EXCEÇÃO E VIOLÊNCIA

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EXCEÇÃO E VIOLÊNCIA1 Lucas Farias Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Supervisor Judiciário no Tribunal de Justiça de Alagoas. Endereço eletrônico: .

De tempos em tempos, impulsionado por uma percepção acrítica e irrefletida de problemas socioeconômicos e psicopatológicos, ganha fôlego o discurso passional e virulento que propõe medidas higienistas, discriminatórias e flagrantemente atentatórias ao núcleo essencial da dignidade humana como sendo a "solução final" para a violência.

O rol dos replicadores extremistas da tese "bandido bom é bandido morto" e suas famigeradas variáveis ("adote um bandido se tiver pena", "direitos humanos para humanos direitos" et caterva) com espaço midiático diuturnamente garantido é mais um dado que reflete o perigoso ascenso conjuntural de ideias abomináveis que deformam consciências e podem acelerar nossa marcha rumo à barbárie.

Amarrar um "marginalzinho" nu no poste para dilacerá-lo (regra implícita comprovada na prática: desde que preto e pobre) e pisotear corpos de suspeitos desfalecidos (vide

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Artigo redigido e publicado nas redes sociais em 17 de abril de 2014, em atenção ao recrudescimento vertiginoso de episódios de linchamento no Brasil noticiados à época, indicativo evidente de um fenômeno social complexo cujas raízes têm sido ignoradas pela boa análise científica e metodologicamente criteriosa.

critério anterior) tornam-se, no abecedário da fascistização, expressões sinônimas a "legítima defesa coletiva" e a "reação do cidadão de bem".

Mas se os ditos criminosos pertencerem à casta de delinquentes de alto coturno, daqueles que ostentam colarinhos brancos e cometem “desvios” cujos tipos penais são desconhecidos por grande parte da população (peculato, sonegação fiscal, lavagem de dinheiro, evasão de divisas etc.), nos quais tanto a materialidade do fato quanto a identificação do autor se tornam imperceptíveis no cotidiano de um comum, a eles poderá ser dado o título de empresário de sucesso ou, quem sabe, um voto de confiança na próxima eleição. Esse ideário, além de completamente abominável, é igualmente seletivo em sua perversidade porque, aos criminosos de elevada estatura social, protela e premia; a rafamés de chinelos, lincha e executa.

Se já não preocupasse o bastante essa retórica odienta alastrada no papel impresso e na programação ao vivo e a cores das concessões públicas de radiofusão que permanecem impunes, tanto pior quando ela interdita qualquer debate qualificado, obscurece qualquer tentativa de racionalização e impede a tomada de ações que se voltem para soluções estruturais, capazes de atacar radicalmente a defasagem de políticas públicas universais, as desigualdades raciais e as injustiças sociais em geral.

Nesse cenário infernal, a boataria, o linchamento e o tribunal de exceção são criminosamente explicados por alguns espectros ideológicos conservadores como supostos fenômenos de reação popular legítima, como se a irracionalidade, a desumanização e a marcha à ré civilizatória pudessem nos trazer paz social e nos fizessem pessoas melhores. Sim, porque a legitimação do justiçamento, tornando-o uma prática socialmente concebível, irá nos trazer alívio, segurança e dignidade, certo?

Errado. Há uma evidência que não é racionalizada pelos apoiadores e executores coléricos da criminalidade coletiva, mas que os ameaça a cada explosão de selvageria. Quando os integrantes de um meio social clamam pela suspensão de regras mínimas e justas de convivência, de respeito, de procedimento, de contraditório, de autodefesa e de preservação da própria vida, todos passam a vivenciar um estado permanente de exceção, em que todos são expostos e submetidos à condição de vítimas e de suspeitos

em potencial, uns mais que os outros, dependendo da posição social e do papel desempenhado na estrutura de poder.

Sem amarras legais nem limites razoáveis convencionados, também as classes que dirigem o Estado e seus aparelhos de coerção se agigantam, escancaram seus propósitos seletivos e impõem arbitrariamente sua legalidade como projeção de seus interesses e da manutenção de seus privilégios, sem a menor possibilidade de contestação popular organizada.

Para todos os efeitos, a narrativa bestializante não é fruto do acaso. Ainda que repercutida acriticamente em diversas camadas do senso comum, seus idealizadores se furtam a assumir publicamente as verdadeiras consequências desse enredo macabro: fortalecimento de estereótipos de delinquência segundo critérios de cor e renda, canalização de espasmos de ódio contra determinados segmentos sociais mais vulneráveis como alvo em potencial, transformação da aparência da criminalidade perceptível na causa fundante da violência urbana, produção da ilusão coletiva de que o justiçamento covarde seria eficaz no combate ao crime (quando de fato só o reproduz) e incentivo à performance da barbárie para esconder qualquer forma de compreensão sobre as origens sistêmicas de problemas sócio-históricos.

Não por mera eventualidade os difusores da barbárie não conclamam a coletividade para o debate e a reflexão sobre as causas e as consequências da violência urbana. Seu enraizamento em fundações culturais, sociais e econômicas não é problematizado porque isso significaria a assunção de uma postura questionadora em face do status quo e das estruturas de poder e dominação vigentes – ou seja, tudo o que apavora quem está no andar de cima do edifício social.

Assim, a energia e a disposição das pessoas são direcionadas pela retórica da violência para a prática de crimes completamente repudiáveis, quando, de fato, devem ser dirigidas em reflexão e atitude contra o Estado, seus agentes políticos comprometidos com a manutenção da ordem e os sujeitos, individuais e coletivos, que tornam a degradação social e a exploração da violência tanto uma necessidade de classe quanto um negócio lucrativo. Trata-se de assumir uma postura que exija soluções um pouco mais complexas e menos bestiais que o mero derramamento de sangue.

É fundamental, portanto, que agentes coletivos qualificados (como os movimentos sociais, fóruns, entidades representativas, instituições de ensino e pesquisa, coletivos, partidos etc.) recuperem a pauta do debate público, estimulem canais alternativos de comunicação social (como as redes virtuais e a internet de maneira geral), promovam espaços amplos de articulação, discussão e formação onde germinem ideias que constituam plataformas políticas com propósito transformador, oferecendo respostas mais consequentes e racionais para o equacionamento de questões essenciais – indo além de sua aparência.

Urge contrapor a tentativa de convalidação dos fenômenos de violência bruta pautados pela imediaticidade e alienação, orquestrada pela mídia dominante e pelo forçado consenso conservador, com narrativas e proposições coerentes e bem fundamentadas, que articulem experiências concretas e conhecimento sólido vindos da política, da sociologia, da história, da economia, do direito e de outras ciências.

Plenárias e assembleias populares em bairros, escolas, universidades, locais de trabalho e de convívio público, por exemplo, materializam a estratégia de uma densa contrahegemonia que debata em rede correntes de pensamento, ideias e valores encampados por forças progressistas contra o senso comum e as tentativas de justificação da barbárie.

É igualmente fundamental recuperar a política e suas estratégias como lócus de mediação de conflitos, encampando-se a justiça e a solidariedade, cada vez mais ameaçadas pelo ideário neoliberal que privatiza o espaço público e designa o mercado como único regulador da vida em sociedade.

Estas são tarefas inadiáveis.

Quando linchamentos públicos e execuções sumárias são exaltados como panaceias contemporâneas para a diminuição da violência, a farsa pode abocanhar a tragédia que tenta nos engolir. Eis o perigo de que se estabeleça entre nós a banalidade do mal.

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