“Eu tenho a rua inteira/cravada entre as costelas” – A cidade como alastramento na poesia de Rui Pires Cabral

May 31, 2017 | Autor: Tamy Macedo | Categoria: Portugal, Literatura, Poesia
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"Eu tenho a rua inteira/cravada entre as costelas" – A cidade como
alastramento na poesia de Rui Pires Cabral

Tamy de Macedo Pimenta (UFF/FAPERJ – Iniciação Científica)



A cidade não foi feita para as nossas pretensões,

está apenas alastrada por dentro de nós, crispação

de pedras e espinhos no laço desfeito entre as veias.

(CABRAL, 1997, p. 10)



A paisagem sempre esteve presente na história da literatura,
seja nas extensas descrições narrativas, nas aparições mais breves na
poesia ou até mesmo na dramaturgia através da menção aos cenários. Segundo
Michel Collot, "A paisagem está ligada ao ponto de vista de um indivíduo,
[...] produto de uma experiência individual, sensível e suscetível de uma
elaboração estética singular" [i] sendo, portanto, resultado da percepção
de um sujeito quando este capta, de um só golpe de vista, uma imagem. Até o
início do século XIX, os escritores retratavam majoritariamente paisagens
naturais, através de campos, florestas e montanhas, como podemos observar,
por exemplo, nas estrofes iniciais do poema "Cascais" de Almeida Garrett:

Acaba ali a terra

Nos derradeiros rochedos,

A deserta árida serra

Por entre os negros penedos

Só deixa viver mesquinho

Triste pinheiro maninho.

E os ventos despregados

Sopram rijos na rama,

E os céus turvos, anuviados,

Tudo ali era braveza

De selvagem natureza.




Aí, na quebra do monte,

Entre uns juncos mal medrados,

Seco o rio, seca a fonte,

Ervas e matos queimados,

Aí nessa bruta serra,

Aí foi um céu na terra.




Ali sós no mundo, sós,

Santo Deus! Como vivemos!

Como éramos tudo nós

E de nada mais soubemos!

Como nos folgava a vida

De tudo o mais esquecida!

(GARRETT, 1943, p. 68)




A partir da Revolução Industrial, porém, outros elementos foram
inseridos ao espaço e, consequentemente, à poesia. Em Portugal, através de
"versos crus e exigentes" (SILVEIRA, 1995, p. 9), Cesário Verde inaugura a
presença da cidade e dos seus detalhes mais cruéis e antilíricos.

Lembras-te tu do sábado passado,

Do passeio que demos, devagar,

Entre um saudoso gás amarelado

E as carícias leitosas do luar?




Bem me lembro das altas ruazinhas,

Que ambos nós percorremos de mãos dadas:

As janelas palravam as vizinhas;

Tinham lívidas luzes as fachadas.




Não me esqueço das cousas que disseste,

Ante um pesado templo com recortes;

E os cemitérios ricos, e o cipreste

Que vive de gorduras e de mortes!

(VERDE, 2010, p. 173)



Comparando-se essas estrofes às de Garrett, percebemos dois encontros
amorosos bem divergentes quanto à paisagem em que acontecem. O primeiro
ocorre em um ambiente natural, onde a experiência amorosa ocorre em meio a
juncos, matos e rios em uma serra; enquanto nos versos de Cesário a
lembrança de tal experiência se remete aos passeios ao luar, sendo banhados
pela luz do gás e observados pelas janelas dos vizinhos entre fachadas e
cemitérios, elementos urbanos que invadem a atmosfera idílica do amor.

A cidade, portanto, "torna-se paisagem a partir do momento em que um
sujeito a concebe como inserida em seu meio ambiente, formando com ele um
conjunto cuja coerência sensível é portadora de significado." [ii] (COLLOT,
2011, p. 69). Assim, sendo percebida pelo casal nos versos de Cesário, a
urbe transforma-se em uma paisagem como os tradicionais espaços campestres.
A Cesário, seguiram-se muitos poetas modernos a falar de cidades e, mais
recentemente, uma série de novíssimos poetas tem tido nas paisagens urbanas
um dos seus principais temas. Um deles é Rui Pires Cabral[iii], cujo
primeiro livro de poesia data de 1994 e de cuja obra em relação à cidade
tratarei neste ensaio.

Ao longo de seus livros, o sujeito de RPC perambula por várias
metrópoles mundiais, estando constantemente em trânsito, errando e
observando os lugares por onde passa. Dessa deambulação resultam versos
altamente descritivos onde se evidenciam a cidade, seus habitantes, seu
tempo acelerado e as consequentes sensações de desnorteamento, solidão,
angústia e perda vivenciadas pelos sujeitos nela inseridos. Pois, se "a
partir de certa altura/ todas as cidades se parecem" (CABRAL, 2005, p. 46)
podemos construir uma ideia global de espaço urbano na obra de Rui Pires
Cabral resultante de suas incessantes errâncias pelo mundo.

Nessas viagens o eu-lírico é frequentemente acompanhado por um
interlocutor desconhecido, sem nome, muitas vezes identificado com uma
figura feminina e com um "tu". São poucas as informações e descrições sobre
esse interlocutor, principalmente quando contrastadas com os minuciosos
detalhes espaciais retratados por esse sujeito, mas, nos poucos poemas onde
o interlocutor ganha certo destaque ele o divide com o lugar onde está
inserido, e a paisagem torna-se múltipla, constituindo-se como uma
sobreposição de imagens:

Eu gosto da tua cara contra o fundo

circunstancial, ocupas o espaço por onde a rua

se intromete, as tuas pernas magras no passeio

como as de um fantoche que só mexe os braços.




Ao canto uma árvore fazia sombra pequena

na desconversa. Estavas mais ou menos

a dizer: nenhum futuro neste sofrimento.




O teu melhor ângulo.

(CABRAL, 1997, p. 14)




Nesse poema, a figura do interlocutor(a) confunde-se com o "fundo
circunstancial" ao qual está ligado no momento aludido pelos versos.
Pernas, ruas, rosto e árvore se misturam e o interlocutor nos é revelado
através de "um jogo entre figuras e fundos, pelo qual doravante cada qual
pertence, irreversivelmente, à cidade que o cerca" (EIRAS, 2011, p. 175).
Dessa maneira, esse outro é constantemente apresentado como um habitante
que vive imerso na cidade de tal forma que esta invade sua fisionomia:

"E depois falaste durante muito tempo

com os incêndios da cidade a rebentar

por trás dos teus olhos"

(CABRAL, 1997, p. 19)



"Falaste a noite toda sobre a vida na Colômbia

com o rastro dos postes intermitindo no teu rosto

atento, quase hierático."

(CABRAL, 1997, p. 43)



Tal fato aponta para a percepção do eu-lírico, que, além de
visualizar seu interlocutor intricado à cidade, sente-se ele mesmo fundido
aos espaços que percorre. Ainda sobre a paisagem, Collot disserta:

A paisagem não é um puro objeto em face do qual o sujeito poderá se
situar numa relação de exterioridade, ela se revela numa experiência
em que sujeito e objeto são inseparáveis, não somente porque o objeto
espacial é constituído pelo sujeito, mas também porque o sujeito, por
sua vez, encontra-se englobado pelo espaço [...] é um espaço
considerado a partir de mim como grau zero da espacialidade. Eu não o
vejo segundo seu invólucro exterior, eu o vejo de dentro, sou aí
englobado.

(COLLOT, 2011, p. 13)




Os sujeitos, então, simultaneamente percebem o espaço e são
englobados por ele, o que implica, no caso da poesia de Rui Pires Cabral,
em uma fusão entre o Eu e a cidade, como podemos observar através de versos
como:

[...] Eu tenho a rua inteira

cravada entre as costelas,

flores espezinhadas na berma

dos rins.

(CABRAL, 2006, p. 28)




A cidade não foi feita para as nossas pretensões,

está apenas alastrada por dentro de nós, crispação

de pedras e espinhos no laço desfeito entre as veias.

(CABRAL, 1997, p. 10)



Tal fusão, porém, possui caráter conflituoso. O sujeito percebe que a
cidade o habita interiormente, mas expressa essa simbiose como quase
invasiva, sendo a urbe algo que se entranha por entre ele. Vocábulos como
"cravada" e "alastrada" demonstram a maneira pela qual esse espaço entra no
sujeito, que o caracteriza como "crispação de pedras e espinhos" ou "flores
espezinhadas" que estão associadas a partes do corpo ligadas ao sangue e
aos ossos ("costelas", "rins", "veias"), relacionadas, portanto, à morte.
Para explorar um pouco mais essa correlação entre morte e cidade é
interessante ler um longo poema que, de acordo com Joaquim Manuel
Magalhães, "pode tornar um leitor perdido; traçando um risco de mistério
que teme a decifração" (MAGALHÃES, 1999, p. 278)



CHINA DOLL

à Daniela




Eu ia na passadeira com um propósito mas




a gravata de um homem atirou-me para o coração

do abismo. Uma insuspeitada gravata de seda

com pintas discretas, o catalizador




da vertigem. Aquilo que o vento levantava

na avenida era uma espécie

de música, um barulho de sinos remoto




e descompassado, viam-se algumas flores

a entrar na boca do esgoto como se fosse ali

a casa delas. E sem deixar eco qualquer coisa ruía




nas fachadas, o próprio oxigénio era nesse instante

como uma língua estrangeira. Eu sentia na garganta os tambores

do sangue e os prédios enfadonhos pulsavam

na taquicardia, caíam em desamparo




para a cova do meu peito. Do outro lado da rua

um sinal de trânsito foi a minha âncora.

(CABRAL, 1997, p. 31)




Em meio à conturbação citadina, o eu – lírico, ao ver "Uma
insuspeitada gravata de seda", é atirado ao abismo. Nesse movimento, alguns
traços do espaço urbano são percebidos através de múltiplos sentidos – os
ouvidos captam uma "espécie/ de música" de barulho de sinos na avenida; os
olhos visualizam "flores"; e o olfato e o paladar se misturam ao notarem "a
boca do esgoto". O Eu sente, sinestesicamente, a cidade invadindo seu
corpo, que reage a este alastramento como a um ataque cardíaco. Desde a
primeira estrofe o "coração" é mencionado e, ao longo dos versos, sensações
como falta de ar ("o próprio oxigénio era nesse instante/ como uma língua
estrangeira"), pulsações ("sangue", "os prédios enfadonhos pulsavam") e,
finalmente, a taquicardia, são aludidos. Desse modo, a atmosfera
vertiginosa e desnorteante da cidade quase leva o sujeito "para a cova do
(seu) peito". Entretanto, um símbolo da urbanização – o sinal de trânsito –
o salva, o que nos permite pensar em um possível risco de atropelamento
enquanto o Eu atravessava a avenida ou em uma luz que o desperta desse
transe ocasionado pela visão da gravata. De qualquer maneira, apesar do
semáforo o salvar nos versos finais, durante todo o poema a cidade é
relacionada à morte, proporcionando ao seu habitante sensações doentias e
desesperadoras, conforme entranha em seu corpo. A própria forma do poema,
calcada em fortes enjambements, explicita seu conteúdo conturbador e
fragmentado em que "o sentido da linearidade perde-se num tom quase
onírico" (MAGALHÃES, 1999, p. 278).

Essa simbiose conflituosa deve-se muito ao fato de o eu-lírico, mesmo
englobado pela cidade, conseguir manter uma postura distante e crítica
desta, principalmente ao observar outros metropolitanos que, como ele,
vivem "sem mapa ou sentido que (os) sirva" (CABRAL, 2005, p. 32) nesses
espaços urbanos. Assim, o Eu percebe a cidade tanto interiormente quanto de
forma exterior através da descrição de pessoas e lugares.



¹




Chega ao fim do dia

a hora mais lenta, quando o céu

é vago e as luzes se acendem

no prédio da frente.




Vemo-los por vezes

dentro das janelas, vultos

delicados como miniaturas

ou meros reflexos que passam

nos vidros.




Alguns prosseguem encargos

de sombra, outros detêm-se

a olhar a rua, no gesto

a expressão do seu puro

enigma.




E são como provas

de coisa nenhuma. Se acaso

nos fitam, parecem dizer:

a morte não será decerto

mais estranha que a vida.

(CABRAL, 2009, p. 11)




Observados, os habitantes da urbe são percebidos como "vultos",
sombras fantasmagóricas que parecem vagar pelas janelas, expressando a
linha tênue que separa a morte da vida. Estas pessoas, portanto, retratadas
quase como mortos-vivos, novamente enfatizam a relação entre morte e
cidade, sendo seu grande "enigma" – deslocado através de um enjambement
formando sozinho um único verso – sua própria existência. Como o sujeito
que as observa, elas também são vítimas do alastramento urbano, que
progressivamente as assassina. Se estas sombras parecem dizer que "a morte
não será decerto/mais estranha que a vida", o Eu poderia responder a uma
delas "Não foste o primeiro nem serás o último/a deixar morrer a alma antes
do corpo" (CABRAL, 2003, p. 12). Assim, nesses mortos-vivos o eu-lírico
enxerga sua própria condição que, na verdade, é característica de todos os
moradores da urbe.

³




Duas horas de euforia entre os leões

de Trafalgar. Era o pino do inverno

e a cidade atravessava uma idade glacial




do coração. Ao relento azul das ruas,

corpos que vinham da noite, aturdidos,

saciados, regressavam aos subúrbios

nos tardios autocarros. [...]

(CABRAL, 2009, p. 13)




Nessas estrofes, além de novamente observarmos a menção aos
habitantes de maneira sombria ("corpos que vinham da noite" - grifo meu),
introduz-se a ideia da escassez de afetos dentro do espaço urbano ("idade
glacial/do coração"). Se "As cidades são o precipício/dos rios, aqui dentro
ninguém canta/os predicados do amor" (CABRAL, 2003, p. 22), os sujeitos que
nela perambulam são dominados por sentimentos negativos e perturbadores,
como solidão, angústia, perda e desorientação. Ao longo da obra de Rui
Pires Cabral, o amor é retratado como um sentimento efêmero, através de
encontros afetivos pontuais, como em:

[...] Já não valia a pena perguntar

que diabo estava eu a fazer ali, sem dinheiro

e sem saber ao certo onde. Tu tiraste a roupa

e revelaste o cenário que me testemunharia.

(CABRAL, 1997, p. 13)




Ou como perda, em poemas calcados em lembranças de envolvimentos passados
-"estávamos juntos ainda – e sei que fomos felizes/ na cidade mais triste
do mundo" (CABRAL, 2006, p.12). Dessa maneira, a solidão, como sentimento
avesso ao amor, é a emoção característica na cidade povoada de mortos-
vivos:

[...] E contudo, à revelia

das certezas que não quiséramos ter,

acabamos sempre por tornar

às mesmas ruas, à noite insone

e imensa, onde nos dói descobrir,

na companhia dos outros,

o quanto nos reclama a solidão.

(CABRAL, 2006, p. 18)



Dessa maneira, errando por diversos espaços urbanos, o eu-lírico de
Rui Pires Cabral é envolvido por sentimentos característicos da existência
de qualquer habitante de cidades contemporâneas, como angústia, solidão e
até mesmo uma sensação alarmante de vertigem em meio às múltiplas
informações que recebemos simultaneamente nas ruas. Assim, seus versos são
um espelho de nossa vivência pelas cidades, mostrando-nos nossa própria
condição em tempos cada vez mais desassossegados.







Referências Bibliográficas

COLLOT, Michel; BERGÉ, Aline. Paysage & Modernité(s). Paris: Ousia, 2008.

______. Pontos de vista sobre a percepção de paisagens. Trad. Denise Grimm.
In: ALVES, Ida, et al. Literatura e Paisagem em Diálogo. Rio de Janeiro:
Edições Macunaíma, 2011.

______. La Pensée-Paysage – Philosophie, arts, literature. Arles: ACTES
SUD/ENSP, 2011.

CABRAL, Rui Pires. Música Antológica e Onze Cidades. Lisboa: Presença,
1997.

______.Praças e Quintais. Lisboa: Averno, 2003.

______.Longe da Aldeia. Lisboa: Averno, 2005.

______.Capitais da Solidão. Vila Real: Teatro de Vila Real, 2006.

______.Oráculos de Cabeceira. Lisboa: Averno, 2009.

EIRAS, Pedro. Um Certo Pudor Tardio – Ensaio sobre os .

Porto: Edições Afrontamento, 2011.

GARRETT, Almeida. Folhas Caídas e outros poemas. Lisboa: Livraria Clássica
Editora, 1943.

MAGALHÃES, Joaquim Manuel. Rui Pires Cabral. In: Rima pobre. Lisboa:
Presença, 1999.

PEIXOTO, Nelson Brissac. Paisagens urbanas. São Paulo: Editora SENAC São
Paulo, 1996.

SILVEIRA, Jorge Fernandes. "Cesário duas ou três coisas". Prefácio a
Cesário Verde – Todos os poemas. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.

VERDE, Cesário. Poemas Reunidos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010.

Notas

-----------------------
[i] "Le paysage est lié davantage au point de vue d'un individu, […] le
produit d'une expérience individuelle, sensible et susceptible d'une
elaboration esthétique singulière." (COLLOT, 2008, p. 16-17).

[ii] "la ville devient paysage dès qu'elle est perçue par un sujet comme
insérée dans son environnement et formant avec lui ensemble dont la
cohérence sensible est porteuse de sens." (COLLOT, 2011, 69).

[iii] Poeta e tradutor formado em História e Arqueologia pela Universidade
do Porto, nascido em Macedo de Cavaleiros, Portugal, no ano de 1967. Seu
primeiro livro foi de contos, Qualquer Coisa Estranha, publicado em 1985 e
a ele se seguiram mais nove, de poesia: Pensão Bellinzona e Outros Poemas
(1994), Geografia das estações (1994), A super-realidade (1995), Música
antológica & onze cidades (1997), Praças e quintais (2003), Longe da aldeia
(2005), Capitais da solidão (2006), Oráculos de cabeceira (2009) e A Pocket
Guide to Birds (2009). Seus poemas estão presentes em antologias, cujas
principais são: Anos 90 e agora: uma antologia da nova poesia portuguesa
(2001), Poetas sem qualidades (2002), 9 poetas para o século XXI (2003) e o
segundo volume de Portugal, 0 (2007). Como tradutor de língua inglesa,
destacam-se os trabalhos com os livros Uma Casa no Fim do Mundo, Sangue do
Meu Sangue e Dias Exemplares de Michael Cunningham.
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