Eu sou o samba: a música de cada qual, de todos e de ninguém.

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Cada compositor escreve a sua música e essa música é uma só. No seu conjunto de esforços e empenhos, cada um está escrevendo uma só música. Muitos têm consciência disso e até o disseram sobre si mesmos. Egberto Gismonti, por exemplo. Ivan Lins, Guilherme Arantes, Lulu Santos, Tom Jobim, Toquinho, Pixinguinha, Paulinho da Viola, cada qual está (ou esteve) escrevendo "a sua música" e ela, no fundo, é "uma música só".
Quando nosso olhar recai [ou cai, com maior ênfase] em fôrmas ou padrões [no caso do músico carregar consigo um "carimbo forte", como o de "sambista"], devemos considerar que a fôrma ou padrão "baliza" ou "parametriza" a criação do músico, como as peças manipuladas pelo mecânico co-constroem sua criação mecânica, co-participam do "engenho como um todo". Isso é inevitável. Trata-se de forma e fundo, ideia e meio, melodia e voz. Da mesma maneira que a escolha ou domínio de um ou mais instrumentos musicais para compor também co-participam da criação do músico. Mas cada qual continua expressando "a sua própria música e uma só". O pensamento coletivista e estritamente coletivista, que vê cada sujeito estritamente como voz de um grupo, "tratoriza" a possibilidade desse indivíduo ser o que é, nos seus próprios subtons: individualmente indivíduo.
O mesmo vale para o texto. Imaginar que estamos "todos compondo um único grande livro" é hipérbole dialogal, porque sabemos que "cada escritor, lê muitos outros" ou certo número deles. Os músicos fazem o mesmo. Da mesma forma que cada um que conta sua história e a escreve, também ouviu ou leu a história de outros. E o pressuposto de escrever é ler, mesmo que estejamos falando de "oralidade": dizer o dito, ouvir o dito. Mesmo incluindo [e transpondo], neste raciocínio, o analfabetismo "stricto sensu". Mas cada qual continua a escrever "seu livro" e a fazer "a sua música", caso a faça. Não importa que sua literatura seja "contada" ou "narrada". Isso já problematiza o raciocínio de criação como "domínio estritamente instrumental" ["instrução formal": há os sem-instrução formal, além dos autodidatas] ou "vocalização tribal", o repertório intergeracional da "tribo" ou grupo: é sempre mais do que isso [e não menos do que isso], quando se trata de criação individual. Esse "domínio do fazer "não tem nada de bacharelesco ou nobiliárquico: não se trata de "citar avalistas". É o oposto disso. É o "achar a própria música" e, nesse achar-se, também o "timbre". Há timbres sem música, como há dizeres sem que se produza "texto". A questão de "avalistas" passa mais pela "divulgação institucional e midiática dos saberes e dizeres" e não no saber-dizer, em sentido mais amplo e desburocratizado.

O raciocínio estritamente classista peca por simplificação do que é mais do que a voz de grupo(s). Porque aporta nuances várias, às vezes transversais ou tangenciais a mais de um grupo. Ou alheia a muitos de seus padrões médios. Daí que a questão é sempre mais complexa. Quem fala pelo grupo nunca fala por si [imerge, submerge na representação de "porta-voz"], ou o suficiente para falar de si [por pouco saber de si e já estar imerso, comumente].

"Eu sou o samba, a voz do morro sou eu mesmo, sim senhor". É claro que eu sei o que o Zé Kéti quis dizer. É claro que eu gosto de Zé Kéti e desse samba. Mas o didatismo pede, no contexto, que eu cite a frase como contraponto para o desenvolvimento da minha argumentação. Licenças poéticas à parte, se o sujeito for "tão o samba" e "a voz do morro", o "sou eu mesmo, sim senhor" não será mais tão "eu mesmo" assim: ele estará no âmbito dos arquétipos e/ ou dos estereótipos Tipos, sem sujeitos. Antes dos sujeitos, porque pré-subjetivos.

Mas dirão: "isso é elitista demais; sujeitos inexistem ou são raros, são flores de estufa protegidas das intempéries". Será mesmo? O sujeito costuma advir das intempéries e sobreviver a elas, de tipos muito mais variados do que as descritas nos esquematismos de escolas: de samba ou de pensamento. Outra fala possível [sofística, não sofisticada] seria: "quem fala só por si mesmo, acaba falando por ninguém". Não me parece. Quem fala por si mesmo é o único que viabiliza [evoca, co-patrocina] a fala e a escuta de cada um dos demais, para além das questões de grupo.


Quem fica só na fôrma, "reiterando a fôrma" mais do que se "apropriando da fôrma para dizer-se", esse incrementa ou estabiliza a própria fôrma ou padrão. Eu diria que esse faz algo como "pré-música" ou "música genérica", contribuindo mais para o aperfeiçoamento e/ou cristalização da fôrma do que para o dizer-se em música. Às vezes, até, por não ter o que dizer de seu, mas pretender um "reiterar" como substitutivo para um "ainda-por-dizer de uma música em falta". Isso também pode se aplicar a outros gêneros de criadores – o "reiterar", ou o "pretender continuar a música de outro", acaba por recair mais na fôrma, já que ninguém, de fato, continua a música de ninguém mais, senão a própria. Assim como ninguém continua o livro de um autor que tenha voz própria. Eis o grande problema da "imersão" de autores em escolas ou grupos representativos: se eu trabalhar com construtos da escola A [e só com eles], produzirei um saber [ou, mais comumente, uma mimese gestual] característicos da escola A, a ponto de poder digerir [e inferir] a meta de todo o trabalho proposto, pela leitura sumária do seu abstract . Essa é a voz genérica. O autor "imerso" no saber de escola não compreenderá, jamais, como um autor mais independente e não "porta-voz" do grupo institucional trabalharia com referências mais heterogêneas e não-uniformes, somente por não conseguir inferir as conclusões de tal autor mais autônomo e corajoso intelectualmente pela leitura "em passant" de sua bibliografia. "Li os títulos dos capítulos de seu texto e a bibliografia e não consegui ver aonde você pretende chegar". Sim. Se tivesse podido entrever as conclusões, o texto não precisaria ter sido escrito. Bastaria que o autor em questão abdicasse de sua "mente própria" e reiterasse o já-dito com as colorações que lhe garantissem as titulações e o "embevecimento engajado" da instituição que passará a integrar e representar. Simples. E exatamente isso, sem tirar nem por.
Se alguém é um "embaixador da fôrma", pode ser "porta-voz", como quem carrega as vozes dos autores, escritores ou músicos de seu tempo ou escola de pensamento, por uma "medida média" ou diapasão [que serve para dar "a nota" ou "o tom da afinação dos instrumentos"]. Da mesmíssima forma que alguém que expressa os valores atinentes à sua geração [e, nesse sentido, genérico-geracionais] é tido como "porta-voz" de sua geração. Essas reiterações de fôrmas ou padrões [de estilos musicais a valores geracionais médios] sempre encontrarão seus porta-vozes. O porta-voz, inclusive, costuma ser aquele que sabe usar melhor o megafone para "fazer ecoar a voz daqueles pelos quais fala", mesmo [e sobretudo!] em se tratando de padrões de grupos específicos. Ou de escola. Essa voz ainda é genérica no sentido de ser "a voz de um grupo". A música de cada um [ou o texto] é "aquela música que ele [este um] está compondo [e só ele poderia compô-la em tais termos]", ou "aquele livro [um só] que [aquele, e só aquele] está escrevendo". E só ele poderia fazê-lo. Não importa a aparente "diversidade" de temas. A música é uma, o livro é um, trate-se de um metalúrgico-da-língua [no sentido do mecânico-criador citado acima, ou do compositor-instrumentista] como Guimarães Rosa, trate-se de um "ensaísta transversal" [pelo cruzamento diagonal de muitos temas, sempre com sua tônica bem audível ao fundo e suas recorrências temático-melódicas] como Vilém Flusser. Não importa. Vemos o sujeito ali, espreitando-nos, ao fundo. E dizendo-nos , com sua voz ultra-específica: "eis minha música". Isso serve para arte ou para conhecimento humanístico em geral.

Um criador pode brincar com o "dizer de outro criador", assim como Villa-Lobos pode fazer as "suas bachianas", o que diz ainda mais do próprio Villa- Lobos [de sua própria música] do que de Bach, ainda que "remeta a Bach". Isso é deferência, homenagem, reconhecimento, gratidão, mas não há um "completar a obra do outro", nem "falsificação de assinatura" [estelionato] ou "paródia". Há criação.


Na falsificação de quadros, por exemplo, ou no sujeito que falsifica assinaturas em cheques, há maneirismos que traem o falsificador, embora ele não esteja afazendo "sua própria música" [e sabe disso!]. De forma análoga, a mimese gestual existe antes de "qualquer construção nela apoiada", criativa ou não. O caricaturista e o humorista também se apóiam nisso e "fazem sua música". São criadores. Cada ator também o faz, dando voz a personagens já feitos por outros atores. Aqui, nós passamos para outro tópico: "o da criação [ou co-criação] do intérprete". Então [e é nesse "deslizamento" de tipos de criação] que podemos incorrer no raciocínio primeiro: "estaríamos todos dando voz a uma única música"? Ou fazendo uma "música de grupos e classes"? Não creio que se resuma a isso, porque é mais do que isso. Sabemos quem é o cartunista [ou se é o mesmo] olhando poucos desenhos. Sabemos se uma música é de Ivan Lins ou Guilherme Arantes, ou de Egberto Gismonti. Sabemos se uma letra é de Caetano ou Gil, bem como a melodia. Se, ao batermos o olho/ouvido, disséssemos que "poderia ser deste, daquele ou daquele outro", não temos aí uma voz autoral. Não temos criação, em suma. Temos a fôrma falando mais alto, ou o andaime antecipando [ou velando] uma "música ainda por fazer". Remetemo-nos, mais uma vez, à fôrma, antes da voz. A ideia de "voz como portadora de valores de grupos e classes" para por aí, paralisada antes das nuances individualíssimas da música de cada um. Provavelmente, por não lhes ter alcançado, daí duvidar da própria existência das mesmas. É a voz "aplainada" ou "acachapada" dos "pensadores" pré-individuais [de massas, grupos ou escolas – não só de samba!], ainda que se imaginem "supra-individuais", porque pensam estar abordando e abrangendo, simultaneamente, o "estofo grupal do indivíduo e o entorno que o engloba e o supera". Falácia e presunção. Mal estão arranhando a superfície da música individual.






Marcelo Novaes

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