Etnografia e Emancipação: Desafios Antropológicos na Escola Pública

June 2, 2017 | Autor: Osmundo Pinho | Categoria: Ethnography, Qualitative methodology, Subjectivities, Critical Race Theory, Masculinities
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Etnografia e Emancipação: Desafios Antropológicos na Escola Pública Osmundo Pinho1 “Você já pensou em minha situação?” Edson Gomes, “Samarina”, 1988. Introdução O aqui e agora2 onde nossa voz pode encontrar articulação e sentido é um contexto mergulhado em violência e opressão. A negação de si encontrada na raiz de nossos próprios fundamentos subjetivos é a natureza empírica de nossa situação, definida por essa alienação premente que extrai da carne exaurida do homem negro o espelho pervertido de sua indignidade, impossibilidade, inadequação. Essa é a nossa situação. Você já pensou sobre isso? Como poderíamos nos mesmos, no âmbito de um empreendimento que se pretende ao mesmo tempo crítico/interpretativo e emancipatório, baseado na etnografia e nas distintas modulações e impasses atribuídos e vividos pela prática antropológica, pensar sobre “isso”, sobre essa “situação”? Comprometidos com a revisão críticos dos próprios fundamentos de nossa epistemologia provisória, buscamos um modo de produzir conhecimento, ao mesmo tempo comprometido, situado e atravessado pelas contradições da epistemologia ocidental e do capitalismo racializado heteropatriarcal. E buscamos isso junto aos nossos interlocutores. Gostaria de refletir aqui brevemente sobre e/ou a partir da contingencialidade de nossa pesquisa na Escola Pública em São Felix, Bahia, buscando dar sistematicidade provisória a determinadas dificuldades ou problemas que se colocam muitas vezes em termos práticos e políticos, mas que ganhariam, esperamos, maior alcance crítico e razoabilidade a partir das interconexões teóricas 1

Antropólogo, professor adjunto no Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e no Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia. Email: [email protected] 2 O compromisso com a teoria crítica, do ponto de vista em que o percebo, o “I am where I think” descolonial de Walter Mignolo, é um compromisso com a descolonização, práxis emancipatória para as subjetividades, as agendas políticas, as teorias e epistemologias (Mignolo, 2011). Osmundo Pinho Seminário Interno 1.2 – Cachoeira – 9 de junho de 2016

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e metodológicas que proponho fazer aqui. Levando em conta que o processo de nossa investigação sobre a produção de subjetividades masculinas racializadas, sob os quadros institucionais do Estado e em relação contraditória com o mercado, está em curso, as notas teórico-metodológicas que avanço aqui se fazem no calor da hora e como etapas de uma reflexão in progress sobre o significado do trabalho de campo antropológico e do engajamento crítico de uma antropologia desconfortável com as posições de poder tradicionalmente associadas a epistemologia ocidental ou eurocêntrica. Nesse sentido, e evitando as armadilhas tanto do positivismo vulgar quanto do subjetivismo autocomplacente, propomos refletir sobre nossa prática localizada, em conjunção a uma consideração mais ampla sobre a antropologia crítica ou engajada, levada a efeito por pesquisadores, eles próprios ex-cêntricos com relação a posições de sujeito identificadas com a matriz da supremacia branca global, o patriarcado e a heteronorma. Convém definir minimante - levando em conta que eu próprio já fiz isso em outros lugares (Pinho, 2014), e que os outros membros da equipe estão nesse seminário desenvolvendo isso mais densamente, e sob diversos pontos de vista - esse objeto multifacetado e certamente disputado. Nosso objetivo acadêmico principal é definir a produção da subjetividades masculinas racializadas, ressaltando as categorias e estruturas de sentimento que articulam, de modo problemático e contraditório, os sujeitos com os quais interagimos e as estruturas do Estado e do mercado (Pinho, 2015). Sob o abrigo dessa temática mais geral, outras questões se movem: a dissidência de gênero; o corpo negro; a defasagem do rapazes; as formas subjetivadas da violência; a articulação do pagode como discurso cultural periférico, etc. A unidade de análise, ou o sítio da pesquisa, é o Colégio Estadual Romulo Galvão (CERG), e essas coisas não são exatamente as mesmas, por óbvio, mas coincidem como a superposição de uma cena territorializada e institucional, e porque institucional ofereceria limites “naturais” para a circunscrição dos agentes. E aí, nesse caso, muitos problemas obviamente aparecem. Porque se nosso compromisso é em primeiro lugar com o “ponto de vista nativo”, e ao mesmo tempo com práticas emancipatórias de pesquisa (dialógicas, horizontais e críticas), a

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instituição escolar pode ter eventualmente outros compromissos3. É evidente que temos consciência que a escola não é apenas o aparelho institucional de inculcação da violência simbólica, apesar de se esforçar muito para ser isso. O habitus produzido e sustentado entre as paredes escolares não é apenas aquele imposto como a hexis corporal

e

as

estruturas

cognitivas e morais do Estado (em suas margens); para não falar nos currículos (Bourdieu, 2010; Das & Poole, 2009). Fotografia de Romulo Galvão na sala dos professores do CERG. Foto do autor. 2016.

Sabemos que na escola a agência dos sujeitos e suas contradições, e

o estabelecimento do que Paul Willis chamou de “counter-school culture”, também produz sentidos, rotinas, padrões, laços sociais e representações, para além, independentemente, ou mesmo contra o esforço institucional de submissão (Willis, 1977). Ainda assim, é obvio, o marco institucional e a arbitrariedade do poder de conferir legibilidade que o Estado porta é parâmetro incontornável da experiência subjetiva (Das, 2009). De tal modo que, como ocorre quase sempre, o sítio não é apenas o lugar, sua paisagem e instalações, mas a presença institucional de uma normatividade que busca a tudo abarcar. O confronto entre a normatividade escolar e a inventividade “fugitiva” dos jovens é obviamente lugar de “invenção da cultura” (Harney & Moten, 2013), e entre essas contradições e disputas, nós mesmos, 3

Obviamente que os compromissos institucionais da escola não são necessariamente os mesmos dos professores e funcionários individualmente considerados. E na verdade aproveito para agradecer a colaboração constante dos professores do CERG. Sem isso seria impossível prosseguir com nosso projeto. Osmundo Pinho Seminário Interno 1.2 – Cachoeira – 9 de junho de 2016

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etnógrafos, devemos nos meter. Definindo o que chamaria de uma triangulação entre a instituição escolar, os sujeitos interpelados e os pesquisadores. Nesse estreito espaço devemos criar condições para que: 1) o significado dos processos sociais, do ponto de vista de nossos interlocutores, possa emergir; 2) essa emergência não signifique alienação, mas o mesmo fortalecimento da capacidade crítica dos agentes por meios reflexivos; 3) esses meios reflexivos também possam nos interrogar em termos de nossa “situação”, vis-à-vis a dos jovens. Porque não são apenas “eles” que se transformam no processo, mas “nós” também. Nós todos sujeitos sociais historicamente definidos pelo Estado-Nacional, o capitalismo e a Diáspora africana. Desse modo discutiremos abaixo: 1) a “situação” ou contexto para localização dos sujeitos engajados em ambas as pontas do encontro etnográfico, o observador e o observado; 2) em seguida buscaremos explorar os limites do relativismo etnográfico seu potencial crítico entre a pesquisa ativista e a crítica de cultura; 3) por fim, discutiremos uma instância metodológica específica de nosso projeto os Grupos Focais como experimentos in motion de reflexividade critica no campo; para ao final interrogar as relações entre interpretação e emancipação. O Sujeito Situado “Para o colonizado a objetividade está sempre voltada contra ele”. Frantz Fanon, “Os condenados da Terra”, 1961. Em “Etnografia e Imaginação Histórica” Jean e John Comarrof (2010) estabelecem como a antropologia social desenvolve o seu método, e confronta as questões estabelecidas teoricamente e pela tradição etnográfica anterior, representando na duração de sua própria constituição um equilíbrio dialético entre “fato” e “valor”, o que poderíamos traduzir de outra forma como uma contradição dependente de uma conciliação sem remédio entre objetividade e ideologia. Os fatos da vida social sobre os quais se debruça o antropólogo tem sua mesma objetividade, definida socialmente como obviamente significativa, pela ideologia e pela construção em perspectiva do ponto de vista – valor e categorias - Osmundo Pinho Seminário Interno 1.2 – Cachoeira – 9 de junho de 2016

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dos sujeitos investigados, decalcados pela matriz interpretativa do etnógrafo. Ora, ele próprio é um sujeito de sua própria imaginação política e social, definida por um contexto histórico. Os valores e as marcas da estruturação histórica das sociedades e complexos culturais que definem o mesmo lugar do nativo, como um sujeito, não se ausentam da definição do etnógrafo, como um sujeito. Como os Comarrof insistem, todavia, não se trata de mera comunicação intersubjetiva, ou de um encontro dialógico entre duas posições em um jogo marcado pela “razão comunicativa”, mas da mesma definição de uma zona de contato entre identidades distintas e historicamente situadas. E, nesse caso, a historicidade dos contextos define a historicidade dos sujeitos, articulados em multivalentes espaços, não meramente locais ou globais, mas entremeados de escalas distintas de determinação. A nossa tarefa na antropologia é produzir o sentido sistemático e objetivo de uma prática ou discurso que é fundamentalmente histórico e ideológico – ou definido por relações de poder. Nesse sentido, objetividade só pode ser historicidade. A consideração da historicidade da relação sujeito e objeto, e de sua consequente concretude autocontraditória, implica em questionar a localização do sujeito na Historia, ou em definir quem é, no âmbito de um sistema de significados políticos e históricos o Sujeito de uma prática objetificante, porque as mediações que estabilizam a sua subjetividade implicam na sua projeção como objetificação do outro. Definir ou interpretar o gesto, o mito, o discurso e as categorias ordenadoras da experiência e da reprodução social, é situar esses objetos em “sistemas de signos e de relações de poder”, não de modo meramente automático ou imediato, mas justamente por meio de suas mediações que definem a historicidade da subjetividade e das condições de representações, como a efetividade da objetividade. (Comarrof, 2010). Não parece haver muita alternativa. Como insisto com estudantes que se iniciam na antropologia, como podemos produzir entendimento, uma interpretação, uma leitura uma zona de contato, sem objetificar os nativos ou a produção de suas práticas? Imprimir essa distinção sistemática na prática etnográfica, que produz a coerência da/na interpretação, como uma chave Osmundo Pinho Seminário Interno 1.2 – Cachoeira – 9 de junho de 2016

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para interpelação da disjunção do mundo, implica em repetir essa dualidade entre o sujeito que objetiva e esse outro objetificado. Não existe alternativa para essa politica interpretativa fora dessa ambivalência implacável da dialética fato e valor. Nessa articulação, que é histórica, o sujeito preserva o seu lugar na historia, onde há dupla reflexividade e a antropologia se constitui contra ou sobre si própria.

A armadilha objetificante – e des-historicizante – da ciência ocidental (falo-

logocentrismo)4 - encontra oposição cortante no vigoroso pensamento feminista. Donna Haraway (1988) enfatiza a questão de como o conhecimento científico é realmente montado pelos “rapazes no laboratório”, para enfatizar a metáfora ocidental da visão desencarnada, re-incorporada como metáfora reguladora para a objetividade como uma epistemologia da dominação. Ver de baixo ou assumir uma posição de sujeito subalterna não implica meramente ou automáticamente em um enriquecimento das perspectivas, pela sua implosão, nem o estabelecimento de um compromisso definitivo com a emancipação. Nenhuma identidade subalterna ou exercício de violência ou despossessão produz por isso uma epistemologia crítica, radical ou emancipatória por si só. Como coloca a autora: “Identity, including selfidentity, does not produce science: critical positioning does, that is objectivity” (Haraway, 1988: 586). Ou, o que autora procura requalificar como uma objetifição incorpora um “conhecimento situado”. Entender a situação do conhecemos é dessa forma reconduzir a metáfora dualista da visão para sua fragmentação e fundamentalmente perspectivação, porque apenas de uma perspectiva particular é possível produzir um ponto de vista, uma visão, uma abordagem interpretativa que faça

sentido,

resistindo,

todavia

a

totalização,

e

instituindo

na

multidimensionalidade visões incorporadas e históricas. “Only partial perspective promises objective vision” (idem: 583). Ver “desde baixo” não é dessa forma nãoproblemático. Uma posição de sujeito feminista, negra, queer ou crítica, deve submeter-se ao escrutínio político e contínuo reexame, decodificação, desconstrução. O que eu chamaria de historicização. No lugar da totalização, produzida como a ampliação do escopo da visão incorpórea, a autora insiste na 4

Haraway, 1988; Derrida, 1999. Osmundo Pinho Seminário Interno 1.2 – Cachoeira – 9 de junho de 2016

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fragmentação e na tomada de posição. Ou a “passiontate construcion” de uma perspectiva situada para produzir conhecimento enquadrando sujeitos como objetos em crise, e definido antagonismos fundamentais. Porque a incorporação feminista não esta definida pela fixação de identidade ou pela reficação do próprio corpo como marca de identidade. A mulher, o transgênero, o negro – não são, na perspectiva da produção de um conhecimento situado, o seu próprio corpo, porque este é novamente o objeto, ou está condicionado em uma rede ao mesmo tempo histórica e semiótica definida pelas relações de poder, e são essa relações de poder que devem ser interrogadas na produção de uma posição de sujeito crítica e emancipatória, não o “reified body” da mulher. A reinvindicação essencializada de uma prerrogativa epistemológica, porque ontologicamente presumida e que se faria hipoteticamente em nome da crítica, nada mais faz todavia, nesse sentido, do que obstaculizar a crítica e retomar o corpo, alienado das próprias relações de poder e sentido que o constituem, como um marcador (ideologizado) da diferença.

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Equipe do Brincadeira de Negão no CERG. 2016. Foto do autor. A interrogação crítica sobre sujeitos e sujeição, como fundamento não- essencializado para uma epistemologia critica ou emancipatória deveria reconhecer, como faz Foucault que a própria produção de subjetividades (situadas) é uma objetivação (Foucault, 1982; 2005). Da qual a ciência seria uma operadora central. Foucault clama por uma “economia das relações de poder”, como uma forma de vigilância moderna dos “excessivos poderes da racionalidade política”. Nesse sentido, cabe aos sujeitos insurgentes assumirem o ponto de vista das formas de resistência. Foucault é claro: quando desejo conhecer as formas instituídas para o poder regulado eu deveria olhar para o que escapa, resiste e confronta. No exemplo que dá, para conhecer o que é sanidade, deveríamos interrogar os insanos. A submissão da subjetividade como sua própria produção, faz, como sabemos, do poder uma dimensão constitutiva das agências e das subjetividade, e ao mesmo tempo algo que a isso se lhe opõe. Como numa perspectiva não meramente negativa

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do poder, e nesse sentido uma economia, que distribui recursos e regula fluxos, passagens, define centralidades e mascara interesses particulares como verdades universais. Desse modo, e tal como de certa forma insiste Haraway, Foucault nos adverte: “Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos” (2010: 283). Porque o mesmo poder que odiamos e que nos oprime faz de nós aquilo que nós somos. Uma epistemologia que avance na destruição das oposições antagônicas e reificadas de sujeito e objeto, como a dissimulação de práticas de dominação, deve ser ao mesmo tempo histórica e desconfiar da naturalização da história como subjetividades ontologizadas. E desse ponto de vista se impõe o imperativo da descolonização.

A epistemologia, de uma perspectiva histórica hegemônica, define o sujeito

de uma narrativa “master” sobre o ocidente e sobre a natureza do conhecimento, que coincide na estabilização de uma epistemologia do ponto zero, como define o pensamento decolonial. Como recentemente discutem Bernardino-Costa e Grosfoguel, recapitulando os eixos da articulação crítica presentes nos estudos decoloniais(Bernardino-Costa & Gorsfoguel, 2016), os planos históricos sobrepostos que adquirem determinação nas configurações de poder, recorrentemente conjugam uma versão da modernidade que mascara as fontes de implantação do regime interconectivo do capitalismo global moderno. Não só a narrativa da modernidade, como uma narrativa master, aprisiona os devires históricos, políticos e a subjetividade de inúmeras alteridades sob o fluxo contínuo e arrasador do progresso unilinear europeu, definindo, por exemplo, o berço da modernidade política na Franca e da modernidade industrial na Europa, como dissimula as fontes materiais de sua impostura. Ao arrepio da brutal evidência histórica, de que a modernidade começou em vários lugares e teve diversos palcos sangrentos, o fundamental desses sendo as Américas (Mignolo, 2011). O fato fundante da modernidade, como estrutura histórica de acumulação primitiva, se define pela escravidão e pela conquista colonial. A narrativa que dá sentido e coerência as estruturas conjunturais em pontos multicêntricos, faz assim parte do contexto de dominação que pretende descrever. É aí que os processos de Osmundo Pinho Seminário Interno 1.2 – Cachoeira – 9 de junho de 2016

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descolonização , como enfrentamento das contradições do capitalismo global, não implicam necessariamente no desmonte das categorias forjadas no butim colonial, e na sua manutenção como um lugar e prática efetiva de poder, depreendida como colonialidade de poder (Quijano, 2007). Ora, a colonialidade de poder e a narrativa master da modernização eurocentrada, encontram ponto de referência epistemológica na chamada “hybris do ponto zero”, entronizada como matriz sobredeterminante na Universidade. 5 Santiago Castro-Gomez explica: “Como Dios, el observador observa el mundo desde una plataforma inobservada de observación, con el fin de generar una observación veraz y fuera de toda duda. Como el Dios de la metáfora, la ciencia moderna occidental se sitúa fuera del mundo (en el punto cero) para observar al mundo, pero a la diferencia de Dios, no consigue obtener una mirada orgánica sobre le mundo sino tan solo una mirada analítica”. (2007: 83). Nesse sentido, se impõem o imperativo da descolonização, das subjetividades, da epistemologia, da universidade. Tal descolonização obedeceria a uma lógica de descentralização do lócus da enunciação centrada no que Mignolo chama de egopolítica do conhecimento, reificada como perspectiva que incorpora e transcende um sujeito universal, como no cogito cartesiano. Essa ego-centralidade da epistemologia cartesiana ocidental demanda ela próprio um situacionamento historicamente definido no âmbito de uma revisão ou refundação epistemológica. Como define Foucault em “As Palavras e as Coisas”, a modernidade deu a luz a esse sujeito qua objeto: o “homem”. “Não foi a miséria positiva do homem que produziu violentamente a metafísica. Indubitavelmente a nível das aparência, a modernidade principia quando o ser humano começa a existir”. (1967: 413) E a existência do “homem” é definida pela linguagem ou no interior da linguagem, “morada do ser”. Este humano, “empírico-transcendental”, porque nele se “tomará conhecimento do que torna possível todo o conhecimento “ (Idem: 414). O que já prefigura uma teoria do sujeito que como “um terceiro” termo reconciliasse ou devolvesse ao homem à relação entre o seu corpo e a cultura. Convocado a existir como garantia de um politica das representações, o “homem”, é todavia objeto desta, descobrindo-se 5

Como discutem em sentido algo diverso Harney & Moten 2013. Osmundo Pinho Seminário Interno 1.2 – Cachoeira – 9 de junho de 2016

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então como habitando nessa “coexistência” com as coisas, como aponta Foucault . Ora, para os sujeitos definidos no espaço colonial/escravocrata como “negros” ser “em coexistência com as coisas” é mais do que uma metáfora pós-estrutural, mas significa que os fundamentos de sua materialização ontológica o fazem equivaler à mercadoria, porque a pretendida similaridade intrínseca da relação é o travesti de uma primeira sujeição-objetificação, como a essencial desumanização que faz dos africanos e seus descendentes na diáspora, não-humanos. (Hartman, 1997; Sexton, 2011) A descolonização, como a produção de uma conhecimento situado, conectado as fontes de sua aniquilação mais profunda, como negação codificada pela gramática do capital, o lugar de onde uma posição de sujeito negra poderia ser imposta como uma confrontação, é uma práxis utópica. Assumindo uma posição no âmbito da história das representações, faríamos plataforma para uma desubstancializacão mais profunda, que implodiria a lógica ego-centrada da epistemologia eurocêntrica do ponto zero. Não pela assunção reificada de uma corporeidade auto-representada, mas pela crítica das mediações que são históricas. O que implicaria, por exemplo, para antropologia, a consideração radical da impossibilidade de emergir o “negro” como um sujeito histórico no âmbito da teoria antropológica. Como bem salientam Allen e Jobson, “From its beginnings, anthropology has been confounded by the problem of the Negro” (2016: 131). Isso é verdade para a antropologia americana e mais ainda para antropologia brasileira, que tem em Nina Rodrigues – não por acaso também fundador da medicina legal - um de seus pais fundadores (Correa, 2001) . Essa herança antropológica, e sua associação e mesmo compromisso, não podem ser facilmente esquecidos, ou descartados. Essa tradição implicou na criação do “problema negro” como um problema de teria antropológica, de que poderíamos agora nos libertar. Essa liberação deveria dessa forma ser uma emancipação das amarras politicamente alheias que parecem circunscrever o método antropológico - o que discutiremos mais a frente. Como defendem por fim Allen e Jobson, a dissociação que incide sobre a desconstrução do problema deveria, dessa forma, valer-se da crítica radical

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e decolonial da própria diáspora africana, que põe em cena novos sujeitos - como nós mesmos, os nosso jovens interlocutores ou Edson Gomes - em diferentes contextos históricos, e não a cena armada para o emergir do cogito, como condição de possibilidade do todo conhecimento. Crítica Relativista “People are destroyed very easily. Where is the civilization and where, indeed, is the morality which can afford to destroy so many?” James Baldwin, Report from occupied Territory”, 1966. Publicado em 1986, como resultado de um seminário ocorrido na School of American Research em Santa Fé em 1984, a coletânea de ensaios “Writing Culture: The Poetics and Politics of Ethnography” (Clifford & Marcus, 1986), materializa a crise da representação na antropologia. Em associação tanto com a voga pósmoderna, e sua desconfiança das meta-narrativas e sua ênfase no “significante”, quanto com a emergência de novas posições críticas contra-hegemônicas, no interior do espaço politico de representação ocidental, a antropologia pós-moderna ou crítica, enfatiza o papel constitutivo das relações de poder na prática antropológica e principalmente na produção do texto etnográfico, registro intersubjetivo (ou histórico?) de uma prática desigual e assimétrica de poder, definindo o marco da antropologia contra os quadros gerais do colonialismo europeu (e americano). A súbita consciência da desigualdade estruturante da própria prática de pesquisa, equilibrada no delicado balanço entre objetividade e subjetividade na observação participante, já está, em Malinowski, conduzindo, dessa forma, a ambivalência das conexões que produzem os sujeitos, para dentro da própria prática representacional. Haveria assim uma equacionamento das aporias e iniquidades do colonialismo, com a mesma prática objetificante da antropologia, aprisionada por uma epistemologia cartesiana, mas baseada na experiência concreta de sujeitos sociais concretos. Desse ponto de vista, o caráter ficcional da etnografia deveria ser ressaltado como um modo de por a nu as contradições envolvidas na representação do Outro como uma tradução imperfeita. Do mesmo modo, o texto etnográfico seria Osmundo Pinho Seminário Interno 1.2 – Cachoeira – 9 de junho de 2016

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inerentemente parcial, e um artefato enviesado pelas convenções narrativas, como discutem Clifford e outros (Clifford, 2008; Marcus & Fischer, 1986). As convenções da representação, a cargo da manipulação pelo etnógrafo congelam um processo dinâmico e intersubjetivo entre sujeitos históricos. Por fim, o que aparece representado como uma cultura em termos autocoerentes e baseados na integração funcionalista, ganha nova dimensão, ao se reconhecer a cultura não como um objeto a ser descrito, mas como um campo de contestação, que ao ser representado como um texto adquire propriedades objetivas de integração e coerência, como um efetivo ato de violência epistemológica. Desse modo “the critique of colonialism in the postwar period - ... – has been reinforced by an important process of theorizing about the limits of representation itself” (Clifford, 1986: 10). Como Clifford insiste em outros momentos, a conjugação dessa autoconsciência discursiva da antropologia, como um reconhecimento das relações de poder intrínsecas na epistemologia das ciências sociais, e que dependem da objetificação do mundo social, deveria dar lugar a experimentos no campo da representação, o que parece como polifonia, dialogismo e experimentação. (Clifford, 2008). Como todavia nos lembra Gayatri Spivak: “A restrita violência epistêmica do imperialismo nos dá uma alegoria imperfeita da violência geral que é a possibilidade de uma episteme” (Spivak, 2014: 85). Porque os esforços, mesmo pretensamente emancipatórios, fazem aparecer um sujeito/eu/self como o intelectual europeu “transparente”, como instância estruturante da possibilidade de produzir o sujeito colonial como um Outro homogêneo, que só ganha coerência e legibilidade6 nessa relação de “obliteração assimétrica”. Ora, Charles Hale e outros acadêmicos (Hale, 2008; 2006; James & Gordon, 2008) tem pressionado essa movimento de autoconsciência crítica para além das elucubrações epistemológicas, ou nuances da política das representações, 6

Como discute Das, a relação entre o Estado, sua literatura, o corpus jurídico, digamos assim, e as performances orientadas pelo Estado produzem uma distância, o “paradoxo da ilegibilidade”. Produzindo em casos concretos contradições objetivas entre o aparato jurídico universal e os modos particulares das práticas culturais ou representações da “cultura” . (Das, 2004). Osmundo Pinho Seminário Interno 1.2 – Cachoeira – 9 de junho de 2016

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interrogando sob a égide da “activist research” quais as possibilidades reais para uma engajamento emancipatório do pesquisador, no ato da pesquisa, ou em suas dimensões metodológicas e práticas. Não abstrai nesse sentido de representar o Outro de modo não-homogêneo, ou (in)transparente, mas em contribuir efetivamente para que esse outro concretizado com um sujeito histórico, em um contexto histórico, possa encontrar os meios próprios não apenas de representação, mas de emancipação efetiva. E essa é a abordagem que temos procurado adotar em nosso Projeto na Escola Pública, com as importantes condicionantes que discutimos acima, e a que voltaremos mais a frente, relacionadas a triangulação de que falamos, entre os pesquisadores, os interlocutores “nativos” e a instituição escolar e seus agentes. Porque nesse caso, o grupo com o qual trabalhamos não é um grupo politicamente organizado, ou uma unidade cultural ou organizacional, que permitiria uma delimitação clara de uma unidade de análise, com sua morfologia e política internas, e com um a agenda política emancipatória clara. Inversamente, trata-se de uma interação em um ambiente institucional, no qual os jovens sujeitos estão aprisionados ou coagidos. Dessa forma, Hale sugere como a crítica da cultura tal como apresentada por George Marcus, como a escritura etnográfica e a teorização, e possibilidade estratégica para as politicas subalterna da representação, de modo ainda mais ambicioso, podem significar a produção emancipatória de conhecimento. Em suas próprias palavras: “What I mean by cultural critique, in this context, is an approach to research and writing in which political alignment is manifested through the content of the knowledge produced, not through the relationship established with an organized group of people in struggle.” (Hale, 2006: 98). O autor advoga uma distinção entre crítica de cultura e “activist research”, que enfatizaria desde o princípio ou de modo intrínseco a dupla lealdade que ele salienta, entre o rigor acadêmico, definido por avalições interpares, e o compromisso com a emancipação de grupos subalternizados e explorados. “Both to the space of critical scholarly production and to the principles and practices of people

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who struggle outside the academic setting”. (Hale, 2006: 104). Desse modo, a prática emancipatória não se limitaria a politicas da representação, ou a consciência crítica hermenêutica, refletida em inovações discursivas ou em rupturas epistemológicas, mas se realizaria na própria prática cotidiana da pesquisa, alçada ao lócus efetivo de uma revisão como uma modalidade da produção ela própria já concretamente definida pelo dialogismo, pela suspensão de hierarquias, pela definição coletiva e assimétrica de agendas de interrogação. “I also have argued that the mandate of activist research, of producing theory grounded in the contradictions that the actors themselves confront ultimately requires us to straddle two disparate intellectual worlds.”. (Hale, 2006). Desse ponto de vista, a metodologia etnográfica, a observação participante, pode ser convertida em práxis. Porque o conhecimento antropológico é produzido em contextos situados e por sujeitos situados, que não se defrontam meramente como subjetividades da razão comunicativa, mas como agentes subjetivados por práticas discursivas e de poder, que são históricas, e não meramente reflexos “transparentes” das politicas epistemológicas eurocêntricas. É importante enfatizar que Hale, como nós, esta longe de renunciar ao compromisso em reunir conhecimento sobre os processos culturais e políticos, ou de outra forma, sobre a agência e as práticas de representação dos sujeitos. Não se trata de abandonar a universidade, ou a comunidade acadêmica, apesar de suas limitações, mas de buscar um tensionamento dessa relação.(Hale, 2008:, 5) Porque “social contradictions and political struggles are generative sources of knowledge”. (Hale, 2008: 23) Jemima Pierre (2008) agrega uma perspectiva crítica, que estabelece na interrelação conflituosa entre distintas posições de sujeito no interior da diáspora Africana. Pesquisando em Ghana, pátria do panafricanismo, a autora se vê perplexa diante da insistência de seus interlocutores africanos em negar que o racismo seja um problema em África. Sendo ela própria um sujeito da diáspora, como afro norteamericana de origem haitiana a autora se vê diante do imperativo de politizar a própria posição de sujeito, de um modo não-linear ou reificado como a substantividade de um corpo racializado fora de discursos e práticas. Osmundo Pinho Seminário Interno 1.2 – Cachoeira – 9 de junho de 2016

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“My research project, therefore, emerged out of my activist response to my particular positionality through time, space, and place, necessarily establishing my “activist groundings” with marginalized Black peoples against global and interlocking systems of oppression. (…). My research topic and my ability to engage it reflect a conscious politics, one that is shaped by (and in turn shapes) my personal structural location within a global racial hierarchy in which patriarchal whiteness holds the power position”. (Pierre, 2008: 118). O que nos leva questão dupla do relativismo e da reflexividade. Na tradição antropológica, mesmo clássica, há a percepção de que o relativismo em antropologia, ainda que seja uma exigência metodológica, - que pretende preencher o espaço de incoerência e fragmentação das culturas primitivas pela integração de racionalidades distintas a constructos simbólicos e a padrões de comportamento relativo - é mais do que isso, porque permitiria que “nós”, os ocidentais, nos defrontássemos com outras possiblidades e com os limites arbitrários de “nossa” própria cultura. Na voz “realista” de Malinowski: “Embora possamos, por um momento, entrar na alma de um selvagem e através de seus olhos ver o mundo exterior e sentir como ele deve sentir-se ao sentir-se ele mesmo – nosso objetivo final ainda é enriquecer e aprofundar a nossa própria visão do mundo, compreender nossa própria natureza e refina-la, intelectual e artisticamente. Ao captar a visão essencial dos outros, com a reverência e verdadeira compreensão que se deve mesmo aos selvagens, estamos contribuindo para alargar a nossa própria visão” (Malinowski, 1976: 370) De tal forma que, como inúmeras vezes salientado, a antropologia é uma empreendimento reflexivo que relativiza valores e categorias do ”self” para aproximar-se do outro em seus próprios termos , essa aproximação todavia se reflete ou subsiste fundamentalmente como uma estratégia para a reposição daquela relação originária entre um sujeito ocidental, como um intelectual transparente, e o nativo objetivado (Spivak, 2014). Se, todavia, permanecemos enfeitiçados pelos limites éticos e metodológicos do relativismo, buscando interrogar com base no ponto de vista nativo os modos de vida alheios, não naufragamos em uma impostura moral de pregar o respeito pelo Outro para mantelo imobilizado, como uma representação da alteridade, ou para nos alienar da responsabilidade com a emancipação universal? Tais questões ganham, no caso específico de nossa investigação na Escola Pública, urgência ardente, porque se de Osmundo Pinho Seminário Interno 1.2 – Cachoeira – 9 de junho de 2016

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fato buscamos salientar e assumir o ponto de vista dos jovens sujeitos que buscamos interpelar como agentes de sua própria constituição, fazemos isso de modo situado, em um contextos historicamente situado e marcado pelas desigualdades, contradições e violências que definem a relação dos sujeitos racializados no Brasil com o Estado e o Mercado. A relativização encontra dessa forma limites institucionais/estruturais para sua virtualidade crítica. Emancipação e Interpretação “Todas as relações humanas são estruturadas e definidas pelo poder relativo das pessoas que interagem”. Orlando Paterson, “Escravidão e Morte Social”, 1982. De um ponto de vista bastante material, o modo prático com que enfrentamos, ou vivemos, as contradições de uma prática de pesquisa que busca reinventar a si própria no curso de sua execução, se realiza na metodologia que empregamos. Não é tão difícil desenhar o mapa dos impasses que nos assediam. Porque, se não vejamos. Almejamos produzir uma inscrição, que signifique o “ponto de vista” dos sujeitos envolvidos, na verdade assumir como ponto de partida, na medida do possível, o universo cultural dos jovens, utilizando, como discuto em outros lugares (Pinho, 2014), os elementos iconográficos, as categorias, as formas discursivas representacionais da cultura popular, mais especificamente o pagodão, como veículo de comunicação para a criação de uma zona comum para uma conversação entre nós mesmos e esses jovens. Como, na verdade, desenvolvem com densidade os outros integrantes da equipe nesse seminário. Pretendemos fazer isso, todavia, e ao mesmo tempo contribuir para a reflexividade critica dos próprios sujeitos envolvidos. Para além da observação participante, das entrevistas, e da utilização daquilo que Jeffries chamou de “analise textual” em seu trabalho sobre masculinidade e Hip-Hop nos Estados Unidos (2011), um uso/recurso semelhante ao que nos utilizamos, quando, por exemplo em Grupos Focais exibimos vídeos de pagode e pedimos que os rapazes comentem e discutam conosco o significado do veem. O

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que ele chama de análise textual, implica em uma confrontação, dessa forma, entre as intepretações que faz o próprio pesquisador em associação, ou interpolação que fazem os sujeitos. A definição, e exegese, de categorias “nativas” que parecem dessa forma ser relevantes para estrutura do significado e constituição das práticas pode ser estabelecida nessa mobilização, efetivamente dialógica, entre as percepções do nativo e do pesquisador contextualmente informado e situado. É a articulação dessa produção/localização, situacionamento, que buscamos justamente flagrar por meio processo dialógicos de interação em nossa experiência de pesquisa. E, nesse sentido, gostaria aqui, finalmente, de enfatizar o significado que acredito reconhecer na utilização dos grupos focais (GF). Originalmente utilizados no campo da pesquisa de mercado e da publicidade (Gati, 2005) o método tem sido também utilizado nas ciências sociais e em investigações acadêmicas. Eu pessoalmente pude experimenta-lo pela primeira vez quando atuava em uma organização não-governamental em Salvador nos anos 90, em seguida no Rio de Janeiro, onde desenvolvemos com o recurso da metodologia, pesquisa sobre gênero e raça na cidade São Gonçalo (Pinho, 2010). A partir dessa experiência, a metodologia pareceu muito produtiva para o tipo de interesse que alimentava e alimento. Os GF’s permitem um tipo de registro já ele próprio polifônico. Ademais em oposição a modalidade inquisitorial de pesquisa, como uma entrevista individual usualmente reproduz, o GF permite a um grupo previamente delimitado interagir em torno de temas, questões, imagens, músicas ou canções, sem necessariamente responder a pergunta, (ou a uma série delas) de um interlocutor, incisivo e invasivo. Inversamente, tal como ocorre em São Felix, os GF’s se revestem de informalidade e os jovens acabam discutindo entre eles, principalmente, sobre os temas propostos, ainda que mobilizados pela nossa presença. De tal forma que a oposição entre o sujeito da investigação que pergunta, explora e induz o interlocutor a responder, e aquilo que se elege para uma conversação plural, na qual os próprio sujeitos podem interpelar, discordar e divergir uns dos outros como usualmente acontece, encontra

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mediação e se dilui. Como aparece nesses registro do diário de campo “Na sala encontramos 5 meninos e 4 meninas. Thais explicou e eu repeti o que iriamos fazer e quem éramos. Eles não entenderam bem, ao que parece, nem se mostraram muito entusiasmados. Alguns irrequietos se moviam pela sala, outros dois rapazes e mais duas moças, exibiam indiferença arrogante e desconfiada. Pedimos que se sentassem em círculo. Houve resistência. Eu insisti. As moças cederam, mas não os dois rapazes (...). Quando iniciamos a exibição do vídeo – Lava Car Sex do Universo Axé – esses dois recalcitrantes, que estavam mantendo postura algo inamistosa abriram um sorriso e se juntaram a roda”(28/03/16). * * * “Ao final, a postura do grupo parece ter se alterado. Inclusive os recalcitrantes, pareciam colaborativos e interessados e perceberam que a atividade não seria uma aula chata. Um deles perguntou se essa seria um nova disciplina. O gordo sugeriu que viéssemos sempre nesse horário, às segundas (...). Me pareceu evidente, que mesmo o garoto mais jovem, foi tocado ou perturbado pelo debate, que o fez pensar ou refletir. Desse ponto de vista, a “devolução” aos nativos que nos preocupava em conversa anterior, pode ser isso, devolver a eles, eles próprios e sua imagem.”(28/03/16). Como estão então descrito, minha percepção pessoal, é que o momento em que realizamos atividades como são os GF’s descritos acima, parecem para os jovens como enfadonhos a primeira vista, algo como uma aula ou palestra, quando porém percebem que não se trata de impor a eles um conteúdo, ou de medir seu conhecimento em assuntos que parecem alheios as seu cotidiano, mas que inversamente, a partir do universo cultural que eles conhecem, pedimos que eles próprios nos expliquem e esclareçam as categorias que informam sua própria sensibilidade ou “estruturas de sentimento”, a atitude se transforma e os rapazes e moças parecem perceber, e ver, o que não estava claro, e não apenas refletem sobre, por exemplo, a relação entre a mulher e o dinheiro, o “valor” do corpo e o significado de “respeito”, mas entendem que podem eles próprio se debruçar, e objetivar, as categorias de seu cotidiano de modo reflexivo. E essa é uma prática de poder. Nesse sentido, e sem negar que a pesquisa de campo antropológica pode materialmente “devolver” algo para os ”nativos”, como usualmente se escuta, ao

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oferecer algum tipo de contrapartida, imaginamos muito mais. Porque a antropologia de caráter predatório, que vai ao campo, para retirar algo, que não se interessa, nem se conecta, com os interesses e os problemas reais do sujeito, mas apenas em consolidar as carreiras individuais ou legitimidade institucional no campo acadêmico já exauriu a todos. O que podemos devolver ou oferece em troca aos nossos interlocutores na escola pública, não seria certamente o “resgate” da educação pública, ou de outra forma estaríamos buscando fazer as vezes do Estado, ou agir de modo paraestatal (Amar, 2013), na verdade produzindo mais condições de acomodação a uma realidade que é, de meu ponto de vista inaceitável. Não meramente a realidade da escola como se ela pudesse se aperfeiçoar, mas a realidade vida social, e da relação do Estado com sujeitos racializados e despossuídos. O que podemos oferecer ou devolver a esses jovens, acredito, é a própria a oportunidade para o florescimento da consciência crítica que esses desenvolvimentos passam a exercer por meio dessa atividade eminentemente reflexiva. Tornando a historicidade das relações de poder e representação, como elemento condicionante de nossa própria posição de sujeito, acessível também para eles. Bibliografia ALLEN, Jafari Sinclaire and JOBSON, Ryan Cecil. The Decolonizing Generation: Race and Theory in Anthropology since the Eighties. Current Anthropology Volume 57, Number 2, April 2016 AMAR, Paul. The Security Archipelago: human-security states, sexuality politics and the end of neoliberalism. Durham: Duke University, 2013. BERNARDINO-COSTA, Joaze G GROSFOGUEL, Ramon. Decolonialidade e perspectiva negra. Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016. Pp. 15. 24. BOURDIEU, Pierre & PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução. Elementos para uma teoria do Sistema de Ensino. Editora Vozes. Petrópolis. 2010. CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Decolonizar la Universidade. La Hybris del punto cero y ele Dialogo de Saberes. In. ___ . CASTRO-GÓMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramón. (Orgs.) El Giro Decolonial. Reflexiones para una Diversidad Epistémica mas allá del Capitalismo Global. Bogotá. 2007. Osmundo Pinho Seminário Interno 1.2 – Cachoeira – 9 de junho de 2016

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