Excertos Clínicos do Diálogo com um Esquizofrênico

Share Embed


Descrição do Produto

Abaixo, estão excertos da comunicação que mantive com "Lígia", uma paciente esquizofrênica.
A razão de ser desses excertos é apontar para o estilo da comunicação estabelecida.


- Germens no ar me fertilizam, doutor, e eu sei que vou parir animais e plantas.
Meu primeiro namorado se chamou Adão e morreu. Meu segundo namorado se chamou Adão e também morreu.

- Puxa, eu imagino o quanto você sente que Deus está te castigando! Que coisa difícil pra vc.

- Cuidado, doutor, com o raio.

- Sim, é claro, um raio poderia cair na minha cabeça por eu estar falando isso. Mas é importante falar disso, você não acha?


Sorriso e suor frio.

- Preciso ir ao banheiro, doutor.

- Claro, existem coisas que nos fazem suar. Eu estou aqui te esperando pelo tempo que for necessário.

Ela vai e volta.


- Eu não me senti indo com a descarga dessa vez.

- Sim. Eu estou aqui e você pôde voltar até mim, mesmo a gente falando coisas que deveriam provocar raios ou um castigo. Estamos aqui. Eu estou aqui e você voltou do banheiro sem o suor frio. Talvez tenha diminuído seu medo...


- Doutor, o senhor devia gravar essas coisas que está falando.

- Huuumm... Pra quem você gostaria de mostrar essas coisas que eu falo? Pra sua irmã? Pra sua avó?

- Sim!


- Você acha que sua mãe e sua avó precisam ouvir isso que eu te falei? Que isso ajudaria as duas a saberem como você se sente?


- Sim, é isso.

- Pode deixar, eu falarei com elas sobre teus medos e do quanto não se pode dizer dos teus namorados e também da dificuldade de ficar aí, onde você está. E de ficar com elas.


- Isso, doutor. O senhor vai me engravidar?

- Olha, querida, você já tem muitas coisas dentro de você, não é verdade?


- Sim, eu vou parir plantas e animais.


- Veja, você acha que já tem algumas coisas vivas aí, mas coisas que ainda não conseguem falar.


- É verdade, doutor.


- E eu falo. Eu falo sem ser pulverizado pelo raio. Se você quer que eu grave o que falei, talvez ache bom que outros possam ouvir, sem o barulho ou o perigo dos raios. Os raios atingem só quem fala, não é? Eles parecem não atingir quem ouve...



- Isso, só quem fala.


- Então, Lígia, eu não vou te engravidar, mas você saberá falar coisas que ouviu da minha boca e que quer que eu grave. Elas são importantes, eu sei, e falar é difícil. Você talvez queira poder falar também como eu, sem o medo de ser "atingida pelo raio". De ficar "toda partida". E como sou eu que estou falando, puxo o teu medo pra mim. O raio, a raiva de Deus, estão todos atraídos pra mim agora.


- Estão. O senhor vai gravar isso, não vai?


- Sua irmã e sua avó vão saber que o doutor fala algumas coisas que você ainda não conseguiu. Elas vão te ouvir pela minha voz, está bem?



- Que bom! Que bom! O meu tio é o Sílvio Santos!

- Huuumm... Talvez você queira que eu inclua o seu tio nas minhas conversas sobre as coisas que você não pode mais precisa falar. O seu tio constrói casas, não é?

- Sim, o meu tio constrói casas!


- O seu tio é um cara muito bom. Eu sei que ele faz mutirões, quer dizer: ele junta gente para construir casas nos domingos. Mutirão é "quando junta gente". Seu tio faz isso, não faz?


- Isso, doutor! Sim! Sim!

- Então, veja que interessante: Silvio Santos dá casas no domingo, ele dá casas para as pessoas. Ele sorteia casas. Ele faz isso, não faz?

- Eu já vi o programa do Sílvio Santos. Ele roda o pião e dá casas.

- Seu tio ajuda a fazer casas no domingo, assim como Silvio Santos dá casas para pessoas nos domingos. Seu tio é como o Silvio Santos, de alguma maneira. Eles fazem coisas parecidas no domingo.

Sorriso terno. Uma calma sobrevém à agitação da moça.


- Doutor, você vai gravar isso?


- Lígia, eu vou falar pro seu tio que você gosta dele e que acha ele um cara legal, generoso, que ele se preocupa com as casas dos outros, que ele é legal como o Silvio Santos.

Pausa. Depois do sorriso, uma revelação abrupta:


- No hospital me crucificaram, doutor.

- É, eu sei que você foi amarrada algumas vezes, te esticaram os braços e você se sentiu castigada. Será este também um castigo de Deus, como a morte do Adão, seu namorado?


- Eu sei que eles me crucificaram lá.


- Eles te amararam lá, e você está aqui comigo, agora. Você se sente aqui comigo?

- Estou! Sim, estou!

- Então, agora as coisas ficam mais presentes: minha fala que você quer que fique no gravador pra sempre, para todos ouvirem.


- Isso! Sim!

- Até que um dia, você também saiba falar essas coisas que eu digo, sem precisar do gravador.


Ela sua um pouco e sorri.


- Eu sei que dá medo. Você voltou do hospital e estamos conversando. Você voltou do banheiro e estamos conversando.


Sorriso.


- Existem coisas boas, como é bom estar aqui e não estar ao mesmo tempo no hospital. Também é bom que eu esteja vivo, sem que o raio me destrua.


Sorriso.


- Doutor, diga se eu estou menstruada. Eu acho que eu estou menstruada.


- Olha, Lígia, você agora está sentindo melhor seu corpo. Você não foi embora com a descarga, você voltou do banheiro e está aqui comigo. Você também voltou do hospital e não está mais crucificada lá. Estamos conversando e você sente que tem um corpo, que está no corpo. Eu acredito que você possa estar menstruada. Quem poderia ver isso?


- O senhor, doutor.

- Lígia, eu não preciso ver isso, ainda que eu entenda que você precisa que eu saiba disso. Mas você também pode dividir isso com sua irmã e sua avó. Eu posso falar pra elas que você acha que está menstruada. Talvez eu devesse gravar isso também: "A Lígia está menstruada!".


Sorriso.

- Veja, Lígia, muitas coisas foram difíceis de dizer e ainda são entre você, sua irmã e sua avó.

- Minha avó esconde coisas de mim.


- Eu sei. E uma das coisas boas de um gravador é que ele guarda as coisas não para esconder, mas para mostrar. Elas ficam ali, mas não ficam escondidas.


- Sim! Minha avó operou e não contou nada. Minha avó escondeu isso de mim.


- Sua avó foi pra outro hospital e não soube como te contar o que ela foi fazer lá. Você fica imaginando o que ela foi fazer lá?


Pensativa e menos eufórica.

- Pra que serve hospital, Lígia?


- Serve pra operar, pra ter bebês. Eu fui crucificada no hospital, algumas vezes.


- Aham, é verdade. Você estava lá no hospital e te amarraram, te deram remédios e agora você está aqui comigo. E acha que está menstruada. Veja que coisa! E não quer mais que as outras pessoas escondam o que vão fazer no hospital. Você não quer que as pessoas escondam nada de você, se elas tiverem coragem de falar. Será que elas precisam de um gravador também? Você quer que eu me lembre das coisas que elas falam e conte pra você?

- Quero! Quero! Sim!


Pausa.


Eu sei da cirurgia da avó da moça que atendo. Ela fez uma cirurgia para remover cistos no útero. Sei, por experiência própria, que certos esquizofrênicos fazem perguntas ao ambiente com suas próprias questões. Guardo para mim que a questão da menstruação e o segredo da cirurgia da avó possuem um "link" temático. Guardo isso pra mim. Esse background não será operacionalizado. Mas é uma constatação aqui, em off, da permeabilidade e inclinação do inconsciente do esquizofrênico para pretender sondar os segredos dos outros.

Pensativa, Lígia diz:

- Minha mãe teve os bebês em casa.

- É verdade, Lígia. Você e sua irmã nasceram em casa. Isso era mais comum antes, e ainda é comum na roça. Você já ouviu falar de bebês que nasceram em casa na roça?


- Sim! Eu sei de muitos assim.

Lígia mora num sítio no interior, perto da capital. Ela conhece bem os costumes da roça e, nessas coisas todas, gosta de me contar detalhes, gosta de me ensinar. Talvez eu possa colocar coisas que ela diz dentro de mim também, coisas que ela já diz sem medo de dizer.

- Lígia, nem todos os bebês nascem em hospitais. E hospitais servem para coisas diferentes, para mais de uma coisa. Sua avó fez uma operação num hospital. E era outro hospital diferente daquele de onde você saiu e que te deixou tão chateada.


- Sim, era outro. Ela fez uma operação, não foi crucificada.


- Sim. Sua avó fez uma operação e você quer entender o que ela fez no hospital.


- Eu quero.


- Eu vou pedir pra ela conversar com você, está bem? Eu vou falar que você não quer mais que escondam as coisas de você. Está bem?

- Fala pra ela doutor.


- Eu não preciso gravar isso, Lígia. Eu não vou me esquecer. Eu falo, está bom?

- Obrigada.

Silêncio.


- Coisas diferentes acontecem em hospitais: bebês nascem, pessoas são operadas, outras ficam lá e tomam remédio. Você saiu de um hospital que não gostou. Sua avó pode ter ficado com medo que você ficasse com medo dela ir ao hospital.


Sorriso e um pouco de suor na testa.


- Assim como você também ficou com medo de eu falar coisas e de um raio cair em mim! Você se preocupou comigo! Você ficou com medo de eu ser destruído. Você quis me proteger.

- É.

- Você até pediu que eu gravasse no gravador, porque gravador não é gente. Se um gravador quebra, a gente troca.

- E se quebra o segundo...?

- É, você perdeu dois namorados com o mesmo nome. Mas gravador não é gente. Se eu gravo, algum dia a pessoa vai ouvir em algum gravador. Mas eu mesmo vou falar, pra não demorar tanto.


- Tá bom.


- Existem coisas difíceis de falar, as coisas que a gente tem medo.

- É.

- E também as coisas que a gente tem medo que o outro tenha medo.


- Isso também.


- Lígia, será que sua avó não teve medo de te contar que ia para um hospital?


- Eu estou menstruada, doutor!

- Parece que você está com mais certeza ou com mais necessidade de alguém confirmar pra você que você está menstruada! Você pode fazer assim com a sua avó: "Vó, eu falo da minha menstruação, você me diz se eu estou mesmo menstruada, e você me conta o que você fez no hospital". Você quer fazer isso, Lígia?


- Quero, quero sim.


- Quer que eu diga pra sua avó que você não tem medo do hospital dela, nem de outras coisas que acontecem no hospital, coisas diferentes de ser amarrada?


- Grave isso, doutor!


- Eu vou falar pra ela, Lígia. E você vai poder falar pra ela também das coisas que você não tem mais medo.



- Sim, eu vou poder falar que estou menstruada!


- Ah, você mesma quer e pode falar que está menstruada?


- Eu vou falar, eu vou falar. Sim!


Lígia vai ao banheiro e volta mais uma vez.


- Você voltou de novo, Lígia.


Sorriso.


- Os hospitais servem pra muitas coisas, Lígia, e são diferentes. Algumas pessoas são operadas, outras vão ter bebês no hospital, outras nem precisam ir e têm seus bebês em casa. Como a sua mãe. Como muitas pessoas da roça.

- Sim.

- Existem coisas que eu nem preciso gravar pra você, Lígia!


- Sim.


Sorriso.


- As casas também são diferentes. Seu tio ajuda a fazer casas nos domingos, o Silvio Santos dá outras casas para as pessoas. Ela sorteia casas.


- Sim!


Sorriso.


- Seu tio faz coisas parecidas com o Silvio Santos, também no domingo, mas são outras as casas que ele faz. Seu tio é um cara legal, como o Silvio Santos.

- Sim, meu tio Walmir é legal.


- Lígia, eu vou pedir para a tua avó falar daquele outro hospital, porque as coisas às vezes se misturam e, de algumas, você consegue falar, outras eu preciso gravar ou repetir. Está bom assim?


- Tá bom, doutor.


Lígia passou a tomar antipsicóticos de segunda geração. Ela estava mesmo menstruada!

Ela sabia que, menstruada, não estava grávida, nem de mim, nem dos germens do ar. Não iria parir bebês, nem animais ou plantas.


Lígia saiu dos surtos e arrumou um trabalho de meio período. Numa loja de CDs.




Marcelo Novaes






Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.