Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos: reflexões a duas vozes e múltiplas imagens

August 20, 2017 | Autor: Susana Ventura | Categoria: Portuguese Literature, Comics and Graphic Novels
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Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

EU, FERNANDO PESSOA EM QUADRINHOS: REFLEXÕES A DUAS VOZES E MÚLTIPLAS IMAGENS Eloar Guazzelli e Susana Ventura (Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil) e (Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil) RESUMO A comunicação de pesquisa “‘Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos’: reflexões a duas vozes e múltiplas imagens”, centra-se no estudo de caso de um álbum de quadrinhos construído para abordar a vida e a obra do poeta português Fernando Pessoa. “Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos”, de Eloar Guazzelli com roteiro de Susana Ventura (São Paulo: Peirópolis, 2013) é um álbum que propõe uma abordagem do poeta português utilizando um roteiro que partiu de epistolografia, poesia e, até mesmo, da prosa de um necrológio. Conhecendo a fundo o trabalho do quadrinista e sua paixão por Fernando Pessoa a roteirista buscou oferecer a ele um possível percurso que também contemplasse as necessidades dos jovens leitores do álbum e que seguisse uma lógica de roteiro cinematográfico. A partir do roteiro, o quadrinista criou uma ‘viagem pela “Carta da gênese dos heterônimos” (de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro), pela obra de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo Soares e pelo elogio fúnebre do poeta Luís de Montalvor que contou, aos leitores do Diário de Notícias (de Lisboa), um resumo da vida do poeta quando de sua morte, em novembro de 1935.Mapeamos, para efeito desta discussão, diferentes fases da construção do álbum sob distintos ângulos, abrangendo desde a escolha dos trechos a serem aproveitados no roteiro até as dificuldades inerentes à transposição da linguagem verbal para uma narrativa sobre imagens sequenciais. O diálogo entre os dois artífices do álbum durante o seu percurso até a conclusão do trabalho foi intenso e gerou reflexões que se revelam norteadoras para futuros projetos de leitura de literatura em HQ. Palavras-chave: HQ, Literatura Portuguesa, Quadrinhos e Literatura

PARTE I – A VISÃO DO QUADRINISTA ELOAR GUAZZELLI Para entender melhor o ambiente em que foram elaborados os dois álbuns em quadrinhos com desenhos de Eloar Guazzelli sobre a obra do poeta português Fernando Pessoa (Pessoa e outros Pessoas e Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos) faz-se necessário um breve apanhado das importantes transformações ocorridas no mercado editorial desta linguagem no Brasil na última década. Sempre houve uma variedade de quadrinhos no Brasil, mas para públicos restritos, em geral com um caráter de produção independente (salvo exceções de poucos autores que conseguiram notável expressão em nichos específicos). Este panorama se transforma a partir das compras por Planos de Governo (desde 2007 principalmente ) que passa a

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013 incentivar - ainda que de forma indireta - uma produção em escala industrial, na sua maior parte de um tipo de quadrinho que antes estava restrito àquelas produções em escala menor. Esse fenômeno se da em um novo contexto profissional - por conta de inovações técnicas, como o advento do computador pessoal e da rede mundial de computadores - quando a produção de quadrinhos nacional esta a prestes a dar um salto qualitativo deixando de ser apenas formadora de profissionais qualificados para se apresentar como um novo centro de produção de conteúdo. Ficou claro que as compras em escalas pelos programas governamentais sinalizavam uma ampliação considerável do mercado no país e desde então houve forte movimentação em busca de títulos e autores com potencial de compra. E os resultados não tardaram em

aparecer, com o aparecimento de sucessivos títulos de

qualidade. Algumas obras iriam obter inclusive premiações ( a adaptação de O Alienista, lançada em 2007 pela editora Agir e desenhada pelos irmãos Gabriel Bá e Fábio Moon, venceu o Premio Jabuti de Literatura de 2008, na categoria álbum didático e paradidático). As edições subsequentes do programa agregam mais títulos, com diferentes resultados frente a cada um dos

níveis educacionais. Também aconteceriam mais avanços nas

escolhas, com uma política de aquisições que passa a reconhecer os quadrinhos como gênero literário autônomo, a partir da escolha de títulos que não são adaptações literárias nem tratam de temática histórica, trazendo dentre eles alguns de humor e sátira de costumes. Também nesse período se encerra o preconceito que delimitava os quadrinhos como leitura infantil ao indicar obras com temática adulta para o ensino médio (como o Mangá Na prisão, de Kazuichi Hanawa). Todo esse movimento editorial que passou a acontecer depois do advento do PNBE (Programa Nacional da Biblioteca Escolar ) ,que passou a colocaras histórias em quadrinhos no ambiente escolar como um gênero literário dotado de autonomia e qualidade, de certa forma reproduz um movimento parecido que nos anos 80 trouxe para a escola a produção brasileira de literatura infantil, provocando naquele a partir de então um maciço investimento das editoras nacionais no setor. Esse fenômeno se reproduz hoje no mercado editorial com uma movimentação bastante grande em busca de títulos de quadrinhos com potencial de aquisição pelos programas governamentais. É evidente que em função disso aconteçam distorções como adaptações redundantes ( quatro somente para O Alienista, de Machado de Assis ) ou a escolha de títulos mais em função de seu peso histórico do que da qualidade de sua execução. Mas esses são riscos de percurso,

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013 altamente compensados pela implantação de uma efetiva estrutura de produção e distribuição de histórias em quadrinhos numa escala sem precedentes no Brasil. Assim como o cinema e a televisão encontraram na temática histórica e adaptações literárias alguns de seus melhores momentos criativos, cabe agora a essa linguagem muitas vezes subestimada realizar narrativas de qualidade para o enorme público da rede escolar, construindo uma indústria cultural à altura dos autores que construíram um rico imaginário visual dentro de uma cena independente, quase marginal. Um resultado direto da nova realidade dos quadrinhos é o surgimento de vários projetos autorais, abrangendo desde editoras já

voltadas para esse nicho editorial até tradicionais casas voltadas para a

literatura.. Autores de diversas partes do país trazem narrativas autobiográficas, sobre temas da história ou mesmo livros experimentais. Ancorados em leis de incentivo surgem revistas e projetos editoriais de alta qualidade, como as revistas Graffitti (Belo Horizonte) e Ragu (Recife). Produzidas por coletivos de autores essas duas editoras bancaram a publicação de livros em quadrinhos autorais (Um dia, uma noite, O relógio insano, A comadre do Zé, Saída 3, pela Graffitti ) e de adaptações literárias (Domínio Público Nacional, Domínio Público Internacional, pela Ragu). Também surgem iniciativas que associam roteiros de escritores de agora ao traço de quadrinistas, como a graphic novel Cachalote, de Rafael Coutinho sobre texto de Daniel Galera, lançada em 2010 pela Companhia das Letras. Ou seja, estamos a caminho - difícil e cheio de obstáculos - de construir uma estrutura de produção em escala industrial. Panorama onde as adaptações e conteúdos paradidáticos irão desempenhar importante papel por conta das compras em larga escala para uso na rede escolar. E nesse contexto ampliam-se as possibilidades editorias, livros a partir de narrativas autorais, edições de luxo, etc. Mas como uma atividade industrial, todo esse movimento depende muito da conjuntura econômica e também é bastante influenciado pelas novas plataformas de exibição. Toda adaptação, incluindo as cinematográficas e televisivas ampliam os horizontes do publico e - dada a enorme influência do audiovisual na sociedade contemporânea- com certeza irão despertar no mínimo uma curiosidade para determinadas obras e autores. Até porque são abordagens diferentes, a leitura de uma adaptação em determinada linguagem não "esgota" as possibilidades do original, se bem feita é mais uma tradução.

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013 Mas existe uma consequência tão ou mais importante neste contexto, a leitura em larga escala de quadrinhos de qualidade onde esta linguagem passa a ser vista como uma arte autônoma e acima de tudo tão rica e sofisticada quanto seus pares, deixando de ser vista como se fosse apenas um produto comercial para crianças e adolescentes. Foi nesse contexto que retomei as minhas atividades como quadrinista, pois desde 2007 venho publicando trabalhos autorais e logo a seguir me integrando também nesse movimento intenso de adaptações de textos literários. De certa forma percorri um caminho que ilustra bem as mudanças acima citadas. Tendo feito minha formação como quadrinista na cena independente do sul do pais, estreando nas publicações gaúchas Kamikaze e Dundum nas décadas de oitenta e noventa, na sequência me retirei da produção por alguns anos, período em que me dediquei à vida acadêmica e ao cinema de animação. Foi ao me radicar em São Paulo em 2001 que voltei novamente a publicar com grupos independentes, primeiro em São Paulo com a revista Front e logo a seguir com dois coletivos: Graffitti (de Belo Horizonte) e Ragu (de Recife). Ainda que de forma descontinua voltei a publicar com regularidade , fator fundamental para que pudesse dar o passo seguinte desenhando álbuns com adaptações de obras literárias, tarefa que requer bastante fôlego, dado o grande volume de trabalho dentro de prazos relativamente curtos, onde muitas vezes pesquisa, elaboração e arte-final são feitos em apenas quatro meses (mesmo quando os contratos pressupunham adiantamentos esses valores em geral eram insuficientes e portanto as atividades nos álbuns tinham de ser feitas em paralelo com outros trabalhos). Mas a possibilidade de realizar trabalhos dessa envergadura constituiu a realização de um sonho largamente perseguido, nenhuma das inúmeras dificuldades que essa tarefa apresentava era maior do que a vontade de realizar um álbum nos moldes das produções estrangeiras que fizeram parte da formação da maioria dos autores envolvidos nesse processo. E na minha trajetória a produção independente ofereceu duas excelentes oportunidades para testar os recursos que iria necessitar mais adiante. O coletivo Graffitti me convidou em 2007 para fazer o segundo volume de uma serie de graphic novels de onde resultou uma fantasia futurista de 80 paginas : O relógio insano, e no ano seguinte a editora Casa 21 (RJ) me dava a oportunidade de reunir 12 histórias curtas no livro de quadrinhos O primeiro dia. Realizar esses dois trabalhos praticamente ao mesmo tempo em que era convidado pelo selo Agir para fazer uma

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013 adaptação de O pagador de promessas, - um clássico de Dias Gomes que ainda por cima tinha virado uma das obras mais importantes do cinema brasileiro, premiada em Cannes foi de suma importância pois tinham me fornecido informações importantes sobre o processo de elaboração de uma historia em quadrinhos de grande porte. E foi preciso, porque especificamente a obra de Dias Gomes constituía um trabalho de adaptação de um autor falecido relativamente a pouco tempo, ainda não sob domínio publico e com meus primeiros estudos sujeitos a avaliação pelos herdeiros. Dificuldades estas que depois de transpostas me facilitaram o caminho para novos trabalhos. Primeiro uma versão para a Editora Ática de uma obra extremante popular, A escrava Isaura (e também adaptada pela telenovela de maior sucesso da nossa indústria cultural ), seguida pouco depois (já em 2010) pela adaptação de um conto fantástico

de Aluísio de Azevedo para a editora

Peirópolis, Demônios em quadrinhos. No mesmo período o coletivo Ragu conseguia pela via de leis de incentivo realizar dois álbuns coletivos com adaptações de textos variados (Domínio Público Nacional e Domínio Público Internacional). No primeiro volume ilustrei um conto de Alcântara Machado: Apólogo brasileiro sem véu de alegoria e, no segundo, o conto Terremoto no Chile, de Heinrich Von Klust. Esses dois títulos posteriormente seriam negociados com a editora DCL que os reeditou em caráter nacional. Pouco depois eu seria convidado pela WMF Martins Fontes para adaptar sete títulos do programa de televisão Um pé de quê? (produzido por Regina Casé e Estevão Ciavatta) para sete álbuns ilustrados em quadrinhos: Pau-Brasil, Seringueira, Favela, Umbu, Coqueiro, Quebracho e Buriti. Foi na sequência desses últimos trabalhos que tive a oportunidade de trabalhar sobre textos que falavam da obra do grande poeta Fernando Pessoa. O primeiro tútulo foi para a Editora Saraiva: o álbum Fernando Pessoa e outros pessoas que saiu em 2011 com

roteiro de

Davi Fazzolari. Uma proposta editorial que me interessou também por ir além do âmbito dos autores brasileiros para trazer ao público também os grandes nomes da literatura portuguesa. e universal. Nesse aspecto, Fernando Pessoa foi uma escolha perfeita (um verdadeiro ícone da nossa vida cultural). No começo de 2012 eu tinha recém concluído este primeiro álbum em quadrinhos para a editora Saraiva sobre a obra do Pessoa quando descobri que outra editora com quem trabalho - a Peirópolis- estava também por fazer um álbum em quadrinhos sobre a obra do genial poeta. Ficamos igualmente frustrados, a editora porque eu já tinha feito um livro e eu porque o tema tinha me envolvido

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013 completamente e devo confessar que fiquei com uma tremenda inveja de quem iria trabalhar na nova versão. Ainda bem que nesse caso a providência interviu em meu favor (coisa rara por sinal): pouco tempo depois a editora Peirópolis me procurou perguntando se eu não via problema em encarar uma "dose dupla" sobre o tema. Apesar de satisfeito com o resultado do primeiro álbum, o encantamento com o universo do Pessoa me instigava a buscar novas soluções, foi um presente. Eu gosto muito desse primeiro álbum mas é normal que ao concluirmos um trabalho fiquem algumas questões em aberto, costumo fazer uma avaliação se sempre ficam “pendentes” algumas soluções. Então a oportunidade de trabalhar quase em sequência sobre o mesmo universo temático me deu a chance de avançar mais em algumas coisas importantes como a busca de estilos levemente diferentes para cada heterônimo e também um tratamento mais solto no traço, algo mais intuitivo até. Gosto dos dois trabalhos mas creio que no Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos pude avançar no tratamento artístico. Mas isso não seria possível se não tivesse havido uma experiência anterior. Trabalhar sobre escritos do Pessoa é difícil porque o significado deste autor é enorme para nossa cultura. Por isso, desde quando aceitei fazer o primeiro álbum sobre este escritor eu tinha plena consciência que, além de uma grande honra, eu tinha também um tremendo desafio pela frente, afinal eu desenharia sobre um texto maravilhoso de uma grande referencia da nossa vida cultural., ou seja uma enorme responsabilidade. Ao longo de todos os meses de trabalho que um álbum de quadrinhos requer, pairava sobre mim a figura do Pessoa, um autor cujo trabalho sempre admirei com fervor, portanto tinha a exata noção também do privilégio que representava trazer para o plano das imagens o seu universo. Para fazer esses álbuns li muito a respeito da vida do poeta e descobri que são mais de 70 heterônimos e constatei que a obra desse poeta ainda justifica uma verdadeira arqueologia... Isso tudo me motivou a desenhar em diferentes estilos, foi uma experiência maravilhosa porque eu sempre gostei de mudar o traço mas a trajetória do poeta me deu um "lastro", uma segurança maior para brincar com os estilos. Do ponto de vista da execução do cronograma o processo

oi relativamente tranquilo, tive um prazo razoável (cinco

meses), que dividi nas etapas básicas, pesquisa visual e leitura do roteiro de HQ (Susana Ventura), esboço de páginas, arte-final (incluindo traço, cor e aplicação de balões e texto).

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013 Porém são necessários muitos ajustes numa adaptação, não só porque temos de nos adequar ao número de páginas, mas também porque o texto não deve ser muito pesado, ao mesmo tempo em que temos de ter um cuidado extremo para não violar a integridade da obra. E sempre existe o risco da "redundância", as transcrições demasiadamente literais... E a poesia do Pessoa tem uma riqueza tão grande quanto as 'armadilhas" que oferece, no desejo de traduzir todo seu universo em imagens. Fazer um livro como esse é um exercício intenso de autocontrole. Equilibrado por alguns voos mais intuitivos, ou seja, o processo de trabalho termina por se constituir numa verdadeira gangorra. onde se alternam procedimentos racionais e iniciativas bastante intuitivas. Para “ancorar” essa situação o roteiro se constitui numa peca fundamental e no caso ajudou bastante por ser bem construído, constituindo um elemento fundamental para a estrutura do trabalho. O trabalho da Susana era claro, estruturado sobre momentos precisos e bem recortados da vida do poeta e intermediados por textos tão ricos quanto expressivos de distintas facetas do autor, fornecendo uma estrutura bem articulada que facilitou muito o desenvolvimento da história, permitindo que tivesse mais tempo pra dedicar às questões puramente estéticas. E nem sempre isso é fácil, minha experiência de mais de 30 anos atuando como diretor de arte para cinema de animação me fez muitas vezes trabalhar no sentido contrario, construindo à duras penas uma obra visual sobre alicerces frágeis... Pessoa é imenso, isso é evidente, mas o fato de ser um gigante da língua portuguesa é para mim fundamental, dada a reconhecida dificuldade de inserção da nossa língua no contexto mundial. Apesar de presente em vários continentes e ser representada por um país continental ela sofreu durante muito tempo por motivos históricos um certo isolacionismo. Que hoje se rompe até por conta de um novo protagonismo não só do Brasil mas também de uma nação africana emergente como Angola. As peculiaridades da sua biografia e o próprio "acanhamento " da nação Portuguesa quando da construção da sua obra creio que ainda não deram o devido realce ao seu enorme talento. Isso porque não vejo como suficiente o seu sucesso entre acadêmicos e seus pares. Pessoa merecia o Nobel. São Muitos os motivos para admirá-lo, mas o que eu poderia destacar nesses trabalhos foi a descoberta de uma visão mais profunda dos heterônimos.

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013 Conviver com essa personalidade multipartida, essa verdadeira multidão gerada a partir de um individuo, sua explosão criativa em diversas frentes foi o que me cativou em definitivo. PARTE II – A VISÃO DA ROTEIRISTA SUSANA VENTURA A proposta de realizar um projeto sobre Fernando Pessoa e sua obra partiu de Renata Borges da Editora Peirópolis em 2010. Após algum amadurecimento da ideia inicial - que era a apresentação de Fernando Pessoa de maneira abrangente para leitores de todas as idades - chegamos juntas à conclusão que a composição de um álbum que fizesse parte da coleção “Clássicos em HQ” seria o ideal para o que pretendíamos. No que diz respeito à Literatura Portuguesa, a coleção contava com Os Lusíadas em quadrinhos, realizado por Fido Nesti e Auto da Barca do Inferno, realizado por Laudo Ferreira. O trabalho a partir da obra de Fernando Pessoa viria, então, a continuar as leituras anteriores de clássicos em português. Minha experiência docente com alunos de Ensino Médio havia comprovado, anos antes, a adesão dos jovens ao álbum de Fido Nesti e, já como consultora de Literatura Portuguesa da Peirópolis, acompanhei e participei das discussões em torno da realização do álbum de Laudo Ferreira. Quando nos decidimos por um álbum em HQ, Guazzelli foi o artista que Renata sugeriu, pela afinidade que ele demonstrava para com a literatura europeia em geral e, em particular, quando se tratava de literatura portuguesa, para com os trabalhos de Eça de Queirós e Fernando Pessoa. Eu acompanhava o trabalho de Guazzelli já há bom tempo e fiquei entusiasmada com a possibilidade de trabalharmos juntos, eu como roteirista, ele como quadrinista. Minha experiência prévia com elaboração de roteiros era na área de cinema, especificamente na elaboração de documentários. Minha relação com a obra de Fernando Pessoa tinha sido primeiro como leitora e, depois, como professora de literatura. A primeira reunião coletiva de criação do álbum com Guazzelli, Renata Borges, Luciana Tonelli e Lilian Scutti permitiu um conhecimento da equipe que estaria envolvida no projeto e o estabelecimento de critérios para o trabalho. Conheci todos os outros títulos da coleção “Clássicos em HQ”, percebi algumas diretrizes comuns à coleção e sua proposta em termos artísticos, editoriais e educacionais. A dinâmica do início do trabalho ficou definida da seguinte maneira: eu teria alguns meses de pesquisa, trabalharia na criação de

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013 um roteiro e voltaríamos a nos reunir em torno dele. Começou, então, a etapa de meu trabalho solo. Como professora de literatura que sou muitas vezes ouço frases como “Eu adoro Fernando Pessoa”, “Eu amo Fernando Pessoa” e mesmo meu mural do facebook é tomado por imagens ali colocadas por alunos e amigos com versos (ou supostos versos) pessoanos. No contexto de sala de aula, no Ensino Médio sobretudo, Fernando Pessoa aparece de maneira fragmentada. Não é “defeito” do ensino de literatura portuguesa no Brasil somente, mas consequência de várias circunstâncias históricas. A começar pela própria dinâmica de Fernando Pessoa enquanto divulgador de sua própria obra ainda em vida e a terminar pelo espaço cada vez menor que tem a literatura portuguesa no curriculum escolar brasileiro, o que faz com que o aluno veja com maior ênfase alguns poucos escritores de maneira escalonada: trovadores, Gil Vicente, Luís de Camões, Padre Antônio Vieira,

Camilo

Castelo Branco, Alexandre Herculano, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, Agustina BessaLuís, José Saramago, Antônio Lobo Antunes. A ênfase, maior ou menor, com que se examina a obra de cada um deles é, ainda hoje, ditada pela lista de livros de leitura obrigatória dos exames de acesso às principais universidades públicas, os chamados exames vestibulares. Quando Fernando Pessoa é chamado a compor este ‘elenco principal de autores’, é também de maneira fragmentada: em anos recentes, no Estado de São Paulo tivemos a ênfase recaindo primeiro sobre o heterônimo Ricardo Reis e, depois sobre Alberto Caeiro. Lembro, no entanto, que também há circunstâncias históricas que ajudam na percepção fragmentada de Pessoa e trago aqui a experiência de um jovem estudante de escola técnica que, nos finais da década de 1930, início dos anos quarenta, em Lisboa, construía sua educação com o auxílio da biblioteca escolar e que, encontrando o volume das odes de Ricardo Reis, apaixonou-se pela obra daquele poeta, sem imaginar que era uma das faces heteronímicas de Fernando Pessoa, o que veio a descobrir mais tarde. Esse jovem era José Saramago. Que décadas depois revisitaria Ricardo Reis e o próprio Fernando Pessoa no romance notável que é O ano da morte de Ricardo Reis. Desta maneira, o desafio para mim como roteirista era o de construir um caminho de leitura de Fernando Pessoa que permitisse ao leitor do álbum ter uma visão da inteireza do poeta português que escolheu ser múltiplo. Paralelamente ao meu trabalho de pesquisa

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013 sobre a obra pessoana, estudei três leituras de Guazzelli a partir da literatura: as imagens que criou para a edição do conto Um dia de chuva, de Eça de Queirós (São Paulo: Cosac & Naify) e as HQs

Demônios em quadrinhos, a partir do conto homônimo de Aluísio

Azevedo (São Paulo: Peirópolis) e Fernando Pessoa e outros pessoas, a partir de poemas e prosa (com roteiro de Davi Fazzolari, São Paulo: Saraiva). Percebi o modo de abordagem do artista na composição de imagens e a relação dele com os textos que interpretava. Também ficou clara a sua interação com o cinema e suas técnicas. O roteiro que eu construísse teria de ser uma boa plataforma, uma pista de decolagem a partir da qual ele pudesse voar livremente, da melhor maneira possível. Assim sendo, o primeiro roteiro que construí partia dos cinco sentidos: olfato, tato, audição, visão, paladar em relação às várias facetas de Fernando Pessoa como poeta. A lógica do roteiro era visual e cinematográfica e ele funcionaria bastante bem como curta ou média metragem. O texto foi montado somente com poemas de Fernando Pessoa e de seus três principais heterônimos. Mas se este meu trabalho ampliava o conhecimento sobre Pessoa, não me satisfazia como apresentação do poeta genial. Embora ampliasse, com certeza, o universo do leitor que costuma ler um poema de Pessoa e tomar a parte pelo todo dizendo “amo Fernando Pessoa”, o roteiro não realizava plenamente meus objetivos. Eu desejava possibilitar ao leitor uma aproximação real ao múltiplo Pessoa, uma organização daquele universo poético pessoal. Queria que o álbum pudesse constituir um ponto de partida para tudo o que o leitor, livremente, quisesse fazer depois. Neste momento de elaboração do roteiro eu pensava num hipotético leitor a quem eu me dirigia pensando: “tudo bem, respeito seu ‘AMO Pessoa’, mas o meu objetivo é organizar uma estrutura que permita que ele se transforme em: ‘amo Pessoa e esta ou aquela face me interessa mais, este ou aquele aspecto é o que me faz viajar no Pessoa”. Descartei, assim, o primeiro roteiro sem mostrá-lo à equipe de criação do álbum e fui pesquisar mais. Parti para os textos em prosa de Pessoa, suas considerações escritas sobre as mais diversas questões: poesia, estética, filosofia, tradução, política. A seguir fui para as cartas. Acabei escolhendo como elemento condutor aquela que passou à História como “Carta da gênese dos heterônimos”, bem conhecida por estudantes de Letras e por uma parte dos leitores de Pessoa. Se os heterônimos foram apresentados ao mundo – leia-se aqui um pequeno círculo de intelectuais - em 1914, foi pouco meses antes de morrer, em

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013 1935, que Pessoa responde com uma carta ao amigo Adolfo Casais Monteiro, para falar da gênese dos heterônimos ao “grande público”. Sim, era uma carta, com a dimensão privada que aparentemente as cartas carregam. Mas, àquela altura, Pessoa, célebre no meio cultural português e já abatido, sabia que as respostas que estariam em sua carta seriam divulgadas como sua interpretação dos heterônimos. Talvez não esperasse que a carta em sua integralidade fosse divulgada, com suas particularidades cotidianas – destaco a menção que o poeta faz a escrever em papel de rascunho porque é domingo e não há comércio aberto mas ele esperava, com toda a certeza, que aquelas ideias fossem transcritas, quase literalmente ou mesmo literalmente, e fossem ter às páginas dos jornais, revistas literárias, de maneira quase imediata. Considerei então essa carta, escrita pouco mais de 20 anos após a primeira apresentação dos heterônimos ao público leitor, um bom fio condutor para o álbum. Comecei cortando, colando, bricolando a carta para que se adaptasse à história que eu desejava contar. Mas a carta em si não bastava, é claro. Se, no início do processo eu tinha descartado usar apenas poemas para elaborar o roteiro, agora eu sabia que não poderia falar da literatura de Pessoa só com uma carta, embora essa fosse excepcional. Seria preciso mostrar ao leitor do álbum, aspectos essenciais da poesia de Fernando Pessoa ele mesmo e daquela de cada um de seus três principais heterônimos, além de uma parcela da prosa do semi-heterônimo Bernardo Soares (do Livro do desassossego). Decidi, então, apresentar Fernando Pessoa no início do roteiro, antes do começo da carta e organizar a minha ‘nova’ carta dos heterônimos para apresentar de maneira clara e linear, além do próprio Pessoa, Bernardo Soares.

Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e

Após a descrição de cada personalidade literária a carta seria

interrompida e apresentada prosa ou poesia de “autoria”. Para as citações de poesia e prosa deixaria uma margem de escolha ampla, para que o quadrinista pudesse escolher sobre o que desejaria trabalhar. Terminei a primeira versão desse segundo roteiro. O álbum, segundo ele, contaria uma história começando in media res, quando Fernando Pessoa sentindo dores em novembro de 1935, prepara sua maleta e segue para o Hospital de S. Luís dos Franceses em Lisboa. Um corte e uma volta temporal – flashback - leva poeta e leitor para janeiro do mesmo ano e para o momento da escrita da carta. Apresentada à equipe de criação e acolhida por ela, esta versão trazia duas opções de textos literários para cada uma das 5 facetas literárias de Pessoa: ele mesmo, Bernardo Soares, Alberto Caeiro, Álvaro de

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013 Campos e Ricardo Reis. Guazzelli, conforme ele já mencionou, havia trabalhado anteriormente em HQ a obra pessoana com a parceria do roteirista Davi Fazzolari (Fernando Pessoa e outros pessoas. São Paulo: Saraiva) e minha seleção literária descartou poemas e trechos em prosa já usados naquele trabalho anterior. A partir das opções que eu apresentei, Guazzelli escolheu aquelas que mais de perto falavam com ele e começou sua parte de criação no trabalho. Neste momento surgiu para mim um novo problema: a criação, a pedido da editora, da “biografia” do autor que ocuparia a página final ou as páginas finais do álbum. Pesquisei mais algumas semanas. Tudo o que eu pudesse escrever me parecia menos representativo do que o que havia conseguido construindo um roteiro a partir de textos escritos pelo próprio Fernando Pessoa. A solução apareceu quando eu relia O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago. Nesse romance, Saramago fala sobre o Portugal da época da morte de Fernando Pessoa e confere o protagonismo ao heterônimo Ricardo Reis, confrontado com uma Europa em ebulição às vésperas da eclosão da Segunda Guerra Mundial. O romancista recorreu a muitos jornais de época para mostrar ao leitor contemporâneo a imprensa censurada pela ditadura portuguesa e a relação de Ricardo Reis com as informações veiculadas pela imprensa escrita. Fui, então, como a personagem de Saramago, aos jornais, para saber quais as notícias sobre a morte de Fernando Pessoa. Encontrei vários materiais de interesse para o roteiro, mas sobretudo um necrológio de um poeta companheiro de geração e projetos do próprio Pessoa, Luís de Montalvor, publicado no Diário de notícias. Obra de poeta, o texto me inspirou a trabalhar a partir dele, da maneira como tinha procedido com a carta de Fernando Pessoa: cortando, colando e bricolando trechos, interferindo o mínimo possível no que dizia respeito à escrita original propriamente dita. O texto final desta segunda parte foi incorporado ao roteiro aprovado, mostrado à equipe e concluímos juntos que ele funcionava literariamente como continuação do roteiro, que passava assim a avançar temporalmente para além do momento da morte de Fernando Pessoa. Há palavras minhas presentes no roteiro? Sim. Quatro palavras minhas na primeira versão e depois, nas etapas subsequentes, quatro ou cinco mais, para conferir unidade, “dar liga”, sendo que, na forma final do roteiro deve haver cerca de dez palavras que não aparecem na carta de Fernando Pessoa nem no necrológio de Luís de Montalvor. Três

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013 meses após a entrega do roteiro completo, Guazzelli nos apresentou sua primeira leitura a partir do roteiro. Vimos que havia ajustes a fazer e, especialmente, as interrupções da carta para dar “voz” a cada personalidade pessoana e o retorno à carta demandariam soluções visuais que precisariam ser encontradas. Levamos vários meses até solucionar de maneira satisfatória, tornando clara a história que, em conjunto, estávamos contando. Na etapa final tivemos as ajudas de Maurício Muniz e Helena Salgado. Maurício nos ajudou a pensar em soluções que envolveram letreiramento, colocação de recordatórios e reposicionamento de imagens. À Helena coube a montagem, o que se deu em etapas distintas e exigiu muita paciência. Na sequência, algumas imagens do resultado final ajudarão a perceber as escolhas realizadas.

Imagem 1 – Abertura do álbum, Fernando Pessoa arruma a mala para ir ao hospital. Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos, Eloar Guazzelli

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

Imagem 2 – Apresentação da poesia de Fernando Pessoa com “Chuva oblíqua”. Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos, Eloar Guazzelli

Imagem 3 - Interrupção da carta para mostrar poema de Mensagem, referido no recordatório Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos, Eloar Guazzelli

Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013

Imagem 4 – Parte do trecho biográfico, construído a partir de texto original de Luís de Montalvor Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos, Eloar Guazzelli REFERÊNCIAS:

VENTURA, S. e GUAZZELLI, E. Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos.São Paulo: Peirópolis, 2013.

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