constatei a impossibilidade de compreender a pintura corporal exclusivamente a partir das referências de estética apreendidas durante a graduação em Educação Artística. Portanto, uma busca por significados possibilitou a reflexão de como a noção de bonito vem sendo construída pelos Canelas, sendo tal noção fundamental para o entendimento das relações que este povo estabelece com a alteridade. Fig. 1 | In toh hôc pó (pintura larga da cara)

Em campo... Ao realizar a primeira visita à aldeia do Ponto, em fevereiro de 2005, para levantamento de dados, observei como as mulheres faziam alguns padrões1 de pintura corporal, principalmente nos ahkraré2, utilizando os seguintes materiais: JANAÚBA (Himatanthus drástica plumel) – chamada pelos Canelas de pau-de-leite. Dessa árvore é retirada uma resina que será aplicada no corpo com talas ou com as próprias mãos, fazendo formas que serão destacadas após fixarem o carvão vegetal, obtendo uma coloração preta. A pintura de pau-de-leite é, de acordo com Abilim Tààmi e conforme observado em campo, a pintura mais utilizada na aldeia.

1. Utilizo a definição de Farias e Silva (1992:115), ao descrever “‘motivo’ como o elemento mínimo e ‘padrão’ como combinação específica de motivos”. 2. Este termo, de acordo com o canela Jojô, significa menino, podendo ser utilizado também para referir-se a crianças de ambos os sexos.

URUCU (Bixa orellana) – a semente do urucu é levada ao fogo com certa quantidade de água para fervura, o que propicia a formação de uma camada de corante vermelho que se desprende da semente. Esse material, com aparência de uma nata, é retirado e, depois de frio, transforma-se em uma massa consisten-

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te. Assim, “na hora de pintar, primeiro é mastigado o coco de babaçu, para misturar o leite com a tinta do urucu para passar na pessoa” (Ivan Pal Catí, 2005). Os Canelas também costumam amassar a semente nas mãos e aplicar o corante no corpo com óleo do babaçu. JENIPAPO (Genipa americana) – a fruta é ralada ainda verde, sendo o sumo misturado com água e depois levado ao fogo até obter uma coloração preta. O líquido é guardado em recipientes para ser utilizado quando for conveniente, sendo aplicado ao corpo com talas finas de folhas de palmeira, as quais possuem uma ponta enrolada com pedaço de tecido ou algodão. A pintura com jenipapo dura por volta de duas semanas, mas é muito rara entre os Canelas, pois, segundo eles, há uma escassez desse fruto na reserva.

3. Esse motivo, traduzido como “pintura larga da cara” é feito principalmente nas moças, mas nelas constitui-se enquanto pintura e não como tatuagem.

Com o auxílio de uma agulha ou outro objeto com ponta de aço, os Canelas fazem tatuagens, utilizando como pigmento o jenipapo. Foi possível observar tatuagens principalmente nas faces das mulheres, onde sua composição consiste no desenho de pequenas linhas paralelas abaixo dos olhos, sendo denominada de In toh hôc po3 (Fig.1). A pintura é uma atividade feminina, cabendo às mulheres pintarem seus maridos e apenas os filhos solteiros, pois segundo José Pires Cahhàl, uma mãe não pode tocar no corpo do filho depois que este se casa, sendo tal atitude vergonhosa para mãe e filho, cabendo à esposa pintar o próprio marido. Antes do período menstrual, às meninas também lhes é permitido pintarem os jovens, contribuindo dessa forma na construção do corpo desse jovem, que tem pretensões de ser, por exemplo, um bom corredor de tora ou um bom caçador. No processo de construção do corpo canela, o sangue menstrual (caprô) é considerado poluente, pois de acordo com Oliveira (2008:69 e 70), As mulheres e seus filhos não podem se aproximar de outras mulheres menstruadas, pois o sangue (caprô) da menstruação pode poluir e enfraquecer o corpo da criança pequena. O homem pode ser poluído pelo sangue da mulher tanto pela relação sexual como por qualquer tipo de contato, por menor que seja.

Além do caprô, sangue feminino, os Canelas possuem também o karõ, “o sangue bom, positivo, não poluente que constrói o corpo do filho” (Panet, 2010:79). Os homens possuem apenas o karõ, enquanto as mulheres são constituídas de caprô e karõ. Belaunde afirma que

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entre uma diversidade de grupos culturais, o sangue é concebido como um fluido que corporifica e atribui gênero às pessoas, ao pensamento e à força, transportando conhecimento a todas as partes do corpo. O sangue opera tanto dentro do corpo de uma pessoa quanto fora dele (Belaunde, 2006:207 apud Panet, 2010:109).

Entre os Canelas, o sangue menstrual opera como fluido maléfico, pois uma mulher menstruada ao tocar o corpo de um mentuwa (rapaz) causa o enfraquecimento do mesmo. Portanto, no processo de fabricação4 desse corpo, que é também a construção de um corpo forte5,geralmente um mentuwa é pintado por sua “avó”. Outra forma de prevenção contra o caprô, conforme Oliveira (2008:72), é a utilização da casca de uma planta (Hõr Curàhti ka) que é queimada até se transformar em carvão, o qual é passado pelo corpo com o objetivo de impedir a entrada do líquido poluente. Durante o trabalho de campo identifiquei que os ahkraré (meninos pequenos) e as mekupryré (meninas pequenas) – aqueles que ainda não se tornaram mentuwa (rapaz) e mekupry (moça) – têm o corpo pintado com maior frequência. Foi a partir da observação dessas pinturas que questionei o significado da pintura corporal Canela. E, nessa busca por significados, tudo que consegui foi colecionar algumas falas onde o “ficar bonito” é posto em destaque: Pinta pra ficar bonito. (José Pires Cahhàl, 2005) Pra cantar pinta, pinta pra ficar bonito, não vai ficar feio pra cantar (Francisquinho Tep Hot, 2005).

Em uma das visitas à aldeia, pedi para tirar a foto de uma mekupryré. Rapidamente sua mãe pediu para esperar, dizendo: “deixa arrumar menino pra ficar bonito”. Depois de alguns instantes a menina saiu de dentro da casa, ostentando ao longo do corpo o desenho composto de linhas paralelas, elaboradas com urucu. E, logo em seguida ouvi o ket-ré (avô) da menina falar:

4. Parto da ideia de fabricação assim descrita por Eduardo B. Viveiros de Castro (1979:41), ao referir-se ao corpo yawalapiti: “a natureza humana é literalmente fabricada, modelada pela cultura. O corpo é imaginado, em vários sentidos, pela sociedade. [...], falo em fabricação do corpo ao pé da letra: traduzo o verbo / uma -/, ‘fazer’, ‘produzir’, enquanto atividade humana, intervenção consciente sobre a matéria”.

5. “A elaboração da corporeidade entre os Ramkokamekra é realizada por meio de duas categorias. A primeira diz respeito ao cuidado e à precaução em manter o corpo fortificado e livre de substâncias poluentes, entendida pela expressão êmica – corpo forte. A segunda é quando este corpo já está enfermo e debilitado, seja pelo descumprimento de um resguardo, seja por descuido de comportamento, o que pode vir a acarretar a entrada de substâncias poluentes no corpo, é o que eles denominam de um corpo fraco” Oliveira (2008:19).

A pintura nas crianças é pra poder crescer mais depressa, é porque diz que cheiro de urucu aumenta. Uma pessoa que trata bem do filho, da família, é assim mesmo, tem que pintar pra não pegar doença (2005).

Ao pensar que a pintura acelera o crescimento e protege as crianças de doenças, concluo que é pintando o filho, quase que diariamente, que a mãe vai fabricando um corpo saudável. Assim também observou Demarchi (2009:2), acerca de tal prática entre os Kayapó: “o corpo é uma matéria trabalhada ao extremo pelos Kayapó, do nascimento à morte, como um processo de hu-

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manização, embelezamento e endurecimento”. Na construção do corpo canela, a pintura nos ahkraré e mekupryré é, normalmente, executada de forma rápida, sem maiores cuidados nos traços, porém obedecendo aos padrões de pintura que competem aos mesmos. A falta de cuidado nessas pinturas não diminui sua eficácia, uma vez que, constantemente, são renovadas. Lagrou (2007:51) também destaca, como no rito de passagem Kaxinawa, que as pinturas nas crianças, realizadas com pouca precisão, agem com mais eficácia sobre seus corpos. Ressalta, ainda, o corpo Kaxinawa como resultado de uma modelagem e fabricação coletiva, sendo tal processo uma preocupação dos parentes próximos. 6. Não indígenas, que aprenderam com os próprios canelas a eficácia da pintura.

Observei em campo, que quando algumas crianças chegavam doentes na enfermaria, acompanhadas de suas mães, as auxiliares de enfermagem6 não hesitavam em chamar a atenção da mãe, se a criança não estivesse pintada, por considerar uma expressão de falta de cuidado: “vocês nem pintam mais as crianças!”. Essas observações levaram-me a perceber que a pintura não somente objetiva deixar os canelas bonitos, como também proteger as crianças de doenças. Então, o que é o bonito para os Canelas?

O bonito que faz bem [...] a “beleza”, a busca de um sentido de harmonia, uma ordem que pudesse ser compreendida, encontra-se entre os anseios mais profundos do ser humano (Ostrower, 1983:301).

Fig. 2 | Mehkajcàrà hôc (pintura atravessada / pintura de bacaba)

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Fig. 3 | Tê-rê hôc (pintura do carrapato)

A colocação do termo beleza, entre aspas, pela autora acima, sugere a incerteza em denominar essa busca por uma ordem compreendida. Não penso que o belo/sentido de beleza seja inato ao ser humano, mas uma construção cultural, pois como apontou Geertz (2009:178): “o dito ‘sentido de beleza’, ou seja lá que nome se dê [...], não é menos um artefato cultural que os objetos e instrumentos inventados para ‘sensibilizá-la’”. Entre os Canelas, utiliza-se o termo impey para referir-se a algo positivo, podendo ser traduzido por “estar tudo bem/estar bonito”. Portanto, quando dizem que pintam para ficar bonitos, entendo que a pintura corporal ajuda a manter a ordem/o bem-estar, principalmente quando padrões de pintura são utilizados de acordo com a classe de idade e o sexo de cada indivíduo. Dieckert e Menhringer (1989:15), em sua estada entre os Canelas, registrou 86 diferentes padrões de pintura corporal relacionados à corrida de tora: Entre as 86 diferentes pinturas corporais, que puderam ser colecionadas em forma de pintura em papel pelos próprios índios e que, parcialmente podem ser comprovadas através de fotografias, se encontram 67 pinturas corporais (18 para homens/49 para mulheres), que podem ser usadas especialmente para as corridas de tora. O interessante, nesse caso, é que cada nome de pintura frequentemente é originária do mundo animal ou vegetal (por exemplo: Mambia – espécie de macaco; Jatobá – árvore).

Ao longo da minha vivência em campo com os Canelas, o número de padrões de pintura observados foi de, aproximadamente, vinte. Porém, nesse número pequeno – se comparado aos 86 coletados por Mehringer – foi possível perceber

Fig. 4 | Mẽhkrahtetet pi hôc (pintura atravessada (pintura da mãe do bebê)

Fig. 5 | Xep-ré jará hôc (pintura da asa do morcego)

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a existência de padrões específicos para as crianças, jovens e adultos. Em uma ocasião, José Pires Cahhàl alertou, ao observar um jovem pintado, que aquele não era o adorno adequado, pois ainda era muito jovem, sendo aquela pintura própria para pessoas mais velhas, bons corredores e guerreiros. Com a ajuda de Jôjô (Valdemar Guukiet), compreendi que para ser bom e ter a permissão de utilizar uma determinada pintura, seria necessário passar pelos rituais de iniciação Ketuwajê e Pepjê, pois durante esses rituais, os jovens “aprendem o que querem ser, se trabalhador, pajé, corredor, caçador...”. Foi durante o ritual Ketuwajê (2005) que verifiquei uma variedade de pinturas nos corpos dos não iniciados, pois os jovens reclusos – conforme observado nos dias 18 e 19 de junho de 2005 – tinham em seus corpos apenas os desenhos de linhas. Os garotos pertencentes à metade sazonal Kamakrá estavam pintados com linhas verticais, e os reclusos da metade Ahtykamakrá com linhas horizontais. Esses traços, feitos com urucu, ali funcionavam apenas como um símbolo para distinguir grupos (metades sazonais). Com exceção dos jovens ketuwajê, quase todos estavam pintados para aqueles dias de festa. Dessa forma, foram registrados durante o ritual cinco padrões utilizados pelos adultos corredores de tora: mehkajcàrà hôc (pintura atravessada/pintura de bacaba – Fig. 2), ih hôc xwah hi (pintura de cipó escada de jabuti), mehkàpi hôc (pintura do homem adulto), tep hôc (pintura do peixe) e rohti xwahnã hôc (pintura de dente de sucuri); dois padrões para as moças: mekupry hôc (pintura de moça) e tê-rê hôc (pintura do carrapato – Fig. 3); uma pintura para

Fig. 6 | Hàkà hôc (pintura da jiboia)

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Fig. 7 | Kagã hôc (pintura da cobra)

as mulheres que têm um ou dois filhos: mehkrahtetet pi hôc (pintura da mãe do bebê – Fig. 4) e dois para as crianças: ron hôc krãh k’a (pintura da casca da macaúba) e me hôc pó (pintura mais larga). Além destes, existem outros padrões que podem se utilizados por todos7. O interessante, como afirma Dieckert e Mehringer (1989), são as relações de alguns padrões com os mundos animal e vegetal. São essas relações que também possibilitam compreender esse “ficar bonito” que se confunde ou se funde com a ideia de bem-estar. Sob essa ótica, o padrão xep-ré jará hôc (pintura da asa do morcego – Fig. 5), que pode ser utilizado por homens e mulheres, não pode ser identificado apenas como uma sequência de triângulos, ou como uma tentativa de representação de um morcego, pois antes de denotar, tem pretensões de agir, adquirindo-se as características positivas do referido animal, conforme relatou Beato (2007): “pra canela, diz que morcego fica de cabeça pra baixo e isso faz bem pra barriga, ele não tem problema de estômago, por isso nós pintamos com essa pintura de morcego”.

7. Todos os desenhos que demonstram os corpos pintados foram elaborados por João Carlos Pimentel, já os fragmentos dos padrões de pintura foram por mim elaborados, para tornarem mais claros os motivos que formam cada padrão.

No início da minha pesquisa, tendi a rotular a pintura corporal Canela como um “texto visual”, mas o aprendizado de algumas palavras na língua, mais especificamente o nome das pinturas com seus respectivos significados permitiu-me entender a agência dessas pinturas. Isso é confirmado por Heloisa Fénelon Costa, em seus estudos sobre as representações visuais dos Mehináku, ao destacar a importância do aprendizado das palavras para a compreensão dos aspectos socioculturais dessa sociedade.

Fig. 8 | Rōrkà na me ipihôc (pintura da casca de coco babaçu) © William Crocker, 1960

Fig. 9 | Ih hôc xwah hi (pintura atravessada (pintura do cipó escada)

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[...] o desenho ornamental pode constituir um fragmento das “palavras” que concernem aos seres do Mundo, aludindo, por exemplo, a detalhes da morfologia dos animais [...] (Costa, 1988:17). 8. Os partidos recebem o nome de Hàká (jiboia – Boa constrictor), Xêp-ré/Tê-ré (morcego – Artibeus sp. / carrapato – Rhipícephalus), Xon/Xewxêt-ré (urubu – Sarcoram phus papa / arraia – Potamotrygon laticeps), Awxêt (peba – Euphractus sexcenctus), Khêt-ré (periquito-estrela – Brotogeris sanctthomae) e cupē (o não Timbira, o estranho)..

Entre os Canelas, antes de aludir, existe a pretensão de ser ou ter aquilo que o animal ou vegetal possui de melhor, daí a utilização de pinturas. Exemplo disso foi a referência feita por Jôjô ao agrupamento dos meninos no pátio – “é como se fosse uma grande tribo de animais. Tem xep-ré, awxêt, cupẽ...” 8.Os jovens participavam do ritual Pepjê para receber, individualmente, uma pintura referente ao partido (grupo do pátio) ao qual pertencem. O intrigante nessa “tribo de animais” é a presença do cupẽ (o não Timbira, o estranho, o de fora), sendo esse o termo também utilizado para se referir aos ocidentais. Aqui é inserido um OUTRO, em um grupo de OUTROS que, provavelmente, possuem qualidades que interessam aos Canelas na construção do ser canela. Como afirma Fausto: os povos indígenas “em vez de coisificar o inimigo”, qualificam-no e o individualizam (Fausto 1999 apud Lagrou, 2007:61). Lagrou, falando dos Kaxinawa, contribui para o entendimento do modo como os povos indígenas relacionam-se com a alteridade: Dito de modo sintético, esta modalidade amazônica de relação implica processos de subjetivação, do tornar-se sujeito, através do processo de tornar-se parcialmente outro, sendo que a subjetividade do eu é significativamente aumentada pelo contato íntimo e a eventual incorporação do outro (seja este um inimigo, espírito, animal ou planta) (Lagrou, 2007:61 e 62).

9. Catsêê-ti-kwëy = estrela-grande-moça, personagem mítico que ensinou aos canelas como colher frutos silvestres comestíveis, nozes e raízes, bem como cultivar vegetais, pois anterior a esse período os canelas alimentavam-se de pau podre e carne seca ao sol (Crocker, 1978:6)

Esse tornar-se outro, pode ser ilustrado com um mito canela que narra a grande “sabedoria” (amyi ya’kre-pey = se automostrar-bem = se autoconhecer = sabido) que esse povo tinha, sendo capaz até mesmo de transformar-se em animais e retornar à forma humana. Mas, devido à intensificação do contato com o mundo dos brancos, “os Canelas perderam sua genérica ‘sabedoria’, perda que também se verificou quando passaram a consumir, cada vez mais, alimentos contendo substâncias poluidoras, introduzidos pela Moça-estrela9, e carne cozida ao fogo” (Crocker, 1978:6). Com a perda dessa sabedoria, os Canelas “tinham, agora, que ‘adquirir’ sua própria capacidade e força, através da prática rigorosa de ‘restrições’” (ibid.:22), sendo os rituais, a pintura, a cantoria, também relevantes nesse processo de busca por essa “sabedoria” perdida. Assim, ser “sabido” (amyi ya’kre-pey), como o próprio termo sugere, é se automostrar bem, isto é, se automostrar impey (bonito). Ao questionar “o que significa a pintura corporal” e obter como resposta “pintar é pra ficar bonito”, compreendi que bonito para os Canelas perpassa também pela apreensão daquilo que o outro tem de melhor a oferecer. Bonito é a aproximação/incorporação da alteridade, pois conforme Lagrou (2007:64), referindo-se aos Kaxinawa, o processo de captura da alteridade pode ocorrer de diversas formas, desde a mimese à sedução, pois segundo a autora, ganha-se ascendência ou poder sobre o outro, não através da pacificação das forças selvagens da alteridade, mas por meio de uma aproximação cuidadosa, diminuindo a distância em termos espaciais, cognitivos e corporais (ibid.:64).

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No caso Canela, uma mesma lógica de aproximação cuidadosa com a alteridade é perceptível quando algumas mekupryré (meninas) passam à mekupry (moça), pois estas têm os dentes apontados com faca, ficando parecidos com os dentes do peixe piranha10. De acordo com os Canelas, as moças ficam mais bonitas após seus dentes obterem este formato. Nessa aproximação com a alteridade, trago ainda outros padrões de pintura imbuídos de “intenção, causação, ação” (Gell, 1998). O padrão hàká hôc (pintura da jiboia – Fig. 6 e 7), por exemplo, pode ser utilizado por qualquer indivíduo e, como informou Marinaldo Crôtô (2007), “as pinturas de cobra serve pra ganhar força e velocidade”. Já o padrão jojinti (bem-te-vi) consiste em uma pintura realizada pelas mulheres na região do pescoço, que (assim como o bem-te-vi) faz das mesmas boas cantadoras.

Fig. 10 | © Josinelma Rolande, 2012

10. Uma vez que esta pesquisa encontra-se em processo, ainda não foi possível identificar a agência do peixe piranha e quais as relações que os canelas estabelecem com este peixe, pois sabe-se apenas que dentre os muitos ritos Canela, tem-se o Tep-yalkhwa (Festa do Peixe).

Para ilustrar as relações com o mundo vegetal, tem-se o padrão rōrkà na me ipihôc (pintura da casca de coco babaçu – Fig. 8). Essa pintura do babaçu é utilizada somente pelas pessoas mais velhas, que têm o corpo totalmente carimbado com esse padrão. Beato (2007) relatou que “a palmeira do babaçu dura muito tempo e com essa pintura de babaçu as pessoas mais velha da nossa aldeia vai durar mais. É isso que a gente quer”. Como último padrão a ser mencionado neste artigo – lembrando que o número é ainda maior – tem-se o ih hôc xwah hi (pintura do cipó escada – Fig. 9). Segundo informações de Cornélio Rãrãc (2007), “o cipó é forte, se usa para costurar

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jirau e pra pender madeira e a palha na coberta da casa. Tem muita utilidade”. Portanto, a utilização deste padrão de pintura confere ao adornado as mencionadas características do cipó. Dessa forma, a análise de alguns padrões de pintura aqui mencionados, revelaram a intencionalidade e eficácia na prática de pintar corpos entre os Canela. Dentre as inúmeras falas Canelas que destacam o “ficar bonito” como justificativa para pintar seus corpos, estava implícito o sentido de agir, isto é, como a pintura corporal age sobre os corpos, fazendo-os sabidos, endurecidos, saudáveis, bonitos. Lagrou (2007:85), demonstra, em seu estudo sobre os Kaxinawa, como dar voz à experiência estética (embora silenciosa). No que diz respeito aos Canelas, as conclusões que seguem só foram possíveis quando dei ouvidos a uma experiência que gritava a todo momento: “pinta pra ficar bonito”. A dificuldade em dar ouvidos ao sentido do ficar bonito, expresso na pintura corporal Canela, é fruto de uma investigação que começou com as perguntas inadequadas. Indagava sobre o significado de cada padrão de pintura observado, mas os Canelas não compreendiam o que queria saber. Acredito que um dos passos para se pensar uma antropologia não preocupada com rótulos, classificações, é analisar as práticas de diferentes sociedades no contexto em que estão inseridas, levando em consideração categorias nativas, pois tais discursos podem dizer muito sobre dimensões outras das sociedades as quais nos propusemos compreender. O discurso sobre o “ficar bonito” entre os Canelas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre construção do corpo, implícito na fala de Càhhàl quando nos diz que o cheiro do urucu favorece o crescimento e fortalecimento dos ahkraré. Aqui não é somente a prática de pintar que age sobre corpos, mas a própria matéria-prima é composta de agentividade. O vermelho do urucu, o mais comum, imediatamente atrai a atenção de cada visitante devido a sua onipresença. O próprio índio e tudo que ele carrega são mais ou menos vermelhos com urucu. Seja o que for que ele segure se torna vermelho, assim como alguém vivendo entre eles. A mancha de urucu em uma peça não é considerada sujeira, mas um embelezamento. Qualquer traço de terra em uma refeição é removida ao esfregar e lavar, ainda que ninguém sonhe de atentar isto com a impressão das digitais do urucu. Os índios ficam irritados se pessoas civilizadas lançam comentários sobre o uso do urucu; qualquer pessoa ou objeto cheirando ao pigmento é um objeto de beleza (Nimuendajú, 1946:51).

11. É válido ressaltar que ao utilizar essa palavra, faço referência a todos os sentidos atribuídos a ela pelos canelas, como já demonstrado ao longo deste artigo.

As descrições etnográficas de Nimuendajú (1946), já demonstravam a relação Canela com o urucu, mais especificamente com o cheiro, um cheiro cuja agentividade é entranhar “beleza”11. Crocker também chama a atenção para o uso do urucu entre os Canelas, ressaltando que a pintura de urucu “sugere cuidado familiar e preocupação” (1990:140), sendo tal preocupação também demonstrada por Càhhàl, que adverte sobre a importância da pintura na proteção de doenças, o que confirma a eficácia da pintura corporal Canela. Para finalizar o não concluído, percebo que nas sociedades indígenas – não apenas entre os Jê – tudo é muito interligado, o que torna impossível estudar pintura corporal sem percorrer outras dimensões. Poderia principiar pelo estudo

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“Pinta pra ficar bonito”

das práticas de cura, mas chegaria à pintura. Acredito, desta forma, que o que menos importa é o ponto de partida, pois foi a simples-complexa fala: “pinta pra ficar bonito”, que direcionou esta pesquisa acerca de uma sociedade onde inexiste a palavra arte, mas existe uma vontade de ficar bonito. E, foi a tentativa de situar o bonito no contexto Canela, que possibilitou percorrer e conhecer as relações que este povo estabelece com a alteridade, relação esta que objetiva fazer corpos saudáveis/bonitos.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO ROLANDE, Josinelma Ferreira. “Pinta pra ficar bonito”: o caráter agentivo da pintura corporal Canela. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 50 - 65. Disponível em: http://issuu.com/ revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa. Recebido em 15 de outubro de 2011. Aprovado em 10 de março de 2012.

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Fig. 1 | Mola Kuna

O NASCIMENTO DO DESENHO

uma teoria Kuna do corpo e da pessoa por Paolo Fortis Paolo Fortis

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Paolo Fortis é doutor em Antropologia Social pela University of St. Andrews. Seus interesses de pesquisa incluem Antropologia Americanista e Artes Visuais, além de Mitologia e Cosmologia Ameríndias. Agradecemos a Journal of the Royal Anthropological Institute por permitir a tradução do artigo The Birth of Design. A KunaTheory of Body and Personhood. JRAI, 16(3): 480-495. 2010. Tradução Diego Madi Dias // Revisão Técnica Els Lagrou //

O NASCIMENTO DO DESENHO1

uma teoria Kuna do corpo e da pessoa Resumo O artigo explora o conceito de ‘desenho’ (narmakkalet) encontrado entre os Kuna do Panamá. Demonstra que o conceito nativo de desenho, e sua relação com o corpo humano, é central para a noção de pessoa mantida pelos Kuna. O principal argumento é que o desenho é um atributo do corpo que permite a criação de pessoas por meio da transformação de suas relações com entidades animais. Analisando o caso particular dos ‘desenhos amnióticos’ (kurkin narmakkalet), que às vezes são visíveis nas cabeças dos recém-nascidos, o artigo mostra que os desenhos fornecem uma representação visual da relação entre seres humanos e animais e, dessa maneira, são essenciais para a formação de pessoas entre os Kuna. Para compreender a estética Kuna, é sugerido, precisamos dar atenção ao modo como os ameríndios concebem a pessoa, a como corpos são criados, e às relações estabelecidas entre os seres humanos e os animais. Palavras-chave desenhos, estética, corpo, noção de pessoa, Kuna, sociedades ameríndias Abstract This article explores the concept of ‘design’ (narmakkalet) held by the Kuna people of Panamá. It demonstrates that the native concept of design and its relation to the human body is central to Kuna ideas concerning personhood. The main argument is that design is an attribute of the body which enables the creation of persons through the transformation of their relationship with animal entities. Through analysing the particular case of ‘amniotic designs’ (kurkin narmakkalet), which are sometimes visible on the heads of neonates, the article shows that designs provide a visual representation of the relationship between human beings and animals, and as such are integral in the formation of persons among the Kuna. To comprehend Kuna aesthetics, it is suggested, we need to look at the way Amerindians conceive the person, at how bodies are created, and at the relationships that human beings and animals entertain. Keywords design, aesthetics, body, personhood, Kuna, amerindian societies 1. A pesquisa entre os Kuna se deu entre 2003 e 2004 e foi financiada por uma bolsa de estudos da Universidade de Siena e pelo programa de bolsas de curta duração do Smithsonian Tropical Research Institute. O prêmio RAI/Sutasoma, obtido através do Radcliffe-Brown Trust Fund, permitiu que eu finalizasse a minha tese. Sou grato às pessoas de Okopsukkun, que foram pacientes e professores inestimáveis. Versões anteriores desse artigo foram apresentadas em seminários na Universidade de St. Andrews e na Universidade de Oxford. Agradeço a todos os participantes por seus comentários e sugestões. Agradeço também aos revisores anônimos por seus comentários generosos e por sua ajuda em tornar claros alguns pontos importantes. Quero agradecer a Linda Scott, por aperfeiçoar meu inglês e por sugerir o título, e a Tony Crook, Peter Gow, Nádia Heusi e Margherita Margiotti por seus comentários ao longo de vários estágios deste trabalho.

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O nascimento do desenho

No pensamento indígena, como vimos, a ornamentação é o rosto, ou melhor, cria o rosto (Lévi-Strauss 1972: 259).

Meu interesse nesse artigo é explorar etnograficamente a relação entre self, desenho e ornamentação do corpo entre os Kuna do Panamá. Recentemente, a antropologia tem contemplado a relação entre desenhos, noção de pessoa e o corpo (Gow 1999a; Lagrou 2007; Taylor 2003). Em suas observações sobre os Caduveo do Mato Grosso (Brasil), Lévi-Strauss notou a tensão criativa entre as pinturas faciais e o corpo, sobre o qual, entre os Caduveo, são desenhados padrões geométricos (1955; 1972). Estudando a elaborada pintura corporal das mulheres Caduveo, em comparação com a ‘representação desdobrada’ presente na arte dos índios americanos da costa Noroeste (Boas 1927), Lévi-Strauss sugeriu que a pintura facial Caduveo alude à oposição criativa entre pessoa social e ‘o mero (dumb) indivíduo biológico’ (1972: 259). Em resumo, os desenhos dão visibilidade social ao indivíduo e fazem dele uma pessoa na perspectiva de outras pessoas. Uma grande parte da literatura sobre arte corporal Ameríndia (Seeger 1975; Turner 1980) tende a enfatizar as pinturas corporais, tatuagens, decoração plumária e outras ornamentações como inscrições da sociedade sobre corpos essencialmente naturais (Ewart 2007: 37), buscando a transformação dos corpos em seres humanos completamente socializados a partir de um substrato natural. No presente artigo, sugiro a importância de atentarmos para ‘o caráter intrinsecamente social do corpo humano’ (Turner 1995: 145) mas não como oposição entre um substrato físico comum e modos locais de criação de pessoas. Para além dessa oposição, e em consonância com as teorias etnográficas recentes sobre corporalidade nas Terras Baixas da América do Sul, proponho a compreensão do ‘mero indivíduo biológico’ como um ser que ainda não adquiriu um corpo humano (Vilaça 2002). Dessa maneira, a estética Ameríndia está relacionada a um modo particular de conceber o corpo e suas implicações na vida social. Meu interesse aqui, por meio de uma exploração etnográfica da relação entre corpo e desenho, é tratar da maneira pela qual os Kuna do arquipélago de San Blás, no Panamá, elaboram sua noção de pessoa. Sugiro que a relação conceitual entre corpo, pessoa e desenhos que emerge da etnografia Kuna possa ser estendida para a compreensão da estética Ameríndia, de uma maneira mais ampla. Discutindo a categoria Kuna dos ‘desenhos amnióticos’ (kurkin narmakkalet) 2, que se refere à relação entre recém-nascidos e entidades animais, e analisando a visibilidade e invisibilidade dos desenhos aminióticos no momento do nascimento, argumento que o desenho é um atributo do corpo que permite a criação de pessoas por meio da transformação de suas relações com entidades animais.

2. Utilizo o sistema de transcrição da língua Kuna adotado por Sherzer (2003).

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Pessoas e desenhos Apenas recentemente a observação de Lévi-Strauss acerca da relação entre os desenhos e as elaborações indígenas sobre a pessoa foi considerada e desenvolvida no campo dos estudos amazônicos. Gow (1989) demonstra que os desenhos estão intrinsecamente relacionados ao corpo e seu valor social, e que essas ideias estão disseminadas pela América do Sul. Sugere que examinemos a relação entre o interior e o exterior do corpo com o objetivo de compreendermos a ênfase na decoração da superfície e na aparência corporal entre os povos indígenas amazônicos. Dada a centralidade do parentesco na vida social dos povos indígenas nessa região, Gow (1999a) sugere também que se analise a forte relação entre a criação de desenhos pelas mulheres Piro da Amazônia peruana e o controle de seus fluidos corporais e da fertilidade que cada mulher adquire durante o curso de sua vida. Propondo que a pintura com desenhos desempenhada pelas mulheres Piro é um ‘ato social significativo’, Gow mostra como aprender Fig. 2 | © Margherita Margiotti

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a pintar caminha junto com o desenvolvimento de um controle da mulher, primeiramente, sobre suas próprias capacidades procriativas e, em um momento posterior de sua vida, sobre a fertilidade das mulheres mais jovens. Tanto na Amazônia quanto na Melanésia, etnógrafos têm explorado as maneiras como povos indígenas concebem as relações estreitas entre a ornamentação externa do corpo e as qualidades pessoais. Meu objetivo aqui, no entanto, não é traçar exemplos comparativos entre regiões etnográficas diferentes. Ao invés disso, vou me concentrar em como as pessoas atribuem diferentes sentidos à relação entre a noção de self e a ornamentação corporal, que assume para essas pessoas um lugar central no que diz respeito à noção de pessoa. A partir de uma perspectiva melanésia, Strathern (1979) notou a relação entre self e autodecoração, chamando atenção para as preocupações indígenas em externar as qualidades interiores à pessoa. Analisando como, durante rituais, os nativos de Hagen mostram o que está normalmente escondido - o ‘Eu’ interior - Strathern sugere ainda que uma teoria melanésia da pessoa deve considerar ‘a relação entre apresentação física e qualidades internas’ (1979: 249). Gell (1998) avança na direção proposta por Lévi-Strauss, sugerindo que o caráter bidimensional dos grafismos aplicados sobre a pele e a forma plástica tridimensional do corpo estão relacionados de modo indissociável em sociedades em que a persona social e a subjetividade se apresentam unidas, e Gell sustenta que esse é o caso em grande parte da Polinésia e da América do Sul; assim, decorações sobre a pele são parte integral de pessoas, relacionadas de modo indissociável à sua humanidade, e portanto à sua condição mortal. O papel dos desenhos na vida cotidiana dos povos indígenas, nas etnografias das Terras Baixas da América do Sul, enfatiza tanto a percepção de transformações cósmicas durante a cura xamânica (Gebhaart-Sayer 1986; Gow 1989; Reichel-Dolmatoff 1978) quanto os processos corporais relacionados à fertilidade e procriação, demonstrando a relevância de incorporarmos o conceito de desenho nas noções de pessoa mantidas pelos indígenas (Gow 1999a; 1999b; 2001; Lagrou 2007; Overing 1989). Examinando a relação entre desenhos corporais e experiência subjetiva interior, Taylor (1993; 2003) notou a importância dos desenhos faciais para os Achuar do Equador em expressar uma associação entre a pessoa e uma alma ancestral (arutam). O povo Achuar, que considera a pintura facial de cor vermelha um indicativo de prestígio para homens e mulheres, mantém secreta a identidade de seus aliados místicos; em caso contrário, perdem a proteção e o poder conferido por tal associação. Conhecer uma alma ancestral garante um poder pessoal por realçar uma tensão interna positiva com um inimigo / aliado (um duplo interno) que reitera a força do sujeito. Essa situação dota a pessoa de uma subjetividade intensificada, que consiste em uma saúde realçada, fertilidade e longevidade (Taylor 2003: 238). Recorrendo aos estudos etnográficos mencionados acima, sugiro que, ao examinar os modos como a apresentação corporal é visualmente realçada por meio de desenhos e decorações, os antropólogos deveriam ser mais capazes de apreciar teorias indígenas da pessoa e do self. Como demonstro abaixo, o debate sobre corporalidade Ameríndia e perspectivismo é relevante para as concepções Kuna sobre o corpo e a pessoa, e para o entendimento que mantêm sobre os desenhos. Paolo Fortis

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Corpo

3. Desejo esclarecer que o conceito de humanidade que eu utilizo não implica em um conceito separado de natureza. Os Kuna, assim como outros ameríndios, concebem os seres humanos como uma das múltiplas naturezas que povoam o cosmos, com o qual eles estão em constante interação. Meu objetivo aqui não é discutir as implicações das socio-cosmologias ameríndias para a divisão ocidental entre natureza e sociedade - para tanto, ver o trabalho de Descola (2005).

O corpo tem sido tematizado por muitas etnografias das Terras Baixas da América do Sul nos últimos anos, desde que recebeu pela primeira vez a atenção analítica merecida de Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (1979). Estudiosos da Amazônia se dedicaram à sua complexa concepção e às práticas sociais relativas à sua fabricação (Turner 1980; 1995; Vilaça 2002; 2005; Viveiros de Castro 1979), argumentando que o corpo, para os grupos indígenas, é o veículo essencial para a reprodução da socialidade humana. Ao invés de considerar o corpo como a base sobre a qual a socialidade é inscrita, Viveiros de Castro notou, para os Yawalapíti do Alto Xingu (Brasil), que é a sociedade que cria o corpo (1979: 40). Processos de criação de pessoas, assim, requerem primeiramente a criação de corpos humanos. Além disso, intervenções sociais na apresentação visual externa do corpo são entendidas como parte da criação do corpo em si. Dessa maneira, como foi pertinentemente proposto, a aplicação de decorações corporais é uma “penetração gráfica, física, da sociedade no corpo que cria as condições para engendrar o espaço da corporalidade que é a um só tempo individual e coletiva, social e natural” (Seeger et al. 1979: 15). Para os Kuna, como também acontece em outras sociedades Ameríndias (cf. Gow 1991; Lagrou 2007; Vilaça 2002), quando os bebês nascem eles não são ainda considerados completamente humanos por seus parentes adultos3. Têm

Fig. 3 | © Diego Madi Dias

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características animais que fazem deles seres liminares que precisam ser constituídos como humanos. Isso normalmente acontece através da manipulação do corpo dos recém-nascidos durante os primeiros dias de vida e por meio do uso de medicamentos, que são administrados com o objetivo de neutralizar a ação predatória de animais e espíritos contra o bebê (Gow 1997: 48; Lagrou 2007: 3039; Viveiros de Castro 1992: 181-3). Estudos recentes apresentam a importância da alimentação, dos cuidados, do aconselhamento e dos estados emocionais de medo e compaixão para a constituição dos corpos e para alcançar a socialidade (Overing & Passes 2000). Em seguida a tais processos, há na constituição de selves e corpos humanos a possibilidade sempre presente de que os corpos possam não ser humanos, o que representa perigo para os familiares. Os ameríndios concebem os seres humanos como estando em constante risco de transformação e perda de seu ponto de vista humano (Vilaça 2005) – isto é, de seu olhar moral e de sua capacidade de reconhecer seus parentes - tornando-se, dessa maneira, seus predadores (Belaunde 2000: 215; Fausto 2001: 316-17; Londoño Sulkin 2000: 175; 2005; Overing 1985: 265; Severi 1993). Seres humanos conservam o potencial de metamorfose em espécies animais; eles têm o que os Kuna chamam de um ‘lado animal’ (tarpa). Para os ameríndios, o que deve ser conquistado é um corpo humano apropriado que, conforme assinalado por Vilaça, deve ser extraído de um ‘substrato

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de subjetividades universais’ (2002: 350). Com isso, Vilaça se refere a uma visão ameríndia do mundo como um domínio povoado por diferentes seres e forças vitais que compartilham a mesma alma ou espírito, ou melhor, têm uma ‘forma humana interna’ em comum (Viveiros de Castro 1998: 471).

4. Ver Londoño Sulkin (2005) e Kohn (2007) para uma discussão sobre as relações intra-específicas, respectivamente, entre os povos Muinane e Runa.

Por um lado, há um continuum entre humanos, animais, plantas e outros tipos de seres vivos, que compartilham a mesma forma interna. Por outro lado, as diferenças se baseiam na aparência visual externa dos corpos de cada espécie. O corpo, como Viveiros de Castro argumenta, “não é sinonimo de fisiologia distintiva ou de morfologia fixa; é um conjunto de afeccões ou modos de ser que constituem um habitus” (1998: 478). Cada espécie é dotada de seu próprio habitus específico, o que permite que os membros de uma mesma espécie vejam outros membros de sua espécie como humanos, enquanto vêem os membros de outras espécies como animais 4. O que distingue cada espécie é, por exemplo, que os animais vêem “seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos etc.) como adornos ou instrumentos culturais” (1998: 470). Isso é o que Viveiros de Castro chama de ‘ponto de vista’, a capacidade de distinguir entre seres semelhantes e diferentes no mundo, o que também implica a capacidade de mudar a perspectiva, adotando a perspectiva de outras espécies, como no caso dos xamãs. Isso explica por que os ameríndios levam tão a sério a decoração dos corpos e sua aparência visual em geral. Se a decoração é parte da criação do corpo humano (cf. Lagrou 2007), então a aparência visual é fundamental para sua socialização e individualização. Em seu estudo dos Yawalapíti, Viveiros de Castro defende uma oposição dialética entre fabricação e decoração de corpos, entre processos internos e o exterior do corpo. “Esta dialética ilumina os modos de emergência da individualidade (em sentido lato) na sociedade xinguana” (1979: 47). Com base na oposição dialética entre fabricação e decoração dos corpos, e na oposição entre corpo e desenho observada por Lévi-Strauss, eu mostro que o desenho, para os Kuna, é parte do processo de fabricação de corpos humanos. Demonstro como os ‘desenhos amnióticos’, como um atributo específico do corpo, tornam visível a continuidade entre humanos e animais, e descrevo como os Kuna agem sobre essa continuidade através de desenhos para criar pessoas. Exploro ainda a maneira como as pessoas Kuna conectam logicamente diferentes formas de desenho, como aquelas que aparecem nos resíduos do saco amniótico, os de vestuário (mola) e outras decorações do corpo e dos objetos. Todas as formas de desenho estão intimamente relacionadas à identidade pessoal, que se manifesta através da práxis de uma pessoa e está baseada na relação com entidades não-humanas. Essas conclusões, eu espero, podem ser aplicadas para ampliar nossa compreensão da concepção ameríndia de desenho e sua estreita relação com o corpo.

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O nascimento do desenho

O desenho e o corpo Kuna Os Kuna são um povo indígena vivendo no arquipélago de San Blás (na costa atlântica do Panamá), na floresta de Darién (próximo ao lago Bayano) e perto da fronteira com a Colômbia. Duas aldeias Kuna estão situadas em território colombiano, no golfo Urabá. O presente artigo está baseado em etnografia realizada na aldeia de Okopsukkun, com população de cerca de 1.500 pessoas e situada na região centro-leste do arquipélago de San Blás. Vivendo em residência matri-uxorilocal com cerca de cinco a quinze indivíduos, as mulheres e os homens Kuna dedicam uma grande parte do seu tempo à sua cultura material, em que uma parte importante consiste na produção de ‘desenhos’ (narmakkalet)5. No mundo vivido Kuna, os desenhos são criados a partir de três técnicas diferentes: blusas femininas (molakana, sing. mola), trabalho em miçanga (wini) e cestos (sile). As mulheres Kuna costuram suas blusas, compostas por corte e costura de várias camadas de tecidos coloridos, criando desenhos bonitos (yer tayleke) 6. As blusas de mola são geralmente diferenciadas entre as antigas molakana (serkan molakana), que são compostas por desenhos ‘geométricos’, e aquelas com desenhos ‘figurativos’ (morko nikkat, ‘com muito tecido’) 7, muitas vezes inspiradas em imagens de revistas ou de anúncios publicitários vistos na Cidade do Panamá. As mulheres também se ocupam da realização de outro componente com desenhos de seu vestuário, na forma de pulseiras e perneiras de miçangas (wini), que envolvem seus antebraços e suas panturrilhas8. Os homens Kuna, quando não estão ocupados com atividades produtivas de subsistência (horticultura, pesca e caça) ou trabalho assalariado em áreas urbanas, encarregam-se da cestaria, criando padrões geométricos através do escurecimento das fibras vegetais com saptur (Genipa americana). O entalhe em madeira é considerado uma das formas proeminentes da arte masculina Kuna. Eles esculpem (sopet) canoas, essenciais para chegar às plantações em terra firme e para a pesca, assim como bancos, utensílios de cozinha e figuras de madeira (nuchukana), utilizadas em rituais de cura9. A fabricação de molas, o trabalho em miçanga, a cestaria e o entalhe em madeira são extremamente importantes na vida cotidiana, e os Kuna consideram essas atividades essenciais para a reprodução de seu mundo vivido. Como é frequentemente enfatizado pelos mais velhos, se as mulheres e os homens jovens parassem de aprender e de colocar seu conhecimento em prática, eles iriam rapidamente se transformar em brancos (waymala). Vou discutir aqui duas categorias Kuna: a de ‘desenho’ (narmakkalet) e a de ‘bolsa amniótica’ ou âmnio, ‘membrana’, ‘cérebro’, ‘chapéu’ (kurkin, também traduzido como ‘inteligência’) 10. Vou me concentrar na relação específica entre essas duas categorias, que, conforme demonstro a seguir, é vital para o entendimento de como os Kuna desenvolvem sua práxis: isto é, fazendo molas, trabalho em miçanga, cestos etc. Para introduzir a categoria de desenho amniótico, são apresentados dados sobre as ideias Kuna de procriação e enfermidade que são centrais para a análise que segue.

5. O substantivo narmakkalet, que indica todas as formas de desenhos geométricos e também a escrita, deriva do verbo narmakket, relacionado ao verbo makket, ‘fazer’, ‘perfurar’ e ‘furar’. 6. A etnografia Kuna evidencia o papel central que a produção de desenhos na forma de mola ocupa na vida cotidiana das mulheres (Salvador 1978; 1997; Tice 1995) e no parentesco (Margiotti 2008). 7. Utilizo os adjetivos ‘geométrico’ e ‘figurativo’ não como tradução de categorias Kuna, mas como um atalho que visa a fornecer para um leitor ocidental uma imagem desses tipos de desenhos. 8. Os Kuna me disseram que no passado as mulheres costumavam tecer redes decoradas com desenhos. Atualmente, as redes são compradas de comerciantes colombianos.

9. Especialistas rituais podem ser conhecedores da botânica (ina tulekana), cantores em contexto terapêutico (api suakana), parteiras (muukana) ou videntes (nelekana). Ver Howe (1978) para uma discussão sobre o papel político dos chefes e dos especialistas rituais entre os Kuna.

10. Para a tradução de kurkin como ‘cérebro’, ‘inteligência’, ‘habilidade’ e ‘chapéu’, ver Nordenskiöld (1938: 363-8); Severi sugere associar kurkin com a ‘pessoa’ e a ‘individualidade’ (1981: 72). Vou assumir este último ponto e desenvolvê-lo ao longo deste artigo.

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Fig. 4 | © Margherita Margiotti

11. A literatura Kuna tem dedicado atenção considerável ao conceito de purpa no estudo da doença e da noção de pessoa, normalmente traduzido como ‘alma’ ou ‘duplo’ (Chapin 1983; Nordenskiöld 1938; Severi 1981; 1987; 1993).

12. Muu (sing.) significa ‘avó’, MM ou FM, e também ‘parteira’. Quanto utilizado em cantos terapêuticos, significa ‘útero’ (cf. Holmer & Wassén 1947; Lévi-Strauss 1972). 13. Chapin nota que Muu, a avó de muukana, “é responsável pelo desenvolvimento espiritual dos fetos de todos os animais terrestres e humanos nascidos na Terra” (1983: 404).

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Os Kuna têm ideias específicas sobre como os corpos dos bebês são formados durante a gestação. Em resposta à questão colocada por Margherita Margiotti, sobre como as substâncias sexuais se transformam no corpo de um feto, um especialista ritual Kuna desenhou uma cruz no chão arenoso de sua casa com um pedaço de pau. Em seguida, ele falou: “o que acontece se você despejar uma liga nessa cruz? Ela se condensa e você tem uma cruz. De tal forma nós somos feitos”. Ele explicou que o útero de uma mulher contém a forma de um bebê, e quando os fluidos sexuais se condensam eles adquirem essa forma (Margiotti 2009). Os fluidos uterinos da mãe e o sêmen do pai se misturam no útero materno e dão origem ao corpo do feto (cf. Chapin 1983: 394; Margiotti 2009). Os Kuna utilizam o termo purpa para denotar tanto a alma quanto o sêmen, significando assim o seu caráter de metamorfose 11. Além disso, os Kuna contam sobre a intervenção de entidades não-humanas na formação dos bebês. Eles são chamados muukana (‘avós’)12 e vivem em um domínio separado do cosmos. Foi-me dito que ‘muukana fazem desenhos no kurkin’ dos fetos, ‘muukana kurkin narmakke’ 13 . Kurkin, durante a vida fetal, refere-se à bolsa amniótica que envolve o feto, e as mulheres grávidas são descritas como kurkin nikka, ‘têm kurkin’. Desenhos no kurkin vinculam os bebês a animais específicos e são explicados como a disposição futura de cada pessoa e também como a causa de enfermidades. É notável como os Kuna são explícitos em associar os desenhos e o corpo em seus discursos sobre procriação. A constituição da forma do corpo humano ocor-

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re no interior de um invólucro desenhado, kurkin, que é entendido como parte do corpo do feto14. Dessa maneira, para os Kuna, desde antes do nascimento, existe uma ligação entre os desenhos e o corpo, entre elementos gráficos e plásticos, como Lévi-Strauss (1972) sugere, e essa ligação, argumento, é crucial para o desenvolvimento das pessoas entre os Kuna. Ambos os pais devem seguir muitas restrições durante a gestação, a fim de evitar vínculos consubstanciais entre o bebê e as entidades animais. O risco é de que o bebê adquira as características físicas e/ou comportamentais de certos animais. Desse modo, as gestantes seguem uma série de tabus alimentares relativos aos animais. Por exemplo, os tubarões são evitados devido ao seu comportamento agressivo, que pode causar danos à disposição afetiva do bebê; e os polvos, por suas características físicas, como os tentáculos pegajosos que afetariam o corpo da criança, impedindo a descida do bebê através do canal vaginal15. Durante a gravidez de sua mulher, os homens devem evitar terminantemente a caça, ou mesmo olhar para animais como cobras, preguiças e tamanduás. As purpakana (almas) desses animais são capazes de se ligar ao feto e permanecer assim, causando doenças que podem ser transmitidas por gerações.

14. É interessante notar que os Kaxinawá utilizam a palavra xankin, ‘útero’, como raiz para o verbo xankeikiki, ‘tecer desenhos’ (Lagrou 2007: 113-14). 15. Ver também Chapin (1983: 3948) e Martínez Mauri (2007: 271-82) para uma descrição dos taboos envolvendo espécies marinhas entre os Kuna.

Após o nascimento, a consubstancialização com os parentes é realizada inicialmente através da amamentação e depois através da ingestão de ‘comida de verdade’ (masi sunnati). Assim, por meio da alimentação (okunne), bem como por meio do aconselhamento constante, as crianças Kuna se tornam ‘pessoas de verdade’, tule sunnati. Por outro lado, vínculos consubstanciais com os animais podem ser causados pelo comportamento descuidado dos pais que quebram tabus durante a gestação, ou pela predação animal, especialmente durante a vida fetal e o início da vida pós-natal, quando um bebê é considerado fraco e aberto à alteridade cosmológica. Na maioria dos casos, as doenças não são descobertas até que a criança comece a sonhar, ou, no caso de um menino, quando ele está crescido o bastante para ir para a floresta em terra firme. Os sonhos recorrentes e os encontros com animais na floresta são sinais de enfermidades, casos em que um vidente (nele) deve ser convocado para olhar o kurkin (‘cérebro’) da criança, para ver se o desenho de um animal está presente (kurkin-ki poni nai).

Desenhos amnióticos Como foi antecipado acima, kurkin significa ‘bolsa aminiótica’, ‘chapeú’, ‘cérebro’ e ‘inteligência’. No discurso cotidiano, kurkin indica o ‘chapéu’ utilizado pelos homens, que pode ser tecido com fibras de naiwar (Carludovica drudei), um chapéu masculino de cor preta, ou um boné de beisebol. Às vezes, kurkin me foi descrito como o ‘chapéu’ utilizado pelos bebês no momento em que eles nascem (cf. Nordenskiöld 1938: 367). Os desenhos são uma característica essencial do kurkin, que é, em si mesmo, um componente essencial da pessoa Kuna. O Kurkin é uma característica invisível nas pessoas adultas, localizado na cabeça, e é normalmente traduzido para o espanhol como ‘inteligencia’ (inteligência).

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No entanto, e isso é importante para a presente discussão, alguns bebês nascem mostrando o kurkin: isto é, com remanescências da bolsa amniótica cobrindo sua cabeça. Nesses casos, o kurkin pode apresentar desenhos visíveis ou então é um branco imaculado. Outros bebês não apresentam kurkin no nascimento. No primeiro caso, os bebês são considerados dotados de uma capacidade especial para aprender ou, como veremos adiante, quando o kurkin é branco, com habilidades xamânicas. No segundo caso, quando o kurkin não é mostrado no momento do nascimento, esses bebês são considerados sem qualquer potencialidade específica. Isso não significa que eles são incapazes de adquirir habilidades durante seu curso de vida, mas eles precisarão fazer uso de plantas medicinais para aumentar suas capacidades de aprendizado. Independente de sua visibilidade no nascimento, o kurkin permanece como um atributo de cada pessoa Kuna. A visibilidade do kurkin durante o parto permite o desenvolvimento de práticas particulares durante a vida da pessoa, proporcionando assim uma situação exemplar que revela uma compreensão Kuna de desenho. Desenhos visíveis nas remanescências da bolsa amniótica, aderindo à cabeça do recém-nascido, são chamados de ‘desenhos amnióticos’ (kurkin narmakkalet). Eles são visíveis apenas no instante seguinte ao nascimento, e irão desaparecer em breve. As parteiras também verificam quantas camadas de membrana amniótica cobrem a cabeça do recém-nascido. Essas me foram descritas como as camadas das blusas de mola. Por isso, o kurkin do recém-nascido é descrito como sua primeira roupa (mola). Prisilla Diaz, uma vidente Kuna e especialista em remédios para o parto (muu ina) me contou que o kurkin é a primeira coisa que aparece quando uma criança nasce, e sua análise detalhada é uma fonte de grande interesse para as parteiras. Em alguns casos, quando a bolsa amniótica não se rompe antes que o bebê comece a emergir do canal vaginal, a cabeça irá sair completamente coberta por camadas brancas, como se o bebê estivesse usando um chapéu. Certa vez, Prisilla me descreveu o que aconteceu quando ela foi chamada para ajudar no nascimento do bebê de seu filho. O bebê saiu coberto por quatro camadas de bolsa amniótica, que ela teve que romper:

16. Minha explicação pessoal durante o trabalho de campo foi de que esses desenhos são criados pela mistura de líquidos pré-natais e substâncias que são depositadas na cabeça dos recém-nascidos.

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Elas se abriram como uma flor. As camadas se soltaram como um vestido e por baixo havia muitos desenhos. Isso é o kurkin! Isso significa que, quando a criança crescer, ela vai começar a costurar molakana ou ela será alguém especial. Depois eu perguntei à mãe se ela havia entendido o que foi mostrado. Nós, os Kuna, dizemos que quando alguém nasce tudo é mostrado.

Os desenhos amnióticos são classificados de acordo com o padrão animal que se forma neles16. Cada desenho corresponde a um animal predador específico com o qual o bebê está ligado. Durante o meu trabalho de campo, ouvi falar em alguns tipos diferentes de desenho que podem aparecer na cabeça do recém-nascido, como o ‘desenho de jaguar’ (achu narmakkalet), ‘desenho de cobra’ (naipe narmakkalet) ou ‘desenho de crocodilo’ (tain narmakkalet). Quando um bebê nasce com um desenho de jaguar, por exemplo, diz-se que ele está ‘do lado do jaguar’ (achu sikkit). Quando ele nasce apresentando o desenho da cobra ou do crocodilo, diz-se que está ‘do lado da cobra’ (naipe sikkit) ou ‘do lado do cro-

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Fig. 5 | © Margherita Margiotti

codilo’ (tain sikkit)17. Apresentando o desenho de um animal específico, diz-se que o bebê será visto por esse animal como um ser semelhante. Por esse motivo, um menino nascido ‘do lado do jaguar’, uma vez crescido, estará susceptível a encontrar jaguares na floresta em terra firme, pois, como me foi contado por um homem Kuna, os jaguares o vêem como um deles. Nascer ‘do lado’ de um animal específico se refere a uma relação pessoal entre o bebê e as espécies animais: eles compartilham uma natureza comum e se atraem mutuamente18. É interessante notar que as relações manifestas através dos desenhos amnióticos são estabelecidas com perigosos predadores. Jaguares, cobras e crocodilos são considerados os principais causadores de doenças entre os Kuna, devido à sua fome pelas almas humanas. Eles têm um gosto especial por crianças e adultos solitários, o que sugere uma tendência de incorporar indivíduos de outras espécies para aumentar a população de suas próprias espécies (Vilaça 2002: 351-5). Além disso, a capacidade de distinguir entre os membros das mesmas espécies a partir de outras espécies sugere a subjetividade e intencionalidade desses animais (Vilaca 2002: 351; Viveiros de Castro 1998). Para os Kuna, esses predadores são temidos por sua capacidade de transformar seres humanos em animais ou fantasmas que irão predar seus ex-parentes (cf. Severi 1987; 1993). Os desenhos amnióticos são a manifestação visível da capacidade de aprender através da associação com um animal predador. Bebês que nascem com de-

17. Eu também ouvi dizer que, em alguns casos, os bebês podem nascer com os restos da bolsa amniótica pendurados no pescoço, como um colar (wini). Em tais casos, dizem também que o bebê está “do lado da cobra”. Também me foi dito uma vez sobre a possibilidade de um bebê estar “do lado do tubarão” (nali sikkit) ou “do lado do trovão” (mala sikkit), o que implica o risco de ser atingido por um raio. 18. Isso sugere que os Kuna concebem essas relações como do tipo intra-espécies. Seguindo o mesmo raciocínio, e com o objetivo de aumentar suas capacidades de caça, os homens adultos, entre os Kuna, se submetem a períodos de reclusão durante os quais eles se banham com a água resultante da infusão de plantas medicinais perfumadas. Isso os torna atraentes para as espécies animais que eles decidem caçar. Uma comparação interessante pode ser estabelecida com o que Kohn define como “alma de caça” entre os Runa da Alta Amazônia, que “permite que os homens estejam atentos à presa na floresta” (2007: 9).

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senhos amnióticos se tornarão boas costureiras de mola, bons tecelões de cestos, entalhadores, cantores rituais ou aprendizes de línguas estrangeiras. Certa vez, padrões geométricos similares àqueles de uma mola foram observados nos desenhos amnióticos de uma menina. O comentário da parteira foi de que a menina iria se tornar uma excelente costureira de mola quando ela crescesse.

19. A falta de habilidades dos animais parece estar relacionada à sua falta de parentesco e ao seu ciúme com relação aos seres humanos. Margiotti (2008) relata que, enquanto para os Kuna a maioria dos animais não têm pinsaet na forma de ‘amor’ e ‘memória’ para com seus parentes, alguns animais têm pinsaet na forma de intencionalidade, que muitas vezes se manifesta como um modo de predação dos seres humanos. 20. Ver Lagrou (2007: 193-201) para um mito similar entre os Kaxinawá. 21. Ao longo deste artigo, eu vou utilizar a forma masculina quando me referir genericamente aos videntes Kuna. Tal procedimento está de acordo com o tipo ideal de vidente: ou seja, de acordo com os Kuna, uma pessoa que nasce com a capacidade de vidência - e esse é o caso apenas para homens videntes, como eu mencionei muitas vezes. Para uma discussão de como as mulheres Kuna se tornam videntes no decorrer de seu curso de vida, ver Fortis (2008). 22. Nordenskiöld, seguindo a tradução da “Canção de cura para Nele quando ele tem uma dor de cabeça”, elaborada por seu informante Kuna Ruben Pérez Kantule, escreve que [essa canção] conta como Mu perfumou o kurgin de Nele com certas plantas e como ela tinha feito bem. Conta também como Mu fornece kurgin para Nele, para que ele possa ter o poder de ver os animais que são seus amigos, dentre os quais podemos destacar peixes-serra, raias, tartarugas de diferentes tipos, jacarés, leões-marinhos, tubarões, golfinhos etc (1938: 542). 23. Ver Chapin (1983), Margiotti (2009) e Reverte Coma (1967) para mais detalhes sobre as práticas dos Kuna em relação ao parto.

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Animais como jaguares, crocodilos e cobras (mas também tamanduás, preguiças, lontras, tartarugas e sereias) são descritos como seres dotados de conhecimento. Eles possuíam muitas habilidades valiosas nos tempos míticos, que foram perdidas depois que se separaram dos humanos. Eles não são capazes de realizar atividades como fazer molas, tecer cestos ou esculpir canoas, mas podem ensinar essas técnicas para os seres humanos em sonhos19. Os Kuna explicam a origem mítica do desenho através da jornada pessoal de Nakekiryai, uma mulher que viajou para a aldeia de Kalu Tukpis, no mundo subterrâneo, onde ela observou todos os tipos de desenhos que cobrem os troncos e as folhas das árvores. Quando retornou à sua aldeia, ela ensinou às outras mulheres como fazer aqueles desenhos (Méndez in Wakua, Green & Peláez 1996: 39-43)20. Gostaria de sugerir que as pessoas que se tornam particularmente hábeis em fazer desenhos, esculpir madeira e assimilar o conhecimento ritual são capazes de fazê-lo em virtude de sua abertura à alteridade. Nascer do lado de um animal significa, portanto, estar intrinsecamente aberto à alteridade animal. Quando nasce um vidente (nele), contaram-me, ou seu corpo inteiro ou apenas sua cabeça encontra-se embrulhada na bolsa amniótica, mas não há desenhos visíveis; o kurkin é impecavelmente branco21. Jovens videntes são considerados muito atraentes para os animais e, diferente dos bebês nascidos com desenhos amnióticos, eles recorrem a várias espécies, ao invés de estarem ligados a apenas uma22. O que é peculiar no caso dos videntes é que é impossível saber com que animal específico eles se associam. Parentes adultos não são capazes de ver os desenhos no kurkin do vidente, pois o desenho é ‘invisível’ para eles. Aqui eu utilizo a palavra ‘invisível’ como tradução para a expressão Kuna akku tayleke, ‘não ser visto’, que é o oposto de yer tayleke, ‘ser visto vividamente’ (que também significa ‘bonito’). O que não é visível é o que não se mostra, o que não se faz visível. Seguindo esse raciocínio conceitual, não podemos inferir que o que ‘não é visto’, o que é ‘invisível’, não existe. Pelo contrário, há uma forte declaração ontológica subjacente ao conceito Kuna de invisibilidade, a saber: o que não pode ser visto pelos seres humanos pode ser visível para outros seres. No caso dos videntes, seus desenhos amnióticos são visíveis para seus companheiros animais, mas não para seus parentes humanos. Dessa maneira, os desenhos atuam como uma fronteira entre as percepções humana e animal. Os Kuna dizem que todos os bebês estão intimamente conectados ao mundo das entidades animais durante a vida fetal e pós-natal. Cada bebê deve ser tratado com remédios e a placenta deve ser enterrada seguindo um ritual específico, a fim de evitar que o bebê se torne doente23. Nascer com desenhos amnióticos demonstra a relação intrínseca entre um bebê e um animal específico, e permi-

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te que os parentes adultos transformem uma relação perigosa em capacidade de aprendizado. Nascer com desenhos invisíveis, com resíduos amnióticos presentes mas não mostrando quaisquer desenhos visíveis para os seres humanos, mantém em segredo a relação com os animais, não permitindo que os parentes do vidente possam humanizá-lo completamente. Em geral, o que distingue os bebês nascidos com kurkin - apresentando desenhos ou não - daqueles sem kurkin é a possibilidade de transformar um risco potencial em práxis. Como essa transformação acontece?

Tornar visível A presença de desenhos animais no kurkin proporciona uma dupla implicação. Por um lado, como foi mencionado acima, mostra o potencial de um bebê para sobressair em uma atividade específica, e seu futuro como uma pessoa portadora de um dom. Por outro lado, os desenhos mostram o risco enfrentado pelos adultos, que irão atrair animais perigosos tentando incorporá-los como parentes. Os bebês normais que nascem sem kurkin são tratados com plantas medicinais para aumentar sua capacidade de aprendizado, e, a menos que apareça algum sinal de enfermidade, eles não são objetos de atenção ou cuidados especiais por parte de seus parentes adultos. No entanto, as doenças causadas por ligações

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24. Disseram-me de um homem que tinha a doença de nia (loucura), mas acabou por ser curado. Após a cura, ele se tornou incrivelmente habilidoso no entalhe da madeira. O comentário das pessoas era de que ele aprendeu a esculpir nos sonhos.

25. Embora a palavra poni possa ser utilizada para indicar qualquer doença adquirida durante a vida de uma pessoa, nesse caso ela é utilizada para se referir à relação mais geral, e constitutiva, entre uma pessoa e um animal, que é o objeto deste artigo.

26. Viveiros de Castro descreve que, entre os Araweté do Médio Xingu (Brasil), as crianças pequenas são submetidas a um ritual xamânico que “veda o seu corpo”, a fim de evitar o contágio da criança por meio do contato com seus pais, muitas vezes causado pela ingestão de carne de caça (1992: 183).

consubstanciais com animais podem ocorrer mais tarde. Uma vez eu tive notícia de uma pessoa sofrendo de uma dor de cabeça persistente. O curandeiro, após seu diagnóstico, contou que o homem tinha um ‘acompanhante animal ligado ao seu cérebro’ (kurkin tarpa nasisa). A consequência de não apresentar kurkin no momento do nascimento, e portanto não apresentar desenhos, é que as ligações pessoais com os animais são percebidas apenas como doença e infortúnio e não podem ser transformadas em práxis social, com exceção de alguns casos raros24. Pelo fato de que cada pessoa está constantemente aberta a ataques de entidades animais, a identidade pessoal é uma preocupação constante e significativa para os Kuna. Como um homem velho em Okopsukkun me disse uma vez, você nunca sabe a natureza da pessoa com quem você vai se casar, você não sabe que doenças ela tem (ipu poni nikka pe wichuli)25. O ponto aqui é que os desenhos amnióticos são considerados pelos Kuna como uma dádiva, pois eles tornam visível a causa da doença e do infortúnio no momento do nascimento, permitindo assim que os parentes adultos curem o bebê e transformem sua relação com uma alteridade perigosa em uma prática socialmente produtiva. Esses dois aspectos do desenho não são de nenhum modo antitéticos. Pelo contrário, eles são os dois lados de um mesmo conceito, que, para os Kuna, descreve a pessoa humana como composta de uma dualidade inerente em um processo constante de transformação (cf. Vilaça 2005). A partir do nascimento, todas as crianças se tornam humanas através da alimentação e do uso de plantas medicinais que as protegem contra a predação animal. No entanto, remédios específicos são preparados para os bebês que nascem com kurkin. No caso de haver desenhos amnióticos visíveis, os remédios podem ser utilizados para interromper a ligação perigosa com o animal que acompanha, por meio de uma operação definida como ‘confundir o caminho’ (ikar opuret)26. Saptur (Genipa americana) é geralmente utilizada para pintar o corpo inteiro de preto, tornando a alma/self da criança invisível para o animal. Em uma situação, eu observei um bebê do sexo masculino ser banhado em uma água contendo um cipó enrolado, chamado naipe ina (remédio da cobra). Conforme me foi dito, isso impediria que a criança encontrasse cobras na floresta. No entanto, os Kuna enfatizam que as relações pessoais com animais inscritos no kurkin jamais desaparecem completamente. Elas podem ser temporariamente interrompidas, mas acabam por aparecer novamente ao longo da vida da pessoa. Desse modo, eu argumento que os desenhos amnióticos funcionam como intensificadores de uma capacidade humana de aprendizado da práxis, na medida em que tornam visível a proximidade perigosa com entidades animais. É por saberem qual animal está associado às crianças que os especialistas Kuna são capazes de adaptar as melhores plantas medicinais para transformar a relação perigosa com um animal em uma forma específica de inteligência. As crianças que apresentam kurkin com desenhos claramente visíveis (yer tayleke narmakkalet nikka) são mais propensas a desenvolver modos específicos de práxis e a se tornar reconhecidas em sua comunidade. No caso de não haver desenhos amnióticos visíveis, jovens videntes não são transformados em parentes como as outras crianças são, e sua posição na vida

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social humana permanece problemática. Sua disponibilidade excessiva às transformações cósmicas torna mais difícil qualquer ato de humanização. Em consequência, eles não passam a ver seus pais como parentes; ao contrário, começam a ver as entidades animais, com quem encontram em sonhos frequentemente, como seus parentes. Os videntes são muitas vezes considerados seres solitários, em que a falta de socialidade está relacionada à socialidade exacerbada que estabelecem com o mundo dos animais e espíritos. Embora seu status na vida social seja sempre uma questão de debate e divergência entre os Kuna, os videntes se tornam especialistas reconhecidos quando passam por um ritual de iniciação que envolve a presença de um especialista-mestre e o apoio de vários aldeões. Dessa maneira, dizem os Kuna, alguém se torna um ‘verdadeiro vidente’ (nele sunnati). Como afirmei em outra oportunidade (Fortis 2008: 180-4), podemos descrever a iniciação como um processo de tornar visível. Em outras palavras, a falta de desenhos visíveis no kurkin do vidente no momento do nascimento é compensado pelo reconhecimento público de sua associação com um animal ou espírito específico. Bebês nascidos com kurkin, com ou sem desenhos, exigem tratamentos especiais para manipular sua abertura à alteridade. Sementes de cacau são queimadas em braseiros de barro para enfumaçar as cabeças dessas crianças. A fumaça do cacau (sia ue) fortalece seu kurkin e melhora a capacidade de aprender. Contaram-me que jovens videntes muitas vezes sonham com monstros, que os assustam e os impedem de dormir. Quando seu kurkin é tratado com a fumaça de cacau, eles vêem pessoas ao invés de monstros, e são, portanto, capazes de conversar com elas. Essa é, na verdade, a primeira fase de aprendizado xamânico. Quando se tornam adolescentes, os videntes são mantidos em reclusão por longos períodos, durante os quais suas cabeças são banhadas em águas medicinais para fortalecer ainda mais o seu kurkin. Durante a reclusão, eles interagem unicamente com sua avó materna (muu) e com o especialista (api sua) que prepara os banhos medicinais. Os sonhos são um meio importante para verificar o processo de iniciação em curso, através dos quais o vidente se familiariza com seus potenciais espíritos auxiliares. Ao final da reclusão, o vidente terá melhorado sua capacidade de interagir com entidades animais através dos sonhos. A reclusão funciona como um modo de fabricação de um novo corpo para o vidente (Viveiros de Castro 1979), cuja capacidade de interagir com a poderosa alteridade se torna equilibrada pelo novo papel de curandeiro que emerge. Como foi sugerido por Gow para os Piro, nascer é perder seu ‘primeiro desenho’, a placenta, adquirindo assim uma diferenciação entre o interior e o exterior do corpo, condição prévia para se integrar à vida social (2001: 108). Tornar-se humano para os Piro, sugere ainda o autor, é perder sua outra metade, a placenta. Taylor (2003) argumentou que a aquisição de uma companhia mística na forma de uma alma ancestral (arutam) é, para os Achuar, uma intensificação da subjetividade pessoal: nesse caso específico, a capacidade masculina de matar e a habilidade feminina de horticultura. Sugiro compreender o encontro com uma alma ancestral (que inicialmente se mostra àquele que a busca na forma de um animal), como o tornar-se completo de uma pessoa que perdeu outro modo

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de estar completo no momento do nascimento. Trata-se do estabelecimento de uma relação com a alma de uma pessoa morta, completamente separada da humanidade, despessoalizada e indiferenciada de outras entidades não-humanas (Taylor 1993). É interessante notar que a intensificação da subjetividade se expressa por meio da pintura de desenhos nos rostos dos homens Achuar que encontraram uma alma ancestral. Eu sugiro que há uma característica comum entre os ‘desenhos faciais’ para os Achuar, o ‘primeiro desenho’ para os Piro e os ‘desenhos amnióticos’ para os Kuna. Todos são manifestações de relações intrínsecas entre os componentes humano e não-humano da pessoa, seja uma alma ancestral, o gêmeo nascituro ou uma companhia animal. Meu ponto é que os desenhos amnióticos, para os Kuna, são a manifestação visível da dualidade constitutiva do ser humano. A humanidade não é um estado dado, mas, como observado acima, em comparação com outros ameríndios, é uma condição que deve ser alcançada. Os desenhos amnióticos proporcionam, por conseguinte, uma possibilidade elevada de deslocamento da dualidade intrínseca em direção ao exterior da pessoa. Uma vez que a relação com um animal específico se torna visível, a questão passa a ser como fazer com que essa relação seja produtiva para a vida social. Dessa maneira, os Kuna criam pessoas que, através de suas práxis, são capazes de reproduzir o seu mundo vivido. O caso dos videntes é paradigmático, pois, por meio de suas habilidades, eles protegem as pessoas das doenças e da morte.

Kurkin Em face do exposto, nessa última seção eu desejo examinar com mais atenção a natureza do kurkin e demonstrar como ele fornece um meio de transformação das relações com os animais em prática social no mundo vivido pelos Kuna. O que têm em comum os significados aparentemente diferentes de ‘bolsa amniótica’, ‘cérebro’, ‘chapéu’ e ‘inteligência’? Conforme foi sugerido por Lévi-Strauss no início de A História de Lince: ‘no pensamento dos índios da América e certamente alhures, o chapéu cumpre a função de mediador entre o alto e o baixo, o céu e a terra, o mundo exterior e o corpo. Desempenha o papel de intermediário entre esses pólos; reúne-os ou separa-os, dependendo do caso’ (1995: 8). Sustento que o kurkin é um mediador entre seres humanos e animais, e permite o desenvolvimento da comunicação entre os seres humanos. O Kurkin é como uma pele externa do feto que faz a mediação entre o feto e as entidades cósmicas. Os fetos ainda não têm uma separação entre as partes interior e exterior do corpo (cf. Gow 1999a: 238). Essa separação começa a ocorrer no momento do nascimento, quando o kurkin, como um chapéu, torna-se a primeira roupa (mola) do recém-nascido. Após o nascimento, a separação entre as partes interior e exterior do corpo se torna co-extensiva à separação entre humanos e não-humanos. No entanto, o kurkin mantém sua função de mediação entre seres humanos e animais, transformando um estado anterior

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de não-diferenciação em uma perigosa relação potencial. Dessa maneira, os desenhos amnióticos se tornam um atributo invisível (interno) da pessoa que pode se tornar visível através de sua transformação em práxis social. O kurkin está internalizado e uma perda ocorre: o que antes era acessível, devido ao estado indiferenciado entre o feto e as entidades animais, torna-se inacessível porque o bebê é humanizado, com a exceção exemplar dos videntes. Animais se tornam outros e os seres humanos se tornam parentes potenciais para a nova criança. O que se ganha, então, é a possibilidade de interagir com outros seres humanos, de fazer parte da vida social humana e de desenvolver uma prática social. A práxis é, portanto, uma forma de comunicação entre os seres humanos que deriva de um estado prévio (transformado) de mediação entre humanos e animais. O kurkin se torna inteligência, através da qual uma pessoa é capaz de aprender, de ver, de ouvir: em outras palavras, de se comunicar com outras pessoas. No entanto, mantendo a função de mediação entre humanos e animais, o kurkin faz com que os corpos Kuna se tornem instáveis (Vilaça 2005). Os desenhos amnióticos, transformando as relações com os animais em prática humana, fornecem um meio de estabilização. A invisibilidade dos desenhos amnióticos, apesar de um estado altamente perigoso, oferece a possibilidade de transformar finalmente a abertura excessiva à alteridade em um papel socialmente produtivo. Assim, o papel dos videntes parece estar caracterizado por uma instabilidade controlada, enquanto que todas as outras pessoas, nascidas sem apresentar kurkin, permanecem em um estado constante de instabilidade. Essas pessoas estão sujeitas à predação animal e seu kurkin pode ser ‘danificado’ a qualquer momento por um desenho animal, necessitando, para ser curado, da intervenção dos videntes e de outros especialistas rituais. Portanto, pessoas nascidas com desenhos amnióticos e aquelas que nasceram sem kurkin estão em dois pólos opostos de uma trajetória que descreve a condição humana a partir da perspectiva Kuna, e os videntes se encontram no meio, capazes de controlar seus movimentos entre humanidade e animalidade. A práxis xamânica e outras práxis sociais - isto é, fabricação de mola, trabalho em miçanga, cestaria e entalhe em madeira - são a transformação de uma relação interna/invisível com animais em uma relação externa/visível tanto com os humanos quanto com seres não-humanos. Talvez, então, não seja inteiramente adequado traduzir kurkin por ‘cérebro’. Como foi mencionado acima, o kurkin é a inteligência de uma pessoa. Isso sugere, portanto, uma noção do ‘cérebro’ não como um órgão biológico dado, que cresce e se desenvolve durante a vida de uma pessoa, mas como uma forma relacional, moldada através da ação social. Após o nascimento, e graças aos desenhos, a natureza mediadora do kurkin é transformada em comunicação. Os desenhos amnióticos são a manifestação visível da relação com os animais, que é depois transformada em prática social. Assim, podemos dizer que, para os Kuna, se o kurkin é o desenho, então o desenho é a práxis.

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Fig. 7 | © Diego Madi Dias

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Conclusões Meu objetivo nesse artigo tem sido demonstrar a importância da aparência visual externa do corpo dos recém-nascidos na vida Kuna. A categoria de ‘desenho’ (narmakkalet) é central para a definição de humanidade entre os Kuna. Desenhos e corpos nascem juntos e são fundamentalmente inseparáveis. O desenho não apenas contribui para a fabricação do corpo, também permite que o corpo seja feito humano. Por um lado, os desenhos amnióticos permitem a comunicação com os animais. Por outro lado, eles são a primeira forma de comunicação entre os bebês e os adultos. Como foi sugerido por Taylor, devemos considerar a natureza intersubjetiva do self para os ameríndios como ‘essencialmente uma questão de refração: tem sua origem no juízo que se elabora a partir das percepções do self por parte dos outros’ (1996: 206). De acordo com essa consideração, é ainda mais evidente a importância da aparência visual dos corpos dos recém-nascidos, que transmite a primeira imagem de seus selves aos parentes adultos. Essa primeira imagem irá então formar a base para a criação da subjetividade futura dos bebês. O kurkin, como desenho amniótico e práxis, desempenha o papel de tornar visível a dualidade interior dos seres humanos. Os desenhos são a manifestação visual da capacidade interativa dos seres humanos, dos animais e de outras entidades cósmicas. Ser visto já significa fazer parte da dimensão dos afetos e dos cuidados da vida social humana; não ser visto é o mesmo que permanecer ‘virado para dentro’, e exige um esforço adicional para criar equilíbrio entre as forças cósmica e social que um jovem vidente encarna em sua pessoa. Para se tornar visível, um xamã precisa desenvolver suas habilidades xamânicas, que, uma vez disponíveis para ajudar seus parentes, irão compensar a invisibilidade de seus desenhos no momento do nascimento. Meu argumento foi de que, para os Kuna, o desenho não está conceitualmente separado da superfície sobre a qual ele aparece. Esse ponto foi tratado por Lévi-Strauss (1972) e analisado com mais atenção no contexto dos estudos amazônicos por Gow (1989; 1999a; 1999b) e Lagrou (1998; 2007). Como foi demonstrado acima, o desenho é um atributo do kurkin e, por extensão, um atributo da pessoa humana. Meu ponto é que o desenho, para os Kuna, oferece visibilidade às pessoas na vida social, através do desenvolvimento da práxis. Atributos pessoais dos recém-nascidos, definidos por sua relação com animais específicos, podem (ou não) ser visíveis através dos desenhos amnióticos; ao longo da vida, eles se tornam ainda mais visíveis. Como foi notado por Gow (1999a) para os Piro, o desenvolvimento da habilidade feminina de pintura com desenhos leva uma vida inteira. Desde a infância, o que os meninos e as meninas Kuna fazem é frequentemente interpretado pelos adultos como a manifestação de suas predisposições para atividades especificas, permitidas por um desenho específico em seu kurkin no momento do nascimento. Dessa maneira, é importante encorajar as crianças para o desenvolvimento de suas próprias habilidades e permitir que elas ‘projetem suas predisposições para fora’, para utilizar uma expressão

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de Strathern (1979: 248). Ser ‘bonito’ (yer tayleke) significa mostrar desenhos no momento do nascimento e desenvolver suas capacidades no curso de seu ciclo de vida. Mulheres Kuna estão bonitas quando vestem mola e as pulseiras de miçanga que elas mesmas fazem. Os Kuna são descritos por aquilo que fazem e a percepção social de uma pessoa está intimamente ligada ao que a pessoa sabe fazer de melhor na vida cotidiana. Preparar plantas medicinais, cozinhar alimentos, esculpir canoas, tecer cestos, conduzir rituais e cantos míticos, pescar, cuidar da plantação, costurar molakana etc - são todas práticas altamente valorizadas no interior do mundo vivido Kuna e que estão intimamente relacionadas ao kurkin das pessoas. Há, portanto, uma conexão lógica entre o conceito Kuna de desenho, baseado em uma concepção aberta e relacional do corpo, e o conceito de práxis, como a manifestação da relação transformada que alguém estabelece com a alteridade. Por essa razão, os Kuna pensam em diferentes formas de desenho (mola, trabalho em miçangas e cestos) como diferentes manifestações de um mesmo princípio, que coloca a ênfase no processo de tornar visível a identidade pessoal e as capacidades de alguém.

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O nascimento do desenho

PARA CITAR ESSE ARTIGO FORTIS, Paulo. O nascimento do desenho: uma teoria Kuna do corpo e da pessoa. Tradução Diego Madi Dias. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSAUFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 66 - 93. Disponível em: http://issuu.com/ revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

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Foto. 1 – Menina Canela numa roçinha no quintal, © Theresa Miller, 2013

Fig. 1 | Canela’s girl in a cultivating backyard © Theresa Miller, 2012

GROWING GARDENS

towards a theory of ecological aesthetic performances in indigenous Amazonia por Theresa Miller

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Theresa Miller is DPhil candidate in Anthropology at the Institute of Social and Cultural Anthropology (ISCA), Oxford University, UK. She has MPhil in Social Anthropology from Oxford University with BA in International Politics from American University, Washington, D.C., USA.

GROWING GARDENS

towards a theory of ecological aesthetic performances in indigenous Amazonia Abstract This article focuses on the production and performance of material

culture in indigenous Amazonia. When understood as the study of various relationships between persons and things, material culture studies can include an examination of human-plant relationships involved in gardening practices and plant cultivation. This article will demonstrate how North-Western Jê societies conceive of gardening practices as a series of multi-sensory aesthetic ecological performances through which meaningful human-plant relationships are created and maintained. It will be shown how analyzing gardening as an aesthetic performance can lead to a renewed understanding of the material and symbolic aspects of plant cultivation and of material culture studies as a whole. Keywords aesthetics, performance, ecology, Jê-speaking societies, Amazonia

CULTIVANDO ROÇAS

uma abordagem das performances ecológicas e estéticas na Amazônia indígena Resumo Esse artigo trata da produção e da performance da cultura material

na Amazônia indígena. Entendido enquanto estudo das relações entre pessoas e coisas, os estudos de cultura material podem incluir um exame das relações humano-planta envolvidas no cultivo de plantas. Esse artigo demonstrará como as sociedades Jê setentrionais conceitualizam as práticas de cultivo como uma série de performances multi-sensoriais estéticas, através das quais as relações humano-planta são formadas e mantidas. Será mostrado que, analizar as práticas de cultivo como performances estéticas, pode levar a um entendimento renovado dos aspetos materiais e simbólicos do cultivo de plantas, e do estudo da cultura material em geral. Palavras-chave estética, performance, ecologica, sociedades Jê, Amazônia

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Growing gardens

Introduction: material culture production and performance in indigenous Amazonia In recent years, the material culture of indigenous Amazonia has begun to receive more analytical attention. While indigenous lowland South American societies were previously thought to produce minimal artefacts that were lacking in technical sophistication (cf. Meggers and Evans, 1973; Roosevelt, 1980), recent anthropological studies have shed light on the conceptual significance and technical merits of indigenous design (Lagrou, 2007; 2009), body decoration (Turner, 1995; Ewart and O’Hanlon, 2007), beadwork (Ewart, 2008), and the creation of ritual artefacts such as musical instruments (Hugh-Jones, 2009) and masks (Barcelos Neto, 2009). These Amazonian accounts have contributed to a re-conceptualization of material culture as encompassing various relationships between people and things (cf. Ingold, 2007; 2008; Santos-Granero, 2009; D. Miller, 2010). The performative aspect of Amazonian material culture production has also been touched upon, particularly the importance of the body and embodiment in person-thing relationships (cf. Turner, 1995; Ewart and O’Hanlon, 2007; Santos-Granero, 2009). Any understanding of indigenous material culture production, however, must include local societal notions of what constitutes an artistic performance and the aesthetic and ethical value of these activities (cf. Myers, 2001). In indigenous Amazonia, it appears that material culture production is not limited to the creation of artefacts and designs, but also includes gardening and crop cultivation practices, conceptualized here as a series of human-plant artistic performances. This paper will explore the implications of this claim through an analysis of gardening activities in Jê-speaking indigenous societies of central and northeast Brazil. A particular focus will be given to how indigenous peoples engage with cultivated plants, and how these human-plant relationships constitute embodied multi-sensory performances. It will be shown how the indigenous Amazonian garden can be conceived as an artistic space within which meaningful aesthetic performances are carried out. Based on the available ethnographic literature, I will outline how a theory of gardening as a series of aesthetic ecological performances can lead to a renewed understanding of the material and symbolic aspects of crop cultivation, and of material culture studies as a whole.

The artistry of gardening: growth, creativity, and skill While anthropological and archaeological investigations of gardening practices are rare, some recent studies have conceptualized Western gardening as part of a society’s material culture. Chandra Mukerji’s (2010) historical account of 17th-century French state gardens demonstrates how human dominion over marginalized humans and nonhumans is embedded in material culture, as seen in the organization and design of the gardens at Versailles. Degnen’s (2009) ethnographic study of northern English gardeners shows that garden spaces not only represent human social relationships, but are also the site of social en-

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counters between humans and garden plants. Contrary to the overarching Western naturalism that differentiates between human and plant “interiorities” (cf. Descola, 2009:150), these English gardeners appear to engage with their plant counterparts through consubstantial relationships of identification (Degnen, 2009:160-161). In different ways, then, both of these explorations of Western gardening practices reveal the materiality of garden spaces and the variety of possible engagements (or disengagements) between persons and things. Although these analyses have contributed to the field of material culture studies, neither one attempts to investigate the artistic performative or aesthetic aspects of gardening. It therefore remains unclear whether gardens are conceptualized as spaces of artistic production in Western contexts.

Fig. 2 | Canela´s cultivating garden, Escalvado village, Maranhão © Theresa Miller, 2012

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There is evidence, however, that some non-Western societies such as those in indigenous Amazonia conceive of plant cultivation as a series of artistic performances through which aesthetic engagements between people and plants are emphasized and valued. In this view, “artistic performances” and “aesthetics” are active, relational terms that incorporate both human and nonhuman forms of agency (cf. Gell, 1998). Some material culture theorists advocate for a “symmetrical” view of human and nonhuman agency, in which all sorts of beings share similar agentive capacities and physical “matter” (cf. Latour, 1993; 2000; 2005; Barad, 2003; 2007). As noted by Rival (2010, n.d.) and Ingold (2006; 2008:215), these theories of agency overlook important distinctions between animic processes of self-made growth and processes of external creation. Rival (2010:4-5) references Gell’s (1998:40-41) example of yam cultivation in the Abelam community of Papua New Guinea to highlight the different kinds of intentionality

involved in “socially constructed” creation, such as the manufacture of artefacts, and “organic growth.” Yams are thought to utilize their own agentive capacity to “grow themselves” (Gell, 1998:41), and are assisted by the human cultivator’s agency throughout the growing process. Plant cultivation in indigenous Amazonia incorporates a similar emphasis on agentive growth processes (cf. Descola, 1997; Rival, 2001; Ewart, 2005) that is absent from accounts of Amazonian artefact agency. It therefore appears that while all forms of material culture production involve human creative agency, gardening is unique in that it also includes the distinct agentive growth capacities of plants1. If both self-generative plant agency and human creative agency are involved in gardening activities, how can an anthropological analysis of these complex human-plant engagements be initiated? The examples from indigenous Amazonia will show how conceptualizing these engagements as ecological aesthetic performances can lead to a more thorough examination of gardening practices than solely evaluating the garden as a functional or socio-economic space (cf. Maybury-Lewis, 1967; Sousa de Nacimento, 2009). “Ecological aesthetic performances” in this sense are understood as a series of multi-sensory perceptual engagements among a multitude of human and nonhuman beings, or “selves,” that inhabit the surrounding environment (cf. Kohn, 2002:72; 2007:4). Some of these engagements, such as those between humans and certain garden crops, are particularly valued and made meaningful within a specific human (and nonhuman) society. Instead of utilizing the traditional notion of aesthetics as a passive system of visual and aural disinterested contemplation (cf. Berleant, 2002), this paper conceives of aesthetics as an active, processual system that incorporates all the senses (cf. Merleau-Ponty, 1964; 1974; Ingold, 2000:166-167). The environment in which these ecological aesthetic performances are carried out is also conceptualized in relational, active terms. It is not a static, external entity but rather a “domain of entanglement” that affords certain experiences to all sorts of beings and is continuously under construction alongside human and nonhuman life processes (Ingold, 2000:193; 2006:14). As the relational realm of affordances, the environment is inseparable from multi-sensory human and nonhuman perceptual experiences.

1. Non-manmade objects are often attributed with agency, as is the case with egaando, or stone bowls, among the Urarina of the Peruvian Amazon (Walker, 2009). These stones, however, do not grow or change over time as plants do.

It is important to note that not all ecological performances are equally valued within a specific community. As Gell (1992; 1998:40-41) points out in the case of Abelam yams and Trobriand islander gardens, what is often aesthetically valued is the difficulty or technical skill involved in creating a work of art. In indigenous Amazonia, it appears that while there is less emphasis on the difficulty of garden work, the embodied skills involved in specific garden performances are particularly valued. This includes the skills and techniques of humans, plants, and in some cases of supernatural master spirits or mythical figures that assist in the cultivation of garden crops. An artistic gardening performance, then, involves a variety of skilful, multi-sensory encounters between humans, plants, and (sometimes) supernatural beings. The next section will demonstrate how meaningful aesthetic gardening acts are carried out in different indigenous Amazonian communities.

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Aesthetic ecological performances in North-Western Jê societies

2. Traditionally, these groups would go on long hunting and gathering expeditions for months at a time, leaving their village and garden plots. When the garden crops were ready for harvest, the community would return to the village (cf. Maybury-Lewis, 1967; Da Matta, 1982). Due to various factors, including the circumscription of their territories, trekking is now a rare practice for the majority of Jê societies (cf. Seeger, 1981; Flowers, 1994). 3. It is important to note that the legal demarcation of Jê territories in the mid- to late-twentieth century, while assisting in the preservation of their unique social and cultural activities (cf. Seeger, 1981), simultaneously resulted in a circumscription of subsistence livelihoods. Consequently, most Jê societies currently rely on subsistence gardening activities more than they did in the past, and spend significantly less time on collective hunting and gathering treks (cf. Gross et al., 1979).

The available ethnographic literature on Jê-speaking indigenous societies has largely overlooked gardening activities and has often dismissed these practices as disorganized, “inefficient,” and unimportant (Maybury-Lewis, 1967:47-48; Da Matta, 1982:2; Sousa de Nacimento, 2009:86). A closer examination reveals, however, that cultivating crops is central to many aspects of Jê cosmology, sociology, and ecology. In particular, societies belonging to the Northern-Western Jê linguistic sub-group share distinct forms of aesthetic ecological gardening performances. Northern-Western Jê communities in this study include the Kayapó, Suyá (Kisêdjê), Panará, living in Pará and Mato Grosso states, and two Eastern Timbira groups living in Maranhão and Tocantins states, the Ramkokamekra-Canela and the Krahô (cf. Ávila, n.d.; Instituto Socioambiental, 2005). Jê-speaking societies in general are known for their matrilocal residence patterns, circular villages, elaborate ceremonies, and a trekking-horticulturalist2 subsistence economy with an emphasis on maize cultivation over manioc (Heelas, 1979; Seeger, 1981; Azanha, 1984; Lea, 2001). Although horticulture was less nutritionally significant prior to sustained contact with the national Brazilian society, ethnohistorical evidence suggests that gardening has remained conceptually important to Jê societies for centuries (cf. Nimuendajú, 1946; Crocker, 1994; 2004:19; Melatti, 1978:46)3. The historical aspect of Jê gardening practices is complemented by an emphasis on garden crops in origin myths (cf. Wilbert, 1978). These crops, especially maize and sometimes peanuts, are mythically tied to the creation of indigenous “society” and the separation of distinct ethno-linguistic groups (Wilbert, 1978; Ewart, 2000). In Northern-Western Jê societies in particular, gardening activities are linked to notions of societal and individual regeneration and growth. Recognizing analogous growth processes between humans and plants is common in indigenous communities worldwide (cf. Rival, 1993; 1998; 2001; Bloch, 1998). In indigenous Amazonia, however, there is often a distinct consubstantial relationship between cultivated plants and their human cultivators similar to that between a parent and child (Descola, 1997; Rival, 2001; Taylor, 2001). For the Suyá, there exists a general “physical bond between people and crops” (Seeger, 1981:105) which is likened to a parent-child relationship. It appears that this physical, parental bond with cultivars exists for both men and women. The female garden owner and her husband must undergo food restrictions until harvest time in order to protect the crops from harm, a practice that is also undertaken by the parents of newborn babies. It appears that perceiving plants as “children” may be a way for Suyá men and women to engage with their garden crops in a kind of aesthetic empathy. While the Panará only consider peanuts to be “children” of their cultivators, other significant cultivars such as maize and gardens in general are said to “articulate regenerative concepts” (Heelas, 1979:272; Ewart, 2005; personal communication). Similar to the Suyá, the link between Panará people and their garden

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Fig. 3 | Canela’s woman preparing corn © Theresa Miller, 2013

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crops is especially evident in the food restrictions undertaken by cultivators during the growing season, since these same restrictions are followed by the parents of an infant child (Heelas, 1979:252; Ewart, 2005). Ramkokamekra-Canela and Krahô men also practice food, hygiene, and sexual restrictions known as resguardo when they are cultivating peanuts (cf. Melatti, 1978:356). The Krahô liken peanuts and other growing plants to adolescent people, in that both groups undergo an isolation period before reaching maturity (Melatti, 1978). Additionally, Krahô and Ramkokamekra gardeners claim that conceptually significant crops, including peanuts, sweet potatoes, squash, fava beans, and maize, have intentional capacities, such as the ability to make decisions, hear, become happy, and remember (Melatti, 1978:356-357; Crocker, personal communication). Kayapó gardeners attribute similar subjective qualities to cultivated plants, including a plant’s capacity to be a “good neighbor” to other nearby garden cultivars (Posey and Plenderleith, 2002:6). These consubstantial parent-child engagements between Northern-Western Jê peoples and their garden crops are possible due to the presence of a similar interiority, vitality, or “animacy” within humans and many nonhuman beings (cf. Santos-Granero, 2006; Descola, 2009; Rival n.d.). In these societies, as in much of indigenous Amazonia, the notion of a shared interior vitality, or “soul,” enables communicative multi-sensory experiences to occur among humans and nonhumans (cf. Hornborg, 2001). Although there is much debate over the levels of “passive” or “active” animacy for different types of beings (cf. Coelho de Sousa, 2002:536), it does appear that the Northern-Western Jê communities conceive of plants as active subjects who are willing and able to enter into intimate engagements with their human counterparts. This is not to say that other beings do not have an instrumental role in human-plant relationships. The “master spirit” of a plant species is often thought to interact with both the cultivar and the gardener, thereby creating a triadic human-plant-supernatural relational entanglement. Northern-Western Jê cultivated plant origin myths reveal a similar triadic relationship among people, crops (specifically maize), and Star-Woman or Mouse/Rat, the supernatural agents who enabled the first human-plant perceptual aesthetic engagements (cf. Wilbert, 1978; T. Miller, 2011). In Kayapó society, for example, all beings possess a vitality known as karon, and particularly significant animals and plants each have a master spirit who must be appeased through ritual performances. Through these ceremonies, humans gain dominion over the master spirits and their plants and animals, ensuring a continued ecological, cosmological and societal “balance” (Posey and Plenderleith, 2002:79). For the Eastern Timbira, including the Ramkokamekra-Canela and Krahô societies, a “vital principle” known as karõ is or can be present in humans, animals, plants, supernatural beings, and material objects (Melatti, 1978:92-93; Crocker, 1993; Coelho de Sousa, 2002:534-535). While sharing a similar internal karõ means that communicative human-nonhuman relationships are possible, they may not always be desirable. Some engagements, such as those between living people and deceased kin (who still possess karõ), are seen as dangerous and are avoided by everyone except skilled shamans. This avoi-

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dance is further complicated by the Ramkokamekra belief that a dead person’s karõ turns into a series of animals and then plants, eventually ceasing to exist as a living entity (Crocker, 1993:72-73). Whether human-plant engagements are affected by this belief remains to be seen and could be the subject of further research. Overall, though, it does appear that North-Western Jê peoples typically desire and seek out intimate consubstantial relationships with their garden crops. As seen in the Kayapó case, human-nonhuman entanglements are created and made meaningful through specific performative acts. One of the most common ways for indigenous gardeners to engage with cultivated plants is through ritual singing. Suyá gardeners perform standard ritual chants near garden crops in the hopes of influencing their growth (Seeger, 1981:104-105). Similarly, the Ramkokamekra have a particular ritual song for each important cultivar, including maize, sweet potato, squash, and fava bean. Performing these songs is necessary for the plant’s happiness and growing capabilities, which are seen as interchangeable. These crops are said to “hear” the human singing and, if performed well, will respond by growing fast and providing a good harvest (Crocker, personal communication). Planting and harvesting rituals are also common multi-sensory aesthetic performances for both humans and cultivated plants. While maize and manioc harvest festivals are only mentioned in accounts of Kayapó gardening (Posey and Plenderleith, 2002:4), garden ceremonies in Ramkokamekra, Krahô, and Suyá communities are described in detail. Jê societies are known for their elaborate ceremonies (cf. Maybury-Lewis, 1979; Azanha, 1984), and accounts of Ramkokamekra ceremonial life are perhaps the most detailed of all the North-Western Jê societies studied. Sweet potato, squash, and peanut crops are all given harvest festivals, and maize is especially ritually emphasized through three planting, growing, and harvest ceremonies. In the maize planting ritual, a song leader directs a group of gardeners to sing over the maize kernels prior to their being planted. This communicative act is intended to please the kernels, who seem to listen to and understand the ritual songs (Crocker, 1990:98; personal communication). The maize growing ceremony in mid-January is characterized by male log racing, an archetypal Eastern Timbira ritual performance. Adolescent men carry buriti palm logs carved to resemble maize cobs, which is meant to increase the maize harvest (Crocker, 1990:98-99). Harvesting maize at the beginning of the dry season is an elaborate, multi-stage event that emphasizes the growth and abundance of maize, individual Ramkokamekra, and the society as a whole. Prior to the harvest, elderly male leaders must taste a few ears of maize to appraise the crop. A portion of the harvest is set aside for processing and consumption as maize-meat pies during a ritual feast (Nimuendajú, 1946:62-63). This feast is followed by a series of athletic competitions including log racing, lance throwing, and tossing shuttlecocks made out of cornhusks. The number of times a shuttlecock can be batted into the air without falling on the ground is thought to directly correlate to the maize harvest’s abundance (Crocker, 1990:285-286).

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While these three rituals involve different types of human-maize aesthetic engagements, overall the maize plant is valued and made meaningful through its association with concepts of growth and regeneration. Ramkokamekra cultivators are eager to enter into intimate multi-sensory encounters with maize during the planting phase, to assist its generative processes in the growing ceremony, and to recognize the maize’s growing prowess in the harvest festival. Thus, it appears that these ceremonies involve human and plant actors who are engaging in simultaneously creative and biological performances. The Krahô have a similar approach to garden crops, also illustrated in their maize ritual complex. Krahô maize planting and harvest ceremonies involve similar activities such as log racing and throwing cornhusk shuttlecocks, while the drying ceremony includes the ritual consumption of maize-meat pies (Melatti, 1978:170, 176-178). Throughout these festivals, there is an overarching emphasis on societal reproduction and maintenance (cf. Ávila, 2004:73) that corresponds with the growth and abundance of the maize harvest. Although specific human-plant engagements are less clear in the available ethnographic data on the Krahô, the maize rituals demonstrate a conceptual link between human and plant growth and reproductive processes.

Fig. 4 | Canela’s woman and girl in a cultivating garden after burning © Theresa Miller, 2012

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Garden crops are also associated with societal regeneration in Suyá society. Once again, this is most clearly demonstrated in the maize harvest festival due to the crop’s mythical importance. Known as the Mouse Ceremony, this harvest ritual commemorates the maize origin myth, in which Mouse shows a Suyá woman that maize is a food crop and can be made into maize-meat pies (Seeger,

2004:28). The woman then gives the pies to her son, instructing him to feed the men’s ceremonial house with the new food. Honoring this mythical event, the ceremony centers on a ritual meal of maize pies and gruel, both of which are prepared by women for their sons and brothers (Seeger, 2004:113-114). In this way, all the elements of Suyá society (men, women, and children) come together through the making and consuming of maize pies. Additionally, maize is a mediator between the older and younger generations, ensuring the continued sustenance and regeneration of the community. This ceremony also highlights the multi-sensory human-maize relationship originally initiated by a supernatural being. In the maize origin myth, the Suyá could not perceive maize or other plants growing near the bathing hole as food without the assistance of Mouse. This mythical “discovery” of maize and its annual re-enactment can therefore be seen as perceptual aesthetic performances, in which humans engage with and appreciate the growth and edibility of maize. Although garden rituals may be the most obvious forms of aesthetic ecological performances, the everyday acts involved in planting, organizing, and classifying garden crops also fall under this category. Each step of the gardening process involves multi-sensory human and plant actions or movements, to use a more fluid, performative term (cf. Ingold, 2008). When the Panará are choosing a garden location, for example, they describe this process as a search for the most “beautiful” soil, which will therefore be fertile enough to support garden crops (Heelas, 1979:245). By perceptually engaging with the soil in an aesthetic way, the Panará combine concepts of beauty, goodness, and fertility or growth. A combined aesthetic and ethical appreciation for certain cultivated plants and their growth processes are especially apparent in Panará society. Panará gardeners have been known to claim that their crops, particularly peanuts, are more “beautiful” and therefore morally superior to peanuts from neighboring indigenous communities (Schwartzman, 1988:78; Ewart, personal communication). While living in the Xingu Park (PIX) in 1970s-80s, the Panará were “scandalized” by Kayabi small red peanuts, which are markedly different to the Panará large white variety (Schwartzman 1988:79). The group also expressed dislike for the haphazard and “messy” layout of Suyá gardens (Heelas, 1979:248). A Panará garden is meticulously organized into three concentric circles, with the central ring reserved for the ceremonially significant crops of peanuts, sweet potatoes, and red maize (Heelas, 1979:253). Concentric circle agriculture mirrors the circular village layout, with the central ceremonial sphere, the peripheral domestic sphere, and the foreign “enemy” elements that are located beyond the village periphery (cf. Ewart, 2000; 2003). Thus, it appears that Panará conceive of the garden as an aesthetic space in which sociological, ecological, and ethical aspects of society are combined. The Kayapó also practice concentric-ring agriculture. Similar to the Panará, the outermost ring is devoted to fruit trees and/or debris, while the middle and central rings contain nutritionally and conceptually significant crops such as maize, manioc, peanuts, and sweet potatoes (Hecht and Posey, 1989:184-185). The garden layout is based on the interactions between the inner vitalities, or karon,

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of distinct plant species and/or their master spirits. A skilled Kayapó gardener will know how to harmoniously combine these vitalities “just as an artist blends colors to produce a work of art” (Posey and Plenderleith, 2002:7). Plant vitalities are also combined on a socio-cosmological scale, where they act as mediatory “balancing agents” (Posey and Plenderleith, 2002: 35) between human and animal realms. For the Kayapó, gardening practices are multi-sensory human, plant, and (sometimes) plant master spirit engagements that are necessary to maintain a harmonious cosmos. These engagements are artistic performances involving the creative agency of experienced gardeners and the self-generative agency of the plant (and/or its master spirit). Although organized circular gardens are central to Panará and Kayapó societies, this is not a pan-Jê characteristic trait. Suyá, Ramkokamekra, and Krahô gardens are usually rectangular plots with a somewhat chaotic appearance. Monocropping and intercropping of different species appears unplanned and haphazard, and slashed plant debris is often left to decompose alongside cultivated plants (Nimuendajú, 1946:62; Da Matta, 1982:40-41; Crocker, 1990:95). This unkempt appearance should not detract from the significance of gardening practices or the garden space itself. From an ecological standpoint, intercropping reduces risk of pests and disease, and leaving burned debris on the soil can actually increase its fertility (cf. Eden, 1990; Brush, 2004:16). Planting certain crops near each other, as the Krahô do with maize and beans, can be advantageous for the growth of both species (cf. Melatti, 1978:47-48; Roosevelt, 1980). With a reduced number of pests and increased plant growth capacities, an intercropped garden can grow on its own, thereby allowing for the traditional Jê practice of temporarily “abandoning” garden plots during extending hunting trips (cf. Maybury-Lewis, 1967). This practice also recognizes the self-sufficient capacities of cultivated plants, who are able to develop and mature into full-grown “adults” much as adolescent youths do during isolation rites, a common feature of Jê ceremonial life (Melatti, 1978; Seeger, 1981; Da Matta, 1982; Crocker, 1990). In this sense, the garden is a space within which meaningful performances between a human “parent” and a plant “child” are carried out. The North-Western Jê gardener assists in the plant’s own development while simultaneously creatively affecting the way it grows. Throughout their self-generative growth process, these plant children are also being shaped and controlled by their human parents. Similar to a human child, the growing plant child is socialized by its parents in the garden plot, seen by the Suyá as a social transformation of an originally “wild” space (cf. Seeger, 1981:23). These relationships therefore appear to involve an element of control or mastery by the human parent over the plant child, although it is unclear whether this type of mastery is hierarchical in form (cf. Fausto, 2008). At a general level, human creative control over plants has played and continues to play a significant role in plant domestication and varietal diversity maintenance (cf. Brush, 2004). This creative influence on plant diversity is particularly demonstrated in ethnobotanical classification systems. North-Western Jê plant classification displays a preference for varietal diversity.

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Conceptually significant species are often classified into dozens of named varieties, and maintaining multiple varieties in one garden plot is valued as an especially skilled practice (cf. Posey and Plenderleith, 2002; Crocker, personal communication). Lamentations over the loss of crop varieties has resulted in serious recuperation efforts, as seen in the Kayapó, Suyá, and Krahô societies (Ávila, 2004; Niemeyer, 2009; Raoni Institute, 2010; Ewart, personal communication). Classifying cultivated plant species and their varieties is based on meaningful past and present human-plant engagements, and in this way can be seen as an aesthetic ecological performance. Drawing on Coote’s (1992) claim for an aesthetic understanding of local classification schemes and “everyday” activities, I would argue that North-Western Jê ethnobotanical classification is a multi-sensory aesthetic practice within which certain species and varieties are named and valued in different ways.

Conclusion: creating meaningful garden spaces The above examples demonstrate how human-plant performances are played out in ritual, myth, garden techniques and organization, and even plant classificatory systems. Through multi-sensory aesthetic encounters, certain relationships between humans, cultivated plants, and (at times) supernatural beings are valued and made materially and symbolically meaningful. Cultivated plants certainly have important material aspects, being simultaneously “artefacts” of past societies (Brush, 2004), material markers of current socio-cultural processes, and living organisms in their own right. Human and plant ecological performances are also clearly material processes involving specific materials such as particular crop varieties and embodied skill sets. A focus on materials (Ingold, 2007), however, should not detract from the symbolic significance of garden performances. Communicative acts (cf. Hornborg, 2001) between human parents and plant children involve key socio-cultural symbols regarding the meaning of a parent, a child, growth, and mastery, among other symbolic concepts. While it is common within material culture studies to place the material and symbolic on opposite ends of anthropological theory (cf. D. Miller, 2010), understanding human-plant engagements as aesthetic performances can lead to a more integrated analysis of these complex processes. Meaningful human-plant perceptual entanglements are simultaneously material and symbolic, as lived realities merge with embodied ideas and beliefs. There has been an increasing effort in material culture studies to move away from a stagnant interpretation of person-thing relationships and instead focus on the contingency of both persons and things and the importance of bodily movement and growth (Holtorf, 2002; Ingold, 2008). When analyzing relationships between gardeners and their cultivated plants, it is clear that an emphasis on processes of growth, movement, and change can lead to new and innovative conclusions. Instead of examining plant cultivation as a by-product of more “complex” socio-cultural activities (cf. Maybury-Lewis, 1967), this article has attempted to understand the complexities of indigenous Amazonian gardening

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in its own right. North-Western Jê societies may have unique ways of engaging with garden crops, but there is evidence that similar human-plant relationships exist in other lowland South American communities such as the Achuar (Descola, 1997; Taylor, 2001), Makushi (Rival, 2001), Kaxinawa (Lagrou, 2007; 2009), and Yanesha (Santos-Granero, 2006; 2011). Further research is needed to compare the gardening practices of many different indigenous Amazonian societies. Only by understanding gardening as a series of aesthetic ecological performances, however, can this type of ethnographic research reach its full potential.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO MILLER, Theresa. Growing gardens: towards a theory of ecological aesthetic performances in indigenous Amazonia. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 92 - 113. Disponível em: http:// issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa. Recebido em 30 de setembro de 2011. Aprovado em 15 de fevereiro de 2012.

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Fig. 1 | Bandeira vudu, Haiti, séc.XX. © Musée du quai Branly.

PLANÈTE MÉTISSE

uma exposição antropológica no Museu do Quai Branly por Nina Vincent Lannes

Nina Vincent Lannes

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Nina Vincent Lannes é Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ

PLANÈTE MÉTISSE

uma exposição antropológica no Museu do Quai Branly Resumo Este artigo pretende abordar algumas reflexões sobre a relação entre

antropólogos, museus, objetos etnográficos e arte, partindo da apresentação de observações iniciais sobre a exposição Planète Métisse: to mix or not to mix. A exposição temporária, realizada pelo Museu do Quai Branly, em Paris, serve de fio condutor para a apresentação do projeto do museu e dos aspectos materiais e estéticos envolvidos na re-significação de objetos de diferentes culturas por parte dos diversos atores operantes em sua concepção. Palavras-chave Antropologia da Arte, Objetos, Museu, Exposição

PLANÈTE MÉTISSE

an anthropological exhibition at Quai Branly Museum Abstract This article intends to approach some reflections about the relationship

between anthropologists, museums, ethnographic objects and art starting from the introduction of initial comments on the exhibition Planète Métisse: to mix or not to mix. The temporary exhibition carried out by the Quai Branly Museum in Paris, serves as a guiding principal to the presentation of the museum project and the materials and aesthetics aspects involved in re-signification of objects of different cultures by the different actors that operate in its conception. Keywords Anthropology of Art, Objects, Museum, Exibithion

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Planète Métisse

Apresentação O presente artigo propõe uma análise da exposição Planète Métisse: to mix or not to mix, uma exibição temporária realizada no Museu do Quai Branly, em Paris, em 2008/2009, contextualizando-a em relação ao museu como um todo e sua exposição permanente. A exposição, que se insere em um grupo de exibições classificadas como “exposições antropológicas”, diferencia-se em alguns aspectos do programa geral do museu, trazendo a possibilidade de refletir sobre os objetos selecionados para constituir seu percurso e as relações que a curadoria pretendeu estabelecer entre eles e o público visitante. Por ter como curador um historiador declaradamente posicionado em uma perspectiva antropológica, ela abre também a possibilidade para uma reflexão acerca das relações entre a Antropologia, os objetos ditos de “arte” ou “etnográficos” e os museus, tema que tem se revelado de grande interesse para compreender as diferentes associações da disciplina com instituições museológicas ao longo de sua história e o lugar da alteridade nos museus de arte ocidentais. O artigo é fruto de reflexões iniciais sobre a pesquisa que vem sendo desenvolvida para o mestrado. O foco aqui foi lançado sobre a perspectiva dos objetos, considerando os momentos em que estes estão em trânsito, em que sofrem mudanças de status e de papel, e os atores envolvidos nestes processos. Este é apenas um enfoque dentre outros que pretendemos explorar na dissertação. Ao se trabalhar com um museu etnográfico, é preciso olhar para os objetos presentes em sua coleção com a perspectiva de que sua presença ali, sob o rótulo de “objeto etnográfico” ou “arte primitiva”, é apenas um momento (de uma versão) de sua história, de sua vida social, de sua biografia. Os objetos passam por diversos momentos, produzindo relações e sendo categorizados e narrados de diferentes maneiras pelas pessoas nas diversas interações em que se inserem. Estes objetos foram fabricados, classificados, utilizados, trocados, roubados, transportados, vendidos, colecionados, exibidos, reclassificados, e, em todos esses processos, diversos pontos de vista incidiram sobre eles e foram por eles afetados. Como bem coloca Kopytoff (2008:93), “as reações culturais a tais detalhes biográficos revelam um emaranhado de julgamentos estéticos, históricos e mesmo políticos, e de convicções e valores que moldam as nossas atitudes quanto a objetos designados como ‘arte’”. A observação do Museu de Quai Branly, de sua exposição permanente e algumas exibições temporárias, se deu em diversas visitas realizadas ao longo dos anos de 2009 e 2010. Neste período foi possível também entrar em contato com o banco de dados do acervo utilizado pela equipe do museu e com alguns de seus funcionários, além de acompanhar alguns cursos realizados na Université Populaire du Quai Branly. As fontes utilizadas aqui são materiais de divulgação do museu, seu site oficial, catálogos de exposições e repercussões difundidas por visitantes e jornalistas na Internet. A estadia na França e vivência no museu possibilitaram relacionar as observações à rica bibliografia que vem sendo produzida sobre a instituição despertando um olhar para as diversas questões envolvidas em sua criação, suas atividades e

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Fig. 2 | Fachada vegetal dos prédios administrativos do Museu do quai Branly, 2006.Concebida por Patrick Blanc. Copyright: © Musée du quai Branly, foto Nicolas Borel

Fig. 3 | Edifício do Museu do quai Branly, 2007. O jardim do museu, concebido pelo paisagista Gilles Clément, foi realizado graças ao mecenato da Fundação GDF SUEZ. © Musée du quai Branly, foto Nicolas Borel

sua relação com o projeto político francês. Atenta-se assim para a materialidade dos objetos e as ressignificações pelas quais passam ao comporem um projeto museal como o do Quai Branly, que conjuga discursos artísticos, teóricos e políticos diversos, apresentados em sua organização estética e sensorial.

O Museu do Quai Branly

1.

Informação obtida no site oficial do museu: .

2. Termo criado por Jaques Kerchache, pretendendo combater o pejorativo termo “artes primitivas” (Price, 2007).

Em junho de 2006 foi inaugurado o mais recente museu da cidade de Paris, considerada uma das mais importantes capitais culturais do mundo. O Museu do Quai Branly fica numa região extremamente prestigiosa da cidade, ao lado da Torre Eiffel e é inteiramente consagrado às artes dos povos não ocidentais. Sua arquitetura foi concebida pelo renomado e controverso arquiteto francês Jean Nouvel para acolher uma quantidade imensa de visitantes (uma média de 115 mil pessoas visitam o museu todos os meses) e de objetos (267.417 compõem a coleção do museu).1 Muitos destes objetos foram herdados do antigo Museu do Homem, no Trocadéro, também em Paris, que fechou suas portas definitivamente. O Museu do Quai Branly é uma obra gigantesca que coroou o mandato do presidente Jaques Chirac e sua amizade com o colecionador de arte e amante da arte africana, Jaques Kerchache. Uma obra que pretende simbolizar a admiração dos franceses pela “arte primitiva” e demonstrar um desejo cada vez maior da França de ser vista como um país que respeita todas as outras culturas do mundo. Como conta Sally Price (2007) sua criação foi acompanhada por uma série de polêmicas. A ideia inicial era consagrar um pavilhão dedicado às arts premières2 no Museu do Louvre. Após diversos protestos, tanto por parte daqueles que consideravam uma afronta expor objetos “primitivos” ao lado das maiores obras de arte das culturas ocidentais, quanto daqueles que viam no projeto um estetismo primitivista, o chamado Pavillon des Sessions foi de fato construído, mas como complemento do novo museu que seria criado. Quando o presidente da república anunciou seu projeto de construir um novo museu, em 1999, abandonando as propostas elaboradas por antropólogos de reformular o já existente Museu do Homem, colaboradores desta instituição entraram em greve contra o desmantelamento de sua coleção, que seria transferida para o novo museu, por revelar uma evidente primazia estética em detrimento da relevância científica ao tratar dos objetos etnográficos. Mais problemas surgiram na escolha do nome do museu que, no início do projeto, deveria se chamar Musée des Arts Premières (Museu das Artes Primeiras), nome que indignou especialmente a comunidade antropológica, cada vez mais atenta às interpretações de objetos etnográficos desenvolvidas nos museus e suas implicações políticas, por sua conotação hierarquizante e evolucionista. É preciso lembrar que a relação da Antropologia com os objetos e com os museus passou por muitas fases desde a consolidação da disciplina. A abordagem desta relação desenvolvida por Gonçalves (2007) mostra como é possível acompanhar as mudanças nos paradigmas teóricos da disciplina observando as

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interpretações que esta produziu sobre objetos materiais. A chamada “cultura material” dos povos sempre esteve presente como objeto da Antropologia, mas objetos e construções foram interpretados de diferentes formas, seja como evidências do contato entre culturas, emblemas demarcadores de posições e status nas relações sociais, partes do sistema simbólico por trás experiência subjetiva das identidades individuais e de grupo etc. Nos anos de 1980 se formula uma crítica a estas interpretações e às construções ideológicas difundidas pelas instituições museológicas, muito inspirada no trabalho de Marcel Mauss, buscando compreender a capacidade dos objetos de produzir corpos, sujeitos e relações. Estas mudanças afetaram diretamente sua exibição nos museus, que passam de um modelo museográfico “enciclopédico” à incorporação de explicações da função, uso e composição dos objetos. Assim, além de suas significações etnográficas, os objetos passam a ser estudados como parte de uma rede de relações complexas que incluem o papel do antropólogo, do museólogo, dos colecionadores e as questões políticas presentes no percurso percorrido pelos objetos. Estes estudos críticos partiram em grande parte de pesquisadores dedicados a explorar as questões pós-coloniais e problematizar o papel da própria antropologia nestes contextos. O próprio nome do museu já estaria revelando a concepção sobre os povos que fabricaram os objetos que lá seriam expostos por trás do projeto de preservação cultural e valorização artística apresentado para a instituição. Povos

Fig. 4 | Plateau des Collections do Museu do quai Branly, zona Oceania. Junho de 2006. © Musée du quai Branly, foto Nicolas Borel

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Fig. 5,6 | Projeto cenográfico de Planète Métisse, por Reza Azard e Projectiles.

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primitivos, cuja história se situa num momento precedente ao nosso, artistas anônimos que criam objetos belos, exóticos e até mesmo assustadores. A polêmica acabou mudando o nome do museu para o nome do lugar onde se localiza, Musée du Quai Branly, nome ao qual foi acrescentada a frase “Lá onde dialogam as culturas”. Entretanto, é justamente essa idéia de diálogo que tem sido alvo das maiores críticas, tanto de caráter político quanto estético, aspectos que são, de fato, inseparáveis, feitas à instituição (Price, 2007; Lagrou, 2008; L’Estoile, 2007; entre outros).

O plateau da coleção permanente Uma das polêmicas iniciais em torno do Museu do Quai Branly estava ligada à sua proposta arquitetural. Projetado pelo arquiteto francês Jean Nouvel, o museu deveria se fundir com seus jardins, criando uma espécie de floresta urbana conceitual. Sua proposta, baseada em “evitar os hábitos da arquitetura ocidental” deveria criar um espaço que evocasse o sonho, a imaginação, os símbolos da floresta (Price, 2007). Shelton chama a atenção para uma provável dominação da forma sobre o conteúdo observada em casos em que museus entram na arena de competições arquitetônicas tornando-se “eles mesmos objetos de vanguarda [...] para exibição das virtuosidades do novo design” (Shelton, 2006:483). Os quatro prédios que compõem o museu flutuam sobre um enorme jardim onde varetas luminosas se acendem com o cair do Sol, projetando luzes azuis e verdes que dão a impressão de reflexos d’água ou de luzes que atravessam os galhos de uma densa vegetação. As cores terrosas e jardins internos visíveis pelo caminho, a imensa “parede verde”, que contém mais de 150 espécies de plantas oriundas das mais diversas partes do mundo compondo um jardim vertical, tudo parece remeter à mais uma fantasia primitivista associando a “arte primitiva” e seus produtores à floresta, ao domínio da natureza. Quando entramos num museu como o Quai Branly, todo o imaginário construído acerca da “arte primitiva” está bem presente. James Clifford atentou para a extrema dominação da arquitetura sobre o conteúdo do museu e descreveu suas primeiras impressões: “Entramos no alto de uma longa rampa de acesso que mergulha subitamente na obscuridade (semelhante à entrada de um parque temático) e emerge num mundo incerto, povoado por formas impressionantes, às vezes mesmo misteriosas.” (Clifford, 2007:30, 31). Trata-se de um museu pouco iluminado, onde a fronteira entre os continentes representados – África, Ásia, Américas e Oceania – é bastante confusa, destinando ao visitante um vasto percurso de exotismos a ser percorrido sem que se possa distinguir muito bem o contexto de produção do objeto, nem suas utilizações, restando somente uma estética do encantamento. O museu dispõe de uma quantidade impressionante de recursos tecnológicos, como telas de vídeo táteis através das quais os visitantes podem acessar diversos vídeos sobre várias tribos do mundo, mas é difícil relacionar essas imagens com os objetos dispostos no plateau de coleções. A arquitetura interna tampouco facilita uma ligação entre as pequenas plaquinhas de informações pregadas

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nas paredes e os objetos distantes aos quais se referem. Não pude definir uma estratégia única na configuração exibicionária do plateau de coleções permanentes do Museu. Recursos tecnológicos, referências históricas, explicações escritas sobre o uso dos objetos, classificações geográficas, agrupamentos relacionados à função, destaque de objetos segundo critérios estéticos de exuberância, espaços amplos e pequenos nichos em forma de cavernas, tudo isso se mistura neste gigantesco espaço de exposição. Como foi afirmado (Shelton, 2006:485), os museus criam uma temporalidade em seus prédios e galerias por meio da espacialização do conhecimento. Assim, o que observamos no Museu do Quai Branly pode ser considerado um estímulo à dispersão da atenção que corrobora as críticas feitas ao museu. Kirshenblatt-Gimblett (1998) define duas maneiras de exibição do objeto etnográfico – In situ, que recorre à metonímia para mostrar que aquele objeto representa um todo, dando a impressão de transportar “fatias de vida” para o museu; ou In context, que contextualiza o objeto por meio de legendas, placas, mapas, diagramas, catálogos, guias e performances, ou estabelecendo relações com outros objetos classificando/ordenando com base em tipologias e relações históricas – que podem ser observadas no plateau da coleção permanente. Essas abordagens exercem um forte controle cognitivo sobre os objetos, criando “interesse onde estava faltando” através de classificações. A autora diferencia estas maneiras de exibição de outra abordagem mais minimalista que trataria o objeto como arte, singularizando-o por se supor que não depende mais de um caráter contingencial devido ao reconhecimento, nele, de algo intrinsecamente interessante, belo, digno de contemplação universal. Entretanto, pude notar que o excesso de estímulos dispersos presente na exibição permanente é capaz também de provocar este efeito. Em certos momentos, o destaque dado aos objetos nas vitrines parece evocar essa suposta beleza universal que por si só já justificaria sua exibição, valorizando a apreciação em detrimento da análise. Como bem coloca Shelton (2006:487), “Memorialização em museus é sempre seletiva e necessariamente acompanhada por amnésia.” A ausência de referências ao processo colonizador e a obtenção dos objetos que integram a coleção do Museu é gritante. Aparentemente, o que vemos no Museu do Quai Branly não é a arte pós-colonial contemporânea do Terceiro Mundo, nem uma arte que representa a presença do colonizador neste mundo. O que é celebrado com a inauguração do Museu e que seu acervo representa são «as relíquias de um mundo desaparecido onde ‘dialogam culturas’ dos outros num tempo mítico do antes do branco chegar. Um ilustre ausente neste diálogo das culturas é o próprio homem do Ocidente. O homem do ocidente vem ver, mas não é exposto.» (Lagrou, 2008:5).

Planéte Métisse: to mix or not to mix Entretanto, é preciso destacar o fato de que as exposições temporárias do museu apontam para alguns caminhos de abordagem desta relação. A exposição Planète Métisse – to mix or not to mix, que ficou em cartaz no Museu do Quai

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Branly de março de 2008 a julho de 2009, foi dedicada ao tema da mestiçagem entre culturas diversas. Apesar de a ideia de mestiçagem ser passível de diversas críticas e debates na Antropologia, o tema da exposição pode ser considerado como mais reflexivo e questionador, diferente da coleção permanente exposta no museu. A própria concepção de uma exposição temporária, temática, está mais em consonância com a arte contemporânea e seus objetivos de apresentar relações do que a idéia de um acervo permanente, uma coleção, uma série de objetos sendo simplesmente ordenados e ostentados. Acredito que esta exposição seja um bom princípio para pensar as relações entre culturas mediadas por um objeto, desde sua criação, utilização, deslocamento, colecionamento, exibição, até a transformação em “obra de arte”. Segundo Kirshenblatt-Gimblett (1998:387), “artefatos etnográficos são objetos da etnografia. Eles são artefatos criados por etnógrafos.” Atentamos assim para o fato de que estes objetos se tornaram “arte etnográfica” ao passarem por um processo de desterritorialização e de redefinição ao serem coletados e incorporados a uma coleção etnográfica. Neste processo de “criação” do objeto etnográfico, constrói-se uma “poetics of detachement”, continua Kirshenblatt-Gimblett, que consiste em valorizar um objeto pelo que representa, por algo ao qual remete, mas que não está lá. Para isto será preciso contextualizá-lo por meio de formas de exibição específicas, que revelam intenções específicas. Uma exposição temática cumpre esta função de maneira ainda mais específica do que a apresentação de uma coleção em um museu. O interesse pelo objeto etnográfico precisa ser criado, é necessário um framework para que os objetos passem de artefatos estranhos, rudes e vulgares a “objetos-aula”; “Tendo sido salvo do esquecimento, o fragmento etnográfico precisa ainda ser resgatado da trivialidade.” (ibid:390). A exposição propõe uma reflexão sobre diversos objetos que revelam “choques entre culturas” e processos históricos nos quais objetos, técnicas, símbolos, materiais e funções foram trocados e incorporados, transformando a arte de cada povo na medida em que eram eles também transformados pelos contatos com diferentes sociedades. Os objets métisses foram definidos por Serge Gruzinski, curador da exposição, como “expressão de uma criação humana que surge da confluência entre os mundos europeus e as sociedades asiáticas, americanas e africanas”. O percurso da exposição, em português “Planeta Mestiço: misturar ou não misturar”, se alterna entre critérios temáticos, cronológicos e geográficos. Os 290 objetos exibidos são divididos quatro partes. A primeira delas, “Mestiços?” se pretende um momento de descoberta, de percepção da alteridade e questionamento de ideias supostamente gerais; em seguida, “Choques e encontros de mundos”, propõe uma contextualização mais histórica dos objetos e das culturas, levando à terceira, “fábrica de mestiçagens”, que pretende mostrar um pouco do processo de criação dos objetos mestiços, ou de que maneira as pessoas unem as influências diversas na produção de um objeto; a última parte, “Horizontes mestiços?”, aborda manifestações contemporâneas da chamada mestiçagem cultural, através, por exemplo, do cinema (Catálogo da exposição, 2009).

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Fig. 7 | Árvore de músicas mestiças. © M. Blondeau

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3. A descrição do projeto cenográfico e as imagens utilizadas encontram-se no site do escritório de design Projectiles. .

Nesta exposição, o percurso criado para exibir os objetos pretende fazer com que eles dialoguem entre si, que os mecanismos de mestiçagem apareçam. A exposição foi realizada em um mezanino de 800 m2 completamente transformado por uma cenografia que pretendeu criar um percurso contínuo, um espaço amplo, dividido por colunas criando nichos para mis-en-scènes específicas. Utilizando materiais leves e visualmente porosos como fios luminosos, véus, telas de lâminas metálicas e projeções multimídia, essas colunas criam espaços redondos ou ovais, considerados pelos cenógrafos como “corpos híbridos”3. É interessante observar que as “mestiçagens” presentes na Europa também são expostas, traçando influências presentes em objetos europeus resultantes de contato com outros povos, especialmente com a Ásia. Em relação à escolha dos objetos que compõem a exposição, também há um caráter diferenciador, pois encontramos objetos que fazem parte das coleções do Museu do Quai Branly, além de outros provenientes de outras coleções, incluindo objetos contemporâneos. Entre eles, por exemplo, peças de vestuário criadas por Chanel e Gaultier para desfiles de alta costura que apresentam inspiração asiática e ameríndia, respectivamente. Mas o que de fato predomina na exposição é a presença de objetos que seriam produto de encontros entre europeus e povos colonizados, como o Codex Barbonicus, calendários divinatórios realizados pelos mexicanos que passaram a incorporar alguns aspectos europeus, como o corte e organização em formato de livro e o conceito geográfico, mas que mantinham o caráter histórico e temporal característico dos calendários nativos mexicanos que incluía nos desenhos uma narração de acontecimentos marcantes. Em espaços deixados vazios, letras e palavras em espanhol figuravam nos desenhos, como uma representação concreta da colonização dos calendários pelo alfabeto espanhol. Na exposição, as legendas indicavam que, apesar de à primeira vista se parecerem muito com os mapas europeus, era necessário, para vê-los como viam os nativos, circundá-los. Outra mestiçagem que ganha destaque na exposição é a religiosa. O voudu haitiano está representado por suas bandeiras coloridas e brilhantes, que marcam o encontro de referências africanas e europeias. No México, temas cristãos foram representados em mosaicos, mas estes eram compostos com plumas, material extremamente valorizado pelos nativos. Para mostrar o mecanismo de produção dessa mestiçagem, são exibidos uma gravura católica, um adorno plumário e, no centro, um mosaico religioso feito de plumas. Representando as mestiçagens do poder, a exposição traz estátuas como a da Rainha Victória, do Reino Unido, feita em madeira por um artista da elite Yorubá, com traços ditos “africanizados”. Um objeto que chamava bastante a atenção na exposição representava a mestiçagem na música brasileira. Este objeto me parece particularmente interessante, para além do fato de ser o exemplo brasileiro na exposição, por ter sido criado pelo próprio curador e sua equipe de design. O que se queria exibir eram 12 músicas brasileiras consideradas por Gruzinski mestiças, como um samba de Zé Kéti, um rock do Legião Urbana, uma mistura de eletrônico com maracatu de Chico Science, entre outras. Para Gruzinski, a música seria o recipiente por excelência da mestiçagem. No Brasil, a mestiçagem intensa entre sons tra-

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zidos pelos africanos que chegam escravizados no país e as músicas indígena e europeia parecem ser objeto privilegiado para a exposição. Mas a exibição de um áudio impõe desafios por seu caráter imaterial. A solução encontrada pela curadoria foi a criação de um objeto-suporte para essas músicas, uma instalação em formato de árvore feita de tubos coloridos que podiam ser manuseados pelos visitantes para que aproximassem a saída de um tubo de seu ouvido e então escutassem uma das músicas. O intrigante aqui é que, para além das composições sonoras, o próprio suporte pode ser visto como um objeto de arte, criado pela curadoria. Assim como na música, onde se percebe pela heterogeneidade de estilos e épocas de criação que o processo de mestiçagem é contínuo, a exposição se encerrava com apontamentos da mestiçagem na modernidade, mostrando cartazes e trechos de filmes produzidos na Ásia que tiveram grande sucesso em todo o mundo e também de diversos filmes produzidos em Hollywood que apresentam forte influência do cinema asiático, seja na estética, no roteiro ou na inspiração na cultura das artes marciais e outros aspectos da cultura asiática. Em seguida, há uma parte consagrada aos hibridismos de humanos e não humanos, às quimeras, aos robôs. Aqui são exibidas pinturas e desenhos de personagens híbridos, imagens de filmes de ficção científica, como Blade Runner e Matrix, e até mesmo uma réplica do robô do filme “Metrópolis”, de Fritz Lang. Para esta exposição, diversas atividades relacionadas foram propostas aos visitantes, algumas mais acadêmicas, como ciclos de palestras, colóquios e conferências, e outras mais lúdicas, como um ciclo de filmes (“mestiçagens da imagem, mestiçagens do olhar”) e passeios pela cidade de Paris, encontrando os diversos traços de “mestiçagem” presentes na cidade, a exemplo dos chineses do 13ème arrondissement. Este tipo de atividade fora do museu, assim como as atividades performáticas realizadas com certa frequência no contexto de exposições temporárias, aponta para uma tentativa de renovar a memória dos visitantes e atualizar as informações adquiridas através das exibições. Assistir a um espetáculo de dança indiana, a uma contação de histórias por um griôt africano ou, no caso de Planète Métisse, ouvir um DJ brasileiro que mistura música eletrônica e ritmos tradicionais e passear pelo bairro chinês de Paris são maneiras de tornar viva a experiência do museu. Kirshenblatt-Gimblett (1998) chama este aspecto de reanimação da experiência de “efeito museu”, uma transformação do olhar. Ela relata o momento em que os museus etnográficos e de história natural começaram a expor pessoas além de objetos, criando uma percepção diferente sobre o próprio cotidiano que influenciou inclusive a maneira como alguns europeus viam os exóticos imigrantes que formavam comunidades em suas cidades. Tal efeito pode ser visto como o ápice da exibição In situ, transformando bairros e cidades inteiras em um parque temático etnográfico extendido. É preciso, portanto estar alerta para a exotização, para as complexidades envolvidas nas situações em que pessoas se tornam objetos etnográficos e, mesmo nas apresentações folclóricas, para o distanciamento que esse tipo de performance ensaiada e direcionada para determinados públicos e fins pode ter em relação à vida de um determinado povo.

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Curadoria Apesar das críticas feitas por antropólogos ao Museu, sua presença na estrutura da instituição é considerável. Além das exposições de antropologia, colóquios onde dialogam antropólogos e artistas de todo o mundo e muitos funcionários antropólogos, o Museu do Quai Branly abriga também uma Université Populaire, oferecendo cursos de antropologia para alunos de várias universidades de ciências humanas e de arte. Além das aulas e organização de colóquios, antropólogos especializados em determinadas regiões compõem as equipes que se dedicam às subcoleções do Museu. E, em certos momentos, o Museu contou também com antropólogos no papel de curadores de exposições temporárias. A reaproximação da antropologia com os museus tem produzido muitas pesquisas, debates e exposições que seguem diferentes abordagens. No mundo todo, o número de museus vem aumentando e diversas iniciativas questionam as práticas de exibição de objetos provenientes de contextos não-ocidentais, propondo novas maneiras de representação do “Outro”, incluindo especialmente as autorrepresentações. Assim, as coleções e museus etnográficos deixam de aparecer como conjunto de práticas ingênuas ou neutras, para serem redesenhadas como espaços onde se constituem formas diversas da autoconsciência moderna: a do etnógrafo, a do colecionador, a do nativo, a do civilizado, do primitivo etc. (Gonçalves, 2007:13).

A estes atores apresentados por Gonçalves, gostaria de acrescentar o curador, que muitas vezes coincide com os anteriormente citados, mas que configura um papel específico extremamente importante, pois é a função que media as propostas, debates, pensamentos e objetivos destes atores e o público dos museus. A relação de antropólogos com a escolha das estratégias de exibição, de mis-en-exposition, é uma tema bastante interessante. Como coloca Shelton, os museus conectam elementos essenciais para o desenvolvimento da disciplina e suas formações discursivas, criando também novas tecnologias de visão, “o que pode ser produtivamente analisado como articulações particulares de poder e conhecimento” (Shelton, 2006:480). Assim, o autor chama a atenção para a necessidade de estudos críticos da museologia que analisem tanto os processos visíveis quanto os dos bastidores dos museus, levando sempre em conta seu caráter político, e não apenas poético. Na década de 1970, os encontros e declarações do ICOM (International Concil of Museums) começam a apontar para uma compreensão de museu mais próxima do serviço educativo e da população, ressaltando a importância de sua função social e política. Os museus deveriam se afastar, assim, de uma função exclusivamente científica para desempenhar uma função social e comunicadora. Neste contexto, o curador ganha destaque, pois cabe a ele realizar a mediação entre o acervo, as coleções, os objetos e funcionários em interação nos bastidores do museu e o visitante que terá acesso a estes objetos por meio de uma exibição. Objetos podem ser contextualizados de diversas maneiras, de acordo com as estratégias interpretativas existentes (Kirshenblatt-Gimblet,

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1998). E são estas estratégias, jamais neutras, que caracterizarão uma exposição e agenciarão o encontro com o público. Retornando um pouco na história para a segunda metade do século XIX, George Brown Goode, diretor do U. S. National Museum, afirmava que um museu deveria ensinar por meio de “objetos-aula”, mas acreditava que não se podia confiar a estes objetos a missão de falar por si mesmos (Kirshenblatt-Gimblet, 1998). Para ele, a coisa mais importante em uma exibição eram as legendas e a tarefa do curador seria justamente a de compor exibições que fornecessem ao visitante um encadeamento inteligente de pensamentos. “[O museu] deve ser uma casa cheia de ideias” (Goode apud Kirshenblatt-Gimblet, 1998:395) e os objetos estariam, ali, cumprindo a função de ilustrá-las. O etnógrafo teria a função de decifrar os objetos e as “pistas materiais” e este esforço de compreensão e retórica é o que cria valor para o objeto. Ao se relacionar com os objetos da coleção de um museu, é o curador quem terá o papel de selecionar quais deles vão compor a exposição que está preparando e de que maneira estes objetos serão exibidos. No caso do Museu do Quai Branly, que faz parte da Réunion des Musées Nationaux, é possível também solicitar peças de outras grandes coleções, como a do Louvre, por exemplo. O curador de Planète Métisse é o historiador francês Serge Gruzinski, pesquisador e professor do Centre National de Recherches Scientifiques (CNRS) e da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHSS), em Paris. Ele se dedica ao estudo das colonizações das Américas e da Ásia, especialmente às experiências coloniais como locais de mestiçagens e de nascimento de espaços híbridos, e às primeiras manifestações da mundialização. A exposição se insere numa categoria de exibições chamadas pelo próprio museu de “exposições antropológicas” que conta, até o momento, com três exposições. A primeira delas, Qu’est ce q’un corps?, de 2007, apresentou as maneiras como corpo e pessoa são representados em quatro regiões do mundo – África do Oeste, Europa Ocidental, Nova Guiné e Amazônia – para questionar a ideia tipicamente ocidental do corpo como um suporte de uma singularidade irredutível, e teve como curador o antropólogo Stéphane Breton; a segunda foi Planète Métisse e a terceira, Fabrique des Images, de 2010, foi concebida pelo antropólogo Phillipe Descola, apresentando sua teoria das quatro formas ontológicas de conceber a natureza – analogista, totemista, naturalista e animista – para mostrar como imagens materiais e artísticas são produzidas diferentemente segundo estas cosmovisões4. Pensando nas exposições desenvolvidas no moderno Museu do Quai Branly com curadoria de antropólogos, fica bastante evidente que muito deste pensamento permanece vivo. As três exposições antropológicas realizadas no Museu tinham um objetivo claro de ensinar, fazer pensar e explicar aspectos históricos e reflexões antropológicas, valendo-se dos objetos para materializar estes pensamentos. Em Fabrique des Images, uma quantidade pequena de objetos era exposta, especialmente se comparada à quantidade de textos presentes no percurso. Tanto os objetos quanto a cenografia estavam organizados com o obje-

4. Para mais informações sobre estas exposições, ver .

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5. A exposição “Fabrique des Images” se iniciava com quatro quadros de textos explicativos das quatro ontologias teorizadas por Descola, definidas por quatro cores diferentes que percorriam o chão do mezanino de exposições guiando o visitante por um percurso bastante didático em que as quatro formas de produção material e estética eram explicadas detalhadamente uma a uma, ilustradas por objetos bastante representativos de cada uma, e os povos correspondentes àquele tipo de pensamento e produção eram localizados em um mapa do mundo. 6. O texto presente no catálogo completo da exposição referente a este objeto foi escrito por Lúcia Van Velthen, antropóloga brasileira, que desenvolve um interessante trabalho sobre as maneiras de “pacificação” dos objetos estrangeiros entre povos ameríndios. A tanga em questão reproduzia em miçanga motivos gráficos tradicionais, ao contrário de outros exemplos estudados por Van Velthen nos quais os materiais exógenos devem ser utilizados na composição de desenhos marcadamente exógenos (Van Velthen, 2000).

7. Esta frase foi retirada do Carnet d’exposition, um libreto ou “minicatálogo” de oito folhas entregue gratuitamente a todos os visitantes da exposição, contendo resumos dos textos presentes no catálogo completo e indicações de interpretação das obras e do percurso a ser seguido na visitação.

tivo de expressar sua complexa teoria da maneira mais clara possível5. É o caso também de Planète Métisse, que exibia um número maior de objetos, mas com intenção retórica igualmente clara. A composição da exposição, sua cenografia e os objetos selecionados no Museu e em outras coleções, bem como os textos presentes no percurso (além dos contidos no catálogo oferecido por 3 euros aos visitantes e, no catálogo mais aprofundado, vendido por 70 euros na loja do Museu), parece estar a serviço de uma mensagem. O exemplo já citado anteriormente dos mosaicos de temática cristã realizados por nativos do México utilizando plumas me parece bastante claro: em uma vitrine apresenta-se, de um lado, um adorno de cabeça feito com plumas; de outro, a gravura La messe de Saint GrégoireI, feita por Van Meckenem Israhel em 1450, que pertence ao Museu do Louvre, e, no centro, o mosaico feito com plumas que levou o mesmo nome. Desta forma, observamos uma composição extremamente lógica que indica uma fórmula de simples compreensão, neste caso, “material da cultura x + temática da cultura y = objeto mestiço xy”. Ao contrário deste exemplo, que expõe uma mestiçagem na qual um material nativo foi utilizado para produzir um objeto que abordava temáticas dos colonizadores, uma tanga toda feita de miçangas produzida por índios da Guiana Francesa mostra como um material trazido da Europa pelos conquistadores foi utilizado para compor um objeto que já era realizado por eles a partir de outros materiais6. Ao longo do percurso da exposição, o curador recorre a diversos objetos de várias partes do mundo para mostrar que, além dos materiais, as mestiçagens podem se apresentar nas temáticas, nas formas, mas também se apresenta em aspectos “imateriais” como a religião, o poder, a música, a biologia. Uma série de pinturas mexicanas do século XVIII, chamadas “cuadros de castas”, foram incluídas na exposição para apresentar as diversas classificações de raça surgidas na época em que o México era ainda colônia espanhola. Os quadros, que pertencem ao próprio Museu, mostram cenas cotidianas das quais participam pessoas de cores e fisionomias diferentes e têm legendas pintadas que informam “de Yndio y Metiza, nasce Coyote” ou “de Barzino ê Yndia, nasce Campamularo” etc. Estes quadros são analisados em pequenas placas de informação e também pela curadoria no “minicatálogo” que explica que o olhar ali não é puramente artístico, mas que reflete um projeto político e um sentimento de mal-estar social e cultural. “Estas pinturas pretendem fichar uma sociedade até o absurdo e fixá-la em uma série de comunidades imaginárias para melhor a controlar”7. Em praticamente toda a exposição encontramos explicações deste tipo, que pretendem informar, fornecer detalhes, mas também trazer reflexões para além do que se vê, propondo a adesão a um determinado pensamento crítico e a uma teoria que está por trás destas explicações e análises. A complexidade do deslocamento, ressignificação e exibição dos objetos articula diversos aspectos éticos, estéticos e políticos. Se adotamos o objeto como fio condutor da análise, levando em consideração suas intencionalidade e capacidade de agência nas relações (Gell, 1998, entre outros), percebemos a impor-

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tância de se compreender o mundo e as cosmologias em que eles e as pessoas que se relacionam com eles estão vivendo. Os momentos em que estes objetos se deslocam ou se transformam tem recebido grande atenção por constituírem diferentes regimes de valores. “Pois, apesar de, do ponto de vista teórico, atores humanos proverem significação às coisas, de um ponto de vista metodológico, são as coisas-em-movimento que iluminam seus contextos humanos e sociais” (Appadurai apud Hoskins, 2006:75)8.

8. Tradução e grifo meus.

Quando pensamos na transformação pela qual os objetos passam ao serem inseridos no contexto museológico ocidental, é necessário refletir também sobre os diversos aspectos sensoriais que compõem o contexto do museu. Sua nova “moradia” é um ambiente bastante diverso daqueles de suas origens (também bastante diversos entre si). Seja na reserva técnica de um museu, manipulado por especialistas em preservação classificação e catalogação de objetos, seja exibidos em exposições temporárias e permanentes, estes objetos estarão inseridos em um espaço com regras específicas e valores importantes de serem pensados. Um museu produzirá sempre relações sensoriais entre pessoas e objetos. Por ser uma instituição tipicamente ocidental, os sentidos estimulados ali nem sempre coincidem com as relações sensoriais estabelecidas com aqueles objetos em seu contexto de origem. Uma certa perspectiva antropológica tem mostrado que “os sentidos são os meios pelos quais o corpo humano percebe e responde ao mundo material” (Edwards et al, 2006:2) e uma atenção e investigação especiais sobre eles são necessárias para repensar as práticas museológicas. Num museu não se pode comer, não se pode tocar nos objetos, não se deve falar alto, entre outras restrições que levam ao predomínio da visão como único sentido engajado na relação com os objetos expostos. Uma hierarquia dos sentidos foi produzida no Ocidente e o processo de colonização impôs estes valores aos objetos deslocados para a Europa, afetando a maneira como costumamos pensar os objetos e, particularmente, a maneira como são exibidos. Esta limitação está presente até mesmo em exibições que pretendem descentralizar hierarquias ocidentais, pois não se costuma levar em conta que muitos dos objetos exibidos precisariam ser alimentados, segurados, vestidos etc., para respeitar seu uso ritual (ibid: 20). Assim, o foco deste trabalho no momento de exibição em um museu europeu permite explorar os valores e relações presentes nesta exposição em busca de uma maior compreensão de como estes objetos são “traduzidos” para o público, e como ocorrem as mediações que precisam ser realizadas. Este momento da vida dos objetos levanta questões que concernem tanto à arte ocidental quanto às relações entre as culturas, pois “o que é realmente significativo sobre a adoção de objetos estrangeiros – e ideias estrangeiras – não é sua adoção, mas sim a maneira pela qual eles são culturalmente definidos e colocados em uso” (Kopytoff, 2008:93).

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O curador como artista e o antropólogo como curador O interesse pelo trabalho do curador me parece bastante relevante, pois muitas mudanças têm ocorrido na compreensão e no desempenho desta função, tanto no caso de exposições etnográficas quanto num contexto mais geral da arte contemporânea. Seria o curador um artista? E uma exposição de arte contemporânea é uma obra de arte? Em outubro de 2010 foi realizado um simpósio no Museum of Modern Art Ljubljana, na Eslovênia, para discutir as seguintes questões: uma exposição, em si, está se tornando uma obra de arte? O que transforma um curador em um autor ou em um artista? Conseguimos apreciar obras de arte individualmente dentro de uma mostra, ou apreciamos a mostra como um todo? (Igor Zabel Association for Culture and Theory) Tais questões vêm sendo pensadas pelo mundo da arte e o trabalho da curadoria vem sendo visto cada vez menos como o de um produtor, de um mediador entre público, artista, crítica e instituições. Desde as vanguardas da arte europeia, no início do século XX, passando pelo modernismo e pelas vanguardas norte-americanas dos anos 60, a ideia da arte como algo conceitual não para de ganhar força e de relegar os ideais renascentistas de técnica, genialidade, de beleza intrínseca e contemplação pura ao passado. Os objetos criados por artistas contemporâneos demandam então do curador um olhar igualmente conceitual e isso pode aparecer de diversas maneiras no resultado final da exposição. No contexto de exposições etnográficas, esta questão ganha um viés de extrema importância ao se adicionar o caráter anônimo da “arte primitiva”. Enquanto na História da Arte ocidental figuram artistas cujos nomes jamais serão esquecidos, indivíduos específicos que criaram não somente obras célebres, mas movimentos artísticos organizados cronologicamente e contextualizados em relação à sua época, costuma-se tratar da arte originada fora das Grandes Tradições, ou “arte primitiva”, como representante de sua comunidade, criada por um personagem sem nome, que apenas reproduz padrões tradicionais muito antigos (Price, 2000). A questão da criatividade individual, tão importante para a concepção ocidental de arte, costuma ser o centro da produção deste anonimato da “arte primitiva”. Sendo aquele indivíduo integrante de uma comunidade que vive submetida a valores coletivos tradicionais que se impõem de forma determinante sobre a produção dos objetos de acordo com regras herdadas das gerações anteriores, sua identidade perde a importância. “Dá-se então um salto conceitual da falta de criatividade individual dos artistas para a falta de identidade individual dos mesmos. O artista torna-se ‘anônimo’” (Price, 2000:91). Entretanto, o que tem sido visto na atual Antropologia da Arte é que, se fôssemos comparar as artes produzidas pelos indígenas com as obras conceituais dos artistas contemporâneos, encontraríamos muito mais semelhanças do que à primeira vista suspeitaríamos (Gell, 1998). Cada vez mais se percebe e se reivindica que a cultura material dos povos não ocidentais precisa ser estudada como “materializações densas de complexas redes de interações que supõem conjuntos de significados [...]; são objetos que condensam ações, relações, emoções e sentidos, porque é através dos artefatos que as pessoas agem, se relacionam, se

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produzem e existem no mundo” (Lagrou, 2009:13). Muito se tem discutido sobre a transculturalidade do conceito de “arte” e de “estética” (Lagrou, 2007, 2009; Gell, 1998; Price, 2000, entre outros). Mas o que se vê no plano etnográfico é que estes conceitos vêm sendo amplamente utilizados e apropriados, inclusive nos exemplos de povos nativos que tomam as rédeas de suas representações e expõem sua produção material de acordo com sua sensibilidade, apreciação, desejo de produzir algo que entenda como belo, ou eficiente, ou algum outro termo que possamos empregar para caracterizar uma estética ou estilo diferentes daqueles historicamente específicos do ocidente. Assim, arriscaria dizer que a teoria de Serge Gruzinski se apresenta como conceito da exposição, fazendo dela um todo, uma espécie de objeto de arte conceitual por meio do qual este artista-curador se expressa, expressa seus valores, neste caso, sua teoria histórico-antropológica da mestiçagem. Apesar de a ideia de mestiçagem ser criticada, assim como a de hibridismo, por comportar a noção de que existem aspectos culturais “originais”, “puros” e outros que seriam “mestiços”, mantendo uma oposição entre as culturas e considerando o “original” como o “isolado”, a definição de mestiçagem proposta por Gruzinski no catálogo da exposição defende, logo de início, que “as culturas não se misturam, pois seria necessário para isso que se apresentassem como conjuntos estáveis, com perfis claros e dotados inicialmente de uma relativa autonomia. Falar de mistura de culturas é também postular uma pureza original, anterior ao instante no qual se fundiriam e se ‘entremisturariam’” (Gruzinski, 2009:17), rebatendo, assim, possíveis críticas a tal essencialização. Evidentemente, as interpretações feitas a partir da exposição podem levar a outro tipo de visão, mas Gruzinski deixa claro que, para ele, falar de “mistura de culturas” é colocar face a face entidades abstratas inventadas ou reconstituídas por antropólogos, sociólogos e historiadores. Sabe-se que nenhuma escolha exibicionária é neutra. Além dos aspectos que podemos observar na exposição e relacionar com reflexões de outros autores, Gruzinski traz seu próprio discurso sobre seu trabalho e sua mostra. Para ele, a relevância de se tocar no assunto da mestiçagem atualmente está na necessidade de fazer compreender que somos todos mestiços, que sempre fomos e que, com a mundialização, seremos cada vez mais, é um processo constante. Mas isto não implicaria uma uniformização das culturas e uma perda de identidade. Tendo como subtítulo a pergunta “misturar ou não misturar?”, a exposição é uma mensagem clara para os europeus de que é preciso celebrar as misturas sem medo, numa reação contra os racismos, intolerâncias e medidas anti-imigratórias que vêm se multiplicando no Continente. Esta exposição é seu trabalho, sua obra de arte, media seus pensamentos, incorpora objetos à agência dele sobre o mundo social, passa sua mensagem.

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Considerações finais

9. Entrevista concedida à historiadora Adriana Romero, autora do blog Histórias e estórias, em 28 de maio de 2009.

Ao falar sobre sua exposição e suas pesquisas, Gruzinski salienta que “são indivíduos ou grupos que se encontram e que misturam, não o conjunto da cultura, mas elementos escolhidos ou não de ambas as culturas. Essas se encontram através de indivíduos e sempre em contextos históricos que, muitas vezes, são assimétricos, de desigualdade, de relação de colonização9.” Apesar de esta perspectiva sobre os contatos culturais valorizar o papel do indivíduo no processo, recusando uma macro-história dos contatos, o que vemos na exposição ainda é a noção bastante difundida de “choques e encontros de mundos”, e as restrições de realizar uma exposição no seio de um museu como o do Quai Branly sem recair em diversos etnocentrismos já explorados aqui, incluindo este do anonimato do artista primitivo assujeitado pela “tirania do costume” (Price, 2000), não são abordadas nem na materialidade da exibição, nem nos textos produzidos para o catálogo. É importante salientar que em seu projeto inicial, a discussão a respeito da participação de nativos de outras partes do mundo na concepção e na estrutura do Museu chegou a ocorrer; entretanto, no fim das contas, sua presença é raramente vista no Museu fora destes contextos de apresentações complementares às exposições. A exposição Planète Métisse conta, portanto, uma história vista da perspectiva de uma teoria antropológica e das concepções artísticas de um francês. A história dos contatos e intercâmbios culturais envolvendo tantos povos, não poderia senão ter muitas versões possíveis. Porém, as experiências vividas por estes povos, seu olhar sobre o contato, sua memória, sua maneira de lidar com aquele outro, com a alteridade, não fazem parte da narrativa da exposição. Por outro lado, assim como em qualquer exposição em qualquer museu, os possíveis olhares por parte dos visitantes são inúmeros. A análise aqui desenvolvida a partir das intenções da curadoria não pretende, de forma alguma, esgotar as interpretações possíveis. Olhando para aqueles mesmos objetos, uns podem pensar e sentir coisas que outros jamais pensarão e sentirão. A abordagem escolhida para minha interpretação também é apenas uma dentre outras linhas antropológicas que poderão gerar outros tipos de reflexões divergentes ou complementares a esta.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO VINCENT, Nina. Planète Métisse: uma exposição antropológica no Museu do Quai Branly. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 114 - 141. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/ docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa. Recebido em 15 de outubro de 2011. Aprovado em 9 de fevereiro de 2012.

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Entrevista com Roxana Waterson por Alberto Goyena*

O FASCÍNIO OCIDENTAL PELO ORIGINAL * No dia 26 de janeiro de 2011, em Cingapura, a antropóloga britânica Roxana Waterson concedeu uma entrevista a Alberto Goyena, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. Seu livro, The living house: an anthropology of architecture in South-East Asia, havia sido discutido no PPGSA no marco do curso Antropologia do espaço: arquitetura, urbanismo e preservação histórica, ministrado no segundo semestre de 2010, pelo professor José Reginaldo Gonçalves. Roxana Waterson é professora associada do Departamento de Sociologia da Universidade Nacional de Cingapura. Ela estudou antropologia em New Hall, Cambridge, onde se doutorou, em 1981, sob a orientação do professor Gilbert Lewis, especialista em Nova Guiné. A professora Waterson iniciou seu trabalho de campo em 1978 com as populações Sa´Dan Toraja, da Ilha de Sulawesi, Indonésia. Há mais de três décadas, Waterson se dedica ao estudo de sociedades indonésias e sua arquitetura. Mais recentemente, ela trabalhou também com histórias de vida e memória social.

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Publicado pela primeira vez em 1990, pela Oxford University Press, o livro sobre o qual gira esta entrevista é uma tentativa de analisar sistemas de parentesco do Sudeste Asiático sob uma perspectiva focada em habitações. Levada pelo seu trabalho de campo entre os Toraja, ela percebeu a importância do papel desempenhado pelas formas de habitação em diversos aspectos dos processos de vida dessa comunidade. Neste sentido, Waterson afirma que a arquitetura é mais do que apenas uma estrutura para a provisão de abrigo e que, na região estudada por ela, é possível descrever essas casas como tendo uma biografia. Posto que a casa Toraja, sob a cosmologia local, é percebida, descrita e construída como uma entidade viva, dá-se uma estreita relação entre o formar e o ser formado por essas habitações. Seu livro levanta também importantes considerações sobre processos de renovação material, preservação e patrimônios. Reconhecido por ter sido escrito em uma época em que o tema da arquitetura indígena, e seus padrões de relações sociais, ainda era relegado a um segundo plano na antropologia, este livro homenageia, segundo a autora, o conceito de sociétés à maison, cunhado por Claude Lévi-Strauss. Alberto Goyena - Você foi aluna de Edmund Leach em Cambridge, estou certo?  Roxana Waterson - Eu não fui orientada por ele diretamente, mas eu o conhecia e ele me ajudou muito quando iniciei esse projeto, ao me emprestar livros e assim por diante. Ele já tinha bastante idade e já estava doente na época. Mas como estudante, por mais que ele não orientasse minha pesquisa, ele era o professor a cujas palestras comparecíamos mais avidamente. Foi um privilégio estar ali naquela época. Ele dava palestras sobre qualquer assunto sobre o qual estivesse escrevendo e nós ouvíamos as palestras antes do livro ser publicado. Eram sempre muito interessantes. Mas minha tese de doutorado foi orientada por Gilbert Lewis, quando eu estava em Cambridge. Ele é, hoje, um especialista na Nova Guiné e naquela época não havia um só indonesianista em Cambridge... Alberto Goyena - Eu percebi que o seu livro – The living house: an anthropology of architecture in South East Asia – costuma ser classificado, nas principais livrarias de Cingapura, em prateleiras de “arquitetura”. Você acha que o livro está no lugar certo? E já que eu mencionei esta ilha, como é que você acabou ensinando e pesquisando aqui na Universidade Nacional de Cingapura? Roxana Waterson - Eu acho que esse título acaba levando as livrarias a colocá-lo entre os livros de arquitetura... Mas eu o escrevi, fundamentalmente, como um trabalho de antropologia, mesmo que eu saiba muito de arquitetura. Vim para cá em outubro de 1984. Naquele ano, já tinha feito um trabalho de campo considerável entre os Toraja. Eu realmente queria estar aqui para poder conduzir um projeto mais amplo e comparativo com o tema da arquitetura vernacular da Indonésia. Escolhi Cingapura como base por conta do importante arquivo de fotografias que há aqui no Instituto de Estudos do Sudeste Asiático. Foi esse o meu ponto de partida e trata-se de uma base conveniente para visitar outras partes da Indonésia que até então eu não conhecia. Alberto Goyena - Como foi que você veio a se interessar pela antropologia da arquitetura?

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Roxana Waterson - Meu interesse veio de minha pesquisa de campo. Como os Toraja têm casas realmente excepcionais, no começo as pessoas tendiam a pensar que eu estava lá para estudar a sua arquitetura. Quando se pesquisa nessa ilha, as pessoas costumam dizer: “Eu imagino que você queira pesquisar sobre nossas casas, já que elas são tão diferentes...”. Ou então eles diziam, com frequência: “Suponho que você queira acompanhar os nossos funerais, já que eles são tão elaborados...”. Inicialmente, eu dizia que não. Dizia que meu interesse estava em coisas intangíveis, como parentesco. Levou bastante tempo até que eu compreendesse que as casas eram, de fato, o foco do sistema de parentesco e que o próprio ato de formular uma boa pergunta a esse respeito passava, frequentemente, pela necessidade de reformular a pergunta em outros termos, ou seja, remetendo sempre a uma casa específica e às relações que as pessoas mantinham com suas casas. Quando finalmente compreendi isso, comecei a pensar que a Indonésia tinha sistemas de parentesco que nunca pareciam se encaixar nas categorias antropológicas dominantes. Como todos eles constroem casas muito interessantes, pensei que, talvez, pudesse olhar para elas de um modo diferente, percebendo-as como sistemas focados em casas, e reinterpretá-las a partir desse ponto de vista. De fato, acho que essa abordagem se sustenta porque conheço muitas pesquisas feitas posteriormente, tanto na parte ocidental quanto na parte oriental da Indonésia, que seguiram essa abordagem e fizeram da casa uma categoria fundamental de pesquisa. De fato, é desse modo que essas pessoas falam de suas relações. Sinto que é verdade que essas concepções indígenas de como eles organizam sua sociedade têm muito a ver com arquitetura. Alberto Goyena - Seu livro trata, para usar a formulação de Bernard Rudofsky, de uma “arquitetura sem arquitetos”. Até que ponto você diria que esta categoria – arquitetura – é apropriada para fazer uma descrição geral desse tipo de produção material? O que dizer de categorias como “arquitetura vernacular”, “forma construída” ou “habitações”? Digo isto porque, para a vertente dominante da teoria e história da arquitetura, “não pode haver arquitetura propriamente dita sem projeto”. Roxana Waterson - Eu acho, como antropóloga, que sempre lidamos com duas preocupações ou fascinações centrais. A primeira diz respeito àquilo que os seres humanos têm em comum, ou seja, aquilo que é realmente fundamental no ser humano. A segunda é a diversidade cultural. Neste sentido, acho que os antropólogos tendem a preferir definições bastante abrangentes para certas categorias, como religião, filosofia ou arquitetura. O ponto é não deixar de considerar nenhuma cultura em particular, já que estamos compromissados com a ideia de que todas as culturas são igualmente merecedoras de respeito e que valem uma pesquisa. Neste sentido, não queremos considerá-las definindo-as de modo estreito, especialmente se essa definição favorece uma herança cultural europeia. É justamente isso que nós estamos tentando transcender. A arquitetura é sobre formas construídas, não é? Utilizei todas as formas que você mencionou em meu livro e eu não vejo razão para que apenas os europeus tenham o direito de dizer que o que eles fazem é arquitetura e alegar algum tipo de origem mítica, grega ou não, para ela. Alberto Goyena - Eu me lembro de ter lido em House, form & culture, de Amos Rapoport, que menos de 5% da arquitetura mundialmente produzida é de fato projetada por

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arquitetos, no seu sentido estrito, de pessoas formadas em faculdades de arquitetura. Roxana Waterson - Sim, é verdade. O cálculo foi feito por Paul Oliver. De fato temos que ampliar a nossa opinião sobre o que seja a arquitetura. Quero dizer com isto que toda a questão da arquitetura vernacular está em levantar questões sobre a produção não profissional de arquitetura. De fato, a maioria das construções no mundo, hoje, ainda são feitas sem arquitetos. Alberto Goyena - Através de seu livro, há muitas considerações sobre mudanças incorporadas às formas arquitetônicas que você descreve. Você sublinha o uso de novos materiais, como o ferro galvanizado, que substituiu telhados de palha e vigas de madeira, sem falar nas intervenções sanitaristas impostas durante o período da colonização holandesa na região. Até que ponto essas transformações formais e materiais se refletem em uma cultura tão centrada na arquitetura? Roxana Waterson - Do meu ponto de vista, algumas dessas tradições são, de fato, muito vulneráveis. São vulneráveis diante de oficiais do governo, que dizem às pessoas que suas casas estão antiquadas, ou que não são higiênicas, e que todos deveriam ser modernos... James  J. Fox, por exemplo, que começou a trabalhar na Ilha de Roti em 1965, me disse que, naquela época, quase todas as casas da ilha eram construídas em seu estilo tradicional. Contudo, nos anos noventa, havia apenas algumas casas que mantinham esse estilo. Quando visitei o lugar, era preciso fazer uma longuíssima viagem para encontrar uma dessas casas remanescentes. Ele me disse que, se ele soubesse, quando começou seu trabalho de campo, que essas casas desapareceriam em menos de vinte anos, ele teria passado muito mais tempo estudando essas construções. Ele atribuiu isso, em grande parte, a esforços do governo local para modernizar as pessoas. Talvez eles estivessem mal orientados, porque há muita beleza e saberes importantes na arquitetura tradicional. Por outro lado, há, sem dúvida, riscos à saúde quando se tem uma fogueira dentro de uma casa pequena e sem chaminé... É mesmo mais saudável levar a cozinha para fora dessa unidade e seguir aquilo que recomendavam os holandeses. Na semana passada estive em um congresso em Manila e havia lá um linguista que tinha feito pesquisas em Luzon, no final dos anos cinquenta. Em sua apresentação, ele mostrou algumas fotografias das antigas casas dos Bontok. Hoje eles moram todos em casas de zinco, ou seja, modernizadas. Ele disse que não há mais casas tradicionais; lamento isto porque, no nosso imaginário pelo menos, quando lemos sobre essas regiões, mesmo sem tê-las visitado, parece que já as conhecemos. Em certo sentido, as casas Bontok eram uma espécie de protótipo das habitações austronésias. Teria sido de grande valia poder estudar essas casas. Mas ele também disse, em algum momento, que “na verdade, não era fácil viver nessas casas”. Elas eram muito pequenas, não tinham janelas, tudo estava totalmente recoberto de cinzas e fumaça por conta das fogueiras; havia muitas baratas e os ratos praticamente tiravam a comida de seu prato enquanto você jantava; e as pessoas sofriam de todo tipo de doenças nos olhos, de cegueira mesmo, por causa da fumaça. De todo modo, com todos esses problemas, teria sido ótimo se algumas casas tivessem sido mantidas; por exemplo, aquelas

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onde se praticavam cerimônias. Talvez as pessoas tenham mesmo o direito de mudar suas casas e seus modos de vida se assim o quiserem, e se eles estão beneficiando sua saúde, não temos mesmo a quem acusar. Alberto Goyena - Tradicionalmente, os Toraja têm, conforme sua descrição, duas casas. Uma onde eles de fato “moram” e outra, na qual “eles dizem que moram”. A esta última você deu o nome de “casa das origens” (Tonkonan) e nos diz que elas são usadas em rituais especificamente ligados ao parentesco. De que forma esta tradição sobrevive hoje? Qual a relação dos Toraja com as formas construtivas modernas na Indonésia? Roxana Waterson - Um número considerável dos Torajas ainda possui a Tonkonan, mas esta não é habitada, uma vez que eles têm, ao lado, um bangalô moderno, o que é um outro tipo de solução para a questão. Talvez seja o melhor de dois mundos, já que se pode ter janela, luz, mais espaço, e também mostrar que se está mantendo o centro cerimonial, que tem tanta importância para os descendentes. Mas os Toraja são únicos, na Indonésia, quanto à realização desses rituais, pelos quais é necessário ter a casa como um local de origem para o qual retornar; enquanto em muitas outras partes da Indonésia perderam-se, talvez, mais casas, dado que o compromisso social com processos rituais não é o mesmo. Penso, portanto, que a arquitetura e a vida ritualística estão relacionadas de uma forma bem peculiar entre os Toraja, o que veio a fortalecer o seu interesse em manter a arquitetura tradicional. Há muitas pessoas, agora, que querem uma casa moderna. E as pessoas podem sentir isto de diferentes maneiras. Algumas acham que seria melhor manter o antigo, enquanto outras o consideram obsoleto. Acho que, no caso dos Toraja, pode ser esta função ritualística ou a ideia mesma de que assim deve ser a origem que os fazem optar pela manutenção da tradição...  É isso que parece contribuir para sua permanência. Eu vi, em Minangkabau, que havia algumas casas tradicionais recentemente reconstruídas que, conforme me foi dito, tinham sido construídas por migrantes que haviam prosperado fora de Minangkabau, ainda que não tenha havido o mesmo ímpeto para renovar as casas de origem. Visitei outros lugares onde todo mundo que podia arcar com seu custo havia erguido um bangalô moderno em volta da velha casa de família, e quem quer que fosse o mais pobre terminava morando na velha casa que, do meu ponto de vista, era a mais bonita... Isto porque não podiam arcar com um bangalô moderno com pórticos chamativos e coisas assim. Alberto Goyena - Ao falarmos de patrimônio cultural e, mais especificamente, de órgãos ou instituições do patrimônio, pode-se notar a proeminência de uma percepção muito específica a respeito daquilo que vem a ser “identidade”, “preservação”, “restauração” ou “autenticidade”. A Lista de Patrimônios Mundiais da Unesco, por exemplo, tende a veicular uma perspectiva universalizante sobre essas questões, mas quão diferente isto seria entre os Toraja? Você saberia dizer se as suas casas constam dessas listas? Há mal-entendidos no que tange aos “tombamentos”? Roxana Waterson - O que eu posso dizer sobre isto é que, alguns anos atrás, uma comunidade Toraja em particular fez um pedido à Unesco para que sua aldeia fosse tratada

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como um sítio de Patrimônio Histórico Mundial. O pedido foi recusado porque, ao que me parece, era pequeno e específico demais, de modo que, depois, eles fizeram um pedido a fim de que toda a área fosse considerada Patrimônio Histórico Mundial. Mas, até onde eu sei, não se tornou um PHM. Nisso tudo, há muitas questões implicadas, difíceis de responder... Se você entra na lista, você tem que manter uma determinada postura, não pode mudar as coisas, o que pode vir a ser uma radicalidade que põe em xeque uma outra forma possível daquela cultura. De modo que há a questão sobre que aldeias caberia manter numa determinada condição e sobre se isso de fato as tornaria artificiais, e como fazer com que as pessoas concordem umas com as outras a esse respeito... Como os aspectos do patrimônio intangível... A verdade é que ainda há muitas perguntas a esse respeito. Eu de fato vi essa inscrição, mas não creio que tenha sido aceita. Acho que, realmente, existe um fascínio ocidental peculiar pelo que é antigo e original. É algo que fala sobre como se desenvolveu nossa relação com o passado. Não é, de forma alguma, universal. Visitamos a China muito tempo atrás, nos anos oitenta, e era possível ver como, em locais antigos, as coisas se renovavam o tempo todo. No templo de Shaolin, por exemplo (que é onde se originou o Kung Fu), vimos artesãos fazendo telhas e entalhes novos e assim por diante. E para eles, talvez, pode não fazer sentido recomendar manter o antigo mesmo que esteja caindo aos pedaços, só porque é o original. Enquanto, se este for um tijolo ou uma pedra romana, alguém vai dizer: “Esse aí você tem que guardar porque é o autêntico!” E esses chineses diriam: “Por que não o novo?”. Houve um momento em que fomos levados a um templo e ficamos empolgados, porque nos foi dito que era um dos mais antigos, cuja construção seria do século XV, e nos ocorreu que seria a coisa mais bonita a ser vista até aquele momento... Mas, quando vimos, era uma estrutura de concreto que havia sido erguida nos anos cinquenta... E, então, dissemos: “Olha, nós achamos que você tinha dito século XV”. Ao que eles disseram: “Ah, sim, mas foi reconstruído muitas vezes desde então”. E, obviamente, toda vez que o haviam reconstruído o haviam feito maior e maior... Não havia, de fato, nada interessante do ponto de vista ocidental a respeito dessa estrutura que agora se apresentava... Era bem mais feia! Alberto Goyena - Você postula, neste livro, primeiro publicado em 1991, que a arquitetura é mais do que prover abrigo e, na região estudada por você, é bem possível descrever essas casas como tendo uma biografia num sentido bastante estrito, haja vista que quem as cria as vê e faz como entes vivos. Em suas pesquisas mais recentes, você tem seguido esse caminho? Roxana Waterson - A verdade é que um dos meus mais recentes interesses tem sido a memória social, daí que eu tenha me interessado pela casa como um repositório de memória, tendo em vista que as genealogias Toraja estão sempre atreladas a casas, as quais sempre começam com um casal, um homem e sua mulher que fundaram uma casa em particular, e é daí que as pessoas traçam a sua ascendência.  Quando pessoas de fato reconhecidas relatam sua genealogia, elas podem falar dos seres humanos mais antigos e originais segundo sua mitologia, quantos filhos tiveram e para onde foram, as casas que fundaram e qual relíquia de família da casa original eles levaram com eles quando se deslocaram para cá e para lá. Seria como o mapa de

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Entrevista com Roxana Waterson

um assentamento. De forma que fiquei um tanto fascinada com as casas e a paisagem que, digamos assim, carregariam esse tipo de informação histórica.  Intitulei o livro de The living house (“A casa viva”) porque fiquei interessada em todas essas ideias sobre por que a casa é vista como uma personalidade com vida, e então eu pensei sobre o que isso significa ao longo da vida. Não apenas o fato de que, por exemplo, diversas partes da casa sejam chamadas por nomes que designam partes do corpo ou de que se fale da respiração que se dá ao longo dela. Mas, se está viva, então ela tem uma história de vida. Daí eu ter começado a pensar em casas como tendo biografias. O fato de que a casa pode sobreviver a cada membro humano que a habita é algo que me parece importante nas cosmologias indonésias e em como as pessoas pensam o seu lugar no mundo. E que quanto aos ancestrais, por exemplo, não apenas se incorpora as suas placentas ao enterrá-las ao lado da casa, como fazem os Toraja, mas eles também ficam, de diversas outras formas, incorporados à casa, no teto, por exemplo, ou se tornam o vime usado para unir a madeira. Há um grupo em Flores que expressou a ideia de que os ancestrais ajudam a manter a casa de pé mesmo depois de terem partido; ou em Tanimbar, onde havia altares incrivelmente bem talhados para os ancestrais dentro da casa, onde as pessoas fariam oferendas, sendo que todos os rituais realizados tornam-se parte da história da casa por causa de certos ornamentos ou coisas que lhe são acrescentados, os quais relatam a realização do ritual, o que incrementa a história da casa. Houve coisas desse tipo que despertaram meu interesse e, aliás, eu escrevi recentemente um capítulo do livro novo, prestes a ser publicado pela Chicago University Press, sobre antropologia visual, intitulado Made to be seen (“Feita para ser vista”), e eles me perguntaram sobre arquitetura porque estavam pensando o visual no sentido mais amplo possível. No livro, portanto, haverá capítulos sobre cinema e fotografia, mas também sobre materiais têxteis, casa e diversos outros aspectos da antropologia visual. Será lançado daqui a alguns meses, assim espero.  Alberto Goyena - Mas então, se essas casas estão vivas, elas também poderão, em algum momento, “morrer”? Seria o caso? Como são os procedimentos de demolição segundo essa cosmologia? Roxana Waterson - Suponho que se fosse dado a alguém olhar isto de perto, haveria que se concluir que cada sociedade desenvolveu a sua própria maneira de lidar com esse problema da morte da casa. Acho que a prática comum de continuamente reconstruir é uma forma de superar isso. Uma vez eu fui testemunha... Na verdade, eu não estava exatamente presente quando houve um incêndio feio na aldeia onde eu morava, mas fui até lá para ver os rituais. Aconteceu de eu chegar apenas dois dias depois do incidente, e, assim, eu assisti aos rituais realizados para  simbolizar o fato de que, de certa forma, uma casa que, nesse contexto, era particularmente ancestral para os outros também, não estava realmente morta porque seria reconstruída. Foi um tanto ambíguo, porque nessa ocasião eles sacrificaram um pequeno búfalo, o qual, segundo se dizia, haveria de acompanhar o espírito da casa, o seu Bombo, como eles o chamaram, o além da sua cosmologia. Mas também havia um compromisso de renová-la. E, à vezes, quando eles estavam prestes a renovar a casa de origem em algumas partes da Toraja, nos lugares onde ha-

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via escravos que se apegavam à casa e tinham determinadas tarefas a desempenhar, havia um que lancetaria a casa para que, simbolicamente, se desse fim a essa versão dela. Depois, eles a demolem e reconstroem. Dessa maneira, eles, digamos, brincam com o imaginário da casa que morre, mas que constantemente renasce e se renova. Alberto Goyena - Quão distante ou não familiar é essa concepção de uma arquitetura com vida para você? Seria possível estender, de algum modo, esse entendimento da arquitetura? Ou seja, é possível encontrar percepções análogas entre arquitetos, engenheiros ou proprietários de casa em contextos mais urbanos? Roxana Waterson - Eu cresci numa casa extremamente velha, que segue em minha memória pela extraordinariedade que tinha para mim quando criança. Ficava nos arredores de Londres, em Surrey. O seu coração era, na verdade, do século XII. E ela teve várias partes acrescentadas nos séculos XVIII, XIX e assim por diante. Mas no seu cerne havia umas vigas grandes e antigas e teria sido uma casa com uma abertura acima do teto, com um quarto solar que teria pertencido ao senhor e à senhora da casa. De forma que sua parte mais antiga designava em grande parte o caráter da casa. Então, eu suponho, quer seja num nível consciente ou não, que a ideia de que a casa teria uma personalidade própria não me era estranha... Mas não sei se posso dizer que os arquitetos do mundo ocidental pensariam assim... Alberto Goyena - Falando um pouco sobre o seu trabalho de campo, que tipo de desafios você encontrou? Quero dizer, foi, por exemplo, um grande problema para Pierre Bourdieu, ao estudar a casa Kabyle (na Argélia), entrar nos espaços designados para as mulheres. Você se deparou com problemas análogos para seus deslocamentos no espaço Toraja?  Roxana Waterson - Na verdade, a sociedade Toraja não faz muita distinção de gênero. Não me pareceu que houvesse espaços designados de maneira tão exclusiva para os homens. E, no geral, as pessoas foram muito simpáticas comigo. É uma sociedade relativamente fácil de se lidar como mulher. Teria sido diferente se eu tivesse ido trabalhar com os Bérberes ou Kabyles. As mulheres que trabalharam em sociedades do norte da África viram-se, com frequência, tendo que estudar mulheres e afazeres domésticos, não porque essa tivesse sido a sua intenção inicial, mas simplesmente porque foi esse o lugar com o qual tiveram que se conformar. Mas entre os Toraja não foi, de jeito nenhum, assim. Alberto Goyena - E quanto aos seus traços físicos? Isso lhes causava algum tipo de estranhamento, ou faziam alguma associação com eles? Roxana Waterson - Sim! Eles de fato acharam que ter olhos claros era um tanto inusitado. Houve ocasiões em que eles acharam que eu me parecia com essas estátuas de mortos, porque elas têm olhos de concha branca, e meus olhos são muito claros. Eles diziam: “Oh, ela parece um Tautau”. Ou diziam: “Oh, ela parece um búfalo”, porque alguns búfalos malhados têm olhos azuis, que parecem um tanto estranhos. Acho que esses são os únicos animais de olhos azuis que eles conhecem. Alberto Goyena - Quanto tempo você ficou lá? Onde você morava? 

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Entrevista com Roxana Waterson

Roxana Waterson - Na primeira vez que fui fiquei dezoito meses direto e, na segunda, foram oito meses. Na primeira vez, durante os primeiros meses, eu viajei bastante, porque estava tentando entender algumas diferenças que há entre os vários distritos e procurando um lugar que fosse adequado para ficar por mais tempo, e terminei ficando numa comunidade específica por um ano. Na segunda vez, não fiquei tanto tempo só naquela aldeia, fiquei bastante tempo em algumas aldeias dos arredores a fim de estender minhas pesquisas sobre residências. E a essa altura eu sabia de certas pessoas que eram muito conhecedoras de questões culturais, de forma que fiquei muito tempo indo falar com elas sobre as coisas que eu considerava não ter entendido direito ou que precisava conhecer mais a fundo. Anos depois, quando eu estava trabalhando no livro das casas, fui a Sumatra, Bali e umas tantas ilhas em Nusa Tenggara Timur. Mas isso foi por períodos mais curtos, obviamente. Alberto Goyena - Que língua você falava com eles? Eles todos entendiam o Indonésio-Bahasa?  Roxana Waterson - A maioria, sim, mas os mais velhos tendem a falar o Toraja-Bahasa e não teriam aprendido o indonésio se não tivessem ido à escola. De forma que se sentiam mais à vontade falando a língua Toraja. Então, quando morei na aldeia, procurei aprender o máximo possível da língua, já que era essa a sua língua do dia a dia.  Alberto Goyena - Você continuou em contato com os seus nativos, uma vez concluída a sua pesquisa? Roxana Waterson - Voltei lá mais umas dez ou doze vezes. Continuo, sim, muito em contato com eles, e agora posso até ligar para eles, porque em algum momento dos anos noventa eles conseguiram tecnologia de telefonia internacional. Então, aquilo que, por ocasião de minha primeira ida, era bastante isolado, agora parece não ser mais. Houve até, durante um tempo, voos diretos para Macassar, o que significa que se podia chegar a Sulawesi em duas horas ou duas horas e meia. Isso ainda é bastante longe de Toraja, que fica mais uns 300 km ao Norte. Infelizmente, esses voos deixaram de existir depois de alguns anos, de modo que agora é preciso passar por Jacarta. Mas, certamente, não está mais tão isolado como no fim dos anos setenta. Naquela época, você tinha que voar de Jacarta para Macassar e, como as estradas eram muito ruins, levava umas dez horas para chegar a Toraja. Agora já são umas oito horas. E as estradas estão bem melhores. Depois, para chegar à minha aldeia, eu tomaria um micro-ônibus para andar mais uns 15 km e, então, andar mais uns 3 ou 4 km,  montanha acima. Vez por outra eu ia à cidade para buscar minha correspondência e ter alguns dias de privacidade. Bem, foi longo, mas foi muito bom. Acho que uma das recompensas de trabalhar lá foi o fato de as paisagens serem tão bonitas!

PARA CITAR ESSE ARTIGO GOYENA, Alberto. O fascínio ocidental pelo original: Entrevista com Roxana Waterson. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 142 - 151. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/ docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

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A RELAÇÃO ENTRE ARTES PLÁSTICAS E MARXISMO NAS CRÍTICAS DE MARIO PEDROSA À OBRA DE PORTINARI por Marcelo Ribeiro Vasconcelos

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Marcelo Ribeiro Vasconcelos é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação e Sociologia e Antropologia (PPGSA/IFCS/UFRJ). Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia da Cultura (NUSC).

A RELAÇÃO ENTRE ARTES PLÁSTICAS E MARXISMO NAS CRÍTICAS DE MARIO PEDROSA À OBRA DE PORTINARI Resumo Neste artigo, busquei analisar comparativamente dois momentos dis-

tintos da crítica de arte de Mario Pedrosa. O primeiro, que se estende do começo dos anos 1930 até 1937, marca o ínicio da trajetória de Pedrosa como crítico de arte, cuja abordagem era marcadamente baseada no materialismo dialético. Já na segunda fase, que se estende de 1945 até os anos 1950, o teor da crítica de Pedrosa passa a ser marcada por uma adesão a arte abstrata. Nesta análise comparativa, procurei ilações que pudessem lançar luz sobre o caráter político das artes nestas duas fases distintas. Privilegiei neste trabalho as críticas de Mario Pedrosa sobre a obra de Candido Portinari exatamente pelo fato de tais críticas atravessarem estes dois momentos distintos da trajetória de Mario Pedrosa e demonstraram as transformações nas abordagens cognitivas adotadas por Pedrosa no que concerne as artes. Palavras-chave Mario Pedrosa, Candido Portinari, arte abstrata, socialismo,

arte e política

THE RELATIONSHIP BETWEEN ARTS AND MARXISM IN MARIO PEDROSA’S CRITIQUES OF PORTINARI’S WORK Abstract In this article, I looked at comparing two different moments of the art

critic Mario Pedrosa. The first, extending from early 1930 until 1937, marks the beginning of his trajectory as an art critic, whose approach was strongly based on dialectical materialism. In the second phase, which extends from 1945 to the next decade, the content of Pedrosa’s critical approach is now marked by an adherence to abstract art. In this comparative analysis, I sought lessons that could shed light on the political character of the arts in these two distinct phases. I emphasized in this paper Mario Pedrosa’s critics on the work of Candido Portinari because such critics crosses these two distinct moments of the trajectory of Mario Pedrosa and demonstrate the changes in cognitive approaches adopted by Pedrosa regarding the arts. Keywords Mario Pedrosa, Candido Portinari, abstract art, socialism, arts and

politics

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A relação entre artes plásticas e marxismo nas críticas de Mario Pedrosa à obra de Portinari

Introdução O propósito deste artigo é examinar os pontos de contato entre os entendimentos adotados por Mario Pedrosa no que se refere ao marxismo e as artes plásticas durante as décadas de 1930 e 1940. Para isto, debrucei-me sobre as críticas de Mario Pedrosa sobre a obra de Cândido Portinari. As análises de Mario Pedrosa sobre a arte de Portinari são um objeto privilegiado para tratar do tema. Através de um olhar comparativo sobre estas diferentes críticas, feitas em momentos distintos da trajetória de Mario Pedrosa, seria possível lançar luz sobre algumas das transformações ocorridas na abordagem cognitiva adotada por Pedrosa para apreender o fenômeno estético. A interpenetração da arte e com a política – mais especificamente, o marxismo – ocorre de diferentes maneiras desde a primeira crítica de Pedrosa sobre Portinari, Impressões sobre Portinari (1934), até sua última, O Painel de Tiradentes (1949). Assim, através da crítica de arte de Mario Pedrosa é possível perceber duas abordagens diferentes sobre o lugar do artista como agente da transformação, onde ambas são fruto de interpretações diversas sobre as formas como a arte reflete os conflitos sociais de sua época.

Anos 30 - trotskismo e arte social A iniciação de Pedrosa no marxismo teria se dado a partir de sua entrada na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, em 1920, através das aulas do professor Edgardo de Castro Rebello. Após a conclusão dos seus estudos, filiou-se, em 1925, ao Partido Comunista. Em 1927, foi enviado pelo PC para a Escola Leninista, em Moscou. Contudo, acabou se estabelecendo em Berlim, tendo frequentado os cursos de sociologia, filosofia e estética da Faculdade de Filosofia de Berlim. Foi nestes cursos que Pedrosa iniciou sua formação em artes; na Alemanha Pedrosa desenvolveu seus primeiros estudos sobre psicologia da forma (gestalt); e foi ainda durante esta estadia na Europa que Pedrosa inicia seus vínculos com o trotskismo, do qual toma partido quando da cisão entre Stalin e Trotski. Após seu retorno ao Brasil em 1929, assume uma crítica de esquerda ao PC e organiza a primeira organização trotskista brasileira, o Grupo Comunista Lenin. Esse esforço pela criação de uma oposição de esquerda ao PCB e ao stalinismo no Brasil marcou a militância de Mario Pedrosa nos anos 1930. O Grupo Comunista Lenin (GCL), criado por Pedrosa em 1929 após seu retorno ao Brasil, divulgava seus posicionamentos através do jornal Luta de Classes. Este jornal era, em grande parte, inspirado pelo periódico francês La Lutte de Classes, dirigido por Pierre Naville, amigo de Pedrosa de sua temporada europeia e uma das lideranças da Oposição de Esquerda francesa. O grupo GCL se dissolve no final de 1930, mas parte de seus militantes se reorganizam no grupo Liga Comunista Internacional (LCI) em janeiro de 1931. Foi através do GCL – e do seu jornal A Luta de Classe – e da Liga Comunista Internacional que Mario Pedrosa expressou seus posicionamentos políticos à época. De maneira geral, a militância de Pedrosa girava em torno da crítica ao PCB e da tentativa de restabelecer o

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leninismo. Conforme posto por José Castilho Marques Neto, o GCL se constituiu sob forte influência das diretrizes políticas dos grupos trotskistas franceses, que criticavam a Internacional e sua tentativa de definir as estratégias revolucionárias dos diversos PCs espalhados pelo Globo. Tal crítica estava presente também no GCL, que criticava “a aplicação ‘mecânica’ dos esquemas políticos da IC no Brasil” (Marques Neto, 1993:128). O grupo trotskista defendia, assim, um retorno “à verdadeira concepção marxista do desenvolvimento histórico” (Pedrosa et al. apud Marques Neto, 1993:136). O que eles defendem, de modo geral, é a inexistência de um modelo único de revolução. Eles negavam a possibilidade de haver uma concepção marxista de desenvolvimento histórico produzida a priori. Assim, o principal objetivo do grupo era produzir um esclarecimento sobre a existência de um desvio no pensamento revolucionário, o que permitiria construir uma nova unidade no PCB. Estes posicionamentos se alinhavam com as diretrizes da “Oposição de Esquerda Internacional”, organizada por Leon Trotski. Para os trotskistas, uma política comunista deveria ser próxima ao povo e ter a capacidade de compreender de forma correta o processo histórico que se desenrola. A oposição trotskista defina sua diretriz revolucionária da seguinte forma: Um partido comunista bem intencionado, cuja direção não fosse de iluminados e demagogos, teria de iniciar a propaganda nas fábricas e usinas [...]. E, na propaganda, não começar por convidar os operários a apossar-se das fábricas, como se já estivéssemos em plena revolução, mas demonstrar-lhes a necessidade de se organizarem para poder lutar pelas reivindicações imediatas. [...] E quando o Partido tiver constatado que sua influência sobre as massas existe realmente deverá, então, organizar manifestações e sair às ruas. [...] E as palavras de ordem devem ser lançadas de acordo com as necessidades do momento, e não feitas a priori, copiadas de palavras de ordem lançadas na Rússia, em ocasiões e condições muito diferentes (Pedrosa et al. apud Marques Neto, 1993:157).

A militância trotskitsta de Pedrosa no Brasil se manteve até 1937. Neste ano, Pedrosa foi obrigado a se retirar do país devido à ascensão de Vargas ao poder e pelas ameaças que vinha sofrendo, principalmente pela sua crítica ao Integralismo. Esta crítica ao Integralismo, visto por Pedrosa como uma manifestação do fascismo no Brasil, foi mobilizada principalmente pelo do jornal antifascista O Homem Livre, fundado por Pedrosa em 1933. Foi neste jornal que Pedrosa publicou sua primeira crítica de arte de repercussão: As tendências sociais da arte e Käthe Kollwitz (1933), considerada como o marco inicial da crítica de arte de tipo marxista no Brasil (Arantes, 2004:14). O texto é divido em duas partes. Na primeira, Pedrosa tenta definir estas tendências sociais existentes no fenômeno artístico. Para ele, a arte seria necessariamente determinada pelas transformações no modo de produção vigente. Assim, o modo de produção capitalista teria imposto novas condições sociais e técnicas aos homens, agravando a dissociação entre o homem e o trabalho social. O homem, antes senhor absoluto dos instrumentos de ação sobre a natureza, acabou sendo apartado do seu trabalho. Essa transformação na técnica teria produzido uma despersonalização do trabalho, o que acabaria se refletindo na arte. No período pré-capitalista, a arte seria indissociada das demais atividades humanas. Com o capitalismo, a arte

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A relação entre artes plásticas e marxismo nas críticas de Mario Pedrosa à obra de Portinari

Fig. 1 | Kathe Kollwitz. Weberzug (1893-1898)

Fig. 2 | Kathe Kollwitz. Gedenkblatt für Karl Liebknecht (1920)

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Fig 3 | Kathe Kollwitz. Die Freiwilligen (1920)

teria se desumanizado, deixando de fazer parte do chamado trabalho social. Com este processo, a arte perde sua unidade inicial e decai sua função social, abrindo assim o que Pedrosa chama de “era do culto impessoal da forma” (Pedrosa, [1933]1995:41). Nesta, a arte “perde sua expressão social totalitária”, “especializa-se e isola-se dos outros fenômenos sociais da civilização”, tornando-se “uma disciplina de luxo”, “uma mera distração de ociosos abastados” (Pedrosa, [1933]1995:43). Segundo Pedrosa, o capitalismo e a sua transformação técnica teria separado a arte e os artistas do restante da sociedade e dos seus problemas vitais, restringindo “as suas preocupações estéticas a um jogo pueril de formas e natureza mortas”: Eis porque o campo artístico está dividido estética e socialmente: de um lado, a arte desses criadores que ficaram absorvidos por essa segunda natureza superposta à primitiva, que é a nossa natureza moderna – a técnica – e desligados completamente da sociedade, em parte por estreiteza mental, em parte para não tomar uma atitude frente à implacável batalha das duas classes inimigas. O ar acaba viciando-se nessa atmosfera fechada, e eles se estiolam num irrespirável individualismo egocentrista a serviço de uma casta parasitária ou no hermético diletantismo para meia dúzia de iniciados. Voltam passadisticamente à torre de marfim, no meio das fabulosas miragens de aço que os rodeiam. No outro lado, colocam-se os artistas sociais, aqueles que se aproximam do proletariado e, numa antecipação intuitiva da sensibilidade, divisam a síntese futura entre a natureza e a sociedade, destituída afinal dos idealismos deformadores e das convulsões místicas das carcomidas mitologias. É o que explica o realismo do proletariado e dos artistas que o exprimem. É o caso de Käthe Kollwitz (Pedrosa, [1933]1995:46).

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A relação entre artes plásticas e marxismo nas críticas de Mario Pedrosa à obra de Portinari

Fig. 4 | Candido Portinari. Sorveteiro (1934)

A segunda parte do texto, dedicada exclusivamente à obra de Käthe Kollwitz, tenta mostrar como a sua arte é proletária, tendenciosa, denunciadora da opressão sofrida pelas classes subalternas: É que, representando a expressão social da nova classe [o proletariado], futura senhora dos destinos da sociedade, o que ela aspira através miserável opressão da hora presente é um novo humanismo superior, um autentico e novo classicismo surgido dramática e espontaneamente da própria vida (Pedrosa, [1933]1995:49).

A expressão desta “miserável opressão” na arte de Kollwitz, que marcaria seu caráter social e humanístico, pode ser visto em obras como Weberzug (fig. 1), Gedenkblatt für Karl Liebknecht (fig. 2) e Die Freiwilligen (fig. 3) Nesta crítica sobre a obra de Käthe Kollwitz, fica clara a adesão de Pedrosa a uma arte social e marxista. Contudo, o ponto principal que deve ser notado nas primeiras críticas de Pedrosa aos trabalhos de Candido Portinari é a congregação ainda incomum no período entre uma concepção trotskista de arte e um conceitual teórico estético-formal. Nos dois artigos de Pedrosa sobre a obra de Portinari deste período – Impressões de Portinari (1934) e Pintura e Portinari (1935) –, poderá ser percebido que, apesar de partir principalmente de uma abordagem marxista sobre fenômeno artístico, Pedrosa já demonstra uma fluidez no tratamento estético-formal sobre a obra de arte. Tal fluidez se amadureceria ao longo de sua trajetória, vindo a se tornar sua principal ferramenta crítica, o que não significaria um abandono do marxismo.

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Fig. 5 | Candido Portinari. India e Mulata (1934)

As primeiras críticas de Mario Pedrosa à obra de Candido Portinari O texto de 1934, Impressões de Portinari, é uma crítica longa, que não enfoca uma obra específica de Portinari, mas, sim, a sua trajetória como artista. No texto, Pedrosa divide a trajetória do artista em diferentes fases. Como poderá ser visto, Pedrosa já mostra que tem um domínio sobre o léxico teórico relativo à arte abstrata. Ele começa seu artigo tratando dos primeiros quadros de Portinari, que pertenceriam à sua fase marrom. Estas obras são dominadas por temáticas infantis, ligadas às suas lembranças de Brodósqui. Nestes quadros, marcados pelo marrom da terra roxa do solo do interior de São Paulo, Pedrosa percebe um primitivismo sentimental, presente também nos seus primeiros quadros “urbanos”, ainda que o contato com a capital lhe tenha mostrado os primeiros lampejos de plasticidade formal. Sua fase brodosquiana tem fim na medida em que “se amplia a sua concepção geral total de vida e sua maestria técnica se apura” (Pedrosa, [1934]2004:156). Em sua fase posterior, o problema da unidade estrutural da obra ganharia primazia. A realidade agora “se traduz através de abstrações geométricas de planos e dimensões” (Pedrosa, [1934]2004:156). Pedrosa cita a obra sorveteiro (fig. 4) como uma das grandes obras desta fase abstracionista de Portinari. Sobre esta, Mario Pedrosa diz: Sorveteiro é uma admirável composição de tensa dramaticidade construtiva. A separação de suas figuras é completa, perfeita a representação concreta do fundo e do espaço. Sem truques. As figuras são apenas flanqueadas por formas geométricas bem definidas (xadrez de ladrilho, retângulos de portas, muros, cilindros, que se sucedem em profundeza). Oposta a esse transcendentalismo matemático, a plasticidade comovente, carcomida, das figuras que ladeiam o sorveteiro de dorso no primeiro plano. A figura à esquerda, modelada sobre Vênus, quase descarnada de tinta na mão (parece acentuar a sua concreticidade esquelética), e a madona crioula no outro lado, brutalmente materializada (mas não humanizada), recortada canhestramente no barro cru. As formas são intensamente plásticas, mas as figuras em bloco não são humanas. Barro sem alma. É a contradição que dá uma estranha dramaticidade àqueles ícones. O jogo plástico obedece aqui unicamente a uma necessidade de definição abstrata das formas. (Pedrosa, [1934]2004:156)

Após esta fase idealista formal, marcada por essa dialética entre abstração formal e a figuração desumanizada, surgiria outra fase, oposta, que apresentaria uma nova dialética. Aumenta o rigor formal e perde-se o conteúdo material e social. Portinari se preocuparia agora não apenas com a composição, mas com exigências expressivas das tintas e das cores, que não são mais apenas meio de estabelecer efeitos exteriores sensíveis, visando à unidade entre matéria e composição, corpos e objetos, homem. Café (fig. 5) teria sido a maior realização desta fase de Portinari. Na tela “atravancada de coisas”, Portinari consegue fundir a matéria e a composição numa “unidade artística satisfeita de si” (Pedrosa, [1934]2004:156). Ainda sobre Café, Pedrosa afirma que Portinari descobriu uma ligação entre as figuras e o espaço num mesmo tecido compacto e materializado, embora a penetração das figuras ainda seja epidérmica e as materialidades

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Fig. 6 | Candido Portinari. Mestiço (1934)

destas ainda se deem na nitidez dos contornos e na consistência luminosa e concreta das superfícies. Na fase posterior, o problema do homem ganha maior importância, impondo-se a qualquer regra estética. Agora não é mais a forma abstrata do homem que Portinari procura, mas, sim, o “homem de carne e osso” (Pedrosa, [1934]2004:158). Sua obra ganha plasticidade escultural, presente na posição das figuras, na imobilidade destas, e também uma tendência ao monumental. Pedrosa ressalta a obra Índia e Mulata (Fig. 5) como um exemplo do êxito de Portinari em integrar o homem – o homem social – em sua arte. Uma nova dialética se imprime em sua obra, entre as “exigências da matéria social em sua dinâmica complexidade” e os “limites técnicos naturais da arte pictórica especificamente burguesa”. Essa dialética se expressaria também em outras obras, como Mestiço (fig. 6), marcada pela projeção da figura no primeiro plano da obra e pelo fundo, representando a natureza na sua expressão concreta e social, o que é contrário à técnica e à estética do retrato e do quadro de cavalete (Pedrosa, [1934]2004:160). Este seria o impasse da obra de Portinari na época. Ele teria superado os limites da pintura a óleo, do retrato, inserindo nela elementos do mural, da escultura e do monumento. Portinari obteve em sua obra uma unidade, uma harmonia precária entre o pictórico e o social, unidade esta mostrada, segundo Pedrosa, na obra Preto da Enxada (fig. 7). Para Pedrosa, esta evolução rumo ao muralismo poderia ser o futuro da arte, uma volta a arte sintética. Os sintomas desta velha nova arte já estariam na integração entre pintura e afresco e o mural, já presente em Diego Rivera e na escola mexicana. A condição de genialidade de Portinari estaria exatamente na sua capacidade em seguir tal direção (Pedrosa, [1934]2004:160). Já no artigo Pintura e Portinari (1935), Pedrosa volta à questão da síntese entre conteúdo e forma, afirmando que tal arte integral só se constituirá como tradição através dos artistas modernos revolucionários, “inspirados socialmente pelo proletariado e guiados pelo sentido do materialismo dialético no manejo da matéria das formas e do ritmo”. Pedrosa coloca as artes plásticas como uma “teoria do conhecimento”, como um método materialista de análise. Portinari seguiria tal método. Pedrosa volta à obra Sorveteiro para enfatizar o caráter dialético da obra de Portinari, onde a oposição entre a “cabeça fantasista”, idealista, e a “mão materialista”, disciplinada, acabaria por pender para uma ênfase no técnico e nas leis internas da obra de arte: Aqui [na obra Sorveteiro] foi a própria alma, a lei interna estrutural da composição e das formas materiais do próprio objeto sensível que avassalou o espírito do criador. As sombras mitológicas entram ai pela porta do subconsciente e se amoldam, subordinadas como andaimes, as necessidades interiores da própria obra. [...] A cabeça fantasista é tantas vezes, ai, enraizadamente idealista, obedece, disciplinada, a mão materialista, e por ela espera. (Pedrosa,1935:___)

Portinari estaria, assim, diante do mesmo problema de Picasso e de toda a geração de artistas modernos burgueses: a dualidade entre o conteúdo e a forma, a realidade natural e a realidade social, o homem e a natureza, o ser e a consciência. Estes contrastes dominam as obras dos maiores artistas de sua

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Fig. 7 | Candido Portinari. Preto da enxada (1934)

Fig. 8 | Candido Portinari. Lavrador de Café (1934)

época e nenhum artista – nem mesmo Picasso, o primeiro a se pôr diante deste problema estético – teria conseguido ultrapassar o impasse “realismo idealista ou idealismo realizante”. Tanto Portinari como Picasso, artistas burgueses, equilibram tais antinomias por vias abstratas, através da vontade criadora do artista concretizada por meio das leis formais e de composição: Para chegar a este equilíbrio, o artista atual, representativo da ideologia das classes dominantes, vê-se obrigado a fazer uma seleção eclética dos meios, do material, das realidades, dos contrastes de que dispõe e de que é vitima. Super-rico do formidável novo mundo material que lhe foi conquistado pela produção industrial, ela [a vontade criadora] chegou a compreender que há autonomia também neste domínio: há leis internas formais que precisam ser desvendadas e respeitadas. (Pedrosa, 1935:___)

Pedrosa conclui o texto afirmando que tal busca por leis internas foi um grande passo dado pela arte burguesa. Mas para ele, este idealismo orgânico tipicamente burguês que isola cada esfera em realidades únicas deve ser rompido a

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Fig. 9 | Candido Portinari. Algodão (1938)

partir da adoção de um método materialista dialético em artes, em que o jogo entre contrários – elementos e composição, figuras e objetos, perspectivas e planos, espaço e fundo, conteúdo e forma, natureza e sociedade – levaria a síntese artística necessária. Portinari teria assim seu valor reconhecido como artista capaz de levar as questões estéticas de seu tempo até seu ápice. Mas diante do problema surgido, nenhum artista burguês teria capacidade de solução. Caberia então ao artista revolucionário resolvê-lo. Um dos primeiros aspectos para que se deve atentar ao tratar destas primeiras obras de Mario Pedrosa é sua adesão à posição trotskista sobre as artes, apresentada principalmente em Literatura e revolução (1923). Pedrosa propõe, a partir de suas críticas, a necessidade de compreender os movimentos artísticos através do método do materialismo dialético, o que negaria uma arte movida exclusivamente por suas regras internas. Esta concepção do papel da arte no movimento revolucionário corresponde à posição de Leon Trotski, que define que a arte revolucionária não deverá ser feita exclusivamente por proletários.

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Seriam os intelectuais, que disporiam de “uma posição política passiva” (Trotski, 1969:187), marcada de uma maior ou menor simpatia pelo movimento revolucionário, que se empenhariam para tal fim. Nesse sentido, o Partido não deverá intervir diretamente sobre a arte. Adiantando parte do que viria afirmar no Manifesto por uma arte revolucionária independente, Trotski coloca a arte com um domínio que não deve ser guiado pelo Partido, devendo sim ser orientado segundo seus próprios desígnios. Poderá o Partido, segundo Trotski, proteger, estimular os grupos que se aproximam do movimento revolucionário. A arte revolucionária é classificada por Trotski como uma arte transitória, que “reflete, abertamente, todas as contradições de um período de transição” (Trotski, 1969:196). Esta arte não deve ser confundida com a arte socialista, que ainda estaria em vias de surgir. A arte revolucionária deve ser, segundo palavras de Trotski, “impregnada do ódio social, que, na ditadura do proletariado, constitui um fator criador nas mãos da história” (Trotski, 1969:196). Por outro lado, cultura socialista, a nova cultura surgida a partir da sociedade socialista, não seria a negação de toda a produção cultural burguesa, mas, sim, uma cultura formada por uma assimilação de elementos das antigas culturas, já que uma nova classe “não pode prosseguir sem considerar os mais importantes marcos do passado” (Trotski, 1969:193). A arte socialista não poderá ser construída apenas a partido proletariado, iletrado em educação estética embora artisticamente sensível. A atividade de Pedrosa como crítico de arte neste período pode ser compreendida como parte deste esforço para a criação de uma arte revolucionária no Brasil. Sua crítica deixa clara a busca por uma arte que possibilite uma crítica ao capitalismo. Para Pedrosa, a arte refletiria a sociedade na medida em que todo fenômeno estético moderno surge a partir das transformações ocorridas no modo de produção. A existência da arte como esfera autônoma, com suas próprias leis e abstraída da realidade empírica ocorre a partir da existência de um meio de produção que aparta o trabalho social da natureza. Assim, a arte se desenvolve e se transforma necessariamente de modo dependente em relação à sociedade, mesmo que haja uma aparente autonomia. Assim, se a arte reflete os conflitos da sociedade, ambas deveriam ser compreendidas segundo um mesmo método: o materialismo dialético. A concepção de Pedrosa sobre o materialismo dialético e sua relação com as artes na década de 1930 está fortemente ligada à posição de Trotski, que define o espaço de atuação do artista moderno como catalisador do processo de obtenção de uma ditadura do proletariado e como o construtor de uma nova tradição estética que só se consolidaria com o estabelecimento do socialismo. O artista moderno, burguês, mesmo que simpático à causa proletária, não faria parte da classe revolucionária, tendo apenas um caráter acessório e passivo diante das ações revolucionárias. Neste sentido, apreensão de Pedrosa sobre os elementos formais das obras de arte neste período está submetida, em grande parte, à esta concepção do materialismo dialético. A “linguagem” específica das artes deveria estar a serviço desta crítica ao capitalismo pretendida pela arte revolucionária. É neste sentido que Pedrosa entende que o próximo passo na evolução estética de Portinari deveria ser a entrada numa fase muralista, em que a forma e a técnica deveriam ser mobilizadas não como um fim em si, mas como forma de mobilização da população “não-iniciada”, o que levaria ao emprego do realismo e das obras monumentais.

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A relação entre artes plásticas e marxismo nas críticas de Mario Pedrosa à obra de Portinari

Fig. 10 | Candido Portinari. Desbravamento da mata (1941)

Fig. 11 | Candido Portinari. Descobrimento (1941)

O exílio de Mario Pedrosa e sua crítica aos murais de Portinari em Washington Em 1942, Mario Pedrosa, já em seu exílio, escreve uma nova crítica sobre a obra de Portinari, agora direcionada aos afrescos do pintor na Sessão Hispânica da Biblioteca do Congresso, em Washington, cidade em que Pedrosa residia na época. Nesta crítica, Pedrosa faz um novo panorama da trajetória artística de Portinari, resgatando e sintetizando diversas das questões e classificações feitas anteriormente, em Impressões de Portinari. Depois de uma breve apresentação biográfica de Portinari, onde relata a sua infância em Brodósqui, seu período no Rio de Janeiro e seus estudos na Europa, Pedrosa parte para a averiguação de sua produção artística propriamente dita. Ele explicita duas influências importantes na fase inicial da obra de Portinari: os estudos dos mestres europeus durante seu período europeu e o convívio com o grupo modernista brasileiro, ocorrido logo após seu retorno ao Brasil. Teria se dado a partir daí um lento e progressivo rompimento com o academicismo, de modo que, ainda por muito tempo, sua pintura construtivista e cubista teria convivido com o retrato tipicamente renascentista.

Fig. 12 | Candido Portinari. Catequese (1941)

Pedrosa volta a classificar o primeiro momento da obra de Portinari como “fase marrom”. Nesta fase estariam presentes as primeiras experiências de Portinari com as concepções antinaturalistas. Os temas sentimentais são dominantes, provenientes de suas reminiscências infantis. As obras dessa fase são de “inspiração subjetiva quase apriorística [...], sem o maior realismo, sem maior atualidade”. Da mesma maneira que em Impressões de Portinari, Pedrosa também a destaca a fase posterior pela primazia dos problemas estéticos em detrimento destas questões sentimentais. Agora, Portinari procuraria “traduzir a realidade plástica por uma abstração geométrica de planos e dimensões” (Pedrosa, [1942]1981:10-11). Como anteriormente, Pedrosa destaca Sorveteiro como um exemplo de obra que transparece a centralidade dos problemas de composição dessa fase. Manteve-se também o entendimento sobre a evolução da obra de Portinari por rumos picassianos, em que o modelado antinaturalista acaba por ganhar ares monumentais. Com as figuras ganhando o primeiro plano, surge também deste período o problema do homem. Mario Pedrosa sintetiza da seguinte forma o movimento evolutivo da carreira de Candido Portinari: Mede-se a sua evolução pela evolução do seu espaço e sua terra, que, de vasta monótona, nostálgica, primitiva, mergulhada em sombras, passa a uma terra cultivada, bem delimitada pelas linhas e perspectivas, repartidas geometricamente pelas carreiras dos cafezais numa gradação progressiva de planos e de cores na profundeza de seus horizontes claros e iluminados. Já Portinari não se contenta com as representações luminosas das figuras dos seus primeiros marrons, nem tampouco o satisfazem os ícones plásticos, mas abstratos que se seguiram (o Sorveteiro), nem mesmo as enormes figuras modeladas isoladas. O que ele quer agora é o homem concreto, em grupo ou em seu meio social, no trabalho. (Pedrosa, [1942]1981:11)

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A relação entre artes plásticas e marxismo nas críticas de Mario Pedrosa à obra de Portinari

Pedrosa volta a destacar as obras Mestiço, Índia e Mulata e Preto de enxada como as principais obras desta fase. Retomando a conclusão do seu artigo de 1934, Pedrosa ressalta o impasse vivido por Portinari à época: o desequilíbrio estrutural nos quadros gerado por essa introdução do homem social em sua obra. Conforme previsão de Pedrosa em 1934, à trajetória artística de Portinari seguiu-se uma fase muralista, surgida não pela influência de Diego Rivera e do movimento mexicano, mas, sim, por questões estéticas inerentes à sua própria obra. Assim, Pedrosa parece justificar a aproximação de Portinari ao muralismo não por uma necessidade de construção de uma arte revolucionária, mas sim por uma necessidade de ultrapassar as limitações estéticas da pintura a óleo, sendo assim um fenômeno estético, solucionado de modo interno, através de recursos diversos aos dos artistas mexicanos. Diferente dos mexicanos, Portinari nunca procurou “sacrificar” as “qualidades estruturais intrínsecas da realização às necessidades interessadas da intenção extrapictórica, da propagando e do zelo proselitista”. As exigências plásticas da obra de arte se mantiveram centrais na obra do artista brasileiro. Em seus afrescos, Portinari não tentaria exprimir uma realidade, mas sim interpretá-la. Um exemplo desta interpretação é a abordagem antinaturalista da iluminação na obra Algodão (fig. 9). Assim, Pedrosa ainda identifica essa tensão constante e de equilíbrio precário entre o “plástico e o abstrato, entre o puro pictórico e a vida” como sendo o “drama” da pintura portinariana nas suas mais diversas fases (Pedrosa, [1942]1981:15). Avançando na construção da trajetória de Portinari, Pedrosa delimita uma 4ª fase, caracterizada por uma espécie de “escape” das demandas da temática social. Há certa revivescência dos temas infantis, nos quais “as preocupações de composição dão lugar à invenção, a unidade de superfície à descontinuidade, e o realismo ao super-realismo”. Mas mesmo essas influências subconscientes e extrapictóricas são pensadas em termos estéticos. Como Pedrosa afirma, Portinari, “no afã de dar vida plástica a esses processos mais intuitivos, delimita o campo da tela, repartido entre planos isolados ou hierarquizados dentro das craveiras da perspectiva” (Pedrosa, [1942]1981:17) . Assim, Pedrosa defende que o mergulho de Portinari na “irrealidade concreta” não é profundo. Não há associações irracionais nestas obras. Os objetos funcionam como símbolos e não como “acontecimentos poéticos” aos moldes surrealistas. Dos surrealistas, afirma Pedrosa, Portinari retira apenas a tonalidade atmosférica. Contudo, em comum com eles tem o fato de que nunca fez ou fará pintura abstrata pura. Como posto por Pedrosa, “os elementos constitutivos de seus quadros são, ao fim, unidos por um pensamento sempre presente que, embora sem sugestão realista específica, implica a existência de um ‘assunto’” (Pedrosa, [1942]1981:18).

Fig. 13 | Candido Portinari. Descoberta do ouro (1941)

O texto passa agora para sua 2ª parte, em que Mario Pedrosa trata diretamente das têmperas expostas nas paredes da Fundação Hispânica, localizada na Biblioteca do Congresso. Sobre as características gerais dessa

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obra, Pedrosa diz: A intenção profunda do artista não é mais definir formas abstratas, mas reduzir formas à abstração criadora. As suas finalidades já não são puramente construtivistas, num sentido de montagem ou de estrutura, mas a criação é livre. É a sua fase de libertação criadora, a conversão do plástico no abstrato dentro da matéria pictórica. [...] Por processos afastados de qualquer receita, ele tende ao que se poderia chamar de desmitologização de seus ícones, de suas imagens, de suas paisagens, numa fuga às contingências externas, de meio e de tempo, nacionais ou não, e come os dedos de seus pretos, desconcretiza as formas de seus seres, intensifica a oposição violenta dos contrastes, multiplica os sinais geométricos numa ânsia de abstração, junta sem passagem cores irreconciliáveis, destrói perspectivas e funde planos mesmo com prejuízo do equilíbrio da composição ou da representação imediata, tudo em troca de um aceno de universalidade. (Pedrosa, [1942]1981:19)

Segue a partir daí uma análise pormenorizada dos quatro painéis expostos, Entrada (fig. 10), Descoberta (fig. 11), Catequese (fig. 12) e Garimpo (fig. 13). Tal análise é de teor estritamente técnico e atenta para os elementos pertencentes à composição da obra. Não pretendo discorrer aqui sobre as avaliações técnicas feitas por Pedrosa sobre os murais de Washington, mas vale a pena ressaltar dois trechos que destacam o critério estético valorizado por Pedrosa. Ao tratar do painel Descoberta, Pedrosa afirma o gênio de Portinari a partir de sua abordagem do tema marítimo, gênio este que estaria na sua capacidade de “jogar” com as convenções: O tema deste quadro é em si cheio de seduções perigosas para um pintor menos prevenido. A beleza natural das cenas marinhas, das caravelas, que as estampas românticas já tanto convencionalizaram é, para o artista, um escolho e um perigoso convite à condescendência. Portinari pôs de lado qualquer concessão ao convencionalismo histórico e no seu quadro não há grandes capitães nem lindas caravelas. Do mar, com suas belezas, do tema fácil tão prenhe de intenções literárias como esse da descoberta do novo mundo, o artista deixou passar apenas uma nesgazinha, num plano triangular no canto esquerdo do painel. E fê-lo magistralmente. [...] essa utilização audaciosa do convencional, da inspiração literária produz um contraste empolgante com a materialidade grave, objetiva e palpitante dos homens dos primeiros planos e a estrutura desinteressada de toda a composição. (Pedrosa, [1942]1981:21-22)

Fig. 14 | Candido Portinari. A primeira missa no Brasil (1948)

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Já no painel Garimpo, Pedrosa salienta a capacidade de Portinari em se distanciar do “assunto” ao compor a obra: O assunto é mais distante do que nunca, e fora de considerações estruturais e abstratas não se penetra o seu equilíbrio interior. A dominante é azul, azul, azul, com acompanhamentos imprevisíveis em cinza, em branco, em vermelho, verde, preto e marrom. (Pedrosa, [1942]1981:24)

Já é possível perceber uma ausência de um referencial teórico tipicamente marxista. A retomada sobre a trajetória artística de Portinari, feita na primeira parte de “de Brodósqui aos murais de Washington”, apesar de muito próximo em diversos aspectos ao artigo de 1934, deixa de lado a base marxista lá presente. Aqui, já sobressaem as características que viriam marcar a fase posterior da crítica de arte de Pedrosa. Conforme previsão de Pedrosa em 1934, à trajetória artística de Portinari seguiu-se uma fase muralista, surgida não pela influência de Diego Rivera e do movimento mexicano, mas sim por questões estéticas. Em outras palavras, Pedrosa faz questão de salientar que tal adoção da pintura em têmpera e em mural por parte do pintor brasileiro não se dá pela voga do momento político atribulado do Brasil, o que clamaria por uma arte mais social, como a da escola mexicana. Segundo a análise de Pedrosa, tal transformação se daria, sim, como resposta às limitações estéticas da pintura a óleo, sendo assim um fenômeno estético, solucionado através de recursos diferentes aos dos artistas mexicanos. Essa preocupação de Pedrosa com os “perigos” do “convencionalismo histórico” e do “assunto” no trabalho de Portinari mostram que não há mais uma grande preocupação com o realismo e com o caráter didático da obra de arte, o que seria característico da concepção típica de arte social. Agora, são exatamente os critérios estéticos e a preocupação com as cores e com as formas que ganham maior destaque nas páginas de Os murais de Portinari em Washington. Aparentemente, esta maior ênfase no uso de critérios estéticos no julgamento de obras de arte parece se dar ao custo de um desaparecimento do vocabulário marxista. Na crítica não há ou é obscura qualquer noção que torne

Fig. 15 | Candido Portinari. Tiradentes (Detalhe) (1949)

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possível uma referência entre a obra e a sociedade de maneira mais ampla, no sentido marxista. Não é apresentado no texto de Pedrosa nenhum “vir-a-ser” ou determinação social da arte. Aqui, Pedrosa já passar a interpretar a arte primordialmente pelos elementos interiores a obra. Essa transformação no teor da crítica de arte de Mario Pedrosa pode ser compreendida, em grande parte, pelas suas experiências vividas em seu exílio de 1937-1945. Após o acirramento das perseguições políticas ocorridas com o início do Estado Novo, Mario Pedrosa se afasta do cenário político nacional se exilando primeiramente em Paris, durante cerca de um ano, e depois em Nova York e Washington, até 1945. Em Paris, Pedrosa restabelece as relações com o núcleo trotskista parisiense, de que já era próximo desde sua estada na cidade durante o período de estudos na Europa, no final da década de 1920. Através destes círculos sociais, Pedrosa também estabelece uma série de relações como os intelectuais ligados ao movimento surrealista, também ligado ao trotskismo. Este vínculo entre surrealismo e trotskismo tem como principal contribuição o texto Por uma arte revolucionária independente, escrito por Leon Trotski e André Breton em 1938. Este manifesto afirmava a necessidade de manutenção da independência da arte em relação a qualquer dogma ou ideal político como condição para o caráter revolucionário da arte: Em matéria de criação artística, importa essencialmente que a imaginação escape a qualquer coação, não se deixe sob nenhum pretexto impor qualquer figurino. Àqueles que nos pressionarem, hoje ou amanhã, para consentir que a arte seja submetida a uma disciplina que consideramos radicalmente incompatível com os seus meios, opomos uma recusa inapelável e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à fórmula: toda licença em arte. [...] ao defender a liberdade de criação, não pretendemos absolutamente justificar o indiferentismo político e longe está de nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita “pura” que de ordinário serve aos objetivos mais do que impuros da reação. [...] o artista só pode servir à luta emancipadora quando está compenetrado subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma encarnação artística a seu mundo interior. [...] Toda tendência progressiva na arte é difamada pelo fascismo como uma degenerescência. Toda criação livre é declarada fascista pelos stalinistas. A arte revolucionária independente deve unir-se para a luta contra as perseguições reacionárias e proclamar bem alto seu direito à existência. (Breton & Trotski, 1985:41-45)

No período inicial de seu exílio na França, Mario Pedrosa participa da IV Internacional, organização dirigida por Trotski que visava à reorganização do movimento socialista para uma via internacionalista, em oposição à política adotada por Stalin. Já como membro do secretariado desta organização, Pedrosa se muda para Nova York, local escolhido pela IV Internacional para sediar seu partido. Lá, Pedrosa se alinha com parte da seção estadunidense da IV Internacional que acaba por se tornar uma dissidência desta organização. Esta dissidência surgiu principalmente devido à polêmica surgida com a chamada “questão russa”. Esta questão dizia respeito à defesa de Trotski do caráter proletário da União Soviética, mesmo com a atuação aparentemente imperialista da URSS na 2ª Guerra Mundial, que envolveu, inclusive, a invasão da Finlândia pela URSS. Devido a esta crítica do partido americano do qual Pedrosa era próximo, ele e os

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demais críticos acabaram afastados da IV Internacional. Contudo, a proximidade de Pedrosa ao grupo se manteve. Este grupo é conhecido pela historiografia norte-americana como “New York Intellectuals”; era constituído, em sua maioria, por jovens intelectuais judeus recém-emigrados. Eles se organizaram em torno da revista literária marxista Partisan Review, que apoiava o trotskismo até a ruptura entre grande parte destes “New York Intellectuals” com a IV Internacional. É importante destacar que a revista sempre enfocou as questões culturais, como artes e literatura. Muitos dos seus membros se destacaram nestes campos. Meyer Schapiro e Clement Greenberg se destacaram no campo da crítica e da história da arte, tendo contribuído para novas acepções sobre o espaço da arte de vanguarda como agente da transformação social. Após a ruptura, Pedrosa continuou em contato com tais intelectuais, participando dos seus debates sobre a relação artes e política. Não é meu objetivo tratar aqui destes diferentes grupos por onde Mario Pedrosa circulou durante seu período de exílio. Não me aprofundarei aqui nas formas como tais debates influíram na transformação na concepção da relação entre arte e política no pensamento de Mario Pedrosa. Em trabalhos futuros, tal hipótese será averiguada a partir da compreensão de como a inserção de Mario Pedrosa em diferentes círculos sociais teria influído na inflexão de seu pensamento político e estético.

Pedrosa e a sua crítica posterior ao exílio Pedrosa se debruçaria sobre a pintura de Candido Portinari mais uma vez no final da década de 1940. Neste momento, Pedrosa já havia retornado ao Brasil e já havia se estabelecido como crítico de arte. Ele escrevia regularmente críticas para jornais como Correio da Manhã e Jornal do Brasil. Escreveu duas críticas sobre obras específicas de Portinari: o painel em têmpera Primeira Missa no Brasil (1948) (Fig. 14), e o painel Tiradentes (1949) (Fig. 15). O fato de Pedrosa analisar apenas uma obra em cada uma de suas críticas já demonstra uma diferença em relação às suas críticas anteriores, que tentavam dar conta de toda a trajetória de Portinari até então. Esta análise mais restrita, voltada para uma obra específica é uma característica da crítica de arte profissional e especializada, que começou a ser estabelecida nesta mesma década. Mario Pedrosa foi um importante agente destas transformações no campo da crítica de arte. No texto de 1948, Pedrosa inicia sua interpretação sobre a obra, referindo-a ao quadro de Vítor Meirelles de Lima, que também tinha como tema a primeira missa realizada no Brasil. Contudo, Pedrosa mostra como Portinari procurou opor sua obra ao quadro do século XIX. Portinari estaria longe das preocupações naturalistas e das representações do exótico. Segundo Pedrosa, a missa de Portinari é uma missa sem natureza. Não há nativos, apenas estrangeiros, clérigos, soldados, crentes; não há vegetação ou terra nua, apenas uma pavimentação, um assoalho típico de templo religioso; não há curvas, apenas linhas retas. Tudo soa artificial, antinatural, assim como tal evento num Brasil ainda

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Fig. 16 | Candido Portinari. Tiradentes (Detalhe) (1949)

Fig. 17 | Candido Portinari. Tiradentes (Detalhe) (1949)

selvagem e pagão. Portinari transfigura o tema histórico para que ele se adeque à composição abstrata. A realidade histórica não se faz presente e nem mesmo é um problema estético. Aliás, Pedrosa que este é um falso problema. Isto fica claro na abordagem que ele faz da missa de Portinari. Após essa breve relação com a obra de Vítor Meirelles de Lima, o tema praticamente desaparece. O que resta é uma análise extensa dos elementos da composição da obra. Dessa averiguação de ausência de curvas, Pedrosa parte para a análise das linhas retas, que se transformam em lados de polígonos em dorsos, pernas e cabeças. As palmeiras são colunas planas. As cores também não estariam ali para representar a realidade convencional. A todo momento Pedrosa marca o rompimento de Portinari com qualquer exigência externa à obra. Isto fica claro quando Mario Pedrosa compara Portinari a Pablo Picasso. Nesta obra, Portinari teria ousado numa composição atípica, partindo do amarelo. Tal solução não seria normal para um “picassiano”, o que demonstra que Portinari é um mestre exatamente quando não se prende às “muletas” do artista espanhol. É quando não se prende à influência de Picasso que Portinari parece obedecer mais estritamente “à suprema lei do artista, isto é, à sua própria personalidade”. Nos últimos parágrafos do texto, Pedrosa se volta para uma crítica de certos elementos dispensáveis, como “certos detalhes meramente descritivos ou deliberadamente expressionistas, [...] oriundos de solicitações extra-pictóricas”. Mas tais problemas já seriam menos presentes do que foram em outros momentos de sua carreira. Ao concluir, Pedrosa saúda o gênio de Portinari exatamente pela sua capacidade de se expressar sem a necessidade de recorrer a “truques”. Seu poder criador fica provado exatamente pelo seu tratamento dado ao gênero histórico. A solução que acaba de dar a um gênero histórico como o da missa é a prova de seu poder criador. Resolutamente, ele suprimiu uma série de problemas falsos, como o da luz natural, da realidade histórica etc. Foi mais longe, e suprimiu a natureza do tema que devia transpor para a tela. Era o seu direito. E apresentou a sua solução de modo magistral. (Pedrosa, 2004:170)

Pedrosa termina seu texto afirmando que a Missa de Portinari não visa ao proselitismo. Ela seria apenas “para iniciados”, e prepara “os fiéis para saírem a campo”, propagando a fé por “aquele mundo virgem, desconhecido”. Em 1949, Mario Pedrosa escreve seu texto mais polêmico sobre Portinari. Em O Painel de Tiradentes, Pedrosa analisa o painel, criado para decorar as paredes do Colégio Cataguases, localizado na cidade de mesmo nome e cujo prédio fora idealizado por Oscar Niemeyer. Pedrosa inicia o texto destacando a “radical horizontabilidade” do quadro, que mede 3,15m de altura por 18m de largura. Essa proporção marcaria negativamente a obra de Portinari. Pedrosa ressalta que o caráter retangular da obra dificulta a apresentação de qualquer tema, sendo mais adequado a sua utilização em uma obra decorativa, o que não era o caso mural Tiradentes, que era de gênero épico. Assim, muitos dos elementos importantes da obra tiveram que se postar em uma posição secundária na obra, sem dramaticidade. Um exemplo disto é a cena em que é retratada a forca. A cena do patíburo na praça pública com a multidão em volta poderia ter sido um dos momentos culminantes do drama. Tal como está, em segundo plano, é um pormenor, um acessório, uma ilustração. (Pedrosa, [1949]2004:176)

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Esta divisão do quadro em “cenas” é reconhecida como um ponto negativo da obra, mas foi necessária devido à desproporção do quadro. Os diferentes momentos do drama de Tiradentes foram retratados individualmente, como episódios, em direção horizontal, como numa espécie de linha do tempo. Essa forma de retratar os eventos em torno da vida de Tiradentes ainda é criticada por Pedrosa devido à falta de um “ritmo” na representação de Tiradentes. Nesses diferentes momentos ele é representado de maneira indistinta, sem que haja uma ligação entre as figuras. Só vinculam as imagens representadas a Tiradentes aqueles que conhecem a história. Segundo Pedrosa, alguns estrangeiros não teriam compreendido a obra devido à falta de um tratamento pictórico que desse um nexo entre as imagens. Só lendo o texto do catálogo, mais no espírito do libreto de ópera que de catálogo sobre pintura, é que ficavam eles [os estrangeiros] compreendendo o que viam. Ora, um dos motivos originais históricos do afresco foi precisamente o de ensinar o povo iletrado, dispensando-se o alfabeto. (Pedrosa, [1949]2004:177)

Faltaria às diferentes representações de Tiradentes na obra alguma semelhança, seja pictórica ou espiritual. Contudo, Pedrosa não pretende afirmar que faltou à obra um maior detalhamento. O que Pedrosa pretende afirmar com essas críticas é a necessidade de um “todo plástico”, que “transcenda o imediato e o particular, as partes e a sua soma”. Assim, mesmo nas obras de cunho histórico, é imprescindível que o artista imponha sua própria concepção da realidade. Caberia ao artista “vencer as dificuldades do assunto e quando necessário, violar, desrespeitar a verdade conjuntural da história, em nome da verdade artística”. Para Pedrosa, Portinari teria caído no perigo do “exagero realista do gênero”. Rembrandt e Goya foram mestres da pintura que conta uma história. Mas para tanto tiveram de criar uma forma adaptada ao assunto. Eles, porém, nunca desceram às minúcias do acabamento na forma, porque preferiam deixar as sugestões de luz e de sombra criarem os efeitos dramáticos. Quando se desce, entretanto, ao acabamento minucioso dos membros gotejantes de sangue e dos quartos escalpelados de Tiradentes [...] é forçosa a queda na catalogação dos detalhes, com vista apenas no assunto. É inevitável também que a composição sofra. [...] Assim, esses pormenores não têm a menor função plástica ou pictórica; o artista aqui foi simplesmente vítima literal sob que encarou o tema. (Pedrosa, [1949]2004:179)

Após esta série de críticas aos aspectos representativos da obra de Portinari, Pedrosa segue para uma crítica, não menos contundente, à composição da obra. Para ele, Portinari não dá à obra uma unidade estrutural satisfatória. Sobre a cor, Portinari teria elevado a sua gama ao máximo, utilizando tons como o branco e o amarelo, criando uma espécie de projeção de um foco de luz que se estende da esquerda para a direita. Essa “luz” seria o recurso pictórico de Portinari para dar unidade espacial à composição, mas para Pedrosa a unidade obtida é ilusória, óptica, como uma espécie de iluminação cenográfica, pois “não há nela nenhum elemento formal ou estrutural. A composição não se fecha pelos planos superiores. E a pobreza, a ausência, nesse sentido, de elementos tectônicos, é patente”. Ainda sobre a composição, Pedrosa entende que a obra não teria uma

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A relação entre artes plásticas e marxismo nas críticas de Mario Pedrosa à obra de Portinari

continuidade estilística nas suas três “partes”. As figuras que se destacam são geralmente alguns cenários de fundo, isolados do restante da obra. A última crítica feita por Pedrosa se volta ao recurso de sombreamento usado por Portinari, que teria dado às cores uma impressão por demais alegre, o que não condiz com a tragédia representada no quadro. Em 1946, Pedrosa era responsável por duas colunas sobre artes plásticas, a coluna do jornal Correio da Manhã e a do jornal O Estado de S. Paulo. É a partir deste período que Pedrosa começa sua produção contínua de textos sobre artes, o que evidencia também uma maior preocupação de Pedrosa com as questões estéticas do que nos seus primeiros anos como crítico de artes. Uma característica dessa profissionalização da crítica de artes é o uso de um léxico próprio, que, apesar de ser formado por conceitos de diversas disciplinas, formam um todo independente, capaz de tratar de modo específico as questões estéticas. Percebe-se que a análise sobre os elementos pictóricos passam a dominar as críticas de Pedrosa. Outro ponto a se destacar é a abordagem feita nas análises sobre a arte. Agora, Pedrosa não tenta fazer em seus textos uma tese sobre o funcionamento universal da arte, apesar de muitas vezes sugerir algumas tendências gerais presentes no fenômeno estético. Sua crítica é mais especifica, enfoca apenas uma obra, um artista. Esta utilização de um conhecimento específico para lidar com a arte se faz necessária com as transformações sofridas na arte moderna na primeira metade do século XX. Conforme posto por Pedrosa, com o advento da arte abstrata, a arte passa a reivindicar-se como uma forma de conhecimento específica, o que a aproximaria da ciência, principalmente no que se refere à sua autonomia diante do “real”: A arte libertou-se de suas servidões seculares (algumas delas, aliás, muito fecundas para o seu desabrochar) para apresentar-se, pela primeira vez, como um fim em si, isto é, como fenômeno estético e nada mais. Não se confunde mais nem com a magia, nem com a religião, nem com a política, nem com a moda, e é julgada segundo suas próprias leis e exigências [...]. Na sua independência em relação à natureza exterior, a arte moderna tende também, como a ciência, a libertar-se da preponderância da percepção e mesmo da experiência sensível. (Pedrosa, 1996:244)

E é a partir desta liberação das amarras que prendiam a arte ao real que a arte reivindica para si o estatuto de meio de conhecimento: Nesta última etapa, a arte, que se aproximou da ciência, reivindica para si o direito de ser também um meio de conhecimento. Não quer mais ficar limitada às suas funções expressivas, como meio de conhecimento. Não quer mais ficar limitada às suas funções expressivas, como simples veículo da subjetividade comprimida. Quer chegar a um pensamento articulado das essências, dos fundamentos do real que a ciência apreende, analisa e submete à sua crítica precisa. Se em seu último desenvolvimento ela suprime o objeto, ultrapassando com isso o ponto de partida da percepção direta imediata, a arte tenta trazer-nos novas concepções de objetos ideais, que se manteriam em um plano de analogia com as unidades formais de significação própria como as gestalts no mundo psicofísico e as estruturas físico-matemáticas. (Pedrosa,1996:246)

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Ao se tornar um conhecimento independente, com linguagem especializada, a arte afasta-se dos juízos “fáceis” do observador comum. Ela se torna um campo de experimentação que vai além do compreensível pela simples observação, exigindo um conhecimento prévio dos conceitos e teorias que estão em jogo e também dos estágios em que se encontram os debates em torno das questões estéticas Por perder suas características que permitiam seu uso instrumental, a arte deixa de ter um uso ideológico para se encerrar em si mesma, em um aprimoramento de uma gramática própria. Assim, pode se imaginar que a forma como Pedrosa pensa as artes a partir de 1945 passa a ser completamente apolítica. Contudo, é sabido que no mesmo período Pedrosa se esforçava na organização e divulgação do socialismo democrático no Brasil, principalmente através do jornal Vanguarda Socialista, inaugurado e dirigido por ele em 1945. Claro que não é imperativo que haja necessariamente um nexo entre a atividade de Pedrosa como crítico de artes e a sua atividade como militante político. Muitas vezes se exige da realidade uma coerência que dificilmente se encontra de fato quando nos colocamos diante dos fatos empíricos. Mas mesmo assim, é possível encontrar um sentido político nesta abordagem estética de Mario Pedrosa, onde há claramente uma valorização da arte abstrata. Em artigo de 1952, Pedrosa trata exatamente dos vínculos entre arte e revolução, lançando novas luzes sobre a relação entre as artes e o marxismo. O artigo Arte e revolução sintetiza a forma como Pedrosa entende o sentido da arte como reflexo da sociedade. No texto, Pedrosa afirma que numa época de prevalência da cultura de massa não há sentido em a arte competir com o gosto popular. A arte não deve se destinar às massas. A missão da arte seria outra, a de “ampliar o campo da linguagem humana na pura percepção, nos limites do individual”. Deste modo, os artistas abstratos seriam os mais conscientes de sua época, pois não se poriam numa competição com as culturas mais populares, que teriam outro fim. Enquanto aqueles formidáveis meios de comunicação e expressão são coletivos, alargam em massa, panoramicamente, a visão contemporânea, a pintura e a escultura particularizam, especificam, isolam os ângulos inéditos ou pouco percebidos dessa visualidade em constante movimento, pois, de múltiplas. Aqueles meios são antes de natureza épica, destinando-se às coletividades; estes se dirigem aos indivíduos. Mas indivíduos saídos daquelas coletividades, por elas modelados. (Pedrosa,1995:98)

Concluindo seu texto, Pedrosa fala de uma “revolução da sensibilidade”, que não deve ser confundida com uma revolução política. A revolução política está a caminho; a revolução social vai se processando de qualquer modo. Nada poderá detê-las. Mas a revolução da sensibilidade, a revolução que irá alcançar o âmago do indivíduo, sua alma, não virá senão quando os homens tiverem novos olhos, novos sentidos para abarcar as transformações que a ciência e a tecnologia vão introduzindo, dia-a-dia, no nosso universo, e, enfim, intuição para superá-las. Eis aí a grande revolução “final”, a mais profunda e permanente, e não serão os políticos, mesmo os atualmente mais radicais, nem os burocratas do Estado que irão realizá-la. Confundir então revolução política com revolução artística é de um primarismo bem típico da mentalidade burotecnocrática dominante nos estados onipotentes ou totalitários de nossos dias, e de que o comunismo stalinista é ainda hoje a expressão mais acabada e sinistra. (Pedrosa, 1995:98)

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Dessa forma, a arte se torna uma esfera autônoma, com uma dinâmica própria. Tal autonomia da arte e sua capacidade transformadora se dão sobretudo por condições sociais, que permitem tal autonomia como forma de conhecimento. Este lugar da arte moderna como uma extrapolação do real, como uma nova linguagem, que possibilitaria um alargamento da capacidade cognitiva dos indivíduos, condição para uma futura revolução social, também parte do materialismo dialético, mas mobilizado de uma maneira pouco usual, sobretudo entre os pensadores da arte brasileira.

Conclusão Existe um entendimento comum no marxismo de que a arte deveria refletir a luta entre a burguesia e o proletariado para ter um caráter revolucionário. Contudo, a compreensão sobre como se daria este “reflexo” não é unívoco. Este artigo buscou esclarecer dois sentidos diferentes que tal entendimento toma forma na trajetória de crítico de arte de Mario Pedrosa, figura central das artes plásticas brasileiras. Assim, este “refletir” assume duas formas distintas nas críticas de Pedrosa a Portinari. No período inicial de sua crítica de arte (1933-1937), marcada principalmente pelo amadorismo e pela defesa do realismo e do muralismo, a arte aparece como sendo subordinada ao movimento revolucionário que lutaria por uma ditadura do proletariado. A arte moderna entendida a partir do materialismo histórico aparece como um fenômeno relacionado ao modo de produção capitalista, no qual a arte como esfera autônoma é um prodígio da dominação burguesa. Mas isto não significa necessariamente que uma arte militante, proletária, deva ser necessariamente panfletária. Apesar de sugerir, através do texto referente à obra de Käthe Kollwitz, que a atitude política do artista proletário deva pôr no primeiro plano as agruras e o sofrimento da classe operária, não está presente uma negação explícita das preocupações formais. Para Pedrosa, estas preocupações surgem como reflexo da sociedade que não devem ser negadas, mas sim tomar parte de uma atitude política que vise uma síntese, que seria alcançada apenas com o socialismo. Nos textos acerca de Portinari anteriores ao exílio, o artista moderno pode ser compreendido como um dos portadores desta síntese, o que daria a ele seu caráter político. Contudo, tal síntese só poderia ser alcançada no socialismo. Assim, a principal luta do artista moderno seria a criação de uma arte revolucionária, que aceleraria o processo de acirramento entre as classes e a consequente instauração de uma ditadura do proletariado. Já a partir de seu retorno ao Brasil após um exílio de cerca de sete anos, seus posicionamentos sobre arte se transformam radicalmente. Além da transformação no repertório teórico, a própria forma textual como se dá a crítica se altera. Antes, ele era voltado, sobretudo, à carreira de um artista ou de um movimento estético como um todo, numa espécie de ensaio que dá conta da totalidade da obra e a insere em um movimento geral da arte. A partir de 1945, sua crítica tem um caráter mais especializado, de cunho mais acadêmico, voltado especificamente para uma obra ou para um elemento mais delimitado da experiência es-

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tética. Nesta fase, Pedrosa admite a autonomia do campo estético, mas isto não quer dizer que este estaria apartado do restante do mundo social. Aqui, a arte também aparece como reflexo da sociedade, mas agora esta autonomia seria a condição para o caráter revolucionário da arte. Nesta condição de autonomia, a arte revolucionária não é uma arte que propaga aos quatro cantos os ventos da mudança, proveniente do ímpeto e da força dos grandes exércitos que hasteiam as bandeiras da revolução proletária. O caráter político do artista moderno estaria exatamente na sua capacidade de revelar realidades outras, que aguçariam sentidos nunca antes despertados. Desta forma, a relação arte e política no pensamento de Mario Pedrosa se mostra, a partir de 1945, também como um reflexo da sociedade, em que a autonomia, permitida exatamente pela proliferação da cultura de massa e pela “socialização da vida íntima” acaba sendo condição da emancipação. Reafirmando aquilo que foi posto acima, a fase posterior da crítica de Pedrosa não significa necessariamente uma ruptura em relação ao materialismo dialético e ao marxismo e, sim, uma nova compreensão sobre a forma como a arte revolucionária reflete a luta de classes. Nas suas críticas posteriores ao seu exílio, Mario Pedrosa apresenta um novo lugar para a crítica de arte revolucionária, em que o artista moderno ganha uma nova “vocação” revolucionária exatamente pelas condições materiais da produção artística.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO VASCONCELOS, Marcelo Ribeiro. A relação entre artes plásticas e marxismo nas críticas de Mario Pedrosa à obra de Portinari. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 152 - 181. Disponível em: http:// issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa. Recebido em 15 de outubro de 2011. Aprovado em 12 de maio de 2012.

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ETNOGRAFIA, CORPO E IMAGEM reflexões a partir de uma experiência de registro audiovisual entre costureiras domiciliares de Nova Friburgo-RJ por Wecisley Ribeiro do Espírito Santo

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Wecisley Ribeiro do Espírito Santo é Doutor pelo Programa de PósGraduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. Área de pesquisa: Antropologia do Trabalho e dos Trabalhadores.

ETNOGRAFIA, CORPO E IMAGEM: reflexões a partir de uma experiência de registro audiovisual entre costureiras domiciliares de Nova Friburgo-RJ Resumo O artigo apresenta algumas reflexões a partir de uma experiência com

o registro audiovisual no trabalho de campo etnográfico entre costureiras de vestuário. Alguns dados empíricos importantes decorrentes deste exercício são relatados, no início do texto, e apreciados à luz da relação entre pesquisa, depoimentos orais, técnicas corporais de ofício e a presença inusitada da câmera filmadora. Esta primeira parte pretende constituir um mote para as ponderações de ordem mais teórica que se seguem. O terceiro e o quarto tópicos consideram, respectivamente, a ambiguidade da antropologia visual em uma disciplina centrada na escrita e o caráter pedagógico do registro audiovisual. As considerações finais buscam ampliar o campo dos aspectos a serem filmados na pesquisa. Palavras-chave audiovisual, corpo, cultura material, etnografia, imagem.

ETHNOGRAPHY, BODY AND IMAGE: reflections from an experience of audiovisual record between domiciliary dressmakers of Nova Friburgo-RJ Abstract The article presents some reflections from an experience with the au-

diovisual register in the ethnographic fieldwork between clothes dressmakers. At the beginning of the text some consequent important empirical data of this exercise are told and appreciated to the light of the relation between research, verbal testimonies, professional corporal techniques and the unusual presence of the camera. This first part intends to constitute a epigraph for the theoretical reflections that follow. The topical third and fourth considers, respectively, the ambiguity of the visual anthropology in one discipline centered in the writing and the pedagogical character of the audiovisual register. The conclusion tries to extend the field of the aspects to be filmed in the research. Keywords audiovisual, body, material culture, ethnography, image.

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Introdução However much we may rejoice that the camera gives the verbally inarticulate a medium of expression (Mead, 1995).

Este texto apresenta algumas reflexões a partir de uma experiência com o registro audiovisual no trabalho de campo etnográfico. Digo “registro audiovisual” e não “filme etnográfico” para sublinhar minha preocupação exclusiva com a documentação do universo social investigado. Não evoco, por conseguinte, nenhuma habilidade estética, nem tenho a pretensão, por ora, de editar um material audiovisual que possa ser apresentado à comunidade acadêmica. Trata-se de buscar meios de registro na pesquisa etnográfica complementares ao caderno de campo. Pretendo apenas iniciar um diálogo que articule parte da bibliografia sobre antropologia visual com meu próprio material empírico – referente à vida e ao trabalho das mulheres costureiras da indústria de roupas íntimas da cidade de Nova Friburgo, no Estado do Rio de Janeiro. Pelo menos dois aspectos do filme etnográfico constituíram a base de meu interesse sobre o tema – o caráter pedagógico do registro audiovisual (De Brigard, 1995:30; Jordan, 1995:15; Carelli & Gallois, 1995:55; Monte-Mór, 1995: 84; Piault, 2007:16), por um lado, e seu potencial para fornecer um painel mais completo dos aspectos “verbalmente inarticulados” (Mead, 1995) da experiência humana, por outro. Embora sem nenhuma pretensão assertiva, espero levantar preliminarmente a hipótese de que estas duas dimensões do registro audiovisual constituem contrapartida uma da outra. Embora parte da bibliografia sobre antropologia visual mencione o potencial pedagógico do registro fílmico, o faz apenas pontualmente, sem atacar de modo mais detido a relação que parece existir entre a estrutura do código audiovisual propriamente dita e suas propriedades educativas. Um dos pontos que me parece ser fundamental a este respeito refere-se ao fato de o suporte fílmico ser capaz de registrar certas dimensões da experiência das quais o código verbal não pode se apropriar senão muito precariamente. Refiro-me a alguns dos aspectos do que Margaret Mead chamou de “verbalmente inarticulados” – a saber, as “técnicas corporais” (Mauss, 1974), ou mais precisamente as dimensões “incorporadas” (Bourdieu, 1980) da experiência social, bem como a “cultura material”, ou “os aspectos materiais da cultura” (Heider, 1995:48). De fato, as técnicas do corpo e a cultura material são elementos que perpassam a história da antropologia visual, estando presentes na maioria dos trabalhos considerados precursores deste campo acadêmico. Por exemplo, em cronofotografias de 1895, feitas por Félix-Luis Regnault: Regnault escreve: “nós realizamos, no laboratório de E. J. Marey, a fotografia de três negros no momento em que se agachavam: o Ouolof e o Peul têm as pernas oblíquas, próximas da vertical, enquanto que o Diala, do país dos rios tem as pernas mais curvas e mais próximas da horizontal”. Estes trabalhos de Regnault traduzem bem as suas preocupações: estudar o que mais tarde Marcel Mauss chamou de “as técnicas do corpo” (Jordan, 1995:14).

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1. A “cultura material” aparece no marco inaugural do cinema, a projeção de “uma entrada na estação de La Ciotat” (Piault, 2007:13) pelos irmãos Lumière, em 28 de Dezembro de 1895, no subsolo do Grand Café, Paris; imagens de “técnicas do corpo” inauguram o gênero etnográfico: “Para o [início do] filme etnográfico, Jean Rouch sugere 4 de abril de 1901. Neste dia, Baldwin Spencer (...) filmou uma dança nativa do canguru e uma cerimônia para a chuva” (Heider, op. cit: 34).

2. Agradeço à professora Rosilene Alvim por chamar minha atenção para este ponto.

O mesmo Pierre Jordan refere-se, um pouco antes, ao registro cronofotográfico de um ramo do que se poderia denominar cultura material – a técnica da produção de cerâmica1: Foi, muito provavelmente, com a ajuda deste cronofotógrafo, que o médico Félix-Luis Regnault, membro da Société d’Anthropologie de Paris, ajudado por um de seus amigos, Charles Comte, assistente de E. J. Marey, realizou uma série de cronofotografias sobre uma ceramista oulove (ibid: 13).

A abordagem teórica desta relação entre o potencial didático ou heurístico do filme etnográfico e a centralidade histórica assumida pelas dimensões mais corporais e materiais da vida nos registros audiovisuais da antropologia pretende também me orientar para a formulação de um roteiro mais abrangente para a prática da filmagem entre as operárias do setor têxtil de Nova Friburgo. Os variados ritmos do caminhar das costureiras, por ocasião de distintos momentos de sua jornada de trabalho (a entrada, pela manhã, a saída para o almoço, a saída no fim do expediente), as técnicas corporais da costura e outras etapas do processo produtivo, a relação corporal das operárias com o material objeto de seu trabalho – os modos de tocá-lo, manuseá-lo, que podem eventualmente estar carregados de significado2 –, a pedagogia dos cursos técnicos de corte e costura materializada nos processos de socialização das costureiras neófitas, as instalações das fábricas, confecções menores e unidades domésticas de produção, além dos depoimentos orais destas trabalhadoras (e veremos ulteriormente que a oralidade apresenta diferenças importantes em relação ao código escrito) constituem, todos, tópicos para tal roteiro. A próxima parte deste artigo constitui um relato de minha experiência no registro audiovisual de duas costureiras domiciliares, Andreia e Vanilda. Alguns dados empíricos são apreciados à luz da relação entre pesquisa, depoimentos orais, técnicas corporais de ofício e a presença inusitada da câmera filmadora.

3. Expressão tomada de empréstimo de Gisèle Omindarewa (referindo-se à concepção africana do conhecimento), protagonista do filme Gisèle Omnindarewa (2009), da antropóloga Clarice Peixoto.

O tópico três pretende desenvolver uma discussão a partir de uma ambiguidade apontada por Margaret Mead – qual seja, o fato de a Antropologia visual se desenvolver no interior de uma disciplina que confere centralidade à palavra escrita. Não obstante, é esta mesma disciplina aquela que mais diretamente tem de lidar com uma “concepção prática do conhecimento”3, característica de muitas sociedades não-ocidentais e sem escrita. Um modo possível de lidar com esta ambiguidade é aquele apontado pelo antropólogo Thomas Csordas (1990) por meio da noção de “embodiment”. Creio que a centralidade que Csordas confere aos aspectos incorporados da experiência constitui um homólogo epistemológico do potencial expressivo do audiovisual para o que Mead denomina “o verbalmente inarticulado”. As propriedades formais do registro audiovisual podem fornecer meios que talvez comuniquem mais eficazmente aos sentidos corporais. Uma vez que a ação humana parece ser, em certa medida, infraconsciente em decorrência do caráter incorporado do habitus (Bourdieu, op. cit.) – isto é, das disposições duráveis para a ação, resultantes da incorporação das estruturas sociais sob a forma de estruturas cognitivas – o potencial pedagógico do registro audiovisual pode

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emergir das possibilidades de uma comunicação multissensorial4 da experiência incorporada; o que seria mais dificultado pelo código escrito. Posto que o vídeo permite preservar uma dada experiência por séculos (Mead, op. cit: 4), ele constitui um material particularmente propício para o exercício repetido de objetivação das dimensões pré-objetivas (Merleau-Ponty citado por Csordas, op. cit.:10) da experiência. Esta constitui a discussão do quarto tópico. Pretendo reativar aqui a formulação de Marshall McLuhan segundo a qual os meios de comunicação são “extensões dos mecanismos da percepção humana” (1968: 219). Se a hipótese de McLuhan estiver correta, então um código multissensorial pode aproximar-se mais da percepção do espectador que o código escrito. Daí seu potencial pedagógico, sua eficácia heurística. Sob este ponto de vista, o conhecimento escolástico – fundamentado na condição de skóle, de tempo livre, despreocupado com as necessidades práticas da sobrevivência (Bourdieu, 2001) –, representado, mormente pelo código escrito, apresentaria mais limites para a prática educativa (e, por conseguinte, também para o que a antropologia chama de devolução dos dados da pesquisa aos pesquisados) do que o conhecimento prático, representado aqui pelo código audiovisual. Com efeito, educadores como Paulo Freire (1978) já apontaram, há algum tempo, o potencial pedagógico da codificação audiovisual. Para Freire, tal codificação audiovisual (mas também fotográfica, cênica, ou feita sob a forma de outras linguagens das artes plásticas) constituía a condição de possibilidade para uma reconciliação entre o aprendizado da linguagem escrita e a experiência concreta dos alunos, sem o que o aprendizado da escrita se daria sob um modo abstrato e vazio de conteúdo empírico, portanto, apolítico.

4. Refiro-me à comunicação audiovisual como um meio “multissensorial” – e não bissensorial – inspirado em Lawrence Frank (1968) para quem as formas de comunicação acústica e visual podem eventualmente evocar sensações táteis, olfativas e gustativas.

As considerações finais retornam aos aspectos empíricos do universo social das costureiras de roupas íntimas de Nova Friburgo. Trata-se aqui de esboçar um roteiro do que ainda se há por fazer acerca do registro audiovisual desta categoria operária e dos aspectos simbólicos e materiais de seu mundo e modos de vida.

Uma experiência de registro audiovisual Era um dos não pouco frequentes dias sem costura5 quando solicitei a Vanilda e Andréia – duas irmãs que trabalham na costura a domicílio pelo sistema de facção6, em Nova Friburgo – que me permitissem fazer um exercício de registro audiovisual acerca de seu trabalho na confecção de peças de roupas íntimas. Em que pese a ininterrupta disponibilidade de ambas para me ajudar com minha investigação, disseram-me que naquele dia eu não conseguiria filmá-las trabalhando porquanto o “serviço estava fraco”. Já havia três dias que suas duas máquinas de overlock encontravam-se paradas em decorrência de um atraso na entrega do tecido à fábrica que lhes fornece trabalho. Sempre que ocorrem tais demoras minhas interlocutoras se tornam bastante apreensivas e temerosas de que o material tarde ainda um pouco mais a chegar, reduzindo, por conseguinte, drasticamente sua remuneração, no fim do mês.

5. Costura constitui uma categoria mais ou menos abrangente, segundo o contexto de enunciação. Ela pode expressar o elemento material que é objeto do trabalho; os procedimentos técnicos que caracterizam o ofício de costureira; ou a qualificação profissional destas mulheres trabalhadoras. 6. A facção é um dispositivo de terceirização da produção. Aqui me interessa a “facção doméstica” – aqueles casos nos quais uma fábrica fornece o material para que as costureiras trabalhem em suas próprias residências. Sobre o sistema de facção, e suas variações, em Nova Friburgo, cf. Espírito Santo (2009).

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Como eu estivesse interessado no registro audiovisual das “técnicas do corpo” (Mauss, 1974) ligadas ao ofício da costura, à frustração destas duas mulheres (decorrentes do atraso no trabalho) somou-se também a minha (ligada à impossibilidade de cumprir meu intento). Não podendo, pois, filmar o trabalho na costura propriamente dito, instei minhas amigas a me fornecerem uma curta entrevista, dada a disponibilidade de tempo com que contavam naquele dia. Apesar do desânimo decorrente da frustração de meu intento inicial, descobri logo em seguida que mesmo em uma situação de entrevista (sobretudo de entrevista filmada) os usos do corpo não ficariam de fora. Quando sugeri a ambas que filmássemos os depoimentos, uma delas – Vanilda – retirou-se rapidamente para dentro de sua residência, fazendo-me desconfiar de que ela não tinha apreciado a ideia. Para minha surpresa, ela não apenas havia aceitado a proposta que lhe fiz como, mais surpreendente ainda, foi a frase com a qual demonstrou seu aceite – “Faz a entrevista com a Andréia primeiro que eu vou colocar um brinquinho e passar um batom”. A resposta de Andréia, por seu turno, não foi menos carregada de nuanças interessantes. Segue-se o diálogo: Andréia - “Você vai se arrumar? Mas isso tá errado! Você tem que se apresentar como costureira, ora! Eu vou ficar do jeito que eu estou mesmo. A gente tem que mostrar como a gente é na realidade.” Vanilda - “E por acaso eu não me arrumo na realidade? Não uso brinco, não passo batom? Eu vou me apresentar como eu sou mesmo!” Andréia - “Mas aí não parece que você está costurando; parece que você vai sair pra passear.” Vanilda - “Mas eu não estou costurando mesmo, ué. E nem estou me arrumando pra sair, é só um batonzinho e um brinco.”

7. Vanilda, aposentada, vê na costura doméstica uma fonte de satisfação pessoal, um modo de manter a vida ativa e um complemento salarial; para Andréia o mesmo trabalho é uma forma de ganhar a vida. Estas diferenças podem se relacionar com os modos distintos pelos quais as duas irmãs optaram para sua apresentação no vídeo – ênfase sobre uma estética feminina, no primeiro caso, sobre a condição de trabalhadora, no segundo.

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De fato, a simples presença da câmera de vídeo desencadeou, entre as duas irmãs, um verdadeiro debate sobre a melhor forma de apresentação do que sejam “As Costureiras”. De minha parte, pude presenciar que, mesmo em uma escala muito reduzida – entre duas irmãs – este grupo genérico denominado “As Costureiras” não existe. Ao contrário, defrontei-me com uma disputa arrebatada sobre diferentes modos de produção e apresentação do corpo, por parte de ambas. De um lado Vanilda, priorizando sublinhar uma aparência marcadamente feminina e exibindo signos corporais de sua feminilidade (brinco, batom); de outro lado, Andréia e sua ênfase na apresentação da condição de costureira, de trabalhadora, mantendo-se, por conseguinte, como ela “é na realidade”7. Findo o debate, iniciamos as entrevistas, cada uma delas mantendo seu ponto de vista em relação à apresentação de si, durante a filmagem. A tais opiniões distintas correspondem, pois, maneiras igualmente diferentes de apresentação corporal por parte de Vanilda e de Andréia. Poder-se-ia argumentar que o registro fílmico de relatos orais em nada difere do registro escrito, em caderno de campo, por tratarem-se, neste caso, de informações de ordem linguística e não da ordem da ação corporal. A este respeito, quero chamar a atenção para um

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ponto que me parece fundamental e ao qual voltarei ulteriormente – a saber, o fato de que a oralidade possui uma dimensão corporal e performativa, enquanto a linguagem escrita tende a enfatizar a dimensão semântica do código. Esta diferença parece se acentuar com a presença da câmera. Assim, no caso de Vanilda, por exemplo, tive a oportunidade de notar uma inibição inicial frente à câmera - que fez com que suas primeiras respostas constituíssem falas muito curtas, meras contrapartidas de minhas perguntas - que gradativamente foi se acabando ao ponto de, do meio da entrevista para a frente, ela desenvolver livremente seus comentários. Testemunhamos aqui um fenômeno da ordem do habitus (Bourdieu, 2001), das disposições duráveis para a ação que são incorporadas (literalmente marcadas no corpo) por minha interlocutora a partir de suas experiências no interior dos vários “campos” sociais dos quais ela faz parte –, habitus este que não se coaduna com o deixar-se filmar e que engendra, por isso mesmo, certa vergonha de expressar-se diante da câmera.

8. Dona Odete mora com Andréia e – na distribuição social do trabalho familiar – se ocupa dos afazeres domésticos, ao passo que esta última (mãe solteira de um filho de 15 anos) passa a maior parte do dia na máquina de costura.

9. O gesto parecia denotar também certo orgulho profissional ligado ao produto do seu trabalho, alguma coisa que Andréia expressa similarmente por meio de seus depoimentos orais.

Alguns dias depois de filmadas estas duas entrevistas, minhas informantes retomaram seu trabalho na costura. Decidi, pois, investir, uma vez mais, na possibilidade de registrar este trabalho propriamente dito. Andréia e Vanilda, como sempre, concordaram e me receberam de uma maneira bastante atenciosa. Começo por registrar primeiro o trabalho de Andréia. Não focalizo todo o cômodo, mas fecho o plano focando apenas nela e no seu trabalho. Isto se deve a dois motivos: em primeiro lugar, porque dona Odete – mãe de Andréia e Vanilda, que também se encontrava no recinto cuidando do trabalho doméstico8 – avisou-me enfaticamente que não gostaria de aparecer frontalmente na filmagem; em segundo lugar – e mais importante para os propósitos deste trabalho –, porque eu pretendia me concentrar sobre as “técnicas corporais” da costura. Logo de cara, a câmera nos permite mostrar parte das peças já costuradas sobre o colo de Andréia, sendo possível registrar sua maneira característica de lidar com (e tocar) o material. Ela apoia as peças sobre suas pernas e, à medida que vai acrescentando outras à pilha, passa rapidamente a mão sobre elas para esticá-las9. Por vezes, enquanto eu filmava, minha interlocutora interrompia a sequência normal de seu trabalho (a saber, a costura parcial de cada uma das partes do lingerie no intuito de imprimir mais velocidade ao processo produtivo) para produzir uma peça na íntegra com o objetivo de exibi-la pronta, além de fornecer explicações técnicas sobre o ofício. Ao assistir ao vídeo mais tarde, particularmente um close sobre suas mãos a trabalhar, Andréia – em que pese sua ênfase sobre “a costureira como ela é” em contraposição ao “se arrumar”, por ocasião de seu debate com a irmã referente à melhor maneira de apresentação de ambas no vídeo – fala de sua unha pintada: Olha, mostrou direitinho a minha unha pintada. Viu só? Costureira também pinta a unha, também se cuida. Eu só tinha que ter tirado esse lacinho feio do cabelo (risos). (Andréia) Ao filmar Vanilda, por seu turno, noto que a técnica corporal de apoiar sobre as pernas as peças acabadas (ou semiacabadas) parece ter certa difusão entre as costureiras – talvez constitua mesmo uma técnica do ofício. Há que se registrar igualmente as informações preciosas – sobretudo quando consideramos os re-

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latos das costureiras neófitas acerca da dificuldade do aprendizado na costura e a consequente pressão patronal no sentido da aceleração deste aprendizado – que o vídeo nos oferece sobre a coordenação motora bilateral que o trabalho na costura exige. A câmera filmadora, como ferramenta metodológica, me permite fechar o close e focar os pés de Vanilda e os pedais da máquina de costura que são acionados diferencialmente e intermitentemente por ambos os pés e exigindo, por conseguinte, certa independência entre os membros inferiores. Por fim, quero relatar ainda uma segunda etapa deste exercício de registro fílmico que parece relacionar-se com o caráter pedagógico do registro etnográfico audiovisual – a saber, a apresentação do vídeo a minhas informantes elas próprias. “Até que eu não fiquei mal na televisão não!” Estas as primeiras palavras de Vanilda por ocasião de nosso encontro para assistir à gravação que havíamos feito. Além disso, ela mencionou uma ou duas vezes o brilho que refratava em seu brinco, além de dizer que preferiu sua voz no áudio à original. Embora para o leitor tudo isso possa eventualmente assumir uma aparência pueril, creio que o episódio10 seja revelador de um aspecto sobremodo importante do registro audiovisual – qual seja, seu caráter objetivador, seu potencial para fornecer autoconhecimento ao espectador de si mesmo. Com efeito, ao longo de toda a reprodução do vídeo, Andréia e Vanilda falaram-me recorrentemente da necessidade de realizar as entrevistas uma vez mais. “É que vendo agora a gravação a gente lembra de um monte de coisas que não falamos”, disse-me Andréia. Tudo se passa, pois, como se a possibilidade de objetivação, por parte de minhas informantes, de suas próprias memórias, registradas no vídeo, constituísse uma chave heurística capaz de desencadear a lembrança de outros aspectos que, embora obliterados no primeiro depoimento, convertem-se doravante em elementos importantes para a composição de um painel mais completo de suas próprias vidas.

10. No meu entender, o episódio constitui ainda a manifestação de um fenômeno muito recorrente no interior dos processos de construção identitária das costureiras de roupas íntimas de Nova Friburgo – a saber, a ênfase sobre a feminilidade. Ver a este respeito Espírito Santo (op. cit.).

Esta triangulação pesquisador, câmera, pesquisados apresenta, pois, implicações epistemológicas fundamentais para a reflexão sobre o fazer antropológico. E não apenas porque as imagens produzidas pelo trabalho de campo evocam para minhas informantes/espectadoras do vídeo elementos mnemônicos ocultados nos seus primeiros depoimentos, senão que a dinâmica mesma desta interação triádica informa ao investigador, ele também, aspectos de seu trabalho anteriormente ignorados. A saber, suas prioridades momentâneas em termos das questões formuladas tanto quanto de seus olhares e ênfases visuais – suas edições, inconscientes ou, como veremos, pré-objetivas. Neste sentido, as considerações teóricas presentes neste trabalho decorrem desta triangulação e encontram nela sua condição de possibilidade. Em outras palavras, as hipóteses defendidas aqui não poderiam ser formuladas a partir de um trabalho de campo tradicional (sem a presença da câmera) e de um investimento meramente bibliográfico. O conhecimento produzido por minhas interlocutoras e eu, sendo empírico, conceitual e imagético, assume um estatuto sui generis, sendo de uma natureza inteiramente nova e, acredito, ainda pouco explorado pela Antropologia.

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Ambiguidades da prática etnográfica: registro escrito de uma experiência multissensorial Norbert Elias, juntamente com John Scotson, em Os estabelecidos e os outsiders escreve o seguinte: “Havia, portanto, diferenças consideráveis entre os antigos residentes e os recém-chegados. Não foi fácil encontrar conceitos adequados para expressá-las” (Elias, 2009:63, grifo meu). A dificuldade a que Elias se refere constitui, creio, um problema crônico dos relatos sobre a experiência etnográfica, a saber, a resistência que as situações empíricas apresentam frente às abstrações da linguagem. Não obstante, conforme a denúncia de Margaret Mead a que fiz referência acima, a Antropologia concede absoluta primazia ao texto escrito, prescindindo frequentemente dos novos instrumentos de registro disponíveis. Paradoxalmente, é também a Antropologia a disciplina que se propõe a fornecer um relato tão claro e completo quanto possível de modos de vida para os quais a separação entre teoria e prática não existe. Ao conviver cotidianamente com grupos que não dispõem da condição de skóle, conforme o termo reativado por Bourdieu – ou com sociedades que desconhecem inteiramente o “pensamento domesticado” do Ocidente (Lévi-Strauss, 1976) –, o etnógrafo dispõe apenas de sua experiência particular para produzir seu relato. Trata-se de uma experiência multissensorial que, contudo, é frequentemente comprimida pela codificação escrita. Uma das causas desta limitação constitui um paradoxal medo cientificista de que a investigação seja contaminada por preocupações de ordem estética. Veja-se, por exemplo, a existência na França de um debate ou, ao menos, de conversas relativamente frequentes – e nem sempre pacíficas – se bem que muito fecundas, entre cineastas do real (documentaristas) e antropólogos cineastas. Tais encontros não são considerados, necessariamente, parte da ortodoxia do ponto de vista da antropologia teórica. A preocupação científica (quando não cientificista...) desta última é ofuscada por ligações consideradas perigosas: elas contaminaram o rigor acadêmico pelas tentações estéticas e espetaculares, que estariam muito distante de um estrito propósito antropológico (Piault, op. cit.: 15-16).

Aqueles que pensam assim se esquecem que a comunicação em Antropologia não pode prescindir de dispositivos estéticos. Veja-se, por exemplo, os “estratagemas literários”11 (Pina Cabral, 2003) de que a escrita etnográfica lança mão. Para comunicar a diferença, os textos antropológicos recorrem com frequência à semelhança (ibid.: 118). A evocação da semelhança neste contexto constitui um artifício de con-formação, literalmente de comparação de formas. É também neste sentido estrito que emprego o termo estética, referindo-me, com isto, especificamente às propriedades formais da comunicação – mas, no caso do registro audiovisual, de uma modalidade comunicativa12 capaz de acessar o que Howard Morphy (1996:255) denomina “the sensual aspect of human experience”. Não incluo aqui, por conseguinte, nenhum tipo de preocupação propriamente artística. Ao mencionar as propriedades formais do registro audiovisual introduzo a possibilidade de evocar o que me parece ser um meio possível de lidar com a ambiguidade apontada por Margaret Mead (“Antropologia visual em

11. A expressão é de Pina Cabral e refere-se aos recursos dos quais o texto etnográfico lança mão para descrever realidades diferentes daquela da qual os leitores habituais de etnografias fazem parte. Tais recursos costumam evocar a semelhança para comunicar a diferença.

12. Registre-se, contudo, que se o vídeo apresenta este potencial comunicativo, nem sempre o consolida: “A camera can be quite blind. Surveillance cameras in warehouses or apartment buildings are quite blind. Looking at the recordings they make, one can sense that there is no one behind these cameras” (MacDougal, 2006:7).

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13. “Os treinadores esportivos buscam meios eficazes de se fazerem ouvir sobre o corpo, naquelas situações de que todos têm experiência, onde se compreende por uma compreensão intelectual o gesto a ser feito ou a ser evitado, sem que se possa fazer efetivamente o que se compreendeu por não se haver de fato logrado uma verdadeira compreensão pelo corpo.” (Bourdieu, 2001: 176).

14. Jean Rouch, subvertendo fronteiras. Filme de Ana Lúcia Ferraz. Laboratório de Imagens de Antropologia da USP (LISA).

uma disciplina de palavras”) – a saber, a noção de “embodiment” formulada por Thomas Csordas. Logo no início de seu artigo, Csordas afirma estar interessado na percepção tal qual ela ocorre na vida cotidiana – segundo ele, de maneira pré-objetiva (nos termos de Marleau-Ponty). Parece ser por meio da percepção que as disposições duráveis para a ação (Bourdieu, 2001) vão sendo incorporadas de maneira infraconsciente. Por se tratar de um processo de incorporação das estruturas sociais, sob a forma de estruturas cognitivas, Bourdieu elege as “técnicas corporais” como um objeto privilegiado para a investigação da maneira pela qual o habitus é inculcado13. A própria categoria habitus foi desenvolvida por Bourdieu a partir de sua introdução em um curto parágrafo no artigo sobre as “técnicas corporais”, de Marcel Mauss (op. cit.: 214). Eis aí um domínio no qual, se olharmos a bibliografia especializada, acredita-se que o código audiovisual tem primazia sobre o escrito – o domínio das técnicas do corpo. Parte da resistência do real frente à abstração da linguagem escrita talvez decorra deste fato – de que a experiência é multissensorial, é incorporada e frequentemente “pré-abstrata” (Csordas, op. cit.). O suporte fílmico, ao contrário, permite, por um lado, o registro de práticas sociais que acontecem livres da abstração e dos processos de objetivação. Por outro lado, o trabalho do cinegrafista é também ele, em larga medida, pré-objetivo: “In many respects filming, unlike writing, precedes thinking” (MacDougal, op. cit.:7). Daí o paradoxo que lhe confere suas possibilidades heurísticas – seu caráter objetivante. Pesquisados, tanto quanto pesquisadores, ao assistirem repetidamente as filmagens têm a oportunidade de ir aprofundando sua interpretação dos fatos (e da maneira como os “fatos” são produzidos pelo registro do etnógrafo) – objetivando-os, por assim dizer. “A imagem pode exercer um efeito causal na direção oposta, sobre a pessoa que ela representa, tal como ocorre em alguns rituais” (Novaes, 2008:462). Um destes efeitos, segundo vejo, é a auto-objetivação. A imagem mantém um vínculo estrito com seu referente, ao contrário do texto escrito – sempre distante da coisa sobre a qual ele se refere. “Parece haver uma distância entre o texto e aquilo sobre o que ele fala; já as imagens estão sempre próximas do que apresentam” (ibid: 453). Ora, esta proximidade e este potencial para reapresentar a experiência não constituem precisamente a ambição da antropologia? Jean Rouch, em uma de suas entrevistas, afirmou que a antropologia, no futuro, será audiovisual ou não será antropologia14. Concordando com ele, Marcius Freire, citando Laplatine, mostra a importância geral da visualidade para a etnografia: [...] a etnografia é exatamente o contrário do conhecimento do invisível no sentido cristão ou platônico. Ela é descrição do visível, das superfícies, das imagens tal como elas aparecem. Ela é uma semiologia do visual, uma ico­nologia, segundo os termos do historiador da arte Panovsky e, antes de tudo, uma iconografia (Laplatine citado por Freire, 2006:64).

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Aspectos “verbalmente inarticulados” da experiência e caráter pedagógico do filme etnográfico A célebre metodologia de alfabetização de adultos formulada por Paulo Freire e seus colaboradores já se fundamentava parcialmente no potencial pedagógico da codificação visual. Todo o trabalho dos “círculos de cultura”, conforme Freire denominava o espaço da relação pedagógica, era precedido, por assim dizer, por um “trabalho de campo”,15 ao cabo do qual os principais “termos nativos” (o que Freire denominava “palavras geradoras”) eram codificados por um código visual (fílmico, fotográfico, cênico etc.) para serem “devolvidos” aos grupos concernidos. O referente empírico expresso pela palavra escrita a ser aprendida pelos alunos era assim apresentado sem as abstratas mediações simbólicas da linguagem escrita.16 Seguia-se um debate entre todos os participantes do círculo de cultura com o propósito de “decodificar” a realidade codificada na imagem – poderíamos dizer, com o propósito de objetivá-la. Era somente depois deste processo de dar carne à palavra escrita que esta última era aprendida. Em Cartas à Guiné-Bissau Freire propõe que estes procedimentos fossem adotados em todos os níveis de ensino a fim de que o sistema de educação daquele país (da alfabetização à pós-graduação) pudesse superar a dicotomia ocidental entre teoria e prática.

15. De fato, Freire por vezes insistiu sobre a necessidade de esta pesquisa ser auxiliada por cientistas sociais, sobretudo antropólogos. 16. “(...) se não houvesse nenhuma relação entre a imagem e o objeto que ela representa, estaríamos diante de um objeto de ordem linguística e não diante de uma imagem. A linguagem, desde Saussure, é um sistema de signos que não tem relações materiais com aquilo que representa” (Novaes, op. cit.: 456).

Ao conferir, no interior de sua prática educativa, um lugar privilegiado à imagem, Paulo Freire pretendia, segundo vejo, reconstruir as experiências cotidianas de seus alunos em um grau que dificilmente – sobretudo no caso de grupos não letrados – seria alcançado pelo mero emprego da escrita. Fazendo isso ele chegou, por diferentes vias, às conclusões endossadas pela maioria dos autores envolvidos com a antropologia visual – segundo a qual o registro audiovisual apresenta uma contribuição particular para os processos formativos humanos. A imagem retira sua eficácia, segundo a interpretação de Novaes (op. cit.), de seu parentesco com a magia. A autora cita Olgária Matos, que propõe uma origem comum, no persa antigo, para imagem e magia, e, evocando Mauss, lembra que a aderência do concreto à imagem constitui similarmente a paixão da magia: Ao contrário da religião – que tende à metafísica e às abstrações intelectuais – a magia é um “tesouro de ideias”; como afirmou Marcel Mauss, a magia apaixona-se pelo concreto e dedica-se a conhecer a natureza, estabelecendo um índice de plantas, animais, metais e um primeiro repertório das ciências físicas, astronômicas e naturais. Para Mauss, a magia é sempre a técnica mais fácil – a própria magia cria imagens (Novaes, op. cit.:456).

A magia está para a imagem assim como a ciência está para a escrita. Daí que, comparativamente à escrita, a imagem constitua a “técnica mais fácil” para a recriação da experiência, de seus aspectos “verbalmente inarticulados”. Daí também seu potencial pedagógico. Novaes continua: A evocação torna-se mais importante do que a afirmação. E na evocação através das imagens, o papel do receptor é fundamental. Neste novo conceito do conhecimento antropológico, o significado não resulta apenas de uma reflexão sobre a experiência; ele necessariamente inclui a experiência – talvez de modo algo próximo àquele de alguém que se submete às práticas mágicas (ibid:471).

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O que emerge deste debate parece ser uma relação intrínseca entre experiência incorporada, percepção e o potencial pedagógico do audiovisual. Se, como afirma Csordas, é por meio da percepção que o embodiment ocorre; e se, como supõe McLuhan (1968:219), os meios de comunicação constituem “extensões dos mecanismos da percepção humana; são imitadores do modo de compreensão e discernimento humanos”, então pode haver, de fato, alguma propriedade formativa específica que importa ser aproveitada no registro fílmico para a qual ainda não se prestou a devida atenção. Com efeito, em um artigo intitulado “Aula sem paredes”, McLuhan inicia seu argumento afirmando que, com regular frequência, se ouve falar de “auxiliares audiovisuais” do ensino. Segundo o autor, este caráter “auxiliar” é certamente uma contrapartida do primado do texto escrito. Há, neste pequeno artigo, um ponto que me parece fundamental para pensarmos a importância da imagem e do som como recursos pedagógicos – qual seja, a recuperação da dimensão corporal do conhecimento que a escrita oblitera. Sobre este ponto, McLuhan afirma o seguinte: O rádio, o filme, a televisão, impeliram o inglês escrito para as mudanças espontâneas e a liberdade do idioma falado. Ajudaram-nos a recuperar a compreensão intensa da linguagem facial e do gesto corporal (McLuhan, 1968:18-19).

É precisamente a “linguagem facial e o gesto corporal” presentes na oralidade que me permitem defender aqui que o registro audiovisual de depoimentos orais fornece ainda a possibilidade de expressar dimensões “verbalmente inarticuladas” – para empregar uma vez mais a expressão de Mead – que resistem a um relato escrito. Debruçando-se sobre o fenômeno da “glossolalia” – a oração em línguas estranhas – presente nas religiões cristãs carismáticas e neopentencostais, Csordas (op. cit.) tem a oportunidade de formular uma interpretação da linguagem humana fundamentada na fenomenologia e na noção de embodiment. Na medida em que a glossolalia ocorre abstraída de qualquer nível semântico, seu significado é fundamentalmente performático. I would argue, with Merleau-Ponty, that all language has this gestural or existential meaning, and that glossolalia by its formal characteristic of eliminating the semantic level of linguistic structure highlights precisely the existential reality of intelligent bodies inhabiting a meaningful world (Csordas, op. cit:25, ênfase do autor).

Toda linguagem oral, abstraído o nível semântico, constitui, pois, um gesto, um significado existencial. Em outras palavras, a oralidade possui uma dimensão corpórea e, mais que isso, tem no corpo o seu suporte. Esta dimensão corpórea pode ser melhor capturada pelo vídeo que pela escrita. O debate entre minhas informantes sobre a melhor forma de apresentar-se corporalmente diante da câmera permite entrever suas falas igualmente como performances gestuais. Abro aqui um parêntese: há também que se considerar as distinções entre linguagem oral e escrita que deitam raízes no nível semântico. Sem pretender abordar esta questão complexa, contento-me em indicar uma passagem de Edmund Carpenter que, inspirada na distinção feita pela antropóloga Dorothy

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Lee – entre codificações lineares (orientadas por uma estruturação cronológica, constituída por sucessões de eventos lineares) e não-lineares (estruturadas por padrões nos quais o todo da mensagem é inferido sem a necessidade da orientação de uma linha17) –, constitui uma boa introdução do problema: A escrita encorajou um modo analítico de pensamento, com ênfase sobre a linearidade. As linguagens orais tendiam a ser polissintéticas, compostas de grandes e densos aglomerados, como nós entrançados, dentro dos quais as imagens estavam justapostas, inseparavelmente fundidas (Carpenter, 1968:197)...

17. Peço desculpas pela definição sumária e sem dúvida hiper-simplificada da formulação de Lee e remeto o leitor ao seu artigo em Lee (1968), Codificações lineares e não-lineares da realidade.

Findo o parêntese, sugiro que o que vale para a linguagem oral aplica-se a fortiori à imagem. Um tratamento homólogo ao que Csordas dá à primeira MacDougal aplica à segunda, apontando os limites de sua abordagem em termos de linguagem. The way we use words all too often becomes a mistaken recipe for how to make, use, and understand visual images. By treating images – in paintings, photographs, and films – as a product of language, or even a language in themselves, we ally them to a concept of thought that neglects many of the ways in which they create our knowledge. It is important to recognize this, not in order to restrict images to nonlinguistic purposes – this merely subordinates them further words – but in order to reexamine the relation between seeing, thinking, and knowing, and the complex nature of thought itself (MacDougal, op. cit: 2).

Se, conforme diz MacDougal, a produção fílmica de imagens precede, em certa medida, o pensamento, seria então razoável supor, semelhantemente ao que defende Csordas acerca da oralidade, que o processo de filmagem pode ser conduzido de um modo pré-objetivo. De um lado, mesmo vendo-se meramente narrando sua própria história de vida, minhas informantes – Vanilda e Andréia – admiram-se de sua própria imagem e fala; de outro, posso admirar-me eu mesmo, de meus olhares registrados no vídeo – o que traz implicações muito interessantes para se pensar a relação entre “olhar, pensamento e conhecimento”, para usar os termos de MacDougal. Imagens corporais, diz ainda o autor, são também imagens do corpo que está atrás da câmera (ibid: 3).

Considerações finais Ao cabo destas reflexões quero apontar sumariamente para outros aspectos da vida das costureiras cujo registro audiovisual talvez apresente certa vantagem heurística comparativamente ao relato escrito. Em minha dissertação de mestrado (Espírito Santo, op. cit) chamei a atenção para as variações no ritmo do caminhar das costureiras em distintos momentos de sua jornada de trabalho. À cadência acelerada e individualizada da entrada pela manhã e da saída, ao fim do expediente (talvez em decorrência de uma segunda e, eventualmente, de uma terceira18 jornada de trabalho, em casa) contrasta-se o caminhar sossegado e vagaroso do horário do almoço, quando grupos de amigas caminham lado a lado. Muito proveito para a investigação etnográfica se poderia retirar de um vídeo sobre este ponto. Além disso, há ainda muito que se fazer acerca do registro das técnicas corporais do trabalho propriamente dito. Mencionei,

18. Com efeito, não são poucas as costureiras que, ao cabo de seu expediente na fábrica, enfrentam, além da segunda jornada de trabalho, agora doméstico, uma terceira jornada materializada na costura a domicílio. Ver a este respeito Espírito Santo (op. cit).

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no tópico 2 deste artigo, algumas técnicas do ofício ligadas à costura na máquina de overlock; importa, entretanto, registrar igualmente outras etapas do processo produtivo – a costuras nas máquinas de interlock, três pontos, colarete, travet etc., a limpeza das peças, a embalagem, as diferenças entre processos de montagem bruta da peça e de acabamento etc. Similarmente é necessário distinguir e registrar, com a ajuda da câmera, os diferentes modos de relação corporal das operárias com o material objeto de seu trabalho. Modos de tocá-lo, de manuseá-lo, diferentes conotações simbólicas deste contato, nos diferentes locais de trabalho – grandes fábricas, pequenas confecções, oficinas artesanais e domésticas de produção etc. A pedagogia dos cursos técnicos de corte e costura, suas diferenças conforme as instituições de ensino sejam públicas ou privadas, os processos de socialização das aprendizes constituem outros tantos fenômenos a serem registrados com o recurso audiovisual. Vimos que Bourdieu elege a pedagogia das atividades corporais como um caso privilegiado para o estudo da maneira como o habitus é incorporado. Vale a pena encerrar estas notas lembrando que Mauss, no final do capítulo 2 de seu artigo sobre as técnicas corporais reativa outras palavras do latim além de habitus para tentar dar conta, por meio da linguagem escrita, de fenômenos que resistem a uma codificação nestes moldes: Convém estudar todos os modos de treinamento, de imitação e, em particular, essas maneiras fundamentais que podemos chamar de modo de vida, o modus, o tonus, a “matéria”, as “maneiras”, o “jeito” (Mauss, op. cit: 221).

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PARA CITAR ESSE ARTIGO ESPÍRITO SANTO, Wecisley Ribeiro do. Etnografia, corpo e imagem: reflexões a partir de uma experiência de registro audiovisual entre costureiras domiciliares de Nova Friburgo-RJ. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSAUFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 182 - 201. Disponível em: http://issuu. com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa. Recebido em 30 de setembro de 2011. Aprovado em 10 de outubro de 2012.

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FIXANDO VALORES a fotografia e a transmissão de ideais e valores integralistas na revista Anauê

por Alexandre Pinheiro Ramos Fig. 1 | Fotografias de filhos de integralistas. Anauê, set. 1936, ano 2, nº 12, p. 16.

Alexandre Pinheiro Ramos

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Alexandre Pinheiro Ramos é Doutor em Sociologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ. Mestre em História (PPGH/UERJ). Pesquisador do NUSC (IFCS/UFRJ). Áreas de interesse: Sociologia da Cultura, Sociologia dos Intelectuais, História Intelectual. Bolsista CAPES.

FIXANDO VALORES a fotografia e a transmissão de ideais e valores integralistas na revista Anauê Resumo O objetivo deste artigo é analisar os diferentes tipos de fotografias

veiculadas pela Ação Integralista Brasileira em sua revista ilustrada Anauê na década de 1930. Pretende-se demonstrar como tais imagens, para além de um uso puramente propagandístico do movimento, estavam imbuídas dos ideais e valores defendidos pelo Integralismo. Palavras-chave fotografia, Integralismo, revista Anauê, militância política, so-

ciologia da cultura.

FIXING VALUES the photography and the transmission of integralist ideals and values in the magazine Anauê Abstract The objective of this article is to analyze the different kinds of photo-

graphy diffused by the Brazilian Integralist Action (Ação Integralista Brasileira) in its illustrated magazine Anauê during the 1930s. It is intended to demonstrate how these images, not limited to a propagandistic use, were embedded in the ideals and values upheld by Integralism. Keywords photography, Integralism, Anauê magazine, sociology of culture, po-

litical militancy.

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Fixando valores: Revista Anauê

Introdução: um poeta muito feio No conto “A fotografia” (1924), de Yasunari Kawabata, o narrador relata uma conversa que tivera com um “poeta muito feio” o qual lhe dissera que detestava ser fotografado. Ele contou, então, de certa vez quando uma revista requisitou-lhe uma foto e sua solução foi a seguinte: recortou sua imagem de uma fotografia de alguns anos antes, que tirara junto da namorada e da irmã desta. Depois foi a vez de um jornal fazer a mesma solicitação, e o poeta repetiu o gesto: recortou outra foto, tirada junto de sua namorada. Em determinado momento, ao olhar a metade restante onde havia apenas a moça, o poeta espantou-se ao vê-la, perguntando-se se era de fato a mesma pessoa e chegando ao ponto de achá-la sem graça. E em seguida falou: “Meu precioso tesoura acabara de se destruir”. Mas prosseguindo no diálogo com o narrador, ponderou: “Se do mesmo modo ela tiver visto a minha foto que apareceu no jornal, com certeza pensaria: ‘Que pena ter amado um homem como ele, mesmo por pouco tempo’”. O poeta muito feio concluiu, então, sua história da seguinte maneira: “Mas penso que, se fosse publicada no jornal a foto em que nós dois estamos juntos, você não acha que ela viria, de algum modo, voando ao meu encontro? Suspirando e dizendo: ‘Oh! Ele era tão...’” (ver Kawabata, 2008:54-55). Este breve conto, que não toma nem duas páginas, parece suscitar algumas reflexões interessantes acerca da fotografia, de seu uso e da maneira como as pessoas com ela se relacionam: a foto, aqui, como resultado de um processo técnico, que se distingue da obra de arte, como indicado por Simmel, por abandonar a esfera da arte pela esfera da realidade (Simmel, 1996:37), é passível de ser danificada de modo deliberado visto que, como mera reprodução do real, não contém nenhum valor em si mesma – daí o poeta do conto não se importar em recortar as próprias fotos, afinal, são simples cópias que, poder-se-ia argumentar, acabam por demonstrar-lhe algo que talvez o desagrade, que é a própria aparência, real. Mas por outro lado, a despeito de um aparente desprezo por tais imagens técnicas, os sentimentos provocados pelas fotografias recortadas indicam algo mais profundo, ou complexo, no que tange, diante de sua manipulação, às relações que se estabelecem entre elas e o poeta. Ao reproduzirem a imagem, não dele e da namorada, mas de ambos, como um conjunto, não estariam elas, de algum modo, imbuídas daquele valor de culto ao qual Walter Benjamin (1975:19) se refere? E mais: não seriam indicativas, justamente pelo fato de apresentarem-se como indício da realidade, dos sentimentos partilhados pelos retratados? Neste sentido, não é só a imagem visível sobreposta ao suporte que compõe a fotografia, mas igualmente algo que se situa “atrás” desta, que remete àquele momento, aos gestos e ao significado da cena – em suma, toda uma gama de relações e processos sociais circunscritos seja no tem-

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1. Remeto ao capítulo introdutório do livro de Miriam Moreira Leite (2001:23-51) acerca de algumas importantes questões suscitadas pela fotografia. 2. “A aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas quanto o são todas as imagens. Devem ser decifradas por quem deseja captar-lhes o significado. Com efeito, são elas símbolos extremamente abstratos [...]. O que vemos ao contemplar as imagens técnicas não é ‘o mundo’, mas determinados conceitos relativos ao mundo” (Flusser, 2009:14-15). 3.

A AIB foi fundada em 1932 por Plínio Salgado e teve existência legal até 1937, quando foi fechada pelo Estado Novo. Movimento político e cultural, reuniu diversos intelectuais brasileiros e expandiu-se por todo o país, criando milhares de núcleos e reunindo expressivo número de militantes e simpatizantes. Foi influenciada, sobretudo, pelas ideias de autores como Euclides da Cunha, Graça Aranha, Alberto Torres e Oliveira Viana; pelos ideais modernistas; pelo pensamento social católico, além do processo de “recatolização” do Brasil empreendido pela Igreja; e pelos movimentos fascistas. Ao contrário de vários pesquisadores do Integralismo, não considero o fascismo como sua principal influência a ponto de caracterizar a AIB como “fascismo brasileiro”. Certamente ele teve ressonância na organização do movimento, mas não foi decisivo ou sobrepõe-se às outras influências. 4. A revista contava com a colaboração direta dos militantes, que enviavam suas fotografias para serem publicadas. Isto é de particular relevância para mostrar como não se tratava de uma total “imposição” do que a AIB defendia, mas antes de uma identificação entre os valores dela e das pessoas que se filiaram ao movimento.

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po da História ou no da dinâmica das interações (Martins, 2008:83). A fotografia dos namorados eterniza aquele momento de sua união, valorizando-o mais que quaisquer outros, conferindo-lhe, por isto, um caráter solene, quase sagrado. E por isto o poeta espanta-se diante da foto recortada: por julgá-la índice do real, ao danificá-la, a realidade também sofre, parece estranha, quase desconhecida, afinal, a realidade é, também, reflexo das imagens – e os mesmos sentimentos são, então, cogitados para a namorada diante da imagem isolada do poeta. Daí, ao terminar seu relato, ele conjecturar sobre o que aconteceria caso a moça visse a foto dos dois: a reafirmação ou reatualização daquilo que se encontra por “trás” da fotografia, os sentimentos e significados por eles partilhados. Em outras palavras, o caráter eterno do que compartilhavam transposto, através da imagem, do abismo do esquecimento para o fluxo vivo da memória. Embora se tratando de uma situação fictícia a qual pode suscitar uma série de interpretações, este conto e a pequena reflexão que se fez tendo-o como base parecem indicar-nos alguns caminhos a serem tomados; poder-se-ia mesmo dizer pistas sobre as maneiras por meio das quais analisamos e pensamos uma temática que envolve o uso de imagens – neste caso, fotografias. Afinal, não é mais o caso de utilizá-las somente como uma ilustração do texto escrito, verbal, quase como uma confirmação – ou refutação – do que é dito por meio de palavras. Tal utilização não possui mais lugar, ou seja, o uso de fotografias como simples ilustração ou exemplificação não só subestima suas próprias capacidades para os estudos sociais como ignora, igualmente, os problemas que lhe são inerentes1. Elas possuem especificidades tanto no que diz respeito ao seu uso quanto ao fato de constituir-se em uma forma de linguagem particular com suas características próprias. Miriam Leite fornece uma síntese da relação entre o texto e a imagem e seu uso: “A utilização mais frequente e antiga das fotografias, nos trabalhos de ciências humanas, é como ilustração do texto. A fotografia seria a vitrine, através da qual o leitor pode tomar um contato imediato e simplificado com o texto” (Leite, 2001:146). Minha intenção para o presente trabalho, ao lançar mão de um conjunto particular de fotografias, é evitar esta abordagem, partindo, assim, para uma análise que se concentre no que (também) está além da visão imediata, ou seja, é buscar nas fotografias os valores que nela estão inscritos – valores estes tanto do fotógrafo quanto do fotografado2 – bem como as funções que elas desempenham no interior do contexto onde são tiradas, reproduzidas e veiculadas. O objetivo, então, deste artigo, é analisar as fotografias publicadas na revista ilustrada Anauê, periódico da Ação Integralista Brasileira (AIB)3, o qual circulou nacionalmente entre os anos de 1935 a 1937. Pretendo demonstrar como as imagens veiculadas nesta revista transmitiam os valores e ideais defendidos pela AIB, criando, assim, uma ligação entre ela e seus militantes por meio da partilha de referenciais simbólicos em comum4. Não se trata de considerá-la como simples peça de propaganda, mas como um empreendimento construído por seus responsáveis diretos e pela participação ativa dos militantes.

O tópico a seguir ocupar-se-á com algumas considerações breves acerca de questões suscitadas pela fotografia; depois, no terceiro tópico, proceder-se-á à análise de sua presença na revista da Ação Integralista Brasileira.

A revista Anauê e a fotografia A revista ilustrada Anauê foi lançada em janeiro de 1935 e conheceu seu último número em dezembro de 1937, sendo, inicialmente, de periodicidade bimensal, passando posteriormente a ser mensal – era vendida em números avulsos ou por meio de assinatura anual. O pastor luterano Eurípedes Cardoso de Menezes, Secretário Provincial de Propaganda da AIB no Rio de Janeiro, foi o diretor da revista até abril de 1937, quando assumiu, então, Manoel Hasslocher (Bulhões, 2007:66) – parece interessante mencionar que no número 4, de outubro de 1935, a Anauê apresentou na página 10 uma carta escrita pelo próprio Eurípedes Menezes na qual este renunciava ao posto de ministro da Igreja Luterana, optando por permanecer na Ação Integralista Brasileira: Meu coração christão e de brasileiro palpita por Deus e pela Pátria. Convicto de que o Integralismo é a aplicação prática dos princípios de Christo na vida social [...] renovo o juramento que fiz, por Deus e pela minha honra, de trabalhar pela AIB executando sem discutir as ordens do Chefe Nacional e dos meus superiores.

A Anauê foi um dos principais meios da propaganda integralista no Brasil, circulando nacionalmente. Voltada para um público mais amplo, em contraposição à revista Panorama, destinada à elite intelectual do país, a Anauê pretendia, como explicitado em seu primeiro número, divulgar a doutrina integralista em “linguagem acessível a todos”. Apresentada como a “netinha” do Chefe Nacional – Plínio Salgado – ela contava com uma série de textos escritos tanto pelos grandes intelectuais do Integralismo (como o próprio Plínio Salgado, Miguel Reale e Gustavo Barroso, que detinham posições de destaque e liderança em nível nacional), como por integralistas de expressão local, além de contar com a participação de mulheres – a revista possuía, inclusive, uma seção destinada às blusas-verdes (como eram conhecidas as militantes femininas). Utilizando-se largamente de imagens, sobretudo de fotografias tiradas para ilustrarem as matérias e enviadas por integralistas, pode-se inferir que a Anauê não só seguia o padrão de outras revistas ilustradas que já existiam no Brasil desde o século XIX como, por estar ligada a um movimento político com expressas intenções de chegar ao poder, valeu-se deste meio de comunicação em particular com vistas a atingir a maior parcela possível de uma população formada por grande número de analfabetos. Neste sentido, as imagens selecionadas para comporem os números da revista, incluindo-se aí os desenhos da capa, precisavam, de algum modo, conter um tipo de informação passível de ser assimilada e compreendida facilmente pelas pessoas. As fotografias, assim, não são objetos em si mesmos, isto é, meras imagens isoladas, de caráter puramen-

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5. O que Miriam M. Leite menciona como parte constitutiva da própria metodologia ligada à análise das fotos pode ser igualmente aplicada ao simples observador: “[...] é necessário um conhecimento prévio e direto da realidade que a imagem representa, simboliza ou indica para não se ficar desorientado com seus elementos constitutivos” (Leite, op. cit.:158).

Fig. 2 | Núcleo Integralista em Belo Horizonte. Anauê, Rio de Janeiro, jan. 1935, ano I, nº 1, p. 59.

6. Rede de crenças pode ser definida como uma “rede que mapeia a realidade em vários pontos, ali onde esses pontos se definem pelo modo com que as crenças relevantes se relacionam entre si. As redes de crença constituem redes de conceitos interligados, sendo os conceitos, e a conexão entre eles, definidos em parte por crenças acerca da realidade externa” (Bevir, 2008:243).

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te ilustrativo, e, sim, parte de um sistema de referências mais amplo em que elas não se remetem a si mesmas – estas fotos situam-se em um contexto particular o qual deve ser percebido e identificado por aqueles que as observam. O sucesso da comunicação seria, então, alcançado por meio do reconhecimento, por parte do público, daquilo a que as imagens se referem e dos significados subjacentes. Caso o sistema de significações dentro do qual as fotografias tiradas e escolhidas para serem publicamente exibidas seja completamente distinto daquele no qual se insere o receptor, então a comunicação será falha, e a foto nada além de uma simples imagem sem qualquer relação, a não ser consigo mesma5. Aquilo a que as fotografias, como objetos, se referem e contêm pode servir como ponto de contato ou interseção do que orienta/informa os indivíduos situados em contextos distintos. Sendo assim, não é à toa que a Anauê apresentava fotografias de naturezas bastante variadas, tendo, claro, como ponto de referência central o Integralismo e aquilo que ele preconizava e defendia, pois ao fazê-lo, possibilitava a ampla identificação do público com o movimento e introduzia-se nos diversos grupos sociais que compunham a sociedade brasileira. Tal identificação é decorrente de um conjunto de elementos de natureza simbólica compartilhado pelo fotógrafo (e seus fotografados) e o público ao qual as imagens são destinadas. Para utilizar um termo de Vilém Flusser (2008; 2009), as fotografias são frutos de um programa que orienta a imagem a ser produzida, programa este que inclui os valores, as sensibilidades, os ideais que informam, ao mesmo tempo, o autor da foto e as pessoas a quem ela se dirige. Isto pode ser aplicado ao caso do Integralismo para auxiliar na compreensão de seu crescimento e expansão pelo Brasil, pois a existência de uma “rede de crenças”6 mais ou menos em comum permitiu-lhe tanto penetrar em diversos grupos sociais como fazer com que estes mesmos se aproximassem e se identificassem com o movimento. A análise das fotografias presentes na revista Anauê não desvenda por completo o funcionamento da imbricada rede de valores e ideais cuja existência perpassou a organização e desenvolvimento do movimento integralista na sociedade brasileira, contudo permite-nos captar traços específicos desta rede e as relações entre a AIB e seus militantes. Antes, porém, de partir para esta análise, é preciso tecer algumas considerações acerca das fotografias selecionadas.

Tais fotografias apresentam-se, ao mesmo tempo, com uma vantagem e desvantagem: a desvantagem se refere a uma limitação que nos é imposta por sua própria natureza, pois temos somente elas, representando um único recorte da dimensão social da qual os presentes faziam parte, onde tudo obedece ao contexto no qual foi produzida, e uma gama de elementos importantes, talvez mais esclarecedores para nós, é passível de ser deixada de lado. A vantagem, por sua vez, não deixa de estar inscrita na desvantagem (e vice-versa), afinal, diante destas fotografias, tiradas pelas pessoas envolvidas, pode-se ter um vislumbre de traços constitutivos daquela realidade social, “testemunhos” dos valores e símbolos que ali operavam, permitindo-nos uma aproximação, mesmo que parcial, da vida cotidiana. Isto não significa afirmar a capacidade da fotografia em documentar o cotidiano, mas, antes, que ela “faz parte do imaginário e cumpre funções de revelação e ocultação da vida cotidiana. Portanto, as pessoas são fotografadas representando-se na sociedade e representando-se para a sociedade” (Martins, 2008:47). A fotografia é capaz, assim, de apreender aspectos das formas de sociabilidade as quais, encenações ou não, preocupadas em ocultar e fingir ou não – é preciso ter em mente estes dois tipos de situação bem como sensibilidade e atenção para com elas (exemplificarei isto a seguir) –, inserem-se na vida social, deixando ao pesquisador a tarefa de buscá-las e reconstituí-las. O jogo dialético do visível e invisível nestas imagens – sobre o qual não temos controle – oferece-nos o instrumental e os obstáculos para minhas análises. Antes de prosseguir, mencionarei brevemente, o exemplo aventado logo acima, sobre o problema das “encenações”: na fotografia do núcleo integralista de Belo Horizonte [Figura 2].

Fig. 3 | Casamento integralista em Joinville. Anauê, Rio de Janeiro, ago. 1935, ano 1, nº 3, p. 22.

Observa-se os camisas-verdes espalhados pelo cômodo. Alguns sentados à mesa aparentam estar trabalhando, enquanto outros, de pé, ao fundo, olham para a frente – há, também, dois integralistas, sentados, virados para a câmera. No entanto, o elemento mais interessante é o da criança no canto direito, rosto virado para a câmera, com o braço erguido, fazendo a saudação do Integralismo (o anauê). Este menino, a despeito dos outros dois homens sentados e virados para a máquina, parece “denunciar” toda a composição da imagem, mostrando-a como uma encenação (o que não exclui a possibilidade de as pessoas traba-

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lharem de fato nos núcleos). Ele o faz justamente ao erguer o braço e saudar – são comuns as fotos em que os integralistas fazem o anauê, incluindo-se aí crianças, o que nos faz conjecturar a “elaboração” de um determinado gesto a ser executado pelas pessoas quando diante de uma câmera fotográfica, ou seja, esta provoca ou exige a saudação, a qual também possui seu caráter teatral (esta mesma imagem será retomada mais à frente para outras considerações). Surge, aqui, um conflito entre a encenação da criança e aquela dos homens: estes “trabalham” enquanto aquela “saúda”. No fim das contas, a denúncia é, na verdade, mútua: o que ocorre naquele espaço do núcleo integralista, naquele momento, não é o “cotidiano” (a “realidade”, se for possível falar assim) porque há um desajuste entre os elementos. Ocorre algo semelhante ao relatado por Roland Barthes: “Ora, a partir do momento em que me sinto olhado pela objectiva, tudo muda: preparo-me para a pose, fabrico instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem” (Barthes, 2009:1819). Isto é, a criança faz sua pose de acordo, possivelmente, com suas experiências diretas – tendo participado de outras fotografias relacionadas ao Integralismo – ou indiretas – tendo visto outros fazerem isto –, enquanto os homens assumem uma postura de trabalho ou de atenção para com o núcleo: tudo isto é encenação, é o transformar-se em imagem que representa aquilo que se espera representar. Será possível, assim, apontar quem “finge”? Talvez, mas qualquer que seja a resposta, tal fotografia é capaz de revelar tanto o que é visível quanto o que é ocultado; o que se pode considerar como encenação e o que aponta para um aspecto da vida social. A fim de enfrentar os “desafios” que tais imagens, aos poucos, colocam, é preciso recorrer àquilo que Vilém Flusser chama de scanning: “Quem quiser ‘aprofundar’ o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela superfície da imagem. Tal vaguear pela superfície é chamado scanning” (Flusser, 2009:7). Não é com um simples e rápido olhar que a fotografia irá abrir-se para nós – é preciso perscrutá-la com cuidado, observando seus elementos e estabelecendo as possíveis ligações entre eles e seu contexto de produção; operação que exige um tipo de leitura específico, próprio das imagens, o qual difere da leitura textual por não ser linear. A de imagens é circular, não é possível encontrar nela início nem fim, caracterizando-se pelo eterno retorno (ibid:8), pois os olhos vagueiam de um ponto para outro, retornando deste para aquele, e a partir daí estabelece suas conexões. A fotografia, tal qual um texto, pode ser lida diferentemente de acordo com o momento, mas a maneira como isto se dará é bastante distinta: pode iniciar pelo plano de fundo ou pelas figuras centrais, pela observação das pessoas ou dos objetos presentes. Parece impossível que um texto seja lido de forma levemente parecida. A linearidade pressupõe a ideia de processo, de causalidade, de eventos sucedendo outros. A circularidade, o eterno retorno nas imagens, estabelece relações significativas, ou seja, um elemento fornece significado ao outro e vice-versa. Na fotografia de um casamento integralista [Figura 3], as pessoas presentes, uniformizadas, saúdam os noivos: o anauê – bem como os uniformes – empresta significado ao rito (ele é valorizado e oficializado pelo movimento, sendo considerado parte do próprio Integralismo), e este faz o mesmo pela saudação ao fornecer-lhe a oportunidade para sua execução. Mas ainda assim, a despeito de se ter consciência

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Fig. 4 | Foto de Claudia Esteves da Silva. Anauê, Rio de Janeiro, jul. 1936, ano 2, nº 11, p. 14.

desta leitura circular que estabelece relações mútuas, não se pode prescindir do conhecimento relativo àquilo que a imagem representa – no caso desta fotografia, é preciso saber da importância do casamento para o movimento integralista e da maneira como deveria ser conduzido, obedecendo aos regulamentos da AIB. Para a análise a seguir foram selecionadas fotografias representativas da variedade de imagens publicadas ao longo dos anos, compreendendo, neste pequeno corpus, tanto fotos enviadas por militantes – a fotografia de crianças, filhos de integralistas [Figuras 1 e 4], são bons exemplos – como aquelas produzidas “oficialmente”. O que “une” todas estas imagens é o próprio Integralismo, e com base nos ideais deste e em seu contexto é que farei minhas análises.

Fixando valores: a fotografia e os ideais integralistas Para Vilém Flusser (2009:32), as imagens técnicas (como a fotografia) têm a capacidade de codificar7 textos em imagens, são “imagens de conceitos, são conceitos transcodificados em cenas” – daí considerá-la como o primeiro objeto pós-industrial, pois o valor não se encontra no objeto, na foto, e sim na informação que ela fornece. Mas nelas não há apenas conceitos, visto que são, também, uma “peça de afirmação e veículo de valores, normas e instituições tradicionais e costumeiras” (Martins, 2008:17). As fotografias presentes na revista Anauê não fogem destas características, estando carregadas daquilo que o Integralismo preconizava e pelo que lutava em sua atuação política e cultural no Brasil. Ao adotar tal meio de comunicação na transmissão de formas simbólicas, a AIB conseguia atingir uma grande parcela do público (incluindo os analfabetos) e passava, de maneira ágil, o que seus intelectuais produziam na forma de livros e artigos, facilitando, assim, a apreensão e recepção das ideias do Integralismo. É de se supor que havia algum grau de identificação entre os leitores e o con-

7. A revista Anauê, em seu primeiro número, trazia uma foto de Plínio Salgado, líder máximo da AIB, a qual deveria ser colocada na casa das pessoas para que, ao receberem a visita daqueles que desconheciam o Integralismo, fosse-lhes perguntado quem era aquele homem – e então travariam contato com o movimento integralista. Ao contrário do que se pensa à primeira vista, como o faz Rogério Souza Silva (2005:72), o retrato não era para que “pudessem ver a imagem do líder”: a imagem de Plínio Salgado não só sintetizava o movimento, como encerrava em si, por conseguinte, todos os valores que defendia, bem como as ideias expressas nos livros e artigos que publicava (a codificação do texto em imagem da qual fala Flusser).

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8. Estas duas fotografias não foram retiradas da Anauê, mas do livro Imagens do Sigma (1998), pois apresentam uma qualidade melhor. No entanto, isto não prejudica a análise empreendida aqui porque, como mencionado, era um tipo bastante comum de fotografia, e o que se falará delas é aplicado às imagens do periódico.

9. A menos que se pretendesse mostrar algum incidente, como os conflitos de rua entre integralistas e comunistas. Nestes casos, a fotografia vem para ressaltar o caráter pacífico e ordeiro da AIB em oposição ao caos e violência preconizados, por exemplo, pelo comunismo – é, assim, uma representação daquilo que este pretende fazer com o Brasil (representado pelo Integralismo): arrastá-lo para um conflito sangrento, fazendo com que se desintegre.

Fig. 5 | Concentração integralista em Joinville (SC). Imagens do Sigma. Rio de Janeiro: APERJ, 1998.

Fig. 6 | Desfile integralista no Rio de Janeiro. Imagens do Sigma. Rio de Janeiro: APERJ, 1998.

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teúdo fotográfico, pois o que era retratado estava, muitas vezes, presente nos espaços de experiência destes, como, por exemplo, as cenas de casamento ou familiares. Isto auxiliava na ligação entre os públicos, entre estes e a revista, e finalmente, entre as pessoas e o movimento integralista. Estas imagens passam a compor um discurso icônico do movimento integralista no qual seus símbolos são reificados e naturalizados, tornando-se meios ideais para a transmissão e disseminação do Integralismo. Vejamos como os valores e os ideais apregoados por este permeavam as fotografias da Anauê. Um dos tipos mais comum eram as imagens de desfiles integralistas ou outras manifestações que ocorriam em público, isto é, nas ruas. Reproduzo duas8. Em ambas observamos os integralistas envergando seus uniformes, carregando bandeiras, enfileirados e organizados – na primeira imagem podemos ver todos com seus braços erguidos fazendo a saudação do anauê. Que tais imagens possam ser tomadas como propaganda do próprio Integralismo, demonstrando sua presença ou força no Brasil, não há como negar, entretanto, já é possível vislumbrar aquilo que se acha por “detrás” daquelas imagens (o programa) e passa a se expressar naquele momento: ordem, disciplina, organização, desejo de unidade (ou totalidade); é o momento de comunhão (de integração) com o movimento e, por conseguinte, com a Nação. São valores caros ao movimento integralista, os quais definem o “fotografável” e aquilo que deve ser mostrado nas páginas de sua revista – eles informam e reiteram a relevância do que deve ser eternizado e veiculado (não se fotografaria, neste caso, um momento de desordem)9. Neste sentido, muito mais do que mero instrumento de propaganda, este tipo de imagem – que é um dos mais comuns ao longo de todos os

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seus números, havendo inclusive um número da revista dedicado à cobertura de um grande evento da AIB em Blumenau – revela, por um lado, aspectos da vida social dos indivíduos envolvidos (tanto aqueles reunidos no desfile quanto aqueles que escolhem a foto), e, por outro, aquilo que se pretende passar para o público o qual, por sua vez, deve, como já foi enunciado, reconhecer/identificar tais valores a fim de “compreender” a fotografia – fotografias estas que só aparentam objetividade, pois sendo elas “tão simbólicas quanto o são todas as imagens” precisam “ser decifradas por quem deseja captar-lhes o significado” (Flusser, 2009op. cit.:14). A fotografia “codifica” valores, estabelecendo, assim, um sistema de referências socialmente aprovado que serve para a orientação do indivíduo e marca sua situação na realidade social da qual faz parte e que compartilha com outros. Esta foto situa-se e é representativa do grupo de imagens que se poderia denominar de “oficial” ou “institucional” porque encerra imagens referentes às manifestações do Integralismo ou a aspectos organizacionais. São fotografias de desfiles e dos núcleos integralistas – é possível achar fotos tanto de reuniões nos núcleos onde se vê pessoas uniformizadas ou com roupas comuns (o que nos leva a pensar que se tratariam de indivíduos ou simpatizantes ou ainda não ligados à AIB), como fotos onde estão presentes só os militantes, todos envergando os símbolos integralistas. Nestas fica patente como os indivíduos retratados partilham daqueles valores que exaltam disciplina, ordem, seriedade (nas fotos de núcleos os fotografados raramente sorriem: homens e mulheres mantêm um semblante fechado o qual parece indicar o aspecto grave não só do momento, mas daquilo do que fazem parte, como se a importância conferida ao movimento devesse transcender suas ações, transparecendo na própria imagem). E possibilitam uma primeira abordagem capaz de apreender o que se acha além da foto como imagem bidimensional, permitindo o acesso, mesmo parcial, a uma realidade social bastante específica. Nas palavras de José de Souza Martins: “A fotografia documenta as mentalidades de quem fotografa, de quem é fotografado, e de quem a utiliza [...]” (Martins, op. cit.:58). Retomemos a foto do núcleo de Belo Horizonte [Figura 2]. Nela, como já foi mencionado, observamos os militantes trabalhando, devidamente uniformizados, compondo um grupo homogêneo e circunspecto. O retrato pendurado na parede – sua identificação ainda não foi possível pela qualidade da imagem, mas se não for de Plínio Salgado é de alguma liderança local, como previsto pelos estatutos integralistas referentes à organização dos núcleos – possui uma função dupla: hierárquica, pois indica quem é a figura de maior autoridade, a quem se deve obediência; e simbólica, pois nela encerra-se a “Ideia integralista”, ou seja, a própria doutrina do movimento. Os homens presentes parecem todos imbuídos daquilo que Erving Goffman (2008:198) chama de “disciplina dramatúrgica”, representando-se, ali, imersos e compenetrados nas ações que não só executam naquele instante como em outros momentos – ocorre, aqui, uma cumplicidade entre fotógrafo e fotografados: aquilo que o primeiro pretende registrar é o que estes buscam representar. A criança, embora surja como uma “perturbação” – talvez pudéssemos falar em ator indisciplinado

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(retomando outros termos de Goffman) – auxilia na conformação de um conjunto que indica algo importante: a ausência de mulheres. Dificilmente as fotografias internas (dos núcleos) apresentam mulheres, salvo em ocasiões especiais nas quais estas têm funções a desempenhar, como em obras de caridade10, pois afora isto, as imagens indicam que tal espaço de atuação não comportava o elemento feminino. A despeito da importância concedida às mulheres pelo movimento, seus papéis estavam de acordo com os lugares e momentos que lhes eram “próprios”, tal como se esperaria dos costumes vigentes na época. Uma fotografia capaz de se “contrapor” a esta do núcleo de Belo Horizonte é a de uma festa de aniversário infantil [Figura 8].

10. No “Natal dos pobres” as blusas-verdes (mulheres integralistas) ocupavam-se da distribuição de roupas e alimentos.

Não há, aqui, qualquer homem (adulto) presente, somente mulheres e crianças. Tirada provavelmente em uma sala, a foto traz consigo a ideia de que são aquelas as responsáveis por estas e pela casa, ocupando-se de tudo aquilo que aí ocorre. Esta foto destaca-se dentre outras por ser, pelo menos nos números pesquisados da revista, única, isto é, não há mais nenhuma que represente uma festa infantil – interessa nela, sobretudo, a presença do Integralismo no cotidiano das pessoas. Esta fotografia da festa de aniversário, ao contrário do que se poderia pensar à primeira vista, não parece representar uma “invasão do espaço privado infantil pelos símbolos integralistas” (Bulhões, op. cit.:98, grifo meu): a ideia de “invasão” do espaço privado (infantil ou não) parece um pouco deslocada porque sugere uma passividade dos indivíduos que simplesmente aceitam aquilo que lhes é imposto pelo movimento, como se fossem incapazes de uma atitude reflexiva, anulando-lhes a capacidade de incorporarem de modo consciente a simbologia do Integralismo. Auxilia-nos nesta interpretação o fato de que, de acordo com os Protocolos da AIB, cujo fim era “codificar os dispositivos gerais e mais importantes de seus Regulamentos e estabelecer normas, fórmulas e usos que regulem os atos públicos e os cerimoniais integralistas [...]” (Enciclopédia do Integralismo, 1959:77), não havia nenhuma regulação sobre aniversários, diferentemente de ocasiões como casamentos, batizados ou funerais. Assim, diante da ausência de imposição externa, parece-nos mais correto pensar em uma incorporação do Integralismo na vida cotidiana; incorporação esta observada, principalmente, nos enfeites sobre a mesa, os quais representam um comício integralista, com seus componentes uniformizados e organizados, além de estarem dispostos hierarquicamente: ao fundo estão os possíveis líderes, aparentemente sobre um tipo de suporte, que discursam e se dirigem a multidão ao seu redor, que os escutam e saúdam. Os enfeites da mesa dispostos desta maneira, independente do fato de indicarem a maneira como as imagens do Integralismo são recepcionadas (a família do aniversariante pode ter visto uma fotografia), ou como forma de reprodução das experiências dos militantes (os familiares participaram de algum desfile), apontam para a naturalização deste tipo de ordenação e organização, passível de ser incorporado sem grandes dificuldades na vida cotidiana11. Ocorrem, assim, diferentes maneiras de apropriação pelos indivíduos: no caso da fotografia, tal imagem foi transformada em enfeites de aniversário, os quais reproduzem a hierarquia, a ordem e a unidade propagadas pelo Integralismo.

11. Vilém Flusser (2008:60) escreve o seguinte: “A nossa situação face às imagens é esta: as imagens projetam sentidos sobre nós porque elas são modelos para o nosso comportamento”. Acreditamos que estas fotografias podem ser, sem qualquer prejuízo, analisadas igualmente sob este ângulo.

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Por fim, a presença desta fotografia sugere a importância dada às dimensões ritualísticas da vida, bastante representada na revista, como veremos agora. As reflexões de Pierre Bourdieu (2003:58) sobre a fotografia são de capital importância para este estudo ao ressaltar a função social que ela desempenha, sobretudo no que diz respeito à “la solemnización y la eternización de un tiempo importante de la vida colectiva”. As fotografias de família e dos mais variados rituais servem como índice de consagração daquilo que é capturado e fixam sua eternidade, e, além disto, deixam transparecer quais condutas ou comportamentos sociais são aprovados e valorizados, e, por conseguinte, passíveis de serem eternizados ou apresentados como momentos solenes. Pode-se encontrar isto nas fotografias integralistas as quais representam tanto casamentos [Figuras 3 e 10] ou funerais [Figura 11]. 12. Além de “cultuar tôdas as datas caras ao Brasil e homenagear a memória dos grandes vultos da Pátria” (Enciclopédia..., op. cit.:125), o Integralismo possuía três datas próprias: 28 de fevereiro (Vigília da Nação); 07 de outubro (Noite dos Tambores Silenciosos); e 23 de abril (Matinas de Abril).

13. Junto a esta fotografia existe um texto denominado “O Decálogo da bôa esposa”, que é uma versão levemente modificada (mudança de algumas palavras, mas mantendo o sentido) de um texto de mesmo nome publicado em 1924 na Revista Feminina. A versão original deste texto foi reproduzida por Marina Maluf e Maria Lúcia Mott (1998:394-396).

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Isto é possível porque, além dos muitos departamentos que a compunham com suas respectivas regras, a Ação Integralista Brasileira possuía, como mencionado, uma série de protocolos e rituais, o que indica a existência de uma dimensão ritualística que fazia parte do movimento e detinha considerável relevância. Fossem desfiles ou datas comemorativas12, as manifestações integralistas eram rodeadas por uma aura de solenidade cuja importância é verificada no detalhamento presente naqueles Protocolos que deveriam ser obedecidos em todos os núcleos do Brasil. Sendo assim, as fotografias presentes na Anauê vêm para reforçar tal ar solene por meio da eternização daquele momento, permitindo compor uma unidade que transcende o âmbito local e abarca todo o país, pois as cerimônias retratadas não são relativas somente às pessoas presentes e aquelas de algum modo envolvidas, mas também ao próprio movimento: o Integralismo é igualmente celebrado e eternizado, e sua presença aponta para a valorização e identificação daquilo com o que se apresenta; ele imiscui-se no ritual e passa a ser solenizado. Na fotografia, a dissociação entre os elementos integralistas e os outros existentes torna-se praticamente impossível. A vida do militante é perpassada por rituais que abarcam desde sua entrada no movimento integralista até sua morte – incluindo-se aí, ainda, um relativo à sua expulsão da AIB em caso de falta grave. Se eles já possuem um caráter de solenidade, representando a integração de todo o movimento e os compromissos assumidos em prol deste e da Pátria, quando o Integralismo se aproxima e adentra outras cerimônias, trazendo-lhes seus elementos – sejam símbolos ou mesmo normas específicas para suas realizações –, então elas, como os casamentos, transformam-se em momentos duplamente solenes. Porque há tanto o regozijo advindo daquilo que o ritual representa quanto por ele se realizar em conexão com o movimento. Na Figura 313 observamos o casamento de integralistas membros do núcleo de Joinville. Ora, esta cerimônia não só significa a união de duas famílias – um dos elementos mais importantes para a AIB – para a criação de uma terceira, como indica a união e expansão do próprio movimento. A profusão destas fotos na Anauê vai ao encontro daquilo que Miriam Leite fala: “O retrato de casamento é o mais difundido nas diferentes coleções, ou como retrato avulso. A sua frequência parece confirmar a função incorporada da fotografia ao

ritual do casamento, como um meio de solenizar a criação de uma nova família” (Leite, op. cit.:74). Desta maneira, as fotos de casamentos, por um lado, servem para consagrar e santificar tal união (das famílias e do movimento), fixando-a e transformando-a em algo eterno. Por outro, são representativas, aqui também, dos valores que orientavam o Integralismo: a importância da família e, igualmente, a do sagrado visto que a ritualística integralista estava prevista tanto para a cerimônia civil quanto religiosa. As fotos de casamento, quando não são feitas no interior das igrejas – como a do casamento da filha de Plínio Salgado, publicada no número 15 da Anauê (maio de 1937) – são tiradas na frente destas, como se pode ver pela própria Figura 3, a qual representa, aliás, a máxima integração e homogeneização dos militantes comungando com o Integralismo, pois todos estão uniformizados, incluindo a noiva. É interessante observar, ainda dentro desta temática, a foto do casamento de Miguel Reale [Figura 10]. São poucas as imagens que destacam os grandes líderes integralistas em comparação ao número elevado de fotos de militantes, por vezes sem qualquer tipo de posição na hierarquia organizacional da AIB (como chefes de núcleos), o que pode ser interpretado como reflexo da própria natureza da revista, de caráter mais popular, sendo ela, então, um espelho de seu público. Mas também pode ser vista como uma estratégia em afirmar ou demonstrar a importância dos militantes para o Integralismo, ficando registrado nas páginas da Anauê que aquelas pessoas possuem um papel de destaque no movimento, e sua aparição é a forma de legitimar tal presença, conferindo-lhes alguma parcela de poder. Enquanto isto, as fotos dos líderes, embora poucas, em meio às dos camisas-verdes comuns, buscam inculcar a ideia de que estão todos unidos, compartilhando o mesmo “espaço” – mas isto não apaga a hierarquia da AIB, visto que a presença tanto em “texto” (os artigos) quanto em imagem destas altas personalidades em uma revista ilustrada, voltada para o público em geral, não se coaduna com sua posição no movimento, daí surgirem de modo esparso. Neste sentido, a foto do casamento de Miguel Reale publicada na Anauê vai ao encontro destas reflexões, e ainda acrescenta outro detalhe: diferentemente das outras imagens de casamentos, não há qualquer símbolo integralista, consistindo ela em uma fotografia “comum”, onde estão presentes somente os noivos e o retrato visa fixar a lembrança da cerimônia na memória das pessoas. A ausência de símbolos como bandeiras ou mesmo o uniforme, visto que Reale não envergava a camisa-verde, chama a atenção14; no entanto, é possível arriscar uma interpretação com base no pensamento integralista de Miguel Reale: para ele, a sociedade era naturalmente desigual e os indivíduos possuíam uma determinada margem de ação livre, que lhes permitia colocar em prática suas qualidades, sendo, então, capazes de agir sem constrangimentos externos, além de salvaguardar ao indivíduo um espaço privado (liberdade negativa)15. Desta maneira, Miguel Reale poderia não só “recusar” o caráter homogeneizante do Integralismo, como a quebra das barreiras entre o público e o privado, deixando para si um espaço livre das influências integralistas. Contudo, isto não é obtido em sua plenitude, visto que a foto acaba sendo publicada na revista e junto ao nome de Miguel Reale segue a referência sobre sua posição

14. Isto diz respeito à foto, devendo-se mencionar que o padrinho de casamento de Miguel Reale foi ninguém menos que Plínio Salgado, que vestida o uniforme integralista (Reale, 1987:107).

15. Para melhor compreensão destas diferenças, ver Ramos (2008).

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Fig. 8 Fig. 9

Fig. 10 Fig. 11

Fig. 8 | Casamento integralista em Joinville. Anauê, Rio de Janeiro, ago. 1935, ano 1, nº 3, p. 22. Fig. 9 | Plínio Salgado e Carmela Salgado. Anauê, Rio de Janeiro, ago. 1937, ano 3, nº 18, p. 8. Fig. 10 | Foto do casamento de Miguel Reale. Anauê, Rio de Janeiro, dez. 1935, ano 1, nº 5, p. 35. Fig. 11 | Funeral integralista em Santa Catarina. Anauê, Rio de Janeiro, mai. 1936, ano 2, nº 10, p. 29.

na AIB – ao fim e ao cabo, o Integralismo acaba por fazer visível sua relação com o casamento. As fotografias de casamento não se comportam como “o último ato de publicidade da união” (Leite, op. cit.:112), mas, sim, como o penúltimo: o último é sua veiculação na Anauê, e então o casamento passa a ser conhecido em nível nacional. Sua importância no Integralismo ultrapassa, assim, seu significado costumeiro, sendo valorizado não só pelo seu aspecto social e religioso, mas também por se tratar de símbolo da integração daquelas famílias ao movimento e, consequentemente, a todas as outras espalhadas pelo Brasil. Com o “ritual fotográfico” passando a fazer parte de outros rituais e cerimônias importantes na vida social, ele também está presente em funerais. A fotografia do cortejo fúnebre deixando uma igreja, em Santa Catarina [Figura 11], mostra como o Integralismo também se apropriou desta cerimônia, colocando nela seus elementos: a bandeira do Sigma era utilizada para cobrir o caixão e o militante que havia falecido, sobretudo se morto em confronto de rua, pois virava um mártir do Integralismo (ou seja, quase que um santo, com a ideia de mártir remetendo-se aos primeiros cristãos), passava a compor a Milícia do Além, e assim não “morria”. Se concordarmos com José de Souza Martins que, no Brasil, a fotografia “não entra pela porta estreita do moderno, escasso e limitado”, mas “pela porta justamente larga da religião e da tradição” (Martins, op. cit.:77), sua utilização pelo movimento integralista vai ao encontro de tal afirmação. As fotos de funerais, por um lado, reforçam a importância concedida pela AIB a aspectos sagrados da vida social, e por outro mostram respeito e valorização da morte física no sentido de que os integralistas reconheciam nela o sacrifício do companheiro militante em prol do movimento. Por fim, reforçam também sua unidade, que vai muito além deste mundo, apontando de que maneira o compromisso assumido pelo camisa-verde é transcendental e eterno. A fotografia dos funerais soleniza (ainda mais) o momento ao conceder-lhe a eternidade; e o que é eternizado não é, aqui, a morte, mas, sim, a memória do militante e, o mais importante, a continuação de seus serviços, agora no outro mundo. Todas estas fotografias, representando os núcleos, desfiles e os rituais, possuem, de certo modo, alguma excepcionalidade em vista daquilo que é retratado, mas isto, certamente, não faz com que se situem acima ou sejam mais importantes que outras cuja representação, à primeira vista, parece tão simplória: as fotos de famílias. Como demonstrou Miriam Leite (op. cit.:95), este tipo de fotografia é bastante comum e remonta ao século XIX, sendo utilizada para “afirmar a continuidade e a integração do grupo domés-

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tico”, havendo, por vezes, pouca diferença quando são examinados retratos de procedências variadas – famílias de condição econômica distinta ou mesmo de países diferentes. Neste sentido, a grande presença deste tipo de fotografia nas páginas da Anauê está a reproduzir práticas e costumes presentes na sociedade brasileira – o mesmo aplicando-se a outras, como as de casamentos – devendo, sim, ser ressaltado o porquê de seu elevado número: a importância da família para o Integralismo. Se for correto que a fotografia busca “desbanalizar o banal” (Martins, op. cit.:53), isto demonstra que o caráter excepcional do que é retratado não é dado por este, mas sim pelo contexto social no qual a prática da fotografia está inscrita. Sendo assim, a AIB sublinha sua defesa da família, reforçando a relevância desta no projeto integralista e mostrando-se alinhada à “tradição brasileira”, contrapondo-se ao individualismo da liberal-democracia ou ao materialismo comunista, cuja influência sobre a sociedade nacional levaria, em algum momento, ao esfacelamento da família, tida como principal núcleo da Nação. Quando Tatiana Silva Bulhões (op. cit.:82), ao descrever o conteúdo da Anauê, menciona que a revista “vai elaborando uma imagem da família integralista”, não percebe a autora que o Integralismo não elabora nenhum tipo de imagem, mas se apropria daquela já fornecida e presente na sociedade brasileira. É uma diferença sutil, mas relevante, pois é construída uma ligação entre AIB e família, sendo estas indissociáveis. Fotografias como as da família do ilustrador da Anauê, Arthur Thompson Filho [Figura 7] indicam este tipo de relação e a ênfase sobre ela. A simbologia integralista (os uniformes) surge, aqui, como índice de comunhão entre a família e o movimento e estabelece uma cumplicidade entre ambos, na qual a valorização é recíproca, porque o Integralismo precisa da família – ela é a base de sua constituição e seria a base de seu projeto para o Brasil – e esta precisa daquele para se defender do poder dissolvente do individualismo ou do comunismo. Através destas fotografias, nota-se como a AIB mantinha-se intimamente ligada a vários aspectos da vida cultural e social brasileira, valendo-se deles para disseminar-se na sociedade. Fig. 7 | Família do integralista Arthur T. Filho. Anauê, Rio de Janeiro, jan. 1935, ano 1, nº 1, p. 55.

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Uma última fotografia a ser apresentada antes de concluir é de Plínio Salgado com sua esposa, Carmela Salgado [Figura 10]. Publicada em agosto de 1937, quando o nome de Plínio Salgado já havia sido escolhido para a eleição presidencial, esta foto contém elementos cuja articulação entre si e o Integralismo fornece um quadro bastante interessante daquilo valorizado e propugnado pelo movimento. Estes elementos são três e formam uma hierarquia na imagem: no nível mais baixo encontramos Carmela Salgado, que representa a posição da mulher no movimento. Sentada à máquina, ela datilografa aquilo ditado por seu marido, simbolizando a função da mulher em concretizar os ideais do Integralismo, visto que a elas cabiam serviços educacionais e o cuidado das crianças; suas funções são exercidas na “base”, na formação das pessoas. Em um nível superior temos Plínio Salgado, dotado de uma percepção intelectual que o capacita a formular e a pensar o próprio Integralismo. Como outros intelectuais da AIB, ele se ocupava da elaboração das ideias integralistas que deveriam ser postas em prática; a “doutrina” parte dele e deve influenciar o pensamento e as ações das pessoas. No nível mais alto, acima de Plínio Salgado,

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encontramos o terceiro elemento: o retrato de Francisco Salgado, seu pai. Este retrato não só simboliza a importância da família como, igualmente, a autoridade, um dos principais elementos valorizados e defendidos pelo Integralismo. É ela quem paira sobre todos; e todos devem submeter-se a ela. Como se lê no Manifesto Integralista de 1932: Uma Nação, para progredir em paz, para ver frutificar seus esforços [...] precisa ter uma perfeita consciência do Princípio de Autoridade. Precisamos de Autoridade capaz de tomar iniciativas em benefícios de todos e de cada um [...]. Precisamos de hierarquia, de disciplina, sem o que só haverá desordem. (Salgado, 1955 [1932]:17-18)

E para Miguel Reale: “não há erro mais grave que esse de colocar nas pontas de uma antinomia os princípios da ‘liberdade’ e da ‘autoridade’. [...] Integremos liberdade e autoridade em uma unidade que é a unidade do bem e da virtude” (Reale, 1983 [1937]:88-89). Para o Integralismo, a autoridade precisava ser recuperada (ou instaurada), e com ela a hierarquia e a disciplina. A Figura 9, assim, parece sintetizar estes elementos centrais e culmina como sendo uma representação daquele “Princípio de Autoridade”. Na fotografia tem-se a hierarquia, formada por Carmela Salgado, Plínio Salgado e Francisco Salgado, a qual simboliza outra hierarquia: os indivíduos (a sociedade), o Integralismo e Deus. Ou melhor, a hierarquia do lema da Ação Integralista Brasileira: Deus (o pai, Francisco Salgado), Pátria (Plínio Salgado, o “profeta da nacionalidade”) e Família (Carmela Salgado). Estas fotografias fornecem um panorama conciso, porém valioso, daquilo que se acha presente na revista Anauê, apresentando a variedade de imagens existente ao longo de suas páginas. Sua publicação aponta para a identificação entre seus conteúdos e os valores e ideias defendidas pelo movimento integralista e faz com que exerçam um papel importante na difusão do Integralismo. Poder-se-ia dizer que ao “valor de culto” original de algumas fotografias (destacadamente as de famílias, crianças ou de cerimônias) é agregado um “valor de exibição” (Benjamin, op. cit.), pois elas deixam o espaço privado onde são objetos de contemplação e constitutivos da memória familiar e passam para o espaço público, disponibilizadas para o escrutínio de todos. Neste processo, estas fotografias são “refuncionalizadas”, pois ao se transformarem em meios de suporte, fixação e transmissão de formas simbólicas ligadas ao Integralismo, possibilitam a identificação dos militantes entre si e com o movimento, bem como a integração entre estes. Elas criam uma unidade cujo centro são os ideais integralistas, partilhados por todos, além de passarem a constituir a memória do movimento, operando como um álbum ou um museu da AIB.

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Conclusão De acordo com Vilém Flusser (2009:41), o fotógrafo possui as seguintes intenções: “codificar em forma de imagens, os conceitos que tem na memória”, “fazer com que tais imagens sirvam de modelos para outros homens” e “fixar tais imagens para sempre”. Este artigo, embora por caminhos distintos, não deixou de ir ao encontro destes pontos, pois procurei analisar quais papéis as fotografias da Anauê desempenhavam no contexto no qual eram utilizadas pela Ação Integralista Brasileira. Evitando uma abordagem que privilegiasse somente aspectos puramente instrumentais, isto é, o uso da imagem como meio de angariar novos militantes, busquei demonstrar como as fotografias transmitiam e configuravam, visualmente, os valores e ideais sustentados pelo Integralismo, além de mostrarem como este era incorporado à vida dos militantes, fazendo-se presente em diversos momentos dela. Elas serviam como índice de integração entre os indivíduos e o movimento e demonstravam em que aspectos da dimensão cultural e simbólica eles se identificavam. Veículos para a transmissão16 de costumes e valores, as fotografias são “refuncionalizadas” quando publicadas na Anauê e passam a representar, também, um culto ao movimento e a seus ideais. Há um diálogo constante entre aquilo que está representado e a “ideologia” integralista, entre um conteúdo manifesto e um conteúdo latente, os quais se relacionam, sendo analisados em conjunto.

16. Mas não apenas isto: a fotografia também permitiu o exercício da criatividade, no contexto do movimento, por parte dos próprios militantes que enviavam imagens variadas. E a própria revista chegou a realizar um concurso fotográfico, com as contribuições sendo publicadas em suas páginas.

Este trabalho buscou levar em consideração tal diálogo e o contexto no qual ele se processa, isto é, não foi uma análise isolada das fotografias – o que poderia levar a outras abordagens e interpretações –, pois procurei sempre tomá-las em conjunto com o suporte através do qual são exibidas e publicadas, onde possuem funções a desempenhar. Assim, as reflexões sobre as fotografias da Anauê levaram em consideração: a própria revista como instrumento de integração e expressão do movimento; os postulados dos intelectuais da AIB, difundidos não só em livros como em periódicos diversos; e os valores partilhados por seus membros. A presença de interesses “práticos” – afinal era um movimento com intenções de alcançar o poder e de intervir no Brasil – não é negada, mas há uma dimensão cultural relevante que nos permite melhor compreender o Integralismo e suas práticas. Em trabalho anterior, ao analisar a proposta de Integralismo desenvolvido por Plínio Salgado, observou-se que, para este, a divisão entre espaço público e privado tornava-se inexistente, dando margem, assim, à criação do que foi denominado de “prática totalitária”. Isto consistiria: em uma série de atitudes a serem tomadas, seja por parte dos militantes ou do movimento como um todo, com base na ideologia [integralista], na vida pública – lembrando que, havendo a completa eliminação da diferença entre esta e a vida privada, a primeira acaba por englobar a segunda. (Ramos, 2008:99 et. seq.).

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Não nos iludiremos e nos apressaremos em dizer que estas fotografias mostram ou comprovam tal ideia, porém, elas apresentam possibilidades para analisar com mais acuidade este aspecto da vida dos militantes integralistas. Afinal, observa-se como o Integralismo tornou-se presente em vários aspectos de seu cotidiano: fosse em uma festa de aniversário infantil, uma cerimônia de casamento ou um funeral. Neste sentido, as fotografias simbolicamente “carregadas” da Anauê, ao fazerem parte, como demonstrado, de um processo de constituição, afirmação e transmissão dos ideais integralistas – o qual envolvia os responsáveis pela revista e a atuação ativa dos militantes –, serviriam como um índice do grau e modos de recepção do Integralismo na vida das pessoas. Para Hannah Arendt (2008 [1958]:27), mortalidade significa “mover-se ao longo de uma linha reta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico”. Ora, sendo o tempo das imagens um tempo circular – e não linear, como o do texto (Flusser, 2009:8-11) – então se pode dizer que, através delas, o Integralismo buscou, junto de seus militantes e dos valores partilhados entre eles, imortalizar-se – para, assim, retornar eternamente.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO RAMOS, Alexandre Pinheiro. Fixando valores: a fotografia e a transmissão de ideais e valores integralistas na revista Anauê. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 202 - 225. Disponível em: http:// issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa. Recebido em 30 de agosto de 2011. Aprovado em 5 de março de 2012.

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PERFORMANCE, LIMINARIDADE E COMMUNITAS EM AMBIENTESTELEPRESENTES por Helmut Paulus Kleinsorgen

Helmut Paulus Kleinsorgen

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Helmut Paulus Kleinsorgen é doutorando em Antropologia Social pelo PPGSA/IFCS/UFRJ. Este artigo é parte integrante da pesquisa de tese em andamento “Metaforizações do corpo em portais adultos de Live Webcam: a constituição da Telepresença como ambiente performático e o contexto da Performance Amadora Online” (título provisório), orientada pelo professor Marco Antônio Gonçalves.

PERFORMANCE, LIMINARIDADE E COMMUNITAS EM AMBIENTES-TELEPRESENTES Resumo Neste trabalho, discuto algumas representações simbólicas que per-

meiam ambientes-telepresentes, especificamente o portal de exibição de live webcams CAM4 (www.cam4.com). A partir dos estudos de performance desenvolvidos por Victor Turner, pretendo analisar o papel da instrumentalização do corpo como veículo de expressão não-verbal nas práticas sociais de produção, compartilhamento e recepção de representações identitárias audiovisuais em redes de interação mediadas pela Internet. Por meio de uma perspectiva comparativa, tenho o propósito de compreender os atores sociais, discursos e sentidos inseridos na crescente incorporação da exibição a distância em tempo real do rosto, do corpo e/ou da encenação de diferentes tipos de performances amadoras. Palavras-chave telepresença, performance, webcam, intimidade, corporalidade

PERFORMANCE, LIMINARITY AND COMMUNITAS IN AMBIENTS OF TELEPRESENCE Abstract This article focuses on the discussion of symbolic representations ob-

served in ambients of telepresence, mainly the live webcam portal CAM4 (www. cam4.com). Through the works of Victor Turner on the anthropological notion of performance, I seek to understand the emergence of the body as a medium for nonverbal communication and expression as well as the influence of virtual audiences in the contextual negotiation of one’s cultural identity, representation and gender. Keywords telepresence; performance, webcam; intimacy, corporality

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Performance, liminaridade e communitas em ambientes-telepresentes

A relação entre o olhar e o conhecimento remonta aos primórdios da filosofia helênica. Platão e Aristóteles, cada um a seu modo, encontraram no sentido da visão as bases para a investigação da realidade. Em “Timeu”, Platão apresenta os olhos como os primeiros órgãos criados pelos deuses; eles seriam portadores de luz, detentores de uma espécie de fogo que, em vez de queimar, lançaria um brilho suave e doce capaz de conduzir a luminosidade das coisas materiais até a alma. Por sua vez, no Livro 1 da “Metafísica”, Aristóteles escolheria a visão como o mais venerado de todos os sentidos, “A razão disto é que dentre todos os sentidos a visão melhor nos ajuda a conhecer as coisas e revela muitas diferenças.” Se o par olhar-conhecimento perpetuou-se ao longo de toda a história como fonte de saber, também acompanhou uma miríade de transformações profundas na produção de imagens sobre o mundo pelo homem e sobre o homem para o mundo. Dentre estas transformações audiovisuais, interessa-me aqui refletir sobre algumas experiências simbólicas que permeiam o processo denominado “Telepresença”. Para tanto, tomarei como objeto de análise o portal de exibição amadora CAM4 (www.cam4.com). Segundo as palavras do próprio portal “o CAM4 foi inaugurado em 2007 para oferecer gratuitamente software de transmissão de webcams de fácil utilização para amadores, exibicionistas, swingers, voyeurs e afins.” O portal está classificado entre os 300 websites mais visitados do mundo e é o segundo maior portal adulto de transmissão de câmeras do mundo. Informações do Alexa.com1 sobre o número de visitantes nos últimos três meses (dezembro de 2011; janeiro e fevereiro de 2012) dão conta de que o CAM4 encontra-se classificado mundialmente na posição 274; nos Estados Unidos está em 534 e no Brasil em 1752. Os cinco primeiros países em audiência no CAM4 (em ordem descrescente) são Estados Unidos, com 12,8% dos visitantes; Itália, com 6,6%; Alemanha, com 6,2%; Espanha, com 5,5% e Brasil, com 5,2%. Ainda de acordo com o Alexa.com, a maioria dos visitantes do CAM4 (em relação à população geral da Internet) concentra-se entre 18 e 24 anos, é majoritariamente masculina e acessa o portal de sua residência3. A partir dos estudos de performance desenvolvidos por Victor Turner, pretendo, neste artigo, investigar o locus privilegiado de portais online de exibição de câmeras ao vivo (live webcams), bem como o papel da instrumentalização do corpo como veículo de expressão não-verbal nas práticas sociais de produção, compartilhamento e recepção de representações identitárias audiovisuais em redes de interação mediadas pela Internet. Mediante uma perspectiva comparativa, tenho o propósito de compreender os atores sociais, discursos e sentidos inseridos na crescente incorporação da exibição a distância em tempo real do rosto, do corpo e/ou da encenação de diferentes tipos das chamadas “performances amadoras”.

1. “Alexa Internet Inc. (alexa.com) é um serviço de Internet pertencente à Amazon que mede quantos usuários de Internet visitam um sítio da web. Em Alexa.com, você pode entrar em um endereço de site da web e Alexa mostrará a você o quão bem visitado o site da web é.” Fonte: Wikipédia .

2. Como referência, a Wikipédia (wikipedia.org) aparece posicionada em 6º. lugar mundial e em 6º. nos EUA nos mesmos últimos três meses. O primeiro lugar mundial e nos EUA é o Google (google.com). As cinco páginas mais visitadas no Brasil em ordem decrescente são Google Brasil (google.com.br); Facebook (facebook.com); Google (google.com); Youtube (youtube. com) e Universo Online (uol.com. br). 3. Consultar “audience” (público) em .

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As interações na telepresença e a relação entre “técnica” e “tradição” – Projetando e experienciando imagens do corpo Embora o conceito de telepresença ainda não tenha caído no senso comum, o compartilhamento simultâneo de imagens por meio da Internet – também chamado de videoconferência, ou videochamada – banaliza-se velozmente. A necessidade recíproca de webcams nos computadores é um fator condicionante cada vez menos impeditivo a esta prática. Isto sem contar o fenômeno da convergência das mídias, que integra câmeras digitais, filmadoras, celulares, editores de texto, rádios, tocadores de música e uma infinidade de aplicativos; lan houses privadas, locais de trabalho, bibliotecas, laboratórios de informática e centros comunitários oferecem alternativas de acesso aos usuários que não dispõem dos recursos tecnológicos. Via de regra, não se verifica uma distinção entre os termos telepresença e videoconferência ou videochamada. Considero, no entanto, o conceito de telepresença mais amplo que os dois últimos. Ela constitui-se numa noção heterogênea sobre os processos de interação mediada, em tempo real, de sujeitos que não dividem o mesmo espaço físico. Um dos maiores desafios para um antropólogo cuja pesquisa tangencie o emprego de novos dispositivos técnicos é possuir a sutil sensibilidade necessária para romper com a naturalização dos usos destes novos expedientes. Não raro o pesquisador se depara com uma crença enraizada, muitas vezes envolta em discurso científico, que sugere uma relação causal entre o surgimento de uma tecnologia e sua posterior utilização. É como se a “invenção” de um aparelho eletrônico pressupusesse um meticuloso manual de instruções que condicionasse sua apreensão social. Além disto, como o próprio antropólogo tende cada dia mais a fazer parte em alguma esfera das comunidades de usuários, é preciso atenção redobrada para que sua observação/diálogo não se limite a reificar concepções que se destacam em primeiro plano. Se nos reportarmos ao artigo de Marcel Mauss, “As Técnicas do Corpo” (1934), encontraremos alguns questionamentos análogos sobre o caráter da técnica, neste caso, o ato técnico: Mas qual a diferença entre o ato tradicional eficaz da religião, o ato tradicional eficaz, simbólico, jurídico, os atos da vida em comum, os atos morais, de um lado, e o ato tradicional das técnicas, de outro? É que este último é sentido pelo autor como um ato de ordem mecânica, física ou físico-química, e é efetuado com esse objetivo (Mauss, 2003:407).

Em razão desta sensação orgânica de naturalidade, que camufla o peso da tradição nas técnicas do corpo, Mauss toma de empréstimo do latim a palavra habitus e sugere um conceito sociológico posteriormente aprofundado por Bourdieu. A palavra habitus exprimiria melhor faculdades socialmente adquiridas em oposição à idiossincrasia dos hábitos de indivíduos ou de hábitos/repetições metafísicas. Através da observação da educação/tradição verificaríamos a não existência de uma “maneira natural” no adulto.

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A palavra exprime, infinitamente melhor que “hábito”, a “exis” [hexis], o “adquirido” e a “faculdade” de Aristóteles (que era um psicólogo). Ela não designa os hábitos metafísicos, a “memória” misteriosa, tema de volumosas ou curtas e famosas teses. Esses “hábitos” variam não simplesmente com os indivíduos e suas imitações, variam, sobretudo, com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios. É preciso ver técnicas e a obra da razão prática coletiva e individual, lá onde geralmente se vê apenas a alma e suas faculdades de repetição. (ibid:404)

As inovações tecnológicas – em especial aquelas voltadas para a difusão e reprodução de imagens, como no caso deste trabalho – envolvem expectativas, demandas, mas também estão submetidas a ressignificações múltiplas, complexas e imprevistas. E estas ressignificações implicam negociações incessantes entre o indivíduo e os grupos onde ele se insere. Sobre a relação entre tradição e técnica, a que “tradição” estaríamos nos referindo ao considerarmos as interações mediadas na telepresença? Ou melhor, invertendo a pergunta, de que forma as trocas simbólicas operadas no âmbito das interações mediadas na telepresença influenciariam as representações sociais de certos grupos? O fenômeno da telepresença, observado no portal de exibição amadora CAM4 e em exibições de twitcam, desvela por sua vez fronteiras fluidas da intimidade, bem como evidencia novos limites possíveis ao nosso mundo sensível. Não quero afirmar com isto que a veiculação recíproca de imagens digitais em tempo real seja revolucionária por si mesma. A fragmentação da identidade e a desterritorialização do mundo contemporâneo são temas da antropologia desde a mesma década de 1970, quando a autoridade etnográfica e seus propósitos de documentação e de descrição realistas, calcados no modelo de observação-participante malinowskiano, entraram em declínio e deram margem a estratégias de representação interpretativas (Geertz, 1973) e reflexivas (Clifford & Marcus, 1986; Marcus & Fischer, 1986), por exemplo. Ambientes imersivos por excelência, os portais virtuais de exibição amadora deslocam a figura do “observador” – daquele que olha – repartindo-o em dois sujeitos num só: “o observador interno, que experimenta a ação em primeira pessoa, e o observador externo, aquele que observa do lado de fora da ação um outro experienciado, ainda que possa ser ele mesmo” (Araújo, 2005:57). Percepções simultâneas de realidades endógenas e exógenas se intercambiam e se tensionam na relação entre sujeitos, alterando mutuamente as noções de corpo, realidade, espaço, temporalidade e presença. O que é atual é sempre um presente. Mas, justamente, o presente muda ou passa ... Certamente é preciso que ele passe, para que o novo presente chegue, que passe ao mesmo tempo que é presente, no momento em que o é. É preciso, portanto, que a imagem seja presente e passada, ainda presente e já passada, a um só tempo, ao mesmo tempo. Se não fosse já passada ao mesmo tempo que presente, jamais o presente passaria. O passado não sucede ao presente que ele não é mais, ele coexiste com o presente que foi. O presente é a imagem atual, e seu passado contemporâneo é a imagem virtual, a imagem especular. Segundo Bergson, a “paramnésia” (ilusão de déjà-vu, de já-vivido) nada mais faz que tornar sensível esta evidência: há uma lembrança do presente, contemporânea do próprio presente, tão colada a este quanto um papel ao ator (Deleuze, 2005: 99, grifos meus).

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4. Dewey (1934) sustentou que as obras de arte, incluindo obras teatrais, são ‘celebrações, reconhecidas como tais, da experiência cotidiana’ (ordinary experience). Ele estava, evidentemente, rejeitando a tendência nas sociedades capitalistas, de colocar a arte num pedestal, separada da vida humana, mas comercialmente valiosa dentro de normas estabelecidas por especialistas esotéricos. Dewey disse: “Até mesmo uma experiência simples, se for uma experiência autêntica, é mais adequada para dar uma pista à natureza intrínseca da experiência estética do que um objeto já colocado à parte de qualquer outro modo de experiência” (Turner, 2005:178).

5. “Essas experiências que interrompem o comportamento rotinizado e repetitivo – do qual elas irrompem -, iniciam-se com choques de dor ou prazer. Tais choques são evocativos: eles invocam precedentes e semelhanças de um passado consciente ou inconsciente – porque o incomum tem suas tradições, assim como o comum. Então, as emoções de experiências passadas dão cor às imagens e esboços revividos pelo choque no presente. Em seguida ocorre uma necessidade ansiosa de encontrar significado naquilo que se apresentou de modo desconcertante, seja através da dor ou do prazer, e que converteu a mera experiência em uma experiência. Tudo isso acontece quanto tentamos juntar passado e presente” (ibid:179).

Impulso à comunicação, formas de expressão estética e processo ritual A figura do “ator” trazida à tona por Henri Bergson (1896) neste trecho para falar sobre temporalidades simultâneas – sobre a duplicidade da “imagem real” e da “imagem virtual” – não apenas se encaixa como uma categoria oportuna para debatermos as características da presencialidade, da percepção sensorial e da interação de personagens no “ambiente-telepresente”, como conjuga de maneira formidável campos tais como o teatro, o ritual e a performance, pioneiramente articulados nos estudos antropológicos de Victor Turner (1982) e de seu colaborador, Richard Schechner (1985). Tomemos “Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experiência” (2005), de Victor Turner, como moldura para nos auxiliar na análise da teatralidade na telepresença. Neste artigo, o autor nos fornece o arcabouço filosófico de sua teoria do “drama social”. Primeiro valendo-se de John Dewey em “Art as Experience” (1934) – embora este processo de experiência pendesse para o biológico –, Turner é atraído pela associação realizada pelo filósofo entre experiência cotidiana (seja ela natural ou social) e a experiência estética4. De Wilhelm Dilthey, em “Selected Writings” (1914), Turner se apropria da distinção que o filósofo propõe entre “mera experiência” e “uma experiência”5 e da crença dele numa unidade básica da experiência (numa estrutura temporal ou processual) para pensar os estágios que constituiriam o ritual tribal. A partir da distinção destas etapas, Turner passa a enfocar a correspondência entre situações “liminares” e o drama social. O ponto que eu gostaria de ressaltar aqui é que o mundo do teatro, como nós o conhecemos, tanto na Ásia como no Ocidente, e a imensa variedade de subgêneros teatrais, derivam não da imitação, consciente ou inconsciente, da forma processual do drama social completo ou saciado – ruptura, crise, reparação, reintegração, ou cisão (embora o modelo de tragédia de Aristóteles se assemelhe a esse movimento sequencial), mas especificamente da terceira fase, reparação, e, especialmente da reparação como processo ritual ... Todos esses processo rituais de “terceira-fase” ou “primeira-fase” (no caso de crise da vida) contêm uma fase liminar, que fornece um estágio (uso esse termo advertidamente) para estruturas únicas de experiências (o Erlebnis de Dilthey) em meios isolados da vida mundana e caracterizados pela presença de ideias ambíguas, imagens monstruosas, símbolos sagrados, provações, humilhações, instruções paradoxais e esotéricas, a emergência de tipos simbólicos representados por palhaços e mascarados, inversões de gêneros, anonimatos e muitos outros fenômenos e processos que tenho descrito em outros textos como “liminares” (Turner, 2005:183, grifos meus).

Um ponto de extrema importância a ser considerado no artigo de Turner é a suspensão da função da experiência/expressão estética no interior da experiência cotidiana, ou melhor, o modo como formas de expressão estética (como o teatro), bem como o impulso latente de comunicar do indivíduo poderiam ser compreendidos a partir do estágio da “reparação” no processo ritual tribal. Sendo assim, voltemos aos ambientes-telepresentes, especialmente o portal de exibição amadora CAM4. Uma das questões que me chama a atenção, como mencionei

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brevemente no início do texto, é a confusão entre o caráter estritamente “comunicacional” da telepresença e as práticas simbólicas que emergem de sua arena. Acredito que as minitelevisões do EU transmitidas neste site em grupos de 36 janelas/transmissões por página não devam ser encaradas como meros instrumentos de comunicação; não se limitem ao envio direto e “objetivo” da linguagem verbal falada ou escrita – como se a telepresença constituísse um sucessor do telefone numa cadeia progressiva de invenções telecomunicacionais. Numa via de mão-dupla, os participantes enxergam e ouvem ao outro e a si mesmos (como um EU deslocado) e são descortinadas para uma audiência expressões corporais, feições, vestimentas, tatuagens, enfim, uma série de outros elementos culturais. Esta audiência, este público interator reage e se manifesta de diversas formas e em diferentes níveis de interação, retroalimentando a “sessão” emitida/ receptada pelos próprios personagens atuantes.

Liminaridade e communitas na telepresença – A exibição “amadora” do corpo como jogo/brincadeira e expressão de fricção social Dois conceitos de Turner são úteis aqui para refletirmos sobre a atuação/encenação protagonizada em ambientes-telepresentes: o de communitas e o de fenômenos liminóides (ver Turner, 1982). Na experiência de communitas, inspirada na “efervescência social” de Durkheim (como uma campanha política ou uma declaração de guerra), emanaria espontaneamente uma poderosa indiferenciação do sujeito frente a seu grupo em momentos de liminaridade – a fase intermediária situada entre o distanciamento e a reaproximação das estruturas de organização social – observada em ritos de passagem de tribos primitivas. Por sua vez, os fenômenos liminóides, característicos de “sociedades complexas”, se distinguiriam dos momentos de liminaridade pelo aspecto individual/subjetivo do processo e por seu potencial criativo e subversivo, não pressupondo um retorno à estabilidade da tradição. Na página inicial do CAM4, logo de cara nos deparamos com a categoria “Em Destaque”. Nela encontraremos uma classificação (rankeamento) em janelas simultâneas – por ordem decrescente de público espectador – das exibições de perfis (36 deles) subdivididos nas principais categorias do site – “Feminino”; “Masculino”; “Casal”; “Transx”; “Festa” (de acordo com a opção do exibidor no momento da transmissão, esta categoria pode ou não apresentar mais de uma pessoa na mesma webcam); “BR” (perfis do país de origem da página de acesso ou da nacionalidade do internauta previamente cadastrado); “PT” (perfis no idioma de origem da página de acesso ou do internauta previamente cadastrado – no caso do português, misturam-se aos brasileiros perfis principalmente de Portugal e de brasileiros no exterior) e “Premium” (portal para assinantes “CAM4Gold” que mediante o pagamento de uma quantia detêm acesso a uma série de recursos extras, como a visualização de mais de um perfil ao mesmo tempo; envio de mensagens privadas aos exibidores, bem como à interação com “artistas amadores” – exibidores cuja apresentação/show envolve pagamento de pequenas taxas, segundo opções distintas de interação/satisfação do assinante).

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Meu primeiro acesso ao site, quando criei um perfil genérico – este me oferecia a possibilidade de mandar mensagens em aberto nos respectivos chats dos perfis exibidores (apenas um perfil por vez para membros não-pagantes), além de poder transmitir imagens caso assim quisesse – data de 9 de fevereiro de 2010. Não sei precisar a fonte, mas lembro-me de ter descoberto o portal através de uma matéria jornalística na Internet que destacava a novidade de certos portais de exibição de live webcams em comparação aos costumeiros chats de bate-papo na Internet. Todos os portais mencionados eram internacionais (embora permitissem a visualização das páginas gratuitas por internautas de qualquer país) e um dos mais conhecido deles, com maior número de membros cadastrados, de exibidores e de público era, na época, o CAM4. Este perfil mostrava as seguintes informações: Gênero; Membro desde quando; Preferência Sexual; Estado de Relação (Solteiro; Casado; Relação Aberta); Idade; Localidade; Línguas Faladas; Fuma?; Bebe?; Pêlos Corporais; Cor de Olhos. Dentre as categorias a serem opcionalmente preenchidas pelo usuário, destacaria algumas respostas possíveis. Em Gênero, por exemplo: Macho (tradução do inglês Male); Fêmea; Transexual. Uma vez definida, esta categoria não pode mais ser alterada. Outros exemplos ainda: Drogas Recreativas (Não; Socialmente; Ocasionalmente; Regularmente; Muito); Decorações Corporais (Brincos; Piercing no Nariz; Piercing Corporais; Tatuagens; Outro); Tipo de Corpo (Grande; Magro/pequeno; Musculoso)... O gênero “Macho”, por sua vez, possui ainda subcategorias como Heterossexual; Gay e Bicurioso.

6. Os exibidores podem moderar seus respectivos chats por meio de três recursos: “Silenciar” (o exibidor não vê as mensagens de certo usuário, mas o restante dos visitantes continua vendo); “Chutar” (exclui o visitante inconveniente da transmissão e chat do exibidor, mas ele poderá retornar quando quiser) e “Banir” (exclui em definitivo um determinado usuário de sua transmissão/chat, impossibilitando-o de vê-lo outra vez).

Ao deparar-me com o CAM4, instintivamente notei uma aproximação entre esta arena de exibições “amadoras” e o processo de imagificação da vida cotidiana nos chamados “filmes pessoais” (ver Kleinsorgen, 2011) que eu vinha pesquisando ao longo do mestrado. Dentre as respectivas semelhanças e diferenças, particularidades como a “transitoriedade/efemeridade” e a “espontaneidade” das performances na telepresença – espontâneas no sentido de aparentemente menos premeditadas do que um filme, por menos roteirizado que este possa ser – trouxeram novas questões a serem colocadas em perspectiva. Por outro lado, a valorização da categoria “amadora” (em detrimento dos filmes narrativos “comerciais”) já despontava em diversas análises sobre os filmes pessoais. Em minhas incursões iniciais ao universo de ambientes-telepresentes como o CAM4, fiquei fascinado pelos novos sentidos que o “amadorismo” parecia ganhar naquele contexto. Se os filmes amadores (também conhecidos como filmes caseiros, filmes de família etc.) evocavam, em dado momento, certa inocência e ingenuidade, o amadorismo da transmissão/recepção simultânea de imagens dava a impressão de oferecer um convite aberto à intimidade e à revelação de fantasias recônditas. Lembro-me de que brincadeiras e elogios apareciam como estratégias frequentes do público nas negociações de que eu tomava parte cotidianamente. Embora as exibições não tenham razão de ser sem alguma audiência e os papéis de exibidor/espectador fossem intercambiantes, havia uma certa expectativa de que os exibidores mereciam incentivo/atenção constante, bem como o público precisava ser satisfeito para que a performance fizesse sentido. Vou ilustrar este ponto contando a primeira e única vez que fui “chutado”6 de uma sala e a lição que aprendi.

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Havia um usuário norte-americano de 25 anos que se tornara famoso no portal e suas exibições ocasionais e em diferentes horários o catapultavam para as primeiras posições do ranking tão logo ele as iniciava em virtude de ter conquistado um público cativo (e quanto melhor sua posição na página “de capa”, mais pessoas teriam curiosidade em clicar em sua janela de exibição). Country_Dude7 era facilmente reconhecido por uma espécie de “uniforme”. Volta e meia ele ostentava diferentes chapéus de cowboy (embora não se declarasse nenhum interiorano/caipira ou fã ardoroso de música country), camisetas regata brancas justas por dentro da calça, cinto preto e jeans bastante largo, ao estilo dos rappers do gueto. Ele era musculoso e tinha todos os atributos físicos que o credenciassem ao mercado masculino de modelos. Apesar de toda a sua popularidade, vale ressaltar que country_dude nunca ficava nu, ou mesmo em trajes íntimos. Ao contrário, ele se dava ao luxo de deixar os espectadores clamando em únissono por um show mais picante, enquanto ia para outros cômodos tocar adiante o que resolvesse fazer (com a câmera ligada, mostrando seu quarto vazio). Uma de suas características era ser inflexível em relação a sua audiência. Ele invertia a equação e, em vez de ir cedendo aos apelos dos visitantes, promovia verdadeiras gincanas que sequer se preocupava em cumprir.

7.

Apelido (nickname) fictício.

Numa madrugada nos Estados Unidos, e me recordo que também era tarde no Brasil, country_dude lançava uma série de desafios. Caso as pessoas descobrissem o cantor e o título de uma determinada música que ele colocava, ele diminuía o número de visitantes necessários em seu perfil para que rasgasse a camiseta que vestia. Em suas diversas exibições, até então eu nunca o tinha visto tirando a blusa. Disse isto no chat logo abaixo de sua câmera, mas outros participantes confirmaram que ele já tinha rasgado uma camiseta quando a meta fora batida noutra ocasião. Como country_dude ignorava as cantadas recebidas por todos, mesmo de lindas jovens norte-americanas (ele afirmava ser heterossexual), eventualmente a atenção dedicada pelos espectadores à exibição se dispersava. Via de regra, quando uma transmissão não agrada, os visitantes apenas saem daquela janela e vão navegar por outras (não pagantes visitam apenas uma janela por vez). Contudo, a gincana promovida e o número reduzido de visitantes do portal por conta do horário fez com que a atenção fosse igualmente partilhada entre os próprios espectadores ao ponto de surgirem conversas paralelas. Dentre estas conversas, comecei a receber, por acaso, a atenção de vários espectadores de country_dude (eu não estava transmitindo). Eis que de repente, sem qualquer aviso (quando alguém dizia algo inconveniente, ele sempre fazia questão de avisar que estava “banindo” aquela pessoa da sala), fui expulso sem mais nem menos daquela interação compartilhada. Fiquei me perguntando qual o motivo do incômodo de country_dude, que não só me conhecia de outras de suas exibições, como especialmente naquela estava conversando comigo da mesma forma como ele respondia aos demais. Cheguei à conclusão de que, sem querer, tornei evidente que a exibição de country_dude tinha perdido o sentido e se transformara em “outra coisa”. E o problema não tinha sido a gincana em si, visto que tantos outros também inventavam seus jogos de sedução. Sua insatisfação comigo relacionava-se a uma quebra da dinâmica do portal. Ele havia perdido involuntariamente seu lugar de performer.

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8. A não ser em casos excepcionais de denúncias, em que visitantes podem ser expulsos ou até mesmo processados caso alguma infração legal fique comprovada.

9. De acordo com Aristóteles na obra “Poética” (1987), a tragédia grega poderia ser subdividida nos seguintes elementos essenciais: Hybris (sentimento que conduz os heróis da tragédia à violação da ordem estabelecida – seja ela social, política ou divina); Pathos (sofrimento progressivo dos protagonistas imposto pelo destino como consequência de seus atos); Ágon (conflito); Anankê (destino imutável – estando acima dos desejos dos deuses); Peripécia (acontecimento inesperado que altera os rumos da tragédia); Anagnórise (ou reconhecimento: momento em que o herói sai de sua ignorância e conhece a verdade, provocando uma situação de felicidade ou de sofrimento); Catástrofe (desenlace trágico em consequência do conflito inicial entre a hybris e a anankê, resultando em ato de mutilação ou morte); Katharsis (ou Catarse: conclusão da peça trágica por meio da purificação das emoções e das paixões, inspirando o terror e a pidedade nos espectadores).

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Portais de exibição “amadora” como o CAM4 se fundamentam num pacto tácito entre performer e público interator. Assim como o teatro, por mais vanguardista que seja, se apoia em determinadas regras reconhecidas desde os imemoriais tempos da tragédia e da comédia grega, não basta ligar uma câmera num portal, sentar-se frente a ela e “impor” o que quer que seja. Há uma complexa rede de forças/expressões que dá sentido às práticas naquele contexto. E nesta rede simbólica, o corpo do exibidor ocupa centralidade na relação trasmissor/público interator. Embora o rosto seja valorizado e a fala ou diálogo escrito por parte do exibidor funcionem como “bônus”, creio, mediante minhas interações e observações, que não tenha sido a “orientação adulta” do portal o fator responsável pelos tipos de shows apresentados (até porque a variedade deles é imensa, por mais que uma breve visita dê a impressão de que se tratam apenas de janelas mostrando uma infinidade de genitálias). A administração do portal não interage com os visitantes8 e, a não ser pelos perfis, muitos deles com fotos “falsas” (de outras pessoas) e com informações imprecisas (idade incorreta; gênero trocado), a audiência exerce sua força sem se identificar. É exatamente aí que os conceitos de communitas e liminaridade podem ser melhor compreendidos no contexto de ambientes-telepresentes como o CAM4. Para que a moral e o status quo se façam presentes em sociedade é forçoso que antes exista algo poderoso e indeterminado, porém reconhecível, capaz de dar “unidade” aos indivíduos. Esta tal “unidade” não é a moral ou a estrutura social em si mesmas. “Os vínculos da communitas são, conforme eu disse, antiestruturais, no sentido de que são indiferenciados, igualitários, diretos, não-racionais (embora não irracionais), relações Eu-Tu” (Turner, 2008: 47). Através das noções antiestruturais de communitas e liminaridade extraídas de suas pesquisas sobre o processo ritual entre os Ndembu, Turner passa a refletir de maneira mais irrestrita sobre a temporalidade e a mudança na cadeia estendida das ações sociais das sociedades em geral, de modo a compor sua teoria dos “dramas sociais”. Pode-se também postular que a coerência de um drama social concluído é ela mesma a função da communitas. Assim, um drama incompleto ou insolúvel manifestaria a falta da communitas. Neste caso, o nível básico também não está no consenso no que diz respeito aos valores. O consenso, sendo espontâneo, se baseia na communitas, não na estrutura (ibid: 44).

Apoiado em autores como Georg Simmel, Lewis Coser e Max Gluckman – os quais indicaram certo potencial de reforço do sentimento de pertença a partir das rebeliões – Turner enxergou uma “estrutura dramática”, semelhante ao modelo aristotélico da tragédia grega9, nos contornos e na sequencialidade dos recorrentes embates encenados tanto nos processos rituais das sociedades tribais quanto posteriormente nas dramatizações de procissões religiosas, festividades e em expressões artísticas das sociedades ditas “complexas” (teatro, ópera, dança etc.). Assim, a forma processual completa do drama social (manisfestações episódicas de irrupção pública de tensão) seria constituída pelas sucessivas etapas de ruptura (separação); crise (intensificação do conflito); reparação (ação reconciliadora) e reintegração ou cisão.

Performance, liminaridade e communitas em ambientes-telepresentes

É pornô? Quando me perguntam (dentro ou fora do universo acadêmico) se o CAM4 trata-se de um portal pornográfico, invariavelmente digo que “sim e não”. Se meu interlocutor tem como referencial de pornografia a nudez e/ou o sexo explícito, irremediavelmente encontrará vasto conteúdo pornográfico escancarado por todo o site (há inclusive anúncios de portais pagos de shows eróticos “profissionais”; de vídeos pornô; links para outros portais), assim como ele poderá achar “pornográficos” capítulos de novela, filmes europeus, obras de arte, performances inspiradas na contracultura norte-americana. Não estou aqui advogando em prol da nudez irrestrita (nem é este o foco deste artigo), mas as fronteiras entre o “pornográfico”, o “erótico”, o “estético” e o “comercial” são também fluidas e variam muito de acordo com os contextos sociais10. E os ambientes-telepresentes têm contribuído imensamente na ressignificação destas noções. Imaginemos algumas situações simples: 1 - Se faço sexo na minha casa com minha/meu parceira(o) entre quatro paredes, não há pornografia; 2 - Se convido alguém para observar em meu quarto, não há pornografia. 3 - Se “convido” centenas de pessoas desconhecidas a me observarem nu, ou tocando meu corpo num portal, veredito certeiro: pornografia de Internet!

10. Há uma vasta bibliografia sobre o assunto e não pretendo ater-me a este ponto neste artigo. Ver Lynn Hunt, A invenção da pornografia; Michel Foucault, História da Sexualidade 1: A vontade de saber; Ronald Weitzer (ed), Sex for Sale; Adriana Piscitelli, Maria Filomena Gregori & Sérgio Carrara, Sexualidades e saberes: convenções e fronteiras; Eliane Robert Moraes, O efeito obsceno e Café filosófico: a pornografia; Jorge Leite Junior, Das maravilhas e prodígios sexuais: a pornografia “bizarra” como entretenimento; Drucilla Cornell, Feminism and pornography; Susan Sontag, The pornographic imagination.

Diria que felizmente este debate não é tão simples assim... Para exemplificar melhor, cito a introdução de “Nas redes do sexo: Os bastidores do pornô brasileiro” de María Elvira Díaz-Benítez, na qual a autora posiciona a importância da indústria pornográfica nos EUA e, posteriormente, no Brasil: A cada ano, nos Estados Unidos, Hollywood produz cerca de 400 filmes, enquanto a indústria pornográfica põe no mercado entre 10 e 11 mil títulos. Os rendimentos obtidos com pornografia no país – onde se incluem revistas, sites, televisão a cabo e brinquedos sexuais – são superiores aos gerados pelas indústrias do futebol, do basebol e do basquete juntas. É com essa impressionante estatística que a americana Linda Williams, especialista em estudos de cinema que tem se dedicado à análise do pornô, abre a sua coletânea Porn Studies e pergunta: quem estaria consumindo toda essa pornografia? Aparentemente todos nós, ela mesma responde” (Díaz-Benítez, 2010:11).

A suspensão de papéis sociais, no entanto, não poderia deixar de ser notada. Como explicar o ímpeto para a exposição do corpo (parcialmente ou em seu todo) e/ou do rosto de homens e mulheres pertencentes às mais variadas faixas etárias, línguas, nacionalidades e culturas? Sem contar o grande apelo de performances das chamadas “sexualidades desviantes” tais como homossexuais, bissexuais, travestis, drags e transexuais. Diante de uma plateia invisível11 em sua maior parte, revelam-se sujeitos em interação cujas representações efêmeras não só rompem com a lógica indicial da imagem como aceleram o processo de virtualização já em curso.

11. Mais adiante tipifico algumas das possíveis interações no CAM4. Na maior parte delas o exibidor não vê seus espectadores.

Em “Qu’est-ce qu’une Scène?”, Denis Guénoun nos alerta para o fato de que, real ou imaginada, a plateia numa encenação teatral ocupa uma posição im-

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prescindível à própria existência da cena. Para além da mera observação de atos banais/reconhecidos, o teatro invoca a ideia de coletividade, de uma assembleia reunida com um propósito compartilhando algo. A expectativa do público frente a um palco vazio antes de um espetáculo seria semelhante à expectativa de acolhida do divino na arquitetura segundo Hegel. Qui n’a pas senti cette puissance de théâtre, cette concentration de théâtre en puissance que représente la scène vide, avant toute entrée? C’est un des moments du plaisir de théatre à son état le plus pur. En attente d’arrivée: mais déjà plaisir, se produisant comme plaisir das la vue du vide ouvert, qui patiente. Porquoi? Pourquoi ce vide est-il une condition, inaugurale, de l’acte théâtral dans son exercice le plus dense? On est frappé par la proximité de cette question avec un développement de Hegel à propos de l’architecture. Dans son enterprise de singularisation des arts, Hegel comprend l’architecture comme initiée par une sorte de dégagement, par l’évidement d’un lieu autour duquel se produira la réunion commune. Quelle est la fonction de ce dégagement, dont l’architecture s’aquitte comme d’un préalable? De render possible l’accueil du dieu (Guénoun, 2010:14).

Da mesma maneira, as performances diante das webcams direcionam-se a uma coletividade amorfa, porém não menos influente. As categorias de gênero e sexualidade dispostas no CAM4, ao contrário do que ocorre em salas de bate-papo, estão longe de prescrever ou determinar os contatos entre os usuários cadastrados e visitantes anônimos (sem direito a participar do chat abaixo das janelas de exibição). A indefinição da communitas de Turner pode ser assistida sem o menor esforço. Na legenda optativa abaixo das transmissões é comum encontrar frases numa infinidade de idiomas que brincam com essas categorias estruturantes. Ex: Homens heteros beijam-se entre si (Straight guys kiss each other); Paizão quer ser dominado; Garotos heteros para o olhar gay (Straight boys for the queer eye); Casada procura diversão; Grávida quer brincar etc. É visível em ambientes-telepresentes a instrumentalização do corpo como veículo simbólico primordial de manifestações não-verbais. A não obrigatoriedade da língua escrita que até há pouco dominava absoluta o ciberespaço, bem como o aspecto optativo da fala são marcas significativas de constituição deste meio liminóide, propiciando certa sensação de “liberdade” que favorece a experimentação de fantasias e a entrega nestas experiências semifurtivas e pouco sérias/ comprometidas. Claramente, como Dewey argumentou, a forma estética do teatro é inerente à própria vida sociocultural, mas o caráter reflexivo e terapêutico do teatro, cujas origens remontam à fase reparadora do drama social, precisa recorrer às fontes do poder frequentemente inibidas na vida do modo indicativo da sociedade. A criação de um espaço liminar separado, quase-sagrado, permite uma busca de tais fontes. Uma fonte desse excessivo meta-poder é certamente o próprio corpo liberado e disciplinado, com seus múltiplos recursos não explorados de prazer, dor e expressão (Turner, 2005: 184, grifos meus).

Perante um público desconhecido, exibidores e visitantes/navegadores provocam-se mutuamente de modo a estudar e a exercitar a potencialidade das

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fronteiras dos corpos ali dispostos. Talvez esta atmosfera de provocação declarada, este jogo coletivamente pactuado a todo instante, possa fornecer boas pistas para discernirmos as práticas observadas nestes ambientes-telepresentes de condutas voyeuristas ou exibicionistas12. Ainda em 2010, recordo-me de que grande parte dos jovens performers norte-americanos rankeados na primeira página justificavam sua presença no portal com legendas como bored (entediado) ou outras que circundavam o tema da falta de interesse/falta do que fazer rotineiras, e associavam esta sensação à declaração do desempenho/representação de algum papel masculino em seus meios (frat boy; jock; fit lad; muscle dude; lean stud). Os pretextos, na verdade, serviam de convites indiretos para que os espectadores e/ou performers ficassem à vontade para interagir, desobrigando-os, porém, de atender a demandas/provocações que considerassem inconvenientes. Inúmeros perfis reforçavam a desejada moderação na participação com anúncios do tipo: não me deem ordens; não me digam o que fazer; mostro meu corpo apenas quando tenho vontade; não respondo a perfis sem foto; etc. Naquele ano, sobressaíam-se nas primeiras posições os rostos dos transmissores (embora as performances variassem no decorrer das interações e a exposição parcial ou total do corpo despontasse com frequência).

“Se estiver gostando do que vê, tips are appreciated!”13 Apontaria também um recorte que me permitiu considerar mudanças relevantes no campo nestes mais de dois anos de navegação – a monetarização da “gratidão” do público com a instituição das “Gorjetas” 14 (tips, em inglês).

As “Gorjetas” foram implementadas em caráter experimental a partir de setembro de 2010. Antes delas, alguns poucos exibidores (porém bem rankeados, no topo da página principal) já ofereciam “shows” privados em troca de remuneração. Esta se dava por meio de serviços internacionais de transferência financeira, na maioria deles o Paypal, ou numa categoria à parte do portal (assim como “Em Destaque”; “Feminino”) representada pelo símbolo de um cifrão ($). Até a implementação geral das Gorjetas, infelizmente não havia explorado a página do cifrão, mas embora eu não possa determinar as principais diferenças entre esta categoria e o recurso das Gorjetas, facilmente constatei que estas últimas facilitaram este tipo de transação entre os participantes e as tornaram mais confiáveis por serem intermediadas pelo portal15. À primeira vista pode parecer um tanto desconexo falar de dinheiro em meio a uma discussão no âmbito da fragmentação de identidades e do papel da performance no drama social. Contudo, nunca é demais ressaltar que a chamada “liberdade de expressão” do indivíduo abriga ações e movimentos ambivalentes. É complexa e sutil a linha que separa a experiência cotidiana – repetitiva e conformada à “tradição” – da “experiência formativa” (Turner), capaz de provocar uma reavaliação do passado estrutural frente ao presente estrutural. Além disto, em última instância, os processos performativos, embora não se tratem de fórmu-

12. Via de regra a literatura médica especializada define estas parafilias (voyeurismo e exibicionismo) como comportamentos que exigem, respectivamente, distanciamento/ ocultação e choque/imposição do ato pelo praticante. Desta forma, voyeuristas e exibicionistas podem integrar ambientes-telepresentes sem que necessariamente as interações dos demais participantes sejam definidas como tais. 13. Tradução de “tips are appreciated!”: “gorjetas são bem-vindas!” 14. Reproduzo a mensagem do portal (aos cadastrados em língua portuguesa) sobre a implementação das Gorjetas: “Beta (versão) de Gorjetas no Cam4 - Nas câmaras participantes, verá um novo painel de gorjetas na janela da câmara. As gorjetas são uma nova característica da qual estamos a fazer um teste beta. Durante o teste beta, toda a gente pode comprar fichas e dar gorjetas aos performers com dinheiro real como meio de expressar a sua gratidão pela performance. Contudo, durante o período de teste beta, só um número seleto de performers poderá receber gorjetas. Uma vez que o sistema de gorjetas se torne estável, permitiremos a todos os performers da Cam4 aceitar gorjetas. Encorajamo-lo a comprar fichas, dar gorjetas aos seus performers favoritos e dar-nos feedback sobre esta nova característica. Por favor, faça-nos qualquer pergunta e diga-nos o que pensa. Envie o seu comentário por Correio Eletrônico para O Apoio ao Cliente. O Cam4, como sempre, irá permanecer gratuito. O Cam4 será sempre grátis para ver câmeras, para fazer chat, e para emitir a sua câmera. Não necessitará de comprar fichas ou aceitar gorjetas. Também haverá uma opção para doar as suas gorjetas a uma caridade à sua escolha. Claro que também poderá receber dinheiro pelas fichas que recebe. Pensamos que isto irá criar maneiras excitantes para as pessoas interagirem bem como encorajar mais pessoas a usar o Cam4. © copyright Surecom Corporation, NV, 2007-2010. Todos os direitos reservados.” 15. Antes das Gorjetas, alguns espectadores de diferentes países desaconselhavam este pagamento através de mensagens em tempo real nos chats de alguns exibidores, acusando-os de não terem cumprido com o previamente combinado.

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las matemáticas exatas, tenderiam em seu estágio final à fase de reintegração ou de cisão, de acordo com o modelo de Turner. Se a experiência estética e o impulso à comunicação dos indivíduos permeiam situações de fricção social, situações liminares e liminóides, eles colocam em jogo conflitos cujo resultado não resultará obrigatoriamente numa inovação na estrutura. Neste sentido, caberia questionar a função dúbia do dinheiro em cada contexto aqui mencionado, podendo este surgir tanto para reafirmar relações sociais consolidadas, quanto para promover a emergência de novas posições, novos agentes. No caso do portal CAM4, se antes da instituição do recurso das Gorjetas poucos exibidores exigiam recompensa financeira pela interação (pelo menos dentre os 36 rankeados em primeiro lugar na primeira página), após a disseminação deste recurso a exibição amadora “desinteressada” cedeu lugar a negociações mais diretas. No começo do campo, em 2010, exibidores satisfaziam (ou não) a determinadas demandas eventuais do público através de desafios. A maioria deles abrangia o aumento da audiência. Ex: No chat logo abaixo da janela de exibição, o público faz demandas variadas (mostrar rosto ou alguma determinada parte do corpo; permitir a transmissão do áudio da câmera para que a voz também seja ouvida; pedir para que o exibidor fique numa determinada posição ou use uma determinada roupa); em seguida, o exibidor promete cumprir uma certa proposta se atingir a marca de X viewers (consequentemente aumentando sua posição no rankeamento da primeira página – da 17ª janela para a 5ª, dependendo da quantidade relativa de visitantes daquela categoria do portal naquele instante. Esta espécie de gincana não obrigatória estimulava a criação de estratégias variadas de sedução do olhar/conquista do público. Mediante estas estratégias, exibidores “comuns” de aparência física bastante variada promoviam desafios e propostas de interação múltiplas. A propagação das Gorjetas, por sua vez, provocou uma padronização da exibição dos primeiros rankeados. Este recurso pode ou não ser habilitado pelos exibidores, e é bom frisar que nem todos os principais rankeados exigem determinada quantidade de Gorjetas para satisfazer/interagir com seu respectivo público. Existe todo tipo de combinações de exibições e de interações. Alguns exemplos: internautas que exibem a região da cintura (vestida ou não em roupas íntimas) e optam por interagir apenas com outros exibidores, não respondendo a qualquer diálogo/demanda de seu público no chat (interações câmera-câmera); internautas que mostram apenas o rosto e preferem se dedicar exclusivamente ao bate-papo em seu chat e no chat de outro exibidor (apenas assinantes podem abrir vários perfis ao mesmo tempo; interações câmera-chat); internautas que se mostram por inteiro e respondem à maioria dos diálogos/demandas (interações câmera-chat-câmera); internautas que optam por utilizar o áudio integrado à imagem para responder ao público de forma geral etc. A partir destas combinações, as Gorjetas deram maior visibilidade aos exibidores nus e mais predispostos a atender às demandas específicas de seu respectivo

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chat/público visitante. Estas demandas, embora já envolvessem vez por outra simulações e encenações de fetiches sexuais antes mesmo das Gorjetas, consolidaram estes fetiches como uma das principais moedas de troca dos exibidores rankeados no topo. Alguns destes fetiches: exibição do momento do gozo/ ejaculação; utilização de brinquedos eróticos (sex toys); introdução de objetos na vagina ou ânus; exibição de determinada posição sexual com seu respectivo parceiro sexual. Levando estas observações de campo em consideração, uma interrogação lógica seria: Estariam os ambientes-telepresentes “condenados” à prática do sexo virtual? Não pretendo responder esta questão neste trabalho, mas suscitar algumas outras que auxiliem, dentre alguns pontos, na compreensão do uso do corpo como veículo não-verbal de expressão. Assim como a festividade e a dança, ou até mesmo o cortejo e o ato sexual no interior da tessitura de um ritual tribal precisam ser compreendidos num contexto mais amplo de tradições e de relações sociais, suspeito que aspectos como a suspensão temporária de papéis, o anonimato/distanciamento geográfico e a inversão de gêneros forneçam material rico para pensarmos novas relações e representações simbólicas num ambiente-telepresente cujo público acionaria uma complexa communitas “virtual”.

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PARA CITAR ESSE ARTIGO KLEINSORGEN, Helmut Paulus. Performance, liminaridade e communitas em ambientes-telepresentes. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 226- 243. Disponível em: http://issuu.com/ revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa. Recebido em 14 de outubro de 2011. Aprovado em 4 de janeiro de 2012.

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NOVELA “PARAÍSO TROPICAL” construção do Rio e do Brasil por Daniela Stocco Daniela Stocco

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Daniella Stocco é doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia IFCS/ UFRJ.

NOVELA “PARAÍSO TROPICAL”: construção do Rio e do Brasil

Resumo Este artigo tem como objetivo mostrar como a imagem construída do

bairro de Copacabana e da cidade do Rio de Janeiro pela novela “Paraíso Tropical” apresenta elementos textuais e imagéticos que facilitam a identificação pelos telespectadores brasileiros do Rio de Janeiro como a cidade que melhor representa o país. Palavras-chave identidade nacional, novela, Rio de Janeiro, Brasil, conciliação

natural / moderno

SOAP OPERA “TROPICAL PARADISE”: construction of Rio and Brazil

Abstract This article aims to show how the constructed image for Copacabana

and Rio de Janeiro by the soap opera “Paraíso Tropical” presents textual and pictorial elements which enable Brazilian viewers to identify Rio the Janeiro as the city that best represents the country. Keywords national identity, soap opera, Rio de Janeiro, Brasil, conciliation

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Novela “Paraíso Tropical”

Introdução Este artigo é um desdobramento de minha dissertação de mestrado, defendida em 2009, que discute como as telenovelas da Rede Globo conhecidas como “novelas das oito”, exibidas entre 1982 e 2008 e, em especial, a novela “Paraíso Tropical”, transmitida em 2007, são produções culturais que podem ajudar a construir uma possível imagem do Rio de Janeiro e, através dela, uma possível imagem do Brasil; imagem que não difunde apenas a visão de seus autores e diretores, mas também a dos seus numerosos telespectadores, já que é uma obra aberta, que permite a participação do público. O foco deste artigo é a novela “Paraíso Tropical”, transmitida no horário nobre pela Rede Globo e ambientada principalmente no bairro de Copacabana, na Zona Sul carioca. A questão central é: como a novela “Paraíso Tropical”, que já na sinopse lançava o bairro de Copacabana como “síntese do Brasil”, apresenta o Rio a seus telespectadores e quais elementos imagéticos e textuais fazem com que os eles reconheçam não só o Rio, mas o Brasil através da novela? A hipótese levantada é que a novela utiliza imagens, situações e personagens para mostrar que o Rio e alguns de seus estereótipos pertencem a todos os brasileiros, ou seja, são patrimônios nacionais com os quais os brasileiros em geral podem se identificar. Além disso, a cidade do Rio de Janeiro e os estereótipos levantados pela novela ajudam a construir uma definição possível de Brasil urbano, contemporâneo. A novela aproximaria os telespectadores e o Rio, tanto os cariocas como os de outras cidades e regiões, dando-lhes elementos para apropriarem-se da cidade e da imagem que se faz dela para construir uma possível identidade nacional. Para verificar esta hipótese, será analisada a trama em si da novela, ou seja, a estória por ela narrada, mas também, e principalmente, as imagens do Rio e algumas cenas, situações, estereótipos que ajudam a construir um imaginário do Rio e do Brasil.

A novela “Paraíso Tropical”: resumo da trama Antes de iniciar a análise, é importante relembrar algumas informações sobre a novela. “Paraíso Tropical” foi escrita por Ricardo Linhares e Gilberto Braga. Estreou no dia 5 de março de 2007 e foi transmitida até 28 de setembro do mesmo ano. Sua trama principal girava em torno das irmãs gêmeas Paula e Taís, que foram separadas no nascimento e só se reencontram depois de adultas. Elas têm personalidades opostas: a primeira tem boa índole, a segunda é mau-caráter. Paula apaixona-se por Daniel Bastos, que é filho de um caseiro, tem ótima índole, e também é executivo de uma grande rede de hotéis luxuosos, o Grupo Cavalcanti, cujo dono é o todo-poderoso Antenor Cavalcanti, patrão também do pai de Daniel e quem ofereceu oportunidades para que Daniel se tornasse um executivo de sucesso. A administração do grupo fica no Hotel Duvivier, na Avenida Atlântica, em Copacabana. Outro executivo que disputa espaço no grupo e a atenção de Antenor é Olavo Novaes, filho de um primo distante de Antenor

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e da inescrupulosa promoter Marion Novaes e irmão de Ivan, a quem chama de “bastardinho”. Olavo morre de inveja de Daniel, quem Antenor pretendia tornar o futuro presidente do grupo, e faz todo o tipo de armação para destruir seu oponente, assim como Taís também inveja a irmã e faz todo tipo de trambique em busca de dinheiro fácil. Os dois tentam algumas vezes separar o casal principal. Taís chega ao ponto de tentar assassinar a irmã logo após o casamento desta com Daniel para tomar o seu lugar; mas Paula sobrevive e volta. No primeiro momento ela se passa por Taís, depois retoma seu lugar. Antenor é prepotente, grosso, egoísta, cafajeste e extremamente rico. Casado com Ana Luisa, ele teve um filho que morreu ainda adolescente num acidente de carro. Depois de ser flagrado pela mulher com a amante, ele se separa e conhece Lúcia, por quem se apaixona e com quem almeja ter um filho. Lúcia é uma boa mãe, já tem um filho de 18 anos que criou sozinha. Entretanto, a personagem de maior sucesso na novela não fazia parte da trama central. Bebel era prostituta numa cidade pequena do litoral da Bahia e foi aliciada pelo cafetão Jader para ir ao Rio. Ela chega à cidade acreditando que “se daria bem” sem trabalhar muito e ganhando muito dinheiro. Logo ela percebe que continuaria fazendo programas para sobreviver. Ela torna-se amante de Olavo e os dois se apaixonam sinceramente, ainda que demorem a admitir. É o casal de vilões da novela, que organiza as maiores armações para prejudicar os outros em favor deles mesmos. Bebel chamava a atenção por seu jeito infantil, engraçado, apesar de sua sensualidade aflorada. Ela tinha um jeito muito característico de se vestir e de falar, e lançou alguns bordões como “catiguria” e “cueca maneira”. Sua falta de modos e sua busca em aprendê-los também renderam cenas cômicas. Outros personagens que estavam em tramas paralelas à central eram alguns moradores de Copacabana, inclusive os moradores do edifício Copamar, situado (ficticiamente) na esquina da Rua Ronald de Carvalho com a Rua Ministro Viveiros de Castro. Algumas das cenas cômicas da novela ficavam por conta das brigas e “barracos” entre a síndica conservadora Iracema, que muito lutou para moralizar o prédio – torná-lo “de família” – e a moradora Virginia Batista, ex-artista e liberal; outras eram protagonizadas por Dinorá, filha de Iracema, para reatar seu casamento com Gustavo. Alguns moradores desse prédio trabalhavam no Hotel Duvivier. Na outra esquina, em frente ao edifício, estava o restaurante Frigideira Carioca, de Cássio, especializado em culinária brasileira. No final da novela, a gêmea má, Taís, é assassinada. O mistério “quem matou Taís?” fica no ar até o último capítulo. Olavo, o maior vilão da novela, é revelado como o assassino. Ele morre e mata também o irmão, que era filho de Antenor, mas ninguém, além de Olavo, sabia. Taís foi morta por ele exatamente porque descobriu tudo e chantageou Olavo. Antenor sofre alguns golpes durante a novela – inclusive a morte do filho recém-descoberto –, se arrepende das atitudes erradas que teve e se redime: fica com Lúcia, que antes o tinha deixado pelos seus erros, e que está grávida dele. Daniel e Paula terminam felizes, com duas filhas gêmeas. A novela termina com muitos casais, duas grávidas – Lúcia e Joana – e com o nascimento das gêmeas do casal principal, além da morte e punição dos vilões. Bebel tem final feliz, apesar de ser vilã: vira amante de um senador, que

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além de dar-lhe uma vida luxuosa, está sendo investigado na “CPI do Biocombustível” e ela é chamada a depor em Brasília, o que a torna famosa, perseguida por fotógrafos; chega ao ponto de ser chamada para posar nua – justo o que ela queria. A estória que circunda o “final feliz” de Bebel tem semelhanças com o caso do senador alagoano Renan Calheiros, que foi acusado, em 26 de maio de 2007 (quando a novela “Paraíso Tropical” já estava no ar), de ter despesas pessoais pagas por um lobista de uma empreiteira – no caso o aluguel de Mônica Veloso e a pensão da filha do casal, fruto de relação extraconjugal do senador. Mônica Veloso passa a ser assediada pela imprensa e é chamada para posar nua na revista masculina Playboy. Em agosto de 2007 Mônica e a revista confirmam o ensaio fotográfico e ela torna-se capa na edição de outubro de 2007. Este tipo de inspiração em fatos e eventos da “vida real” é utilizado nas telenovelas com grande frequência e é apontado por Esther Hamburger (Hamburger, 2005) para “colar” a novela à vida real, dando mais verossimilhança à estória. Jesús Martin-Barbero (Martin-Barbero, 1997), também analisa o assunto e, influenciado por Edgar Morin, reconhece que o dispositivo básico de funcionamento da indústria cultural é a fusão do espaço da informação e do imaginário ficcional. E é nesta fusão que o público tem a sensação de estar assistindo à narrativa de sua própria vida e que a ficção parece estar mais próxima da realidade do telespectador que as notícias que ele vê na TV ou lê no jornal, pois ele se identifica com os personagens – identificação que pode não acontecer no noticiário. Outra característica recorrente nas novelas, de acordo com sete pesquisas antropológicas sobre telenovelas brasileiras (Leal, 1986; Prado, 1987; Silva, 1991; Gomes, 1991; Coutinho, 1993; Almeida, 2003; Hamburger, 2005) é a oposição entre tradição e modernidade, entre o velho e o novo, mas quase sempre buscando uma conciliação entre eles, ainda que ela possa pender bem mais para um lado que para o outro. Assim, segundo os trabalhos analisados, a modernidade nas novelas aparece de duas formas: uma, a mais óbvia, é a associação dela com “novidade”, “inovação”: novas modas, novos hábitos, costumes, valores; o outro está relacionado ao indivíduo, mas apenas à sua vontade individual na esfera privada – a escolha da carreira, do estilo de vida ou do par romântico, por exemplo. A oposição se dá, portanto, quando basicamente a escolha profissional e/ou a escolha de estilo de vida e/ou a escolha amorosa vão de encontro aos interesses ou expectativas, principalmente dos familiares, ou quando tais escolhas impedem, de alguma forma, que o personagem exerça seu papel de pessoa dentro do grupo como se espera. A conciliação buscada é a que consegue transformar a oposição num equilíbrio, que permita uma acomodação tanto de aspectos modernos quanto de aspectos tradicionais na resolução final das tramas. Em “Paraíso Tropical”, esta conciliação entre tradicional e moderno também pôde ser percebida. A trama principal da novela era a luta entre o casal protagonista (Paula e Daniel), que buscavam a realização pessoal através do amor, da convivência familiar e do trabalho, e os vilões Taís e Olavo, que eram extremamente individualistas, que não valorizavam família ou trabalho, mas sim o dinheiro e as possibilidades de consumo que este oferece. Outros pequenos exemplos nessa linha: Antenor era contra o relacionamento de Daniel com Pau-

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la, pois esta apoiava o sonho de seu amado de deixar o Grupo Cavalcanti e abrir um pequeno hotel ou pousada em uma cidade litorânea do Nordeste. Antenor queria que Daniel ocupasse o cargo de presidente do grupo, pois era como um filho para ele – o que o levou a financiar um plano de Taís para separar o casal protagonista. No final da novela, Antenor ainda é o presidente do grupo, mas Daniel continua diretor executivo e seu casamento com Paula tem a bênção de Antenor. Outro conflito se dá entre Antenor e Lúcia assim que se casam, pois esta tem um albergue em Copacabana – ela é uma pequena empresária – e ele acha que ela deve abrir mão de seu negócio para se ocupar de engravidar e de cuidar de seu marido e dos eventos que ele oferece a clientes. Ao fim da estória, ela continua com seu albergue e engravida, depois de muitas tentativas frustradas. Há também o conflito entre Neli e Heitor, pois ela acha que ele deve continuar a exercer um trabalho no qual ele não se realiza para que eles possam, como ela sempre sonhou, comprar um apartamento no Leblon, enquanto ele quer arriscar e mudar de ramo de trabalho para alcançar sua realização profissional. O casal se separa e ele de fato muda de emprego e alcança grande sucesso como chef de cozinha e retoma o casamento no último capítulo. No entanto, os mais individualistas, que não pensam em seu lugar na hierarquia no grupo do qual fazem parte, mas sim em sua trajetória e nos ganhos individuais que podem obter são os vilões: Olavo, Taís, Marion, Bebel e Ivan. O moderno, enquanto novidade ou novas modas e valores, também aparece nas aulas de etiqueta dadas a Bebel por Virgínia, às roupas e comportamentos dos personagens ricos e elegantes, nas gírias e bordões de Bebel, na naturalidade da apresentação de um casal gay etc. Numa análise mais superficial, percebe-se que a trama traz temas conhecidos dos folhetins e das telenovelas brasileiras – um casal que luta para viver seu amor, conflitos de interesse, conflito e conciliação entre “tradição” e “modernidade” e fusão do espaço da informação e do imaginário ficcional. Contudo, para que todas essas características estejam presentes na novela, ela não precisaria necessariamente se passar no Rio de Janeiro. Há outras cidades no Brasil que, assim como o Rio, são capitais de estados, têm perfil urbano, são turísticas, com paisagens belíssimas, com praias, com hotéis luxuosos e também com bairros e edifícios com moradores de camadas médias, onde os conflitos e as conciliações podem acontecer. No entanto, por que o Rio foi considerado o lugar mais apropriado para ambientar a trama apresentada em “Paraíso Tropical”?

Abertura e primeiro capítulo: apresentação do Rio e de Copacabana As aberturas das novelas da Rede Globo, seja das nove ou de qualquer outro horário, não servem meramente para ilustrar brevemente a estória contada pela novela, nem para simplesmente avisar que o capítulo está começando – nos dias de hoje, a abertura só vai ao ar no fim do primeiro bloco dos capítulos, ou seja, logo antes do primeiro intervalo comercial. Há um grande cuidado com a abertura, tanto com as imagens quanto com a música, que passam a ser umas das

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marcas registradas da novela. No caso de “Paraíso Tropical”, a canção de abertura era a conhecida “Sábado em Copacabana”, composta por Dorival Caymmi e Carlos Guinle em 1955, cantada por Maria Bethânia. Com uma melodia suave e tranquila, a música aponta Copacabana como um lugar privilegiado para um passeio romântico, e repete o nome do bairro diversas vezes. A abertura foi composta por imagens aéreas do bairro. Começa por trás do Morro do Leme, e chega a Copacabana, mostrando a praia e a Avenida Atlântica num dia de sol. Em seguida, são exibidas imagens dos prédios da Avenida Atlântica e a faixa de areia a partir do mar, com alguns morros aparecendo por trás dos prédios, inclusive o Pão de Açúcar – sem favelas. Continuam as imagens aéreas da praia e dos prédios, mas a partir do Arpoador, mostrando do Forte de Copacabana até o Morro, também com o Pão de Açúcar ao fundo. Depois disso, a luz passa a ser de entardecer e a câmera sobrevoa a Avenida Princesa Isabel, seguindo para a Avenida Atlântica. Ainda no entardecer, a câmera passa ao lado de um navio e mostram-se as luzes da orla e a praia do ponto de vista do mar. Anoitece e volta-se para a Avenida Atlântica, com suas luzes e seus carros passando tranquilamente. Há um último take a partir do mar das luzes da Avenida Atlântica espelhando nas águas e com morros ao fundo. Depois tem-se uma visão aérea do hotel Copacabana Palace todo iluminado e da Avenida Atlântica. Por fim, há a imagem aérea e noturna da praia, dos prédios de das luzes de Copacabana, do Forte ao Leme, e o título da novela em letras douradas. A abertura da novela “Paraíso Tropical”, por si só, já oferece algumas pistas de uma das formas como a cidade do Rio de Janeiro e o bairro de Copacabana serão apresentados ao longo da estória. Em primeiro lugar, com todas as imagens aéreas, apenas a paisagem é explorada. Não há qualquer tipo de ação. O foco está em mostrar a beleza do bairro. Os prédios aparecem quase sempre com a praia na frente e os morros atrás, quase como se estivessem em harmonia com a beleza natural do lugar. Não há favelas nos morros atrás dos prédios. Nas cenas noturnas, as luzes são mais um atrativo na paisagem. Quando as Avenidas Atlântica e Princesa Isabel estão em evidência, o trânsito é tranquilo, sem engarrafamentos. Não há sequer uma pessoa na paisagem. Há carros, mas mesmo na praia ou na avenida, não há banhistas ou pedestres. Tudo parece em perfeita harmonia. A música lenta e tranquila ajuda a dar o tom de lugar calmo e lindo, ou seja: paradisíaco. Na abertura não há nada que lembre os problemas enfrentados por quem mora ou frequenta o bairro de Copacabana – trânsito intenso de pedestres e veículos, violência, tráfico de drogas, prostituição, poluição, moradores de rua, crianças e adolescentes que pedem dinheiro nos sinais etc. É claro que de forma alguma uma abertura de novela que tenha como objetivo apresentar o bairro de Copacabana está necessariamente obrigada a abordar os problemas do bairro. Porém, é interessante notar aqui é que a visão que a abertura constrói de Copacabana é, de fato, de um paraíso natural e urbano. O primeiro capítulo da novela também é revelador neste sentido. A primeira sequência de cenas da novela já dá uma definição abrangente do que é Copacabana. A primeira cena é na praia. A música de fundo é o samba “Cabide”, de Ana Carolina, na voz de Martin’ália. É um dia de muito sol. A praia está cheia. Não

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há diálogos, só música. Muitas jovens deitadas em cangas tomando sol, muitos jovens em cadeiras de praia, muitos guarda-sóis pela praia. Muita gente chegando e saindo da praia. Alguns vendedores ambulantes passam. Uma criança passa correndo, outras chegam. Uma jovem negra passa e chama a atenção de dois homens de uns 50 anos, muito brancos (seriam estrangeiros?). Uma senhora joga cartas com amigos sob um guarda-sol. Um casal encontra um amigo na praia e se cumprimentam. Dois homens correm em direção a um grupo que está jogando futebol na areia. Ao lado, um rapaz toma uma chuveirada na praia e recebe um beijo da namorada. Muitos rapazes fazem exercícios em aparelhos de ginásticas fixos da praia. O casal de namorados caminha em direção à calçada e cumprimenta um rapaz que faz exercícios. Eles se aproximam de uma mesa, perto de um quiosque. Encontram e saúdam três moças. Muitas pessoas estão em volta dessas mesas do quiosque. Três mulheres e dois homens saem de lá, em direção à calçada. Há pessoas andando de bicicleta na ciclovia e, ao fundo, o hotel Copacabana Palace. 1. Help era uma boate conhecida como ponto de prostituição carioca. Em 2009, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) determinou a desocupação do imóvel, que foi demolido em 2010 dando lugar ao novo Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro em 2012.

Na cena seguinte, já anoiteceu. A música muda: “Difícil”, de Marina Lima. Continua sem diálogo, só música. Mostra-se a imagem da orla de Copacabana por cima, com as luzes acesas, do Forte ao Leme. Corta para o calçadão de Copacabana. Enquanto um casal de senhores passeia e se reúne com outro senhor e uma criança em frente ao pipoqueiro, um cafetão reclama algo com uma de suas prostitutas. Ela entra num bar parecidíssimo com o Meia Pataca, perto da discoteca Help na Avenida Atlântica, lugar conhecido como ponto de prostituição1. Neste bar da novela, que é aberto e fica na calçada, há grupos de amigos com homens e mulheres, alguns casais, inclusive um casal de senhores e moças que aparentemente não fazem programa, e prostitutas. A que acaba de entrar lá chama duas amigas e elas entram num carro conversível com dois homens, supervisionadas pelo cafetão. Elas são as mesmas que saíram juntas da praia com dois homens na cena anterior. Ele conta o dinheiro que acaba de receber. O carro parte e segue pelas ruas de Copacabana. Corta para uma senhora que olha pela janela de seu apartamento com as luzes apagadas. Ela pega o telefone. A música para. Ouve-se barulho de sirene de polícia. A senhora telefona para avisar da chegada de um grupo no prédio – justamente o do carro conversível. A polícia chega, entra no apartamento para onde o grupo foi; acaba com a “festa”, leva todos para a delegacia e prende a moradora do apartamento no qual a festa acontecia, Dona Dolores. Em frente ao prédio, o Copamar, há carros de polícia e muitos curiosos que assistem à confusão. Alguns são moradores do prédio. Eles observam e comentam: Evaldo: Dona Iracema já estava desconfiando que essa mulher do 508 aí era “do babado”. Eloísa: Fez denúncia. Pacífico: E então?! Heitor: Depois de todo o trabalho que ela teve pra moralizar o prédio... Gustavo: Antigamente essa portaria dava até vergonha, viu...

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Em seguida, Iracema e Dolores discutem: Dolores: Vai cuidar da tua vida, Iracema! Isso é falta de homem! Iracema: É... o que vem de baixo não me atinge, ouviu? Dolores: Mocréia recalcada! Iracema: Ordinária! Dolores: Mal amada! Iracema: Cafetina! Fubá! Fubá! Gustavo: Não fica de bate-boca, minha sogra, vamo, vamo, vem... Iracema: Olha, o Copamar, agora, é um prédio de família! Tem síndica de olho! Dolores: Espera, espera por mim... Muitos aplaudem quando a polícia está de saída. A noite passa, o dia amanhece e Heitor e Gustavo, vizinhos e colegas de trabalho no Hotel Duvivier, comentam o caso com outros dois colegas, Tiago e Rodrigo: Tiago: Não, se bobear, o prédio de vocês volta a ser o que era antes, hein? Rodrigo: Prostituição não é crime, gente. Gustavo: Mas cafetinagem é. Você gostaria dessa safadeza na porta do seu prédio, é? Rodrigo: Não. É, Dona Iracema tá certa, sim. Gustavo: Afinal, o Copamar é um edifício de família! Heitor: E você tá com os filhos pequenos... Rodrigo: Dona Iracema tá certa, sim... Heitor: Gente, não é Sodoma e Gomorra, é Copacabana! Na sequência, a câmera segue Tiago, e mostra o luxo das instalações do hotel cinco estrelas, cenário de muitos eventos luxuosos como festas, shows e de muitas ações da novela como um todo. Em pouco menos de seis minutos, o primeiro capítulo da novela diz muito sobre Copacabana. A primeira sequência mostra um dos lugares mais conhecidos da cidade e do bairro: a praia de Copacabana. É um típico dia de sol. A praia está cheia, mas não está lotada. Apesar disso, tudo parece estar em plena harmonia: a praia está limpa, não há confusão, apesar do intenso movimento, o clima é de alegria e descontração. A praia é também o local onde a “beleza brasileira” pode ser admirada – ilustrada pela jovem negra que chama a atenção dos supostos cinquentões estrangeiros. Outra atividade ligada à praia é a prática de exercícios para rapazes jovens. Além disso, há pessoas de todas as idades, há brancos e negros, famílias e prostitutas. A praia aparece como opção de lazer democrática

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e como ponto de encontro de amigos. E este lugar, marcado pela descontração e informalidade, está situado bem em frente a um símbolo de luxo e glamour: o hotel Copacabana Palace. A segunda sequência é à noite, mas não perde o tom: o calçadão da famosa Avenida Atlântica é frequentado não só por famílias, grupos de amigos jovens ou não, mas também por prostitutas e cafetões. É um espaço híbrido, onde todos convivem. Copacabana é o lugar onde a informalidade e o glamour, o familiar e a prostituição, o “luxo e o lixo” estão justapostos. A convivência do familiar com a prostituição não é tão pacífica assim, o que fica claro na cena seguinte, quando Dolores é presa e Iracema faz discurso em favor da moralização de seu prédio, depois reafirmado por Gustavo e Heitor com a frase “Não é Sodoma e Gomorra, é Copacabana!” Porém, no calçadão e na praia, a convivência ainda é inevitável. Por outro lado, a convivência do luxo com o informal já é mais aceita e valorizada, podendo até chegar a uma conciliação. Afinal, o clima informal e descontraído se dá em frente ao Copacabana Palace e na Avenida Atlântica, dentro de um dos bairros mais conhecidos no Brasil e no mundo. Copacabana se apresenta como um caldeirão, onde a mistura ou a justaposição de raças, de classes sociais, de sofisticação e informalidade se dá com grande naturalidade. É um lugar com problemas, sim, mas rico por ser “naturalmente democrático” aceitando e fazendo conviver diversos tipos de pessoas num cenário urbano às vezes moderno e sofisticado, às vezes decadente, e ao mesmo tempo paradisíaco. Há uma imagem de glamour atribuída a Copacabana em “Paraíso Tropical”, não só pelo Copacabana Palace, mas também pelo luxuoso Hotel Duvivier, um dos principais cenários da novela. Seu interior contava com recepção, um lobby muito grande, joalheria, piscina, piano bar, loja de conveniência e restaurante. A decoração era sóbria, mas muito elegante, sofisticada. Algumas plantas e flores pelo lobby, quadros, fotos, mas nada exagerado – ou seja, é um hotel chic. Ainda no primeiro capítulo, o mundo empresarial mostra seus luxos. Daniel acaba de chegar de uma viagem internacional e sua presença no grupo é urgente devido a problemas com a terceirização de funcionários. Assim, Yvonne, sua secretária, vai buscá-lo no aeroporto de helicóptero. No caminho são mostradas, além da conversa dos dois, imagens do helicóptero sobrevoando a cidade. Mais uma vez as imagens aéreas de Copacabana, a partir do Morro do Leme, em direção à praia, depois mostrando os prédios e os morros por trás (sem favelas), alternando com o mar. Eles descem no Forte de Copacabana, e mais uma vez a paisagem do bairro é explorada, do mar com os prédios e morros ao fundo, sendo possível ver o Pão de Açúcar ao fundo. O primeiro capítulo como um todo aproveita a paisagem do bairro e mostra-a o tempo todo aos telespectadores. A beleza de Copacabana é reiterada sucessivamente. A ida de helicóptero para o hotel pode ser vista como algo do mundo dos ricos, dos empresários de muito sucesso, que remete a luxo e glamour. Entretanto, Copacabana não é feita só de luxo e requinte. Logo depois que Daniel chega ao hotel, um grupo de senhoras organiza uma manifestação em frente ao hotel cinco estrelas. A imprensa está presente. Elas gritam “respeito!” Estão indignadas com as fotos da mais recente campanha publicitária do hotel,

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nas quais aparecem homens e mulheres vestindo trajes de banho. A líder afirma que as mulheres da campanha estão “nuas” e denunciam que as fotos associam o bairro com turismo sexual. Elas exigem que as propagandas sejam retiradas de todos os meios de comunicação. Apesar de algumas poses mais sexuais, nenhum dos biquínis ou calções de banho eram diminutos. O slogan do anúncio é “Hotel Duvivier: onde Copacabana é ainda melhor!” O argumento da propaganda do hotel não menciona nada do hotel em si, mas sim a beleza e sensualidade dos frequentadores da praia de Copacabana. Em resposta às barulhentas manifestantes, Daniel afirma: “Eu posso assegurar que o Grupo Cavalcanti não aprova prostituição nem turismo sexual. Agora, não aceitar a sensualidade do Brasil como uma coisa natural seria uma hipocrisia. Encontra-se, no Rio de Janeiro, beleza por toda a parte.” A líder corta Daniel, dizendo que isso é “falta de respeito” e “patifaria”, e não sensualidade. Ele responde que o grupo considera as fotos bonitas e de bom nível, e ele acredita que os clientes do hotel pensam da mesma forma. Esta passagem mostra que Copacabana não é só feita de luxo e belas paisagens, mas também de barulho, confusão e tem moradores com perfis conservador e moralista, que na novela como um todo são representados por Iracema, a síndica do Copamar. Neste primeiro capítulo, a manifestação é apenas uma pequena prévia das confusões que acontecem em Copacabana. Contudo, esse fato não é o mais importante desta passagem. Salta aos olhos que por mais que prostituição seja vista tanto por Daniel quanto pelas senhoras como algo “não aprovado”, o estereótipo da “sensualidade” é retomado na novela. Daniel fala da “sensualidade do Brasil como uma coisa natural”. Seria então da natureza do país as lindas paisagens, assim como a sensualidade de seu povo – sobretudo de suas mulheres. Beleza e sensualidade naturais são símbolos do Brasil. Contudo, aqui cabe a pergunta: a sensualidade e a beleza são atributos de cariocas ou brasileiros? A beleza das paisagens parece ser característica do Brasil como um todo, pois paisagens da Floresta Amazônica e do litoral nordestino são exibidas com essa ênfase. Já na propaganda do hotel de “Paraíso Tropical”, beleza e sensualidade são atributos dos frequentadores da praia de Copacabana, clientes do Duvivier. Porém, quando Daniel “distribui” a sensualidade a todos os brasileiros, facilita a ligação entre a construção de um dos estereótipos do carioca e do brasileiro em geral. Outras belezas naturais brasileiras seguem na novela. O prostíbulo de Amélia, mãe de criação de Paula, está dentro de um resort que o Grupo Cavalcanti vai comprar. O resort fica na cidade fictícia de Marapuã, na Bahia. As cena externas e aéreas foram gravadas no litoral de Pernambuco e da Bahia, e também exploravam a paisagem local, que é belíssima. Porém, há uma diferença: enquanto no Rio os prédios altos na Avenida Atlântica fazem parte da paisagem e se acomodam a ela sem perder o seu destaque, as imagens da região do resort fictício têm mais natureza que construções; as casas são baixas, com aparência mais rústica. A cor do teto das construções vistas de cima se confunde com a vegetação local e o destaque fica para a natureza. Não há o mesmo glamour, nem a mesma quantidade de luzes na vista aérea da região quando anoitece. A paisagem de

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Pedra Bonita, cidade ao lado de Marapuã – mas um pouco maior – e onde Paula trabalha, também é exibida. Vê-se que é maior e mais urbana que Marapuã, mas ainda parece uma cidade pequena, pois o que se destaca na paisagem é uma igreja no alto de um morro e há poucos prédios altos. Na novela, só o Rio oferece a possibilidade de aproveitar a natureza do Brasil sem ter que sair de um grande centro.

Imaginário do Rio e de Copacabana, segundo “Paraíso Tropical” Ao longo dos oito meses nos quais a novela foi transmitida, algumas passagens apresentavam a visão que certos personagens tinham do Rio de Janeiro. Uma delas era a visão que Bebel fazia do Rio de Janeiro antes de chegar à cidade. Bebel era mineira, mas trabalhava como prostituta em Marapuã, na Bahia. Até conhecer Jader, um cafetão do calçadão de Copacabana, ainda na Bahia, ela não conhecia a cidade. Por mais que ela fosse uma vilã ardilosa para tramar suas “armações”, ela tinha também um lado muito infantil e ingênuo. Para ela, que viu sua chance de mudar de vida com a mudança para o Rio e a “ajuda” de Jader (até então ela não sabia que ele era um cafetão e que ela continuaria a ser prostituta no Rio), o Rio era um lugar mágico, onde ela “aconteceria”. Um dia antes de irem ao Rio, Bebel e Jader conversam: Bebel: Eu quero fazer uma promessa aqui, agora, na tua frente. Quando eu chegar no Rio, eu vou beber muito champanhe! Qual é o trabalho que não cansa muito e dá bastante grana, hein? Jader: Não cansa e dá grana? Sei lá, são tantos, cara... lá na hora tu resolve... um montão de trabalho... No capítulo seguinte, quando ela se despede de suas antigas colegas de trabalho, ela diz que indo para o Rio, em breve será capa de revista e de jornal, enquanto as colegas envelhecerão fazendo programa. Ela diz: “Tudo vai ser diferente quando eu botar o pé naquela cidade. Meu destino é lá no Rio de Janeiro! Lá é que eu vou acontecer!” Bebel acredita, com grande grau de inocência, que a cidade vai lhe oferecer a oportunidade se subir na vida e ser famosa – capa de revista e jornal – sem que ela mesma precise fazer qualquer esforço. No máximo ela precisará de uma pequena ajuda de Jader para dar-lhe um trabalho em que ganhe dinheiro sem esforço, mas nem ela mesma sabe o que ele poderia fazer para ela ser famosa e “acontecer”. Para Bebel, o Rio é um lugar mágico, de sonhos, e onde os seus sonhos se realizarão. Quando Bebel chega ao Rio, encanta-se com a beleza da cidade. Ela e Jader vão de táxi até Copacabana. A cena começa mostrando a visão aérea de Copacabana, com a praia, os prédios e os morros ao fundo. A música é “Samba do Avião”, de Tom Jobim, cantada por Milton Nascimento. Pela primeira vez, as favelas aparecem na paisagem timidamente, por trás dos prédios. A partir daí há um corte para um taxi no Aterro do Flamengo e percebe-se que Bebel e Jader estão nele. Ela olha a baía de Guanabara, fica encantada com o Pão de Açúcar.

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Depois de passar pelo Túnel Novo, finalmente estão em Copacabana. Ela está em êxtase. O táxi para em frente a um prédio na Rua Prado Junior, conhecida por fazer parte da área mais decadente do bairro, ter muitos “inferninhos” e onde moram e circulam muitas prostitutas. Bebel, ao sair do táxi, comenta: “Mas aqui não é Copacabana, um lugar chique?” Logo em seguida ela diz, com empolgação: “A vista é muito mais bonita que na televisão!” Ela acha o local estranho, mas não desconfia de nada, nem quando Jader a deixa trancada em um apartamento pequeno, sujo e todo bagunçado. No dia seguinte, Jader a leva à praia, em frente ao Copacabana Palace, e Bebel se esbalda no mar. Ela comenta que já havia visto a praia de Copacabana muitas vezes pela televisão, mas que ao vivo é muito melhor – experiência que a deixa arrepiada. Só mesmo à noite, quando ela sai com Jader pensando que vão jantar fora e faz elogios ao calçadão, dizendo que ele é “uma coisa” à noite, é que Jader deixa claro o que eles estão fazendo ali, e dá instruções para sua “estreia” no calçadão de Copacabana. Bebel fica indignada e volta para o apartamento. Ela pergunta a Jader se ele não poderia abrir uma loja de chocolates para ela cuidar. Ele aponta que com o corpo que ela tem e a falta de estudos, a única atividade lucrativa possível para ela é a prostituição. Ela sai do apartamento e vai hospedar-se em um hotel barato na Lapa, onde é roubada. Ela chega a dormir na praia e comenta com Tatiana, que conhece na praia, que achava que iria “faturar”, “se dar bem”, ter “roupa bacana”, comprar apartamento etc., mas viu que na Bahia, sua situação era melhor que no Rio. Ela diz que a cidade “parece que engole a gente”. Tati lhe dá a ideia de investir em um homem só, o que traz novas esperanças para Bebel. Ainda assim, ela precisa voltar para o jugo de Jader para ter onde morar e trabalhar. Através das expectativas e da experiência de Bebel, algumas características conferidas ao Rio e a Copacabana podem ser observadas. Ao chegar ao Rio, Bebel vê a cidade como um lugar lindo, onde “a vista é muito mais bonita que na televisão”, e a sensação de estar na praia de Copacabana chega a “dar arrepio”; Copacabana é chique, e é nesse lugar que, de alguma forma, o universo conspirará a seu favor, e ela será famosa, terá sua vida transformada. Ela imagina que no Rio há a possibilidade de trabalhar pouco e ganhar bastante dinheiro. É como se a felicidade estivesse no Rio, de braços abertos, esperando para ser abraçada. Com efeito, a visão de Bebel é muito caricata e ingênua. No entanto, Bebel reforça, no primeiro momento, a construção de uma imagem do Rio como lugar “único”, “chique” e até “mágico”, por estar sempre em evidência na televisão e principalmente por ser visto como o lugar onde “a vida se transforma”, onde há uma possibilidade de ascensão social, de “ser descoberto”, da mesma forma que a personagem Clara, de “Barriga de Aluguel” (Coutinho, 1993). Clara e Bebel tinham a expectativa de “acontecerem”, ou seja, de ascenderem socialmente e, quem sabe, serem famosas. As duas não tinham nenhuma estratégia para tanto, só uma: ir para Copacabana/Rio de Janeiro para mudar de vida. A personagem principal da novela, Clara, troca Inhaúma por Copacabana por acreditar que “Subúrbio é que nem (sic) cidade pequena, você acaba do jeito que nasceu. Já em Copacabana (sic), é o lugar em que tudo pode acontecer a qualquer pessoa, em qualquer momento!” (Coutinho, 1993:129). Como Coutinho explica, Clara espera mudar de vida mudando-se para Copacabana. Ela busca

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mais liberdade (principalmente sexual) e que o leque de possibilidades para os rumos de sua vida seja aumentado. Sem nenhuma qualificação profissional, Clara trabalha como dançarina numa boate do Bairro. Ela espera melhorar de vida seja através de alguém que descubra seu talento e faça sua carreira de dançarina decolar – ainda que ela nunca tenha se preparado ou estudado previamente –, ou pelo casamento por amor, mas com um homem refinado, inteligente e bem-sucedido profissionalmente, de quem ela possa cuidar e ser uma boa esposa. De fato, segundo o livro A utopia urbana, de Gilberto Velho (1975) sobre o bairro de Copacabana, para muitos de seus moradores o simples fato de terem saído de suas cidades e bairros de origem e terem se mudado para Copacabana tinha implícita uma percepção de ascensão social, mesmo que se vivesse com menos conforto e principalmente menos espaço que antes. Só chegando ao bairro ela percebe que a oportunidade de ascensão social é pequena e que estar na cidade ou no bairro por si só não garante absolutamente nada. Suas expectativas são frustradas. O Rio mostra para Bebel sua face mais dura: logo nos primeiros dias ela é enganada, roubada e se vê obrigada a sujeitar-se aos mandos de Jader, já que não tem estudos e não conhece mais ninguém na cidade que possa ajudá-la. Pode-se dizer então que o Rio é, segundo “Paraíso Tropical”, uma cidade encantadora, de fato; mas não deixa de ser uma cidade grande com pessoas que se aproveitam da boa fé dos ingênuos e onde mudar de vida não é algo tão fácil e corriqueiro. Este tema das ilusões que se pode ter das cidades grandes não é novidade nem nas novelas, nem nos livros. No entanto, é interessante ver que foi decidido resgatá-lo em “Paraíso Tropical”, para construir a imagem do Rio de Janeiro. Conclui-se, portanto, que há, sim, uma preocupação em mostrar uma imagem positiva do Rio, mas sem esquecer o contexto da cidade, inclusive o seu lado ruim, aproximando a cidade apresentada na novela do Rio “como ele é”, reforçando a proximidade da estória com a vida real, sempre tendo em conta o caráter ficcional da telenovela. Há ainda outros elementos que a novela suscita para auxiliar na construção de um imaginário do Rio e de Copacabana. Alguns deles estão ligados ao Edifício Copamar, cenário de muitos acontecimentos, moradia de muitos personagens de “Paraíso Tropical”. O Copamar é um contraponto ao ambiente luxuoso e sofisticado do Hotel Duvivier e dos apartamentos da Avenida Atlântica, que são a referência de glamour e requinte de Copacabana e do Rio. No Copamar habitam famílias de camadas médias; no entanto, dentro destas famílias há diferenças de poder aquisitivo: segundo comentou Pacífico, o porteiro, ainda na segunda semana da novela, enquanto os apartamentos de frente são maiores e mais caros, os “dos fundos” são bem menores e mais baratos. Por exemplo, enquanto as famílias de Heitor e Gustavo – ambos funcionários do Hotel Duvivier – moravam em apartamentos “da frente”, Eloísa e Evaldo, ela garçonete e ele designer de jóias sem coragem de vender seus produtos, enganado por Taís e com problemas com álcool, eram moradores “dos fundos”. Se no próprio bairro estão presentes e justapostos à elite luxuosa, os marginalizados – cafetões e prostitutas – e a classe média, no Edifício Copamar a mistura se dá em cada um dos andares, obrigando-os a conviverem e dividirem o mesmo espaço.

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Ademais, através do primeiro capítulo, sabe-se que a síndica do prédio se esforça para garantir o ambiente familiar fazendo com que uma cafetina que promovia orgias em seu apartamento fosse presa. Passa-se, portanto, a ideia, reforçada por Gustavo nessa primeira cena no Copamar, de que o edifício já foi muito frequentado por prostitutas e cafetões ou cafetinas, mas que no momento está sendo transformado num prédio “de família”, como diz a síndica Iracema. Além de mostrar como a prostituição está presente no bairro – que chegou a frequentar prédios de classe média – a cena aponta para uma tentativa de moralização, que é retomada e reforçada ao longo da novela. Isso porque o Copamar é palco de muitas brigas entre Iracema, símbolo de conservadorismo, e uma inquilina nova: Virgínia Batista, mais liberal, que já foi artista, apresentadora de shows de travestis, e, principalmente, foi amante do falecido marido de Iracema, fato que só é revelado mais para o final da novela. O mais interessante era a maneira como elas resolviam seus conflitos: através de memoráveis “barracos”, isto é, confusões e brigas escandalosas na porta do edifício ou nas reuniões de condomínio, para quem quisesse ver. As confusões e brigas entre as vizinhas passaram a ser evento comum no Copamar; praticamente uma por semana. Outra característica marcante de moradoras do prédio como Iracema, Virgínia, Neli e Dinorá era o deslumbramento que o mundo da sofisticação e do glamour lhes despertava. Elas sempre queriam participar dos eventos luxuosos no Hotel Duvivier. Neli era a que mais cobiçava galgar um espaço no Jet Set carioca. Virgínia não fazia tanta questão de fazer parte da alta sociedade, mas esperava que sua neta, de beleza estonteante, conseguisse entrar no mundo dos ricos. Iracema e Dinorá também não tinham a ambição de ascensão social, mas admiravam o luxo e o glamour do hotel e de seus eventos. Outro detalhe: das moradoras do prédio, poucas trabalham. Das quatro “deslumbradas”, nenhuma trabalha. No resto do prédio, apenas uma filha de Neli, Joana, trabalha fora, assim como Eloísa e, depois duas secretárias do Grupo Cavalcante que se mudam para lá. Todas elas são jovens, têm entre 20 e 30 anos. Dessa forma, vemos como a “classe média” de Copacabana é apresentada pela novela: é formada por famílias que muitas vezes lutam para não dividirem o seu espaço com as profissionais do sexo e seus aliciadores, o que dá vazão a um discurso conservador e moralizador; famílias nas quais o homem ainda é o provedor e as mulheres são donas de casa deslumbradas com o luxo e glamour que encontram não muito longe de suas casas, no bairro onde moram, enquanto as mulheres solteiras e mais novas trabalham, são mais independentes e menos deslumbradas; e a resolução dos conflitos se dá frequentemente por meio de “barracos” (brigas escandalosas) – ou seja, uma “classe média” ainda muito sem classe, por mais que queira participar das altas rodas. Uma das características exploradas, portanto, pela novela é a oportunidade de Copacabana, através da justaposição de diferentes classes sociais, permitir uma certa mistura de classes, com possibilidade de ascensão social para alguns. Isto porque na novela, estes três grupos – “alta sociedade”, “classe média” e marginais (prostitutas e cafetões) – estão justapostos pelo bairro e por isso, são obrigados a conviver, e através da convivência, até se misturam. A ascensão so-

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cial é difícil, mas não é impossível, já que Bebel, a prostituta, torna-se amante de Olavo, diretor executivo do Grupo Cavalcanti e que tem até aulas de etiqueta com Virgínia; no final enriquece sendo amante de um senador e passa a ser “famosa” e recebe convite para posar nua por conta de um escândalo político envolvendo o tal senador; Antenor, que é milionário mas tem origem humilde e é filho de Belisário, que tem pose mas não tem nada, casa-se com Lúcia, que faz parte da camada média da novela; Daniel, que é filho do caseiro de Antenor passa a ser seu braço direito antes, no início da novela; Heitor, que era um simples gerente de compras do grupo passa a ser chef de cozinha, como citado acima, elogiado pelos críticos e até com programa na televisão; sua filha Camila casa-se com Fred, que também é de uma família rica de São Paulo. Gilda, neta de Virgínia, termina a novela namorando Vidal, alto funcionário do Grupo Cavalcanti e dono de muitos imóveis em Copacabana. Enfim, há, sim, a justaposição que leva à convivência e à mistura, efetivamente. A conciliação de fato de todos os núcleos, de todas as famílias, casais, amigos – dos personagens bons, claro – com a resolução de todos os conflitos, vem só no final da novela, quando também os vilões são punidos. Isso não quer dizer que os diferentes grupos se tornam apenas um, mas que eles mantêm relações estreitas. A justaposição social possibilitada por Copacabana pode ser vista aqui como canal que, ao fim e ao cabo, deixa as possibilidades de mobilidade social um pouco mais palpáveis; no entanto, o simples fato de viver em Copacabana para “ser descoberto e alçado para a fama, riqueza e sucesso” são desmistificados, já que Bebel só se torna famosa após seu depoimento em uma CPI em Brasília.

As paisagens na novela A utilização das belezas naturais do Brasil para enaltecer o país não é novidade. Sérgio Buarque de Holanda, em seu livro Visão do Paraíso (Holanda, 1959) mostra como os motivos edênicos estavam presentes no descobrimento e na colonização da América hispânica e do Brasil, e que eles podem explicar o passado brasileiro. Segundo José Murilo de Carvalho (1998), o motivo edênico está presente no imaginário brasileiro desde a carta de pero Vaz de Caminha, passando por cronistas quinhentistas e seiscentistas, nas narrativas de estrangeiros sobre viagens ao Brasil, em panfletos a favor da independência do Brasil, no Hino Nacional e, de acordo com duas pesquisas feitas em 1997, a natureza é o motivo mais citado para ter-se orgulho de ser brasileiro. José Murilo de Carvalho não vê este resultado de maneira positiva, pois mesmo depois de quase 200 anos de independência, os brasileiros procuram razões para seu orgulho patriótico em fatores sobre os quais não têm controle – ou quando têm, ainda utilizam-no mais para destruir que preservar – em detrimento de orgulhar-se pelas conquistas nacionais. Ao final do artigo, o autor conclui que a dificuldade do brasileiro em ver-se como cidadão, como agente responsável por mudanças políticas e sociais faz com que ele procure elementos para construir a identidade nacional em outros planos.

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Fica claro então que não são apenas as telenovelas, nem apenas “Paraíso Tropical” que exaltam as paisagens do Brasil e, principalmente, do Rio de Janeiro. O lugar que elas ocupam na construção identitária dos brasileiros já está dado; “Paraíso Tropical” apenas reforça um elemento já aceito de antemão e internalizado pelos brasileiros em geral. Nota-se, portanto, que a novela utiliza ideias que já têm respaldo entre os telespectadores: ela não impõe simplesmente a visão de mundo dos autores. A força da construção possibilitada pela novela está exatamente no caráter de obra aberta: o Rio de Janeiro apresentado em “Paraíso Tropical” é uma mistura da visão dos autores com a visão que eles imaginam que o público tem, e a imagem que se constrói do Rio e do Brasil é um reforço da imagem que o telespectador já tinha antes da novela. Para discutir sobre as paisagens, há uma cena em especial que aponta uma grande diferença e vantagem do Rio sobre qualquer outra cidade do Brasil e do mundo. No capítulo 77, exibido dia 1° de junho de 2007, Paula e Daniel passeiam de carro entre as praias do Leblon e de Ipanema. Eles conversam: Paula: Eu não sabia que você gostava de dirigir tanto assim... Daniel: Nossa eu adoro. Quase não dá tempo, mas quando dá, é o que mais me relaxa. Saio de carro, assim, sabe, não penso em nada, fico só olhando a paisagem, é demais. Paula: Também, essa cidade é tão linda... Daniel: Não é? A estrada do Joá, as praias... a lagoa... a Niemeyer... essa cidade é demais! Que outra cidade do mundo você tem assim, tanta beleza ao alcance das mãos? Sem precisar pegar uma, duas horas de estrada, sabe? Isso faz parte do nosso dia a dia, é o que eu mais gosto. Outra fala que exalta a beleza do Rio é de Ana Luíza. Ela organiza um passeio de barco para ela e Antenor com um grupo de empresários suecos pela baía de Guanabara e diz: “Os estrangeiros ficam encantados com a nossa paisagem. Na hora do pôr do Sol, então, vocês precisam acreditar, é a baía mais linda do mundo!” A ideia de que o Rio une cidade grande e natureza exuberante “ao alcance das mãos” está clara na fala de Daniel. Retomando as imagens exploradas pela novela, as paisagens aéreas mais exibidas durante a novela foram as da Zona Sul, sobretudo Copacabana. Normalmente, as imagens mostravam os prédios da Avenida Atlântica com a praia e o mar à frente e os morros ao fundo – sem favelas. Contudo, não era apenas Copacabana que aparecia enquanto paisagem. Muitas das imagens aéreas diurnas começavam do Cristo, Corcovado, passando pela lagoa Rodrigo de Freitas e chegando a Copacabana, com a música “Samba do Avião”, interpretada por Milton Nascimento. Outras vezes as imagens eram das praias de Ipanema e do Leblon por cima, com a lagoa ao fundo. Outra opção era a visão aérea da Gávea em direção ao Leblon, depois para Copacabana. Havia também paisagens noturnas da lagoa. Pouquíssimas vezes o início da Barra da Tijuca, na saída da Estrada do Joá foi mostrado como paisagem. Como cená-

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rio de algumas cenas, além de Copacabana, apareceram os bairros de Ipanema, Botafogo, Lapa e Barra da Tijuca. Percebe-se que a Zona Sul é a mais privilegiada, ainda que a Barra seja lembrada, mas sempre como um local distante. Nas imagens da Zona Sul, que também são as mais divulgadas da cidade, não há paisagens só com natureza: estão presentes muitos prédios, ruas, carros, ônibus. Por mais que a natureza seja exuberante, ela nunca aparece sozinha. Mesmo na saída da Estrada do Joá, há uma ponte sobre o canal da Barra. Todavia, por mais que muitas construções apareçam entremeadas à natureza, as favelas não aparecem na paisagem, ou, pelo menos, elas não são identificáveis. A favela aparece em apenas três momentos em toda a novela: a primeira vez, na chegada de Bebel ao Rio, em que uma tomada aérea se aproxima dos prédios da Avenida Atlântica e é possível ver algumas casas características de favelas – construções de tijolo sem acabamento – por detrás dos prédios. A segunda aparição é quando Bebel se hospeda na casa de Tatiana, depois de uma briga com Jader. Tati mora em uma favela longe de Copacabana (não se diz o nome do local) onde as casas não têm acabamento por fora e a ladeira é de terra batida. A terceira vez é quando Lúcia visita Tatiana pedir que ela deponha na polícia a favor de Mateus, acusado injustamente de roubar um barco. Lúcia chega à noite de táxi na favela. Não há asfalto; o taxista que leva Lúcia só vai até o início da favela e se nega a ir adiante; dois rapazes perguntam a Lúcia o que ela faz lá, mas ela os convence que quer falar sobre trabalho com Tati e eles lhe mostram a casa certa. Por fora, a casa é mal-acabada, está só no tijolo; por dentro ela é pequena, mas com acabamento e decoração simples. Depois de rápida conversa com a mãe de Tatiana, Lúcia vai embora acompanhada pelo irmão mais novo de Tati. Além do Rio, outros lugares são cenários de uma pequena parte da trama de “Paraíso Tropical”: as fictícias Marapuã e Pedra Bonita, na Bahia, um resort fictício na Floresta Amazônica no estado de Rondônia e também Paraty, onde Antenor tem uma casa. Como já foi explicitado, as cenas de Pedra Bonita e Marapuã foram gravadas no litoral da Bahia e de Pernambuco. Para as pouquíssimas cenas no resort na floresta amazônica, não há dados. Não há confirmação tampouco se as cenas de Paraty eram gravadas de fato na própria cidade. De qualquer forma, esses lugares aparecem muito pouco ao longo da novela. No máximo, ajudam a completar que não só no Rio de Janeiro a natureza é bela e agraciou outras regiões do Brasil com lindas paisagens, talvez as mais lindas do mundo, com clima ensolarado – as paisagens diurnas são sempre de lindos dias de sol – ou seja, um paraíso tropical de fato. No entanto, apenas o Rio tem a capacidade de ser este centro urbano desenvolvido, onde a vida acontece, onde a civilização está presente, onde a cultura é efervescente e, ainda assim, a natureza é também tão ou até mais exuberante, considerando a maior exibição das paisagens cariocas e o grande número de elogios que a cidade recebeu dos personagens da novela. A cidade do Rio de Janeiro contempla os dois lados do Brasil: o paraíso tropical com o Brasil urbano e moderno, luxuoso, glamoroso. Os outros cenários são quase uma fuga da civilização, enquanto o Rio foi durante muitos anos – desde a chegada da Família Real, em 1808, a ligação do Brasil com a civilização. Enfim, toda construção é uma escolha. Assim, pelas paisagens, o ponto

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Novela “Paraíso Tropical”

de vista escolhido para apresentar o Rio foi o de uma cidade privilegiada porque consegue conciliar a paisagem tropical com o urbano, moderno e civilizado; a construção do paraíso tropical levou em conta as paisagens de alguns bairros da Zona Sul, mais especificamente de Copacabana, com as favelas eliminadas dos morros.

Conclusão Pode-se dizer, portanto, que a novela “Paraíso Tropical” apresenta uma trama e situações nas quais as imagens ou os personagens ajudam a construir uma imagem de Copacabana, do Rio de Janeiro e do Brasil. Alguns estereótipos são apropriados pela novela, associados a certas passagens, e expõem uma imagem possível da capital carioca e do país: onde há luxo, mas também simplicidade e informalidade; onde as paisagens são deslumbrantes, sobretudo no Rio, cidade na qual a natureza e o grande centro urbano estão justapostos de maneira aparentemente harmônica; onde a beleza das paisagens e a sensualidade das pessoas é algo natural; em que, principalmente, o Rio é apresentado como cidade onde não só a conciliação do urbano com a natureza é possível, como o relacionamento entre o luxo e a prostituição, as camadas médias e a classe alta também o é, e que o sonho da ascensão social até pode ser facilitado pelas justaposições características do bairro de Copacabana no Rio, mas também pode ser uma grande ilusão – o que ajuda a “colar” a novela à vida real, dando-lhe maior verossimilhança. O Rio tem essa magia de ser a cidade que, além de linda, proporciona a convivência e o relacionamento – nem sempre pacífico – com grandes doses de conciliação e mistura dos diversos grupos que ali estão estabelecidos. A justaposição, a mistura, a convivência razoavelmente harmônica entre pessoas de origens e classes sociais diferentes, a conciliação entre “moderno” e “tradicional” e, finalmente, a cidade urbana ao meio de uma natureza exuberante fazem de Copacabana, e por extensão, da cidade do Rio de Janeiro, um cenário privilegiado para apresentar uma construção de identidade nacional que está de acordo com a percepção do Brasil enquanto um país diverso, plural, urbano e tropical.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA. Heloísa Buarque de. Telenovela, consumo e gênero. São Paulo, EDUSC ANPOCS, 2003. ANDERSON, Benedict. Imagined communities. Reflections on the origin and spread of nationalism. Londres/Nova York: Verso, 1998. BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1973.

Daniela Stocco

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COUTINHO, Monica. Telenovela e texto cultural: análise antropológica de um gênero em construção. Rio de Janeiro, PPGAS, 1993. DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro; Rocco,1994. . Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1990. ECO, Roberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 2000. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Ed. Global, 2003. HAMBURGER, Esther. O Brasil antenado. A sociedade da novela. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2002. LEAL, Ondina Fachel. A leitura social da novela das oito. Petrópolis: Vozes, 1986. MARTIN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. MICELI, Sergio. A noite da madrinha e outros ensaios sobre o éter nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. SILVA, Adriano Rosa da. Rio de Janeiro cidade alma: o relato de uma construção simbólica. Dissertação de mestrado UFRJ/IFCS/PPGSA, Rio de Janeiro 1995. VELHO, Gilberto. A utopia urbana. Um estudo de antropologia social. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar/UFRJ, 1995. VILLAS BÔAS, Glaucia. Mudança provocada. Passado e futuro no pensamento social brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2006. Artigos na internet: CARVALHO, José Murilo de. O motivo edênico no imaginário social brasileiro. Rev. Bras. Ci. Soc. [online]. 1998, vol. 13, nº 38 [citado 2009-03-05]. Disponível em: . Acesso em 29/01/2009 Depoimento de Gilberto Braga para o site Memória Globo. Disponível em: . Acesso em 29/01/2009.

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Novela “Paraíso Tropical”

PARA CITAR ESSE ARTIGO STOCCO, Daniela. Novela “Paraíso Tropical”: construção do Rio e do Brasil. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 244 - 265. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa. Recebido em 26 de agosto de 2011. Aprovado em 13 de abril de 2012.

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por Ana Gabriela Morim André Demarchi Maria Raquel Passos Lima Suiá Omim

Entrevista com Nora Bateson

UMA CONVERSA SOBRE A ECOLOGIA DA MENTE Os autores da entrevista agradecem especialmente a Patrícia Monte-Mór por ter possibilitado o encontro com Nora Bateson, e a Martinha Arruda, pela sua presença e suporte durante a entrevista e também pela transcrição e tradução deste texto. Agradecem ainda a Diego Madi Dias, Octavio Bonet e Tatiana Bacal.

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Em uma manhã chuvosa no Rio de Janeiro, na sala de conveniência de um hotel do bairro do Flamengo, encontramos Nora Bateson para uma conversa. Poucos dias antes, Nora havia apresentado ao público brasileiro seu filme An ecology of mind (2011), como destaque na programação da XV Mostra Internacional do Filme Etnográfico (2011). Durante a entrevista Nora falou sobre as escolhas cinematográficas que envolveram a concepção do filme, este último uma homenagem declarada à atualidade do pensamento e da diversificada obra de seu pai, Gregory Bateson, pensador alheio a rótulos, que transitou livremente “entre” a biologia, antropologia, psiquiatria, cibernética e epistemologia.

1. Estas linhas estão baseadas no texto “director biography” presente no sítio do filme.

2. Não por acaso esses encontros foram intitulados “Mecanismos de Feedbacks e Sistemas Circulares de Causação nos Sistemas Biológicos e Sociais”.

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Entrevista com Nora Bateson

Além do background intelectual herdado do pai - que ela propaga em seu filme e em palestras e workshops pelo mundo afora - Nora Bateson possui dupla formação. Como produtora de mídia, ela se dedicou a estudos sobre produções cinematográficas no Sudeste Asiático, pensadas a partir de uma perspectiva intercultural, e também a produções e pesquisas para documentários e produtos culturais de mídia digital. Por outro lado, como educadora, Nora produz currículos educacionais para escolas dos Estados Unidos, mais especificamente, do Norte da Califórnia, enfatizando a integração entre autoconhecimento, sistemas de relações, justiça social, mitologia, ambientalismo e educação sexual; através de metodologias que apresentem como princípios básicos responsabilidade, interconectividade, avaliação e evolução pessoal1. Seu filme, narrado em primeira pessoa, é na verdade um relato imagético e textual de uma história pessoal ou, como aponta o subtítulo, um retrato de Bateson composto (nos dois sentidos da palavra) pela filha em uma relação afetiva para com o pai e suas inseparáveis ideias e conceitos sobre o mundo, a mente e a natureza, bem como para com a dignidade intelectual que Bateson devotava às crianças, adolescentes e, mesmo, aos seus alunos. No fundo, e de modo muito simples (o que não necessariamente quer dizer simplório ou superficial, como pode parecer), o filme trata de como uma criança pode “aprender a aprender” com seu pai. Neste sentido, An ecology of mind não é apenas um filme sobre as teorias e conceitos da obra de Bateson. Ele é também uma tradução afetiva e emocional da interação entre a filha, o pai e sua obra.

Difícil imaginar nos dias atuais que antes do advento das redes sociais, dos facebooks e twitters e do já quase invisível orkut, antes mesmo dos e-mails, das salas de bate papo e das mensagens instantâneas do ICQ e do MSN; enfim, é difícil imaginar que antes mesmo do advento da internet e até dos computadores existia uma coisa chamada cibernética. Essa coisa, que veio receber essa alcunha tempos depois, foi germinada durante as chamadas “conferências Macy”2 (financiadas pela Fundação Josiah Macy Jr.), um grupo de discussão e pensamento realizado nos Estados Unidos entre os anos de 1946 e 1953, e do qual Bateson era um dos principais personagens em conjunto com a também

antropóloga Margaret Mead, os matemáticos Norbert Wiener e John Von Neumann, e muitos outros cientistas das mais variadas especialidades. Se dali surgiu a cibernética, “uma ciência desenvolvida para descrever processos acontecendo em sistemas complexos”3, da cibernética surgiram muitas outras coisas: “o que saiu daquele grupo foi o tronco da árvore que se tornou os computadores e a internet e tudo mais”4.

3. Fala de Mary Catherine Bateson durante o filme An ecology of Mind (2011), de Nora Bateson.

4. Fala de Tim Keanini durante o filme An ecology of Mind (2011), de Nora Bateson.

A história é sobre o homem que perguntou a seu computador: “Você computa que algum dia será capaz de pensar como um ser humano?” O computador trabalhou na pergunta e finalmente imprimiu a resposta. No pedaço de papel estava impresso, abre aspas, Isso me lembra uma história, fecha aspas. [risos] Gregory Bateson

Vale a pena mencionar aqui o fato de que muitas das ideias desenvolvidas nesses encontros já estavam esboçadas em Naven, experimento etnográfico de Bateson entre os Iatmul da Nova Guiné, publicado em 19365. Tendo como base uma série de fatos coletados na Nova Guiné, em especial a análise do comportamento ritual naven que dá nome ao livro, o autor desenvolve a noção de cismogênese, “criação da separação”, ou como é definida pelo autor “um processo de diferenciação nas normas de comportamento individual, resultante da interação cumulativa dos indivíduos” 6. O que pressupõe uma dinâmica cíclica e complexa, não linear, que combina simultaneamente tendências agregadoras e desagregadoras. A noção de cismogênese reverbera em muitas das discussões posteriores de Bateson7 – especialmente a cibernética, na qual é central o princípio de feedback ou “retroalimentação”, condição básica dos sistemas auto-regulados – e passa a ser explorada na compreensão mais ampla dos fenômenos biológicos e sociais, a partir das conferências Macy8. Estamos de volta ao surgimento dos computadores, da internet e de suas ferramentas de interação.

Não podemos saber o que Bateson pensaria sobre as redes sociais e a internet. Talvez elas sejam exemplos atuais do que ele chamou de ecologia da mente, ou mesmo das relações entre várias mentes estendidas em múltiplas conexões de um vasto sistema complexo. Tais conexões, diria Bateson, extrapolariam os limites de nosso cérebro. Se “o mapa não é o território”9, a mente não é o cérebro. Por isso, talvez, a internet seja a própria manifestação de um vasto mapa mental que cruza transversalmente, por ângulos diversos, nossos corpos humanos. Mas esta ecologia da mente implica conexões não apenas entre humanos, mas entre estes, e os bits, os bytes, as teclas e os monitores, entre perfis,

5. BATESON, Gregory. Naven. Um esboço dos problemas sugeridos por um retrato compósito, realizado a partir de três perspectivas, da cultura de uma tribo da Nova Guiné. Tradução: Magda Lopes. 2º. ed. São Paulo: EDUSP, 2006 [1936]. 6. Op. cit.: pg. 223. 7. Remetemos aqui o leitor ao famoso epílogo (1958) da segunda edição de Naven, onde Bateson retoma as premissas, abordagens e conceitos apresentados no livro a partir do arcabouço teórico e multidisciplinar da cibernética. Para uma leitura instigante da trajetória de Bateson e do livro, sugerimos a apresentação de Amir Geiger presente na recém-lançada edição Brasileira de Naven, cuja referência está citadza acima. 8. Não por acaso os encontros foram intitulados “Mecanismos de Feedbacks e Sistemas Circulares de Causação nos Sistemas Biológicos e Sociais”. 9. BATESON, Gregory. “A theory of play and fantasy”. In: Steps to an ecology of mind. London/San Francisco/Scranton/Toronto: Chadler Publishing Company, 1972.a

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10. Fala de Bateson durante o filme An ecology of Mind (2011), de Nora Bateson.

11. VELHO, Octávio. De Bateson a Ingold: Passos na Constituição de um Paradigma Ecológico. Mana, 7(2): 133-140), 2001.

ferramentas de curtição e compartilhamento e os variados contextos (frames) em que eles se conectam. Os humanos conectados às redes informam, comunicam, controlam e recriam sistemas de relações. Mas quais seriam os ângulos das relações entre os bytes eles mesmos, e as informações geradas, transmitidas, transformadas, obtidas e negadas pelos objetos técnicos, máquinas e periféricos que nos cercam em nossas vidas telepresenciais? Nós as ignoramos, tal como as brincadeiras dos golfinhos e das lontras, visualizadas com escrutínio pelos participantes das referidas conferências, ou mesmo as relações entre diferentes árvores de uma floresta e os infindáveis organismos vivos que as circundam e as fazem viver. Mais do que isto, nós as ignoramos em relação a nós mesmos. Este comportamento humano demasiado humano, diria Bateson, está no cerne do comportamento destrutivo dos seres humanos para com outros sistemas ecológicos. A esse respeito, Bateson se pergunta: “O que há em nossa maneira de perceber, que nos faz não enxergar as interdependências delicadas em um sistema ecológico, que dão a ele sua integridade? Nós não as vemos, e, por esse motivo, nós as quebramos”10.

Bateson talvez diria que uma das respostas possíveis para a pergunta acima fosse uma questão de “aprender a aprender”. Não por acaso esse foi um tema presente em nossa conversa com Nora. Essa expressão, tão em voga nos discursos pedagógicos contemporâneos, já quase massificada pelas “dinâmicas de grupo”, recebe de Nora um tratamento especial em seu filme, de tal forma que ela se coloca desde o início da película como do ponto de vista de quem está aprendendo a aprender com Bateson. Mais interessante contudo é sua afirmação (durante o filme e a entrevista) de que o próprio Bateson estava o tempo todo “aprendendo a aprender”. Mas afinal de contas, como aprender a aprender? Ora, a epistemologia construída por Bateson, isso que agora pode ser denominado “paradigma ecológico”11, previa uma outra forma de compreensão do mundo, sem necessariamente compartimentalizá-lo em disciplinas autônomas. Como disse ele em uma de suas palestras resgatadas pelo filme de Nora: Isto é mais do que um modismo, está inculcado pelas nossas grandes universidades, que acreditam que haja algo como a psicologia, que é diferente da sociologia, e algo como a antropologia, que é diferente das duas, e algo como a estética ou crítica de arte, que é diferente das duas, de todas as três, o que seja. E que o mundo é feito de pedaços separáveis de conhecimento nos quais, se você fosse um estudante, poderia ser examinado por uma série de questões desconexas, chamadas de questionários de verdadeiro ou falso. O primeiro ponto que eu quero passar a vocês é que o mundo não é assim; mesmo! Ou, sejamos mais educados: o mundo no qual eu vivo não é de forma alguma assim, e quanto a você é da sua conta viver no mundo que você quiser.

Qual seria afinal o mundo de Bateson? Talvez fosse um mundo em que não houvesse oposição entre natureza e cultura, biológico e social, meio ambiente e sociedade. Não se trata de isolar frames básicos de significados ou províncias ontológicas, mas de experimentar um mundo constituído por redes porosas de construções flexíveis. Um mundo, enfim, sem verdadeiro ou falso, repleto de

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mensagens complexas, em que seus indícios são reconhecidos enquanto sinais ambíguos. A atitude de Bateson em seu enquadramento do estudante, neste pequeno frame do filme de Nora, é traduzida de forma clara e, mesmo límpida por Otávio Velho. No ensaio já referido, basilar para uma reaproximação da antropologia feita no Brasil para com a obra de Bateson, ele afirma: A escolha por um dos lados (oposição ou não entre natureza e cultura) não é puramente objetiva, pois depende de inúmeros fatores em que o social e individual se imbricam um no outro. E essa escolha é, de certa forma, política, por referir-se a modos de habitar o mundo, e não simplesmente a representações12.

12. Op. cit., pg. 136; grifo no original.

Acho que tenho lido Alice demais. [risos] Vocês lembram de quando eles saem [risos] de ter nadado nas lágrimas da Alice, ela e todos os animais..., ela tenta secá-los lendo história para eles, que ela acha ser o material mais seco que ela pode produzir. E chega à frase: “O arcebispo achou prudente...” O pato retruca: “Achou o que prudente?” “Uma coisa”, disse Alice. [pausa] “Uma coisa, para mim”, disse o pato, “normalmente é um sapo ou uma minhoca.” [risos]. Gregory Bateson

Por quais ângulos Bateson olhava o mundo? Como era este mundo sem verdadeiro ou falso, sem escola, teses e diplomas de doutorado e sem, enfim, monólogos intermináveis sobre disciplinas específicas? Como seria o mundo ao inverso, no espelho diverso de Alice? Na entrevista que se segue (e também no filme), Nora nos apresenta um pouco desse mundo, desses ângulos, desses “inúmeros fatores” que, como afirma Velho, fazem imbricar-se um no outro, o social, o natural, o afetivo e o cognitivo e fazem também emergir a suposição de que antes de escolher entre verdadeiro ou falso, deve-se aprender a aprender. Mas afinal, o que é mesmo apender a aprender?

Que esta pedagogia ecológica da mente seja necessariamente contrária às formas como as instituições escolares e acadêmicas produzem e transmitem conhecimento, isto está explícito na forma como o próprio Bateson lidava com a educação da filha, algo que Nora nos conta na entrevista, mas que não revelamos aqui, deixando que o leitor o descubra, ao sabor do vento.

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Revista Enfoques - A relação entre pai e filha é essencial no seu filme. Como era a relação entre vocês dois? Que lembranças da sua infância você tem do seu pai? Você percebe ao longo dessa trajetória o momento em que o Bateson pai se transforma no Bateson pensador? Nora Bateson - Nunca houve um “turning point”, uma virada do Bateson pai para o grande pensador, porque ele era uma figura tão pública que, eu, como criança, sabia que ele era um grande pensador. Ele gostava de brincar com ideias, até comigo. Como sabemos, alguns pais jogam beisebol com seus filhos e ele gostava de jogar com ideias e ir para a natureza junto comigo, olhar as salamandras ou a vida existente debaixo de um tronco de árvore e falar sobre isso... Então, nunca houve uma guinada, isto era apenas uma parte natural de nossa relação. Ontem [durante a sessão de debate após o filme], estávamos conversando sobre a maneira como ele agia, o jeito dele. Ele era uma pessoa enorme, de mais de 2 metros de altura, que interagia muito e tinha uma grande personalidade. Vivia cercado de pessoas que achavam que ele era realmente importante. Poderia ter sido muito intimidante, para uma criança, viver perto de alguém assim, porém ele era completamente abarcante, incluía a mim e às minhas ideias e às ideias de outras crianças. Ele valorizava as ideias e o pensamento das pessoas que tinham outro contexto mental. Portanto, para ele, só pelo fato de eu ser criança, eu ainda não possuía limitações, nem de educação, nem da cultura dos adultos, você sabe, a mente de uma criança é muito, muito diferente. No princípio de seu livro Steps to an Ecology of Mind13 e também no final do livro Mind and Nature14, existem aqueles Think of Metalogues, e os Metalogues são conversas entre o pai e a filha, e são completamente ficcionalizadas, mas o contato é realmente iluminador, porque não é por acaso, mas é uma conversa entre pai e filha, entre as gerações, da mesma maneira que poderia ter sido uma conversa entre duas culturas, ou entre duas profissões. Porém, a parte importante é que a criança e o metalogue representam uma mente aberta, de forma que as perguntas feitas pela criança, as dúvidas que viriam a partir de uma compreensão diferente do material, são talvez mais inocentes, mais claras e menos contaminadas pelo estigma cultural.

13. BATESON, Gregory. Steps to an ecology of mind. London/ San Francisco/Scranton/Toronto: Chadler Publishing Company, 1972.

14. BATESON, Gregory. Mind and Nature. A necessary Unity. Toronto-New York: Bantam Books, 1979. [Publicado em português com o título: Mente e Natureza: uma unidade necessária. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986.]

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Revista Enfoques - Você se referiu à essa forma discursiva criada por Bateson para transmitir suas ideias, os “metalogues”. No seu filme se ouve em diversos momentos Bateson e uma criança conversando. Parece ser você quando pequena, não? Esses diálogos do filme foram inspirados nos “metalogues” do livro? Nora Bateson - Sim, sou eu. Mas aquilo não é um Metalogue, éramos só nós conversando, apenas uma conversa natural. Revista Enfoques - Um diálogo... Nora Bateson - Sim apenas um diálogo. Mas, nessas cenas é possível ver como os Metalogues surgiram. Era simplesmente natural. A maneira como falávamos um com o outro. Eu amo esses pequenos diálogos, porque a maioria das pessoas não conversam umas com as outras desta maneira. Não se fazem perguntas às crianças com uma verdadeira intenção de descobrir o que elas pensam. Então existem esses conceitos sobre os quais temos enorme bagagem, mas nos esquecemos de quanta bagagem temos. E se você perguntar a uma criança, você ouve uma conclusão, você obtém uma resposta.

Gregory: Ok, eu gostaria de dar esse grande salto, que é o da pergunta sobre “como você pensa?” Nora: Eu? G: No todo. Como se dá o pensamento? [...?...]— N: No cérebro, dentro da cabeça. G: Essa pode ser a parte que o realiza, mas não é o “como”.

Revista Enfoques - Um dos principais argumentos do filme é o modo como Bateson formulou a ideia de aprender a aprender. Você poderia nos contar o que aprendeu com ele, ou o que aprendeu a aprender com ele? Nora Bateson - Como adultos, somos modelos o tempo todo, com nosso comportamento, para as pessoas em torno de nós, mas especialmente para as crianças, e é interessante para mim ver que tantos adultos sentem que têm que se comportar como se soubessem tudo o que as crianças deveriam querer aprender. Para mim, isso parece muita hipocrisia. Se você quer que seus filhos aprendam alguma coisa, a melhor maneira de fazer com que aprendam é mostrar a eles que você está aprendendo, certo? Porém, de algum modo, nós perdemos isto, ou nunca o tivemos, ou temos uma ideia de nossa autoridade e respeito que se contrapõe a este tipo de comportamento. Mas ele, Bateson, não fazia isto, ele estava muito interessado e sempre expandindo os conceitos de sua compreensão e observando as coisas a partir de diferentes ângulos e pensando sobre as coisas de novas maneiras. Então, ele era curioso, hones-

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tamente, verdadeiramente e profundamente curioso. Autenticamente, não de uma maneira falsa ou de alguma forma teatral. Ele tinha uma verdadeira curiosidade e nós sabemos quando alguém está simplesmente nos escutando e quando estão nos escutando e aprendendo com aquilo que estão escutando. É um tipo de escuta totalmente diferente. E podemos sentir isso. Então, quando as pessoas dizem: “escutem seus filhos”, a gente meio que tem um jeito de escutar que não é realmente tão honesto, é condescendente, paternalista! E ele não fazia isto, porque ele era curioso de verdade. Então, quando eu estava pensando, ele aprendia com aquilo, ou quando eu o via observando alguma coisa ou falando com outra pessoa, muitas vezes durante o dia, eu conseguia ver que ele estava aprendendo algo. E é incrível para uma criança testemunhar isto, porque é assim que acontece. É isto que queremos saber, quando somos crianças, ou seja, como isto que chamamos pensamento acontece? Como é que se faz isto? De que se trata tudo isso? Portanto, aprender a aprender foi uma grande parte de nossa relação.

Provavelmente te ensinaram que você tem cinco dedos. Isso está totalmente incorreto. Essa é a maneira pela qual a linguagem subdivide as coisas em coisas. A verdade biológica provavelmente é a de que no crescimento dessa coisa na sua embriologia, da qual você mal se lembra, o que era importante não era o cinco, mas as quatro relações entre pares de dedos. Gregory Bateson

Revista Enfoques - E como ele transmitia conhecimentos? Nora Bateson - Esta é uma pergunta interessante. Porque o estilo dele de ensinar era absolutamente libertador ou completamente frustrante. Porque ele nunca dizia o que você deveria estar aprendendo. Isto era você que decidia, você tinha que descobrir. Então, os alunos dele diziam frequentemente: “Mas o que vai cair na prova?” E supõe-se que certa indução deva acontecer. Ele então diria muitas coisas a você ou a mim, mas, a questão, a mensagem do que ele estava dizendo era eu mesma que tinha que descobrir, ou seus alunos tinham que descobrir. Portanto, ele não dava instruções explícitas “é assim que você deve pensar sobre isso.” Nunca. Frequentemente, quando ele estava falando ou quando eu assistia a seus vídeos, suas palestras, eu notava que ele começava a desenvolver um ponto e parava para pensar uns segundos. Se você fosse uma aluna, anotando tudo, você pensaria: “ele está quase para dizer o que é”. Ele ia até a beiradinha, quase chegando ao ponto e virava. E voltava partindo de outra direção e aí você pensava “Ah, agora ele vai dizer qual é o ponto”. Não. Ele partia novamente de outra direção e voltava, como um bar-

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co, ao sabor do vento, mas ele fazia a volta completa em torno do assunto, até que terminava a palestra. E ele nunca revelava o que era aquele ponto, mas te dava uma localização para colocar aquele ponto. E este é o ponto (risos). Revista Enfoques - Como as ideias de seu pai influenciaram sua abordagem e sua prática educativa? Nora Bateson - Sobre meus próprios filhos? Bom, esta é uma questão permanente. (Risos) Quando eu era muito pequena, meu pai me levava ao ponto do ônibus. Eu tinha sete, oito anos, no primeiro ou segundo ano do primário, algo assim. E quando eu entrava no ônibus, ele chorava e dizia (para minha mãe) “eles vão estragar a mente dela”. Como éramos crianças, vocês sabem, estávamos bem interessadas. Eu sabia que ele não aprovava o regime e o currículo oferecidos pela escola e que havia coisas muito mais interessantes acontecendo em casa. Então, no ambiente de casa, o objeto do jogo... (porque tudo era brincadeira, certo?) o objeto do jogo era pensar sobre as coisas de maneiras diferentes e olhar as coisas a partir de diferentes ângulos. Na escola, o objeto do jogo era descobrir o que o/a professor/a queria, e repeti-lo. Estas são duas abordagens muito diferentes. Então, quando eu estava na quarta série primária, voltei para casa e meu pai tinha sido diagnosticado com câncer no pulmão. Um dia, cheguei em casa, vindo da escola, e disse: “Detesto a escola!” E ele disse: “Também detesto, não volte mais”. E eu disse: “Ótimo!” (risos). Então, desde a quarta série, até um ano após a morte de meu pai, eu estive fora do sistema escolar. Não havia naquele tempo nada de escolaridade em casa, não havia programas para crianças fora da escola. Para falar a verdade, acho até que era meio ilegal. Então, esperava-se que tivéssemos aulas diárias, isto e aquilo, mas nunca tivemos. De vez em quando nós nos reuníamos e conversávamos sobre a teoria da matemática e fazíamos uma caminhada... Não havia separação entre o dia e o aprendizado, entre a conversa e a matéria de estudo. Assim sendo, eu nunca senti que estivesse aprendendo nada. Eu não tinha essa experiência de: “agora você vai sentar e aprender.” Então, eu achava que não estávamos fazendo nada, achava que estávamos em férias permanentes. E eu me sentia muito feliz com isto. Eu não tinha planejado, eu estava em férias permanentes e estava aprendendo muito mais. Posso ver isto hoje, mas naquela época eu achava que eram férias mesmo. Portanto, quando eu tive filhos, tentei colocá-los na escola e me senti exatamente da mesma maneira: “Oh não! Eles vão ser transformados em zumbis! (risos) Isto é horrível, como posso salvar meus filhos do sistema educacional?” Tentei, então, diferentes tipos de escolas. Havia uma escola privada, depois um tipo de escola alternativa que vocês não têm aqui, mas são muito experimentais. Tentei a escola Waldorf, que foi a pior!(risos) Então, finalmente, eu os tirei da escola e criei uma educação para eles em casa. Durante dois ou três anos, só dei a eles o que eu realmente sentia que era educação, em sistemas e contextos, e tudo o que eu realmente achava que eles deveriam saber; e isso antes deles chegarem à adolescência, porque quando isto acontece, há toda

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uma pressão social e é muito diferente. E como estávamos viajando, pude dar a eles meus livros preferidos e fazíamos matemática juntos e alguns testes ou ensaios. Quando eles voltaram à escola, estavam 2 anos adiante de sua turma. Portanto, acho que uma boa maneira de ver a educação é pensar que ali, dentro da visão holística, existem linearidades. Dentro do não aprendizado ou pensamento existem linearidades, só que não é a visão completa, do todo. Para mim, o importante era que eles tivessem suficientemente a experiência de olhar para o todo, e que então pudessem utilizar as partes, os pedaços, mas teriam um lugar maior para colocá-los. Eles saberiam que o que estavam aprendendo na escola eram partes de algo maior. Revista Enfoques - Quais foram suas escolhas narrativas para o filme e como essas escolhas se relacionam com os conceitos da obra de Bateson que o filme transmite? Em suma, como apresentar ideias e conceitos através de imagens? Nora Bateson - Penso que todas as imagens retratam ideias. É só uma questão de qual ideia retratar. O filme é sobre conceitos e, entretanto, para mim, o que era importante sobre ele é que, esteticamente e também em termos temáticos, aqueles conceitos não estivessem separados do aspecto pessoal. Frequentemente, ou na verdade a maior parte do tempo, ou mesmo cem por cento do tempo, (risos) temos uma relação com a ciência e a filosofia e a maior parte de nossa academia está realmente separada do aspecto pessoal. Na verdade, o aspecto pessoal é de alguma maneira não profissional e não tem rigor suficiente. Então, eu pensei que, para mim, era importante integrar isto, porque é absolutamente pessoal. Não faz sentido adotar estes conceitos exclusivamente para escrever teses ou fazer pesquisa científica, se eles não existirem em seus ossos, se não forem parte da maneira como você vê a vida e a maneira como você fala com seus filhos. Que sentido isso teria se não fosse assim? Portanto, eu queria realmente que o filme fosse uma integração desses elementos: um pensamento bastante rigoroso na filosofia, bem como na metodologia, que fosse aplicável à vida pessoal. Então, a estética do filme precisava refletir o fato de que estas ideias são úteis em múltiplos contextos. Algumas das imagens estão na natureza, algumas delas são mais pessoais, como as pequenas figuras em animação, ou as duas figuras caminhando, por exemplo, ou algumas das coisas que são muito óbvias, tipo, eu pensando e explorando, buscando exemplos das ideias dele... E eu queria que o filme fosse rigoroso, tanto emocionalmente quanto intelectualmente, ao mesmo tempo que envolvesse a imaginação. Eu buscava atingir essas três partes dos expectadores: intelecto, imaginação e emoção. Revista Enfoques - No filme você utiliza diferentes tipos de imagens como as de arquivo, animação, vídeos feitos em casa e imagens que você produziu exclusivamente para o filme. Você poderia falar sobre essa multiplicidade e sobre o elo que você criou para relacionar todas essas imagens tão diferentes em termos técnicos, tecnológicos e também conceituais?

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Nora Bateson - Primeiramente, gostaria de elucidar um pequeno fato: este filme contém todos os tipos de imagens em movimento que já foram criados na história da cinematografia. Tem imagens da velha câmera de meu pai, Bolleck de manivela 16mm, dos anos 1930, tem imagens de super-8 e de outra 16mm, uma automática 16mm, tem vídeos em preto & branco de ½ polegada dos anos 1970, e tem de ¼ e ¾ de polegada, tem digital e super-8, HV, e de todas as outras, de qualidade cada vez melhor, até uma completamente digital. Portanto, temos uma coleção completa! (risos) Em termos da minha própria fotografia e das imagens que consegui colecionar, eu estava procurando metáforas visuais para as ideias dele e tentando descobrir a melhor maneira de trabalhar com nossa alfabetização visual, porque nós temos realmente um tipo de alfabetização fílmica. Há uma linguagem fílmica, que estamos operando por dentro, no pensamento, na memória. E como utilizar isto para falar das ideias de alguém? Frequentemente, quando terminamos o filme e quando estou com o público, vejo que fica um tipo de linguagem, deixada pela experiência que o público está tendo, bem no finalzinho do filme, um tipo de compreensão conceitual e concentração no que estão fazendo, num lugar onde não temos palavras. Nossa linguagem identifica as coisas. Na verdade, não temos uma linguagem para a inter-relação com o mundo natural. Uma das razões pelas quais é tão difícil conceitualizar, é porque nossa linguagem está sempre nos puxando de volta para as coisas: “ponha a água no copo” (risos). Vocês viram como, nesses casos, tudo tem a ver com as coisas e não com as relações? A fotografia é um modo de começar a usar uma linguagem, a linguagem visual, um caminho que a linguagem verbal realmente não pode percorrer, não pode, não funciona. Em termos de poesia, às vezes, podemos chegar àquelas inter-relações. Entretanto, a Fotografia oferece à linguagem um outro caminho. Revista Enfoques - Gregory Bateson, em conjunto com Margaret Mead, realizou um importante trabalho de fotografia sobre os Balineses (Balinese Character), praticamente inaugurando o campo da antropologia visual. Como era a relação de Bateson com a imagem, o cinema e a fotografia? E como ela influenciou o processo de produção do seu filme? 15. A Biblioteca do Congresso (Library of Congress) está localizada na capital norte-americana, em Washington D.C. Para mais informações acessar o link:

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Entrevista com Nora Bateson

Nora Bateson - Bateson fez cinquenta mil fotografias, que estão na Biblioteca do Congresso15. Há uma espécie de intimidade e metáfora visual que não tem o mesmo tipo de limites da linguagem verbal, especialmente da linguagem verbal acadêmica. Portanto, ele provavelmente sentia que podia dizer mais com imagens. Ele tirou muitas fotos, muitas e belas fotografias. Uma coisa boa sobre fotografia é que você pode vê-la e voltar a olhar para ela em cinco anos ou dois anos ou três meses e ver coisas diferentes. A fotografia não te diz o que pensar. Agora, provavelmente existem pessoas que estudam fotografia e que podem discordar disto. É verdade que existe uma linguagem fotográfica que tem seu próprio conjunto de restrições. Certamente é verdade que quando você aponta sua câmera para algum lugar, isto representa trezentos e cinquenta outros lugares para os quais você não apontou a câmera. Então, é muito subjetivo e isto é uma das peças, o papel do observador que está pre-

sente em Naven, e mesmo antes. Portanto, ele tinha muita clareza de que não havia um registro objetivo que ele pudesse conseguir. Talvez seja por isso que ele tirou o máximo de fotos que ele pôde. Para que pudesse olhar as coisas a partir do maior número de ângulos diferentes que ele conseguisse. E fez isto fora dos meios (das mídias) verbais, dando-lhe todo um outro potencial e possibilidades de uso e de entendimento destas imagens. Revista Enfoques - Você poderia falar sobre a ideia de “frame” (enquadramento), central na obra de Bateson, pensando num elo possível entre este conceito e seu filme? Nora Bateson - Para começo de conversa, uma das formas mais eficazes de examinar a maneira como pensamos é olhar para os “frames” ou para os enquadramentos, ou mesmo para as lentes através dos quais cada um de nós, como indivíduos, percebemos os (e reagimos aos) “frames” dos outros. Então, seu “frame” é diferente do meu “frame”. Há sete bilhões de pessoas neste planeta e há sete bilhões de “frames” ou enquadramentos distintos. Isto nos oferece inúmeras possibilidades de aprendermos uns com os outros, ou de sermos completamente confundidos uns pelos outros. A primeira coisa que isto deveria significar é que nunca se sabe tudo, que não existe uma única resposta certa ou uma maneira única de se observar alguma coisa. Partindo desse princípio encontra-se uma enorme liberdade, e passa-se a olhar as coisas de muitas outras maneiras. E eu realmente queria que isto fosse uma imagem central do filme: tudo partindo do “frame”. Revista Enfoques - Desejamos sanar uma dúvida sobre a trajetória de Gregory Bateson como um personagem singular na história da antropologia. Gostaríamos de saber se “Naven”, foi apresentado como tese de doutorado e se ele foi aceito e defendido como tal? Nora Bateson - Ele jamais escreveu uma tese! Revista Enfoques - Não? Nora Bateson - Não! Ele pensava que era um desperdício absoluto tentar obter um PhD16! (risos); Ele achava que a melhor coisa a fazer era simplesmente buscar aquilo que interessava a ele.

16. PhD é a sigla em inglês para Philosophiæ Doctor, titulação equivalente ao título de Doutorado no Brasil.

Revista Enfoques - Então, ele nunca teve um PhD? Nora Bateson - Não. Deram o título para ele, como o de Doutor Honoris Causa. Mas, ele nunca escreveu uma tese. Você tem que se lembrar de que, na época que ele escreveu o Naven, ele estava com Margaret Mead e ambos estavam escrevendo livros e não havia material nenhum disponível. Não era como agora, em que existem milhares de etnografias e você precisa trabalhar duro para conseguir uma editora que se interesse por isto, ou fazê-lo de alguma outra maneira. (risos) Existem muitas ideias neste livro com as quais ele trabalhava antes mesmo de viver com Margaret Mead. Ele trouxe para sua abordagem antropológica elementos que o pai dele William Bateson estava desenvolvendo na genética e na biologia. Foi muito influenciado também pelos escritos de William Blake,

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mas os trabalhos científicos de seu pai traziam uma contribuição interessante: ele fazia pesquisa sobre a vibração da comunicação entre os genes. Gregory acabou se interessando por isso vamos dizer que em um nível emocional. Ele se preocupava por aquilo que estava sendo quebrado, desconectado. O que o preocupava era uma interdependência muito delicada e as delicadas relações que as criavam. Quando ele via essas relações sendo quebradas, ele ficava perturbado. Então, ele procurava uma maneira de mostrar às pessoas o que elas estavam quebrando, na esperança de que não quebrassem essa relação. Seu envolvimento e seus estudos sobre estas inter-relações e sobre a interdependência eram sua maior alegria. Celebrar como as coisas se juntam e como mudam e se movem e aprendem; e, finalmente comunicar isso.

Da biologia, no começo, à antropologia, aos sistemas de ideias - patologias de sistemas de ideias - e então aos sistemas de ideias que são a forma como todos nós tentamos viver em conjunto. E “todos nós” inclui os animais e as plantas, bem como você e eu. Gregory Bateson

17. William Bateson (1861 – 1926), foi um biólogo que ficou especialmente conhecido pelos desenvolvimentos que propôs para os estudos dos genes e por ter cunhado o termo “genética” .

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Entrevista com Nora Bateson

Revista Enfoques - Como essas concepções herdadas do pai dele, um dos pioneiros dos estudos sobre genética17, foram importantes para a formulação de conceitos como pensamento sistêmico, cibernética e complexidade? Nora Bateson - Em primeiro lugar, é importante reconhecer que não existia tal coisa, um pensamento sistêmico. Não havia uma maneira sistêmica de olhar. É preciso lembrar que isso era antes dessas palavras sequer serem usadas, quer dizer, pré-cibernética, pré-pensamento sistêmico, pré-complexidade, pré-caos, antes de todos esses pensamentos. Neste contexto, não existia um campo do pensamento em que ele pudesse aplicar esses conceitos. Ele ia criando as regras na medida em que avançava. Ele estava realmente se aventurando dentro de um território conceitual. Em sua trajetória acadêmica, posso apenas dizer que ele utilizava as ferramentas da academia para servir aos propósitos de sua pesquisa: juntar de novo o quebra-cabeça do mundo. Ele não servia à academia. Ele jamais ficou em um cargo por mais de dez anos em nenhum lugar onde lecionou. Jamais escreveu uma dissertação. Ele pensava que as disciplinas e a separação das disciplinas eram algo monstruosamente brutal, para toda a noção de como a vida funciona e como as coisas se organizam, seja uma família, ou um lago, ou um sistema politico ou uma floresta, ou uma estrutura cultural. As disciplinas são construídas para serem separadas. Se você pedir a uma universidade para construir uma selva, você vai acabar tendo um departamento de répteis, (risos) um departamento de pássaros, um departamento de árvores e um departamento de águas. Penso que este seja realmente um bom exemplo, pois essa floresta não funcionaria de modo dinâ-

mico e integrado. Contudo, existe um real valor no estudo das partes. Temos que estudar as partes. Não há dúvida de que, no sistema do nosso corpo, não queremos que o coração faça o trabalho dos pulmões, certo? Não queremos que os répteis sejam pássaros em nossas florestas. Queremos que cada um deles seja ele próprio. Então, existem estes papéis individuais, das partes, que são muito importantes para a integração e a interdependência de todo o sistema. Não são importantes por si só, separadamente. Então, o que fazemos com nosso método científico é retirar as coisas fora de seus contextos, mas jamais as colocamos de volta. Portanto, em termos de relações entre as disciplinas, temos um longo caminho a percorrer, talvez nem tão longo, mas sem dúvida um passo radical a ser dado. Porque só de pensarmos sobre isto, sobre o que significa olhar para todo o nosso complexo sistema, a primeira coisa que fazemos é separar uma outra categoria de pensamento sistêmico, como se isto fosse algo diferente. Sempre me preocupei em saber por que a Ecologia é separada da Terapia Familiar e da Economia? Por que está num campo separado de estudo? Não deveria estar. Deveria ser a Ecologia da Terapia Familiar, a Ecologia da Comunicação, a Ecologia da Economia, a Ecologia da..., certo? Porém, de alguma forma isto também se tornou uma disciplina diferente e os sistemas têm a capacidade de fazer isto também. É como uma armadilha. Deveríamos realmente ter cuidado para não cairmos na sedutora ideia de que isto seja algo diferente. Para Gregory, isto não existia. Não existia nada de pensamento sistêmico ou teoria sistêmica. Nunca existiu. Era somente o que era. É muito difícil, perceber isso neste momento da história, no presente. É como olhar antes dos Surrealistas. Antes dos Surrealistas não havia Surrealismo… Então, quando você pensa sobre como aqueles artistas desenvolveram o Surrealismo, foi uma evento incrível que eles compartilharam. Portanto, nós pensamos: “bom, o Bateson estava usando o pensamento sistêmico.” Não. Bateson estava apenas sendo Bateson. Pensamento sistêmico foi o nome que acabamos por conceder a esta atividade, mais adiante no tempo. Uma criança não olha para uma floresta e pensa: “Ah, aí existe Clima, Biologia e existe também Geologia”, certo? A criança simplesmente se move com a floresta, como os surrealistas fizeram, como o Bateson fez também. Revista Enfoques - Você poderia falar sobre o lugar da criatividade e da improvisação nessa outra epistemologia desenvolvida por Bateson? Nora Bateson - Se algum dia vocês estudarem improvisação para teatro ou música, vocês vão aprender duas coisas. A primeira é que para improvisar é preciso muita prática. A improvisação não é aleatória. Ela exige uma incrível disciplina, ocorrendo somente quando se conhece as formas tão verdadeira e profundamente, a tal ponto de não precisar mais pensar sobre elas. Apenas quando essas formas puderem ficar abaixo do nível do pensamento, ou seja, quando estiverem internalizadas, aí sim, torna-se possível se libertar da regra, surgindo, então, a improvisação. O segundo ensinamento sobre a improvisação (e na verdade são três e não dois) é que ela exige uma profunda confiança. Se você for um músico de Jazz e for tocar um solo improvisado, a confiança

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que você precisa ter, nos outros membros da banda, de que vão manter a base e permitir que isto aconteça, tem que ser enorme, porque se você não confiar neles, você não poderá executar o solo. O terceiro elemento consiste em um tipo de escuta muito diferente. É um modo completamente diferente de se relacionar por meio de uma forma de comunicação. E mais ainda, esta forma de escuta é, na verdade, aprendizado. É mais ou menos o que estávamos falando no início dessa conversa, sobre a maneira como Gregory trabalhava com crianças, ou com qualquer pessoa, ou com cachorros, com aquários de peixes e tantos outros seres viventes. Essas formas de comunicação exigem certos estados mentais muito diferentes do estado mental em que se pode estar, por exemplo, para escrever um trabalho de pesquisa. É um tipo diferente de envolvimento. Então, a improvisação é entendida como um padrão evolutivo. O que estamos ensinando a nossas crianças? Penso que ao invés de ensiná-las a descobrir um leque de possíveis respostas, ensinamos a elas apenas como descobrir a resposta certa. Estes limites não concedem espaço para o aprendizado mútuo, amplamente integrado, que pode acontecer dentro de um contexto de improvisação. Isto exige uma interdependência entre cultura, natureza, família, amigos, trabalho, seu corpo, a biologia, etc, exigindo que tudo isso se encaixe e se envolva reciprocamente. Como o envolvimento deve ser integrado, são nossas percepções e classificações que nos impedem de nos envolvermos no processo de improvisação. Vejam só: isto, o que está ao nosso redor, vai continuar a evoluir e se processar, com ou sem a nossa presença (risos). Então, tem a ver com nossa habilidade para percebermos o que está ao nosso redor. Esta habilidade para percebermos estes movimentos evolutivos faz parte daquela epistemologia que possibilita a comunicação com as crianças, os cachorros, os peixes, os corais. Quero dizer, enfim, que não deixemos de apreciar a beleza de todas essas formas de comunicação.

Bom, espero que isto tenha entretido vocês um pouco, que tenha dado a vocês algo no que pensar e espero que tenha feito algo para libertar vocês de pensar em termos materiais e lógicos, quando na realidade vocês estão tentando pensar sobre coisas vivas. Isso é tudo. Gregory Bateson

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Entrevista com Nora Bateson

PARA CITAR ESSE ARTIGO DEMARCHI, A.; LIMA, M. R. P.; MORIM, A. G.; OMIM, S..Uma conversa sobre ecologia da mente: entrevista com Nora Bateson. Enfoques - Revista dos Alunos do PPGSA-UFRJ, v.12(1), junho 2013. [on-line]. pp. 266 - 283. Disponível em: http://issuu.com/revistaenfoquesufrj/docs/vol12_1, acesso em: dd/mm/aaaa.

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Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/ IFCS/ UFRJ) e realiza sua pesquisa entre os Krahô (TO), com foco nas práticas e conhecimentos tradicionais associados às plantas cultivadas, suas dimensões simbólica, mítica e ritual. Pesquisadora do Núcleo de Arte, Imagem e Pesquisa Etnológica (NAIPE-PPGSA-IFCS-UFRJ), é responsável pelo sub-projeto Krahô do Programa de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas (Museu do Índio-FUNAI) e colaboradora do Projeto Etnobiologia, conservação de recursos genéticos e bem estar alimentar no território Krahô (CENARGEN-EMBRAPA).

André Demarchi é Doutorando em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/ IFCS/ UFRJ) e realiza sua pesquisa sobre a arte, ritual e contato interétnico entre os Kayapó, Sul do Pará. Pesquisador do Núcleo de Arte, Imagem e Pesquisa Etnológica (NAIPE-PPGSA-IFCS- UFRJ), é responsável pelo sub-projeto Kayapó do Programa de Documentação de Línguas e Culturas Indígenas (Museu do Índio-FUNAI). Atualmente, é Professor Assistente da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

Maria Raquel Passos Lima é Doutoranda em Antropolo-

OS ORGANIZADORES

Ana Gabriela Morim é Doutoranda em Antropologia pelo

gia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/ IFCS/ UFRJ) e realiza pesquisa etnográfica com catadores de materiais recicláveis na região metropolitana do Rio de Janeiro, enfocando os processos de (re)criação de valor dos objetos a partir das dinâmicas culturais e imagéticas que articulam os domínios do trabalho, da política e da economia nesse universo. Pesquisadora do Núcleo de Experimentações em Etnografia e Imagem (NEXTImagem - PPGSA/ IFCS/ UFRJ) e editora da Revista Enfoques (PPGSA/ UFRJ).

Suiá Omim é Doutoranda em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/ IFCS/ UFRJ) e realiza sua pesquisa sobre a obra do fotógrafo Edson Meirelles - o Acervo Mafuá - uma grande coleção das mais variadas formas do design popular brasileiro encontrado em diversas cidades do país. Pesquisadora do Núcleo de Experimentações em Etnografia e Imagem (NEXTimagem-PGSA- IFCS- UFRJ) e colaboradora da Mostra Internacional do Filme Etnográfico (Interior Produções / NAI - UERJ).

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VOL 12.1 | JUN 2013

ETNOGRAFIA, ARTE E IMAGEM

Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia

PPGSA - IFCS - UFRJ

ISSN 1678 - 1813

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