Execrando suspeitos para atrair audiência (edição livro)

June 29, 2017 | Autor: Tulio Vianna | Categoria: Moral Panic, Sensacionalismo, Jornalismo Policial, Direito à Imagem
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CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Perspectivas Interdisciplinares

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Copyright © 2015 by Bernardo de Azevedo e Souza & Rafael Eduardo de Andrade Soto Categoria: C rim inologia P ro d u ç ã o E d it o r ia l

L ivraria e Editora L um en Ju ris Ltda. D iagram ação: José Roberto dos S a n to s Lim a A L IV R A R IA E E D IT O R A L U M E N JU R I S L T D A . n ão se responsabiliza pelas opiniões em itidas n esta obra por seu A utor. E proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quan to às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crim e (C ódigo Penal, art. 184 e §§, e Lei n9 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a b usca e apreensão e indenizações diversas (Lei n9 9.610/98). T odos os direitos desta edição reservados à L ivraria e Editora Lum en Ju ris L tda. Im presso no Brasil Printed in Brazil

C IP -B R A S IL . C A T A L O G A Ç Ã O -N A -F O N T E

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C iências crim inais em debate : perspectivas interdisciplinares / Bernardo de Azevedo e Souza, R afael Eduardo de A n d rad e S o to (organizadores). —R io de Janeiro : L um en Juris, 2015. 411 p . ; 23 cm. Inclui bibliografia. ISB N 978-85-8440-202-1 1. Direito penal. 2. D ireito penal - A sp ecto s sociais. 3. Processo penal. 4Crim inologia. 5. A b ordagem interdisciplinar d o conhecim ento. I. Souza, B er­ nardo de A zevedo e. II. Soto, R afael E duardo de A n d rad e. C D D 345

SUMÁRIO

A presen tação Prof. Dr. Nereu José G iacom olli..................................................................................1 À guisa de Prefácio: Ciências C rim in ais em D u ros Tem pos de Fragilização da Secu larização Prof. Dr. Lenio Luiz Streck........................................................................................... 5

A R T IG O S

C rim in al com pliance em u m contexto de prevenção à lavagem de capitais e de respon sabilização crim in al da p essoa ju rídica: reflexões sobre a experiên cia norte-am erican a Adriane da Fonseca Pires........................................................................................... 11 A tutela ju ríd ica da m em ória individual n a sociedade da in form ação: com preendendo o direito ao esquecim ento Bernardo de Azevedo e S ouza..................................................................................... 43 L a culpabilidad ju ridico-pen al en el estado dem ocrático de derecho

Bernardo Feijoo Sán ch ez................................................................................................................ 6 ^

A cautelaridade do sistem a p enal brasileiro: u m a hipótese sobre a

|

reversão ideológica da lei 12.403/11 Bryan Alves Devos e Salah H assan Khaled Jú n io r................................................95 D a categoria ju rídico -p en al dos delitos a d istân cia e sua relevância em face da lei de organ izações crim inosas - Lei 12.850/13 Carlos P. Thom pson Flores e Ney Fayet Júnior...................................... ............... 117 A filosofia da con sciên cia e a relativização das form as no processo penal Daniel Kessler de O liveira........................................................................................139

A prisão preventiva e a con den ação sem trânsito em ju lg ad o : u m a an álise constitucional Diógenes V. H assan Ribeiro e Felipe Faoro Bertoni...........................................163 ÍLibertad versus determ inism o en D erecho penal? Eduardo Demetrio C respo........................................................................................... 181 A crim inalidade e o poder: o white-collar crime e a n ecessidade de u m a an álise a partir do B rasil Francis Rafael B e ck ................................................................................................... 195 Lim ites racionales al derecho penal Guillermo Jorge Yacobucci......................................................................................... 219 Execrando suspeitos para atrair audiência: o uso de con cessões públicas de T V p ara a prática de violações do direito con stitu cional à im agem Jam illa Sarkis e Túlio V ianna.................................................................................... 251 D a s proibições de prova e dos conhecim entos fortuitos n o p rocesso p enal brasileiro: aspectos introdutórios Marcelo M arcan te.................................................. .................................................... 273 Lei n2 12.850/13 e inexigibilidade de conduta diversa: a quem com pete a carga probatória? M ariana Py Muniz C appellari................................................................................... 293 Taca-lhes pau nesses m enores in fratores. S ó que não. Neemias Moretti Prudente........................................................................................ 309 N o ção de risco no direito penal am biental Raccius Twbow Potter........................................... ..................................................... 325 E m busca de um critério seguro p ara aplicação do dolo eventual Rafael Eduardo de Andrade S oto..............................................................................355 O fenôm eno da globalização, risco e a ru p tu ra do individualism o com o referencial d a tutela penal Ricardo Breier............................... ................................................................................ 365 Com pliance em presarial e investigação prelim inar Rodrigo Oliveira de Cam argo.................................................................................... 387

A 7TTT

EXECRANDO SUSPEITOS PARA ATRAIR AUDIÊNCIA: O USO DE CONCESSÕES PÚBLICAS DE TV PARA A PRÁTICA DE VIOLAÇÕES DO DIREITO CONSTITUCIONAL À IMAGEM

Jam illa Sarkis1 Túlio Vianna2

1. O datenismo “Datena: O, Juneca, você que matou o rapaz1 Juneca: Que foi, foi, nél! Mas o cara tentou estrupar (sic) uma menina inocente e isto não é admissível, não! Datena: E então, você, o que é que éV. Você é juiz? Para matar alguém, pra executar al­ guém. Você é juiz? Juneca: Eu? Juiz1 Datena: E, porque você matou o cara. Você culpou o cara e matou o cara. Então você é juiz1 Você é juiz pra matar? Juneca: O juiz é Deus, não sou eu, não! Datena: Mas você matou o cara friamente, na maior boa. Você já matou alguém? Juneca: Na maior boa, não! Datena: Você já matou alguém1 Juneca: Não. 1

Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa “A regulação penal dos corpos” da UFMG.

2

Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto de Direito Penal da UFMG.

9R1

Datena: Você está rindo. Você matou um cara e está rindo, velho. Juneca: Eu estou rindo? Datena: Você não está rindo aí? Juneca: Lógico que não! Datena: Mas como não? Você está rindo, está todo mundo vendo que você está rindo. O que você acha de ter matado o cara? Juneca: Eu? O cara era estrupador (sic), ten­ tou violentar a menina. Foi o certo a se fazer!” Datena: Cara, mas tem prova que ele tentou estuprar a menina? Juneca: Tem! Datena: Tem prova? Oh, Marcelo, tem prova que ele tentou estuprar a menina, Marcelo? Marcelo: Não, esta história é a defesa dele, Datena. Esta história é a defesa dele. Datena: Mas ele não estuprou ninguém? Marcelo: Não estuprou ninguém! Quem con­ tratou ele que falou... Datena: Vem cá, oh, Juneca, você recebeu pra matar a menina (sic)? Juneca: Não, não recebi pra matar ninguém, não que este negócio de receber pra matar é coisa de pé-de-pato e a gente não é isso, não! Datena: Você matou então pra fazer favor pra alguém? Juneca: Não! Pelo certo! O justo e o correto! Datena: Cara, mas você não é juiz- Você gos­ taria que um cara te desse um tiro na cara agora, por exemplo? Se a polícia não te pren­ desse... Juneca: Se eu fizesse alguma fita dessa eu me­ recia. Era mais do que merecido! Datena: Cara, mas não está provado que o cara violentou a menina. Não existe nada dis­ so! Você matou a menina (sic) sem saber se ele estuprou, se ele não estuprou. Você matou de bobeira a menina (sic), velho. Eu não vou

T ficar escrachando você aqui, porque na verda­ de eu acho você um bosta. Eu acho! Mas não vou ficar escrachando você aqui, porque você é matador, velho! E fica rindo na cara dos outros. Fica rindo na cara dos outros, depois de matar uma pessoa e se achar o bam-bam-bam. E por isso que este país aqui está no que está. Não quer mais falar com este cara, não! Tira este cara daí! Pô, o cara pensa que é o quê? Mata os outros e fica rindo da cara de todo mundo... tem que aguentar...” 3 Quem assiste diariamente ao programa Brasil Urgente, apresentado por José Luiz Datena, deve ter se surpreendido com o diálogo acima transcrito. Datena que em seu programa julga e condena suspeitos da prática de crimes, neste dia resolveu condenar veementemente um suspeito que teria julgado e condenado um homem a morte por uma suposta tentativa de estupro. A crítica de D atena a Juneca poderia ser perfeitamente devolvida ao pró­ prio apresentador, com pouquíssimas modificações: “Você é juiz, Datena? Para condenar suspeitos na T V ? Você é juiz?” ou “Cara, mas tem prova de autoria destes crimes que você exibe em seu programa?” ou “Vem cá, oh, Datena, você recebeu pra condenar estes suspeitos no programa?” ou “ Você expõe estas pes­ soas no programa a pedido do seu chefe?” ou “Cara, mas você não é juiz. Você gostaria que um cara te execrasse em um programa de T V pela suspeita da prá­ tica de um crime?” ou, finalmente, “Cara, mas não está provado que nenhum de seus personagens praticou qualquer crime. N ão existe nada disso! Você execra suspeitos Aa T V sem saber se eles praticaram o crime ou se eles não praticaram. Você execra pessoas na T V de bobeira, velho! Fica rindo na cara dos outros, depois de escrachar pessoas sem provas na T V e se acha o bam-bam-bam. È por isso que este país está no que está.” Infelizmente Datena não é um caso isolado na T V aberta brasileira. Quem ligar a televisão no Brasil, de segunda a sexta-feira, por volta das 17h, encontra­ rá em pelo menos três emissoras abertas um a programação muito semelhante: telejornais sensacionalistas que exploram o fenômeno da criminalidade.

3

Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=8EQwyW_NVsA> Acesso em: 30 de setembro de 2013.

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Sob o manto do combate à criminalidade os programas policiais de T V reproduzem discursos que vão muito além da mera inform ação ou opinião sobre os crimes ocorridos, mas que são concebidos para condenar sumariamente e execrar a imagem dos suspeitos em rede nacional de televisão. O datenismo se tornou um estilo onipresente na T V aberta brasileira. Linguagem coloquial, transm issão ao vivo, plano seqüência, músicas tensas, ce­ nários simples, apresentadores populares e o uso desm esurado da imagem são apenas alguns dos elementos que, em conjunto, trazem aos programas sensacio­ nalistas o tom de veracidade e autenticidade necessários para atrair a curiosida­ de e cativar os telespectadores. A figura central do datenismo, como não poderia deixar de ser, é o apre­ sentador: Datena ou qualquer outro que lhe fizer as vezes. A m parados na cre­ dibilidade que um programa de T V traz consigo, representam não só a voz da verdade fática típica do jornalismo que pretende informar, mas também de uma verdade moral que julga de um lugar privilegiado acim a do bem, do mal e até mesmo das leis e da constitução da república. O jornalismo que deveria ter por objeto a informação, narrando da forma mais objetiva possível fatos ocorridos, converte-se em sensacionalism o que tem por principal finalidade produzir sensações fortes nos telespectadores para ga­ rantir sua audiência. Programas que deveriam estimular um a análise racional dos fatos corrompem-se em sua própria caricatura ao estimular reações passio­ nais aos fatos. N a precisa definição de Rosa Nívea Pedroso4, o sensacionalismo é um gênero de jornalismo, definido como um modo de produção discursivo da in­ formação de atualidade, processado por critérios de intensificação e exagero gráfico, temático, lingüístico e semântico, contendo em si valores e elementos desproporcionais, destacados, acrescentados ou subtraídos no contexto de re­ presentação ou reprodução de realidade social. Algum as das principais regras definidoras da prática ou do modo sen­ sacionalista de produção do discurso de informação no jornalism o diário são “intensificação, exagero e heterogeneidade gráfica; ambivalência lingüístico-semântica, que produz o efeito de informar através da não-identificação imediata da mensagem; valorização da emoção em detrimento da informação; expio-

4

PEDROSO, Rosa Nívea. A Produção do Discurso de Informação num Jornal Sensacionalista. Rio de Janeiro, UFRJ/Escola de Comunicação, 1983.

ração do extraordinário e do vulgar, de forma espetacular e desproporcional; adequação discursiva ao status semiótico das classes subalternas; destaque de elementos insignificantes, ambíguos, supérfluos ou sugestivos; subtração de ele­ mentos im portantes e acréscimo ou invenção de palavras ou fatos; valorização de conteúdos ou temáticas isoladas, com pouca possibilidade de desdobramento nas edições subseqüentes e sem contextualização político-econômico-social-cultural; discursividade repetitiva, fechada ou centrada em si mesma, ambígua, motivada, autoritária, despolitizadora, fragmentária, unidirecional, vertical, ambivalente, dissimulada, indefinida, substitutiva, deslizante, avaliativa; ex­ posição do oculto, mas próximo; produção discursiva sempre trágica, erótica, violenta, redemo-la, insólita, grotesca ou fantástica”5. Ciro M arcondes Filho6 descreve a prática sensacionalista como nutriente psíquico, desviante ideológico e descarga de pulsões instintivas; e caracteriza o sensacionalismo como “o grau mais radical da mercantilização da informação: tudo o que se vende é aparência e, na verdade, vende-se aquilo que a informa­ ção interna não irá desenvolver melhor do que a manchete, caracterizada por apelos às carências psíquicas das pessoas e explora-as de forma sádica, caluniadora e ridicularizadora”. A o longo de sua história, as emissoras de televisão passaram a perceber que, para alim entar o interesse coletivo pela temática da violência, a simples veiculação da notícia ou informação não seria suficiente. Por isso, começaram a investir todos os seus “recursos criativos” na construção de imagens capazes de consolidar as representações da violência no imaginário da população. E, para cristalizar o temor ao crime, nada mais conveniente às emissoras do que criar uma representação asquerosa da figura dos seus agentes propagadores. A imagem é o principal recurso utilizado pelo jornalismo sensacionalista. Para Pierre Bourdieu7, isto se dá em função de seu poder de produzir o que os críticos literários cham am o efeito do real, uma vez que ela pode fazer ver e fazer crer no que faz ver. E é nisso que consiste o poder central do telejornalismo: o fato de serem capazes de associar imagens e discursos, de selecionar ações hu­

5

PEDROSO, 1983, op. cít.

6

M ARCO ND ES FILHO, Ciro. O Capilal da Notícia. São Paulo, Ática, 1986.

7

BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.

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manas, grupos sociais e instituições e conjugá-los a partir do uso de rotulações e categorias que, por definição, jam ais serão neutras8. Nilo Batista destaca que “quando o jornalismo deixa de ser uma narrativa com pretensão de fidedignidade sobre a investigação de um crime ou sobre um processo em curso, e assume uma função investigatória ou promove uma reconstrução dramatizada do caso - de alcance e repercussão fantasticamente superiores à reconstrução processual -, passou a atuar politicamente.”9. Todo jornalismo atua politicamente em maior ou menor grau. N o jornalis­ mo sensacionalista, porém, o discurso se torna quase que exclusivamente pan­ fletário e a notícia em si é converte-se em mero pano de fundo para a pregação de uma ideologia política criminal punitivista e moralista à custa da honra e da imagem dos suspeitos. Neste âmbito, observa-se que os telejornais não só exibem indecorosamente a imagem de suspeitos como também os execram. O s apresentadores não se limitam a narrar os fatos e apontar a suspeita de autoria, mas afirm am a culpa do suspeito e ainda fazem conjecturas sobre sua personalidade e vida pregressa, chegando não raras vezes a injuriá-los perante as câmeras.

2. As entrelinhas do discurso sensacionalista N o programa Cidade Alerta exibido em 22 de agosto de 201310, o apre­ sentador M arcelo Rezende inicia uma reportagem olhando para a imagem do acusado, exibida em um monitor no estúdio e dizendo: “Quem olha para este homem diz assim: toca violão. Quem olha para este homem diz assim: não, este deve ser o assassino (...). Quem olha para este homem deve dizer: joga futebol. M as não é nada disso [pausa], não. Este homem é um pedófilol". “Este homem é um pedófilol”, eis o veredicto do apresentador! N ão há espaço para a dúvida quanto à autoria. O discurso é incisivo e tem por fim não 8

NATALINO, Marco Antônio Carvalho. O discurso do telejornalismo de referência: criminalidade violenta e controle punitivo. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.

9

BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Revista Brasileira de Ciências Criminais, “Revista Especial”, 8QSeminário Internacional, n2 42. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, cit., p. 05-06.

10

Disponível em: < http://noticias.r7.com/cidade-alerta/video/pedofilo-e-preso-no-rj-por-aliciar-jovemem-rede-social-521698ff0cf2c9f75e6eac65/> Acesso em: 30 de setembro de 2013.

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só reforçar a certeza quanto à culpa do acusado, mas também criar o medo no telespectador estimulando-lhe a ideia de que o crime está presente no seu dia a dia e de que o criminoso pode ser qualquer pessoa. Um discurso eminentemente político que tem por fim criar o m edo e gerar insegurança na população. A o analisar a figura do acusado, o apresentador procura convencer o pú­ blico de que um sujeito aparentemente normal, como qualquer outro rapaz de vinte e poucos anos, esconde um lado perverso: é um pedófilo, um criminoso. Alimenta-se, assim, o sentimento de medo, fazendo com que o espectador se sinta impotente diante da violência, jogado à própria sorte e com a certeza de poder ser, a qualquer momento, um a nova vítima. Logo depois, Rezende com eça a narrar os fatos ou, mais precisamente, a sua versão dos fatos. O acusado de pedofilia, que outrora parecia tocar violão e jogar futebol, é um jovem de 24 anos que foi preso no Rio de Janeiro após marcar encontros com uma menina de 10 anos em uma rede social e ter sido descoberto pela mãe da vítima. N este ponto, o apresentador declara: “E por isso que eu digo: quando uma criança dessa idade...computador....[risos]...fique em cima!’’. Aqui, o apresentador faz o papel de alertar a sociedade, de proteger o telespectador dos perigos do mundo real, cultivando o medo da criminalidade, mesmo em situações comuns do cotidiano como navegar na Internet. E interessante notar que não há a sobriedade transmitida pelos outros telejornais, onde os apresentadores assentam atrás de uma bancada e narram a notícia em tom impessoal. Rezende, ao contrário, parece ter com o telespectador apenas uma conversa informal, um encontro entre amigos. A o gesticular e usar expressões coloquiais, ele “conta um caso” que poderia ter acontecido em qualquer um dos milhões de lares brasileiros, sendo que a partir da exibição do programa, as pessoas passarão a agir com maior cautela. D aí o nome do programa “Cidade Alerta". Rezende prossegue: "Aí vocês dizem: nossa, este cara, solteiro...Não! Pai de duas crianças, uma menina de dois e um menino de 10 meses de idade.”. N ão sa­ tisfeito, ele continua: “E aí, vem o maior absurdo. Um absurdo que só é capaz num país chamado Brasil ou daí para pior. E não é por minha culpa ou sua, não! E por culpa de juizes que podem e devem pegar a lei e interpretar do jeito que eles interpretam, correto? Em muitas situações, não. Pois esse homem [aponta para a imagem do acusado], dois filhos, um menorzinho com dez meses, atraiu uma me­ nina de dez anos, marcou encontro. Como é que ele achou que uma menina de dez anos ia encontrá-lo no metrô? Pois ele marcou! Ele vai responder o processo [nesse

momento, Rezende pede para sua produção colocar em tela cheia a imagem do criminoso]...Ele vai responder ao processo em liberdade!". N a tela, enquanto a imagem do suspeito continua a ser exibida, Rezende destaca: “Ê bom mostrar mesmo este rosto, para que todo mundo possa ver e dizer: olha aí, esse é o cara! Vai que já tenha atentado em cima de outras crianças? Põe no ar!”. Este é o ponto mais emblemático da seqüência. A lém de execrar publi­ camente a imagem do suspeito, Rezende levanta suspeitas sobre seu passado, insinuando que ele possivelmente já praticou outros crimes. A reportagem continua com um vídeo da afiliada da Rede Record no Rio de Janeiro. Com a legenda “C U ID A D O : PED Ó FILO A T A C A PELA IN T E R ­ N E T ”, são exibidos diversos trechos da conversa entre o acusado e a vítima, que o havia adicionado em uma rede social sob o pseudônimo de “Pollo Vagalume”. Enquanto isso, uma testemunha, a madrinha da menina, conta como o crime teria ocorrido: “ela começa falando que tem dezessete anos, se passa por irmã. Só que aí ele fala horrores sobrejsexo e depois ela fala que só tem onze anos”. A reportagem não esclarece, todavia, se as conversas com conteúdo sexual foram mantidas entre o acusado e a menor mesmo depois de ela ter revelado sua verdadeira ida­ de. Esta dúvida se mantém a partir da delcaração do delegado responsável pelo caso, segundo o qual “ele [o acusado] diz, afirmou em depoimento que, a partir do momento em que soube que a menina tinha onze anos, não manteve nenhum tipo de conversa com conotação sexual e que não a convidou para ir a qualquer lugar”. A o ser ouvido, o suspeito confirmou o que foi dito pelo delegado, e destacou que admite “sim que estava conversando com ela, mas nada de negócio de sexual (sic)”. N ão obstante os argumentos usados pelo acusado em sua defesa serem bastante razoáveis, em nenhum momento Rezende dá destaque a eles. Toda a reportagem é construída para formar a convicção de que o suspeito é de fato culpado pelo grave crime a ele imputado. N ão há espaço para questionamentos o u dúvidas sobre sua culpabilidade pelos telespectadores. Depois disso, o delegado volta à cena, aconselhando os pais a conversa­ rem com seus filhos e a monitorarem o conteúdo acessado por eles na Internet. A m adrinha da vítima, então, termina o tape com a seguinte frase: “eu nunca achei que isso ia acontecer na minha família. Pra mim, ia acontecer com um vizinho, mas nunca comigo.”. Rezende assume novamente o controle e chama, ao vivo, o repórter Luiz Bacci para trazer informações atualizadas sobre o caso: “e esse aí, com essa conversa, que marca um encontro. Podia até encontrar a menina de dez anos...é normal, né, (sic) um homem dessa idade, pela internet, ficar dois meses

conversando com uma menina de dez anos de idade. Eles iam se encontram para conversar [em tom jocoso] sobre física nuclear. Porque uma menina de dez anos quer estudar física. Ah, vai se lascar! (sic)”. Bacci informa ao âncora que o acusado continua em liberdade e que a polícia havia apreendido “o computador do pedófilo" e estava “analisando outras conversas que ele teria tido com outros menores de idade pela rede social”. O repór­ ter também registra que “a polícia suspeita que o mesmo tipo de conversa, adicio­ nando essas pessoas e tentando levá-las para um parque de diversões, por exemplo, teriam acontecido ainda esta semana”. M arcelo Rezende, então, continua a discutir o caso, dizendo: “eu vou dizer uma coisa também, filho, e você há de concordar. Eu, se sou o delegado, mesmo que não tenha o flagrante, eu ia segurar esse cara [o suspeito] na delegacia até, até ele cansar. E aí, podia depois depois me representar em corregedoria, podia fazer o que quisesse, mas ele ia ficar lá preso. Ia pedir “ah, vamos pedir o exame do computa­ dor”...cada hora eu arrumava uma novela. Ele ia ter que arrumar um advogado para tirá-lo lá de dentro. M as não, não tem o flagrante, deixa ele ir embora. O que é o fla­ grante? E ele pegar a garota e estraçalharlNão estou dizendo que ele fosse fazê-lo...”. Paradoxalmente o discurso até então moralista da lei e da ordem cede espaço a um a apologia do descumprimento da lei e a uma glorificação do crime de abuso de autoridade. O apresentador que encarnava até então a figura do paladino da moral e dos bons costumes assume publicamente que descumpriria a lei para satisfazer seu sentimento pessoal de vingança. Para finalizar, Rezende pede a opinião de um comentarista do programa, que é apresentado como “especialista em Direito Penal”: Percival de Souza. Pinçados a dedos pela produção do programa, os “especialistas” cumprem o papel de ratificar as opiniões do apresentador por meio do argumento de autoridade. Com o bem afirma N ilo Batista, “a regra de ouro deste circo, embora nem sem­ pre percebida claramente, é que a fala do especialista esteja concorde com o discurso criminológico da mída”u. Percival, então, faz as seguintes constatações: “Você [Marcelo Rezende] não está errado, não. Até porque, ele [o acusado] mostra sua periculosidade altíssima, e eu vou me arriscar a imaginar o que ele faria, sim, Marcelo, se desse certo esse encontro...”. Rezende, então, completa: “Eu vou te dizer: a gente não pode fazer um jogo de adivinhação, correto? (...) Mas, caramba, a circunstância é: um sujeito, né (sic), 11

BATISTA, 2003, cít., p. 09

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pai de duas crianças. O que é que ele fica, dois meses, conversando com uma criança de dez, que ele não sabe nem quem é. E quando a mãe entrou, manteve a conversa e marcou um encontro com a criança de dez■Me desculpe, me desculpe! Se isso aí não é claro, o que é claro? O sambódromo no dia de carnaval?". A o proferir este discurso, o jornalista sacrifica não apenas o direito à im a­ gem e à honra do acusado, mas também questiona sua natureza, criminosa por essência. Sem ter presenciado o caso, sem ter acesso ao inquérito policial, sem ter ouvido o depoimento do suspeito, da vítima ou das testemunhas, Marcelo Rezende já deu o veredito. O réu é culpado. A s semelhanças entre os programas de D atena e M arcelo Rezende são claras: ambos exibidos na mesm a faixa de horário, durante os mesmos dias da semana, em emissoras do mesmo porte e apresentados por comunicadores com o mesmo perfil combativo, ácido, crítico e justiceiro. Rezende e Datena são um show a parte de seus próprios programas. A eles é dada, diariamente^ permissão para emitirem opiniões e serem “a voz do povo”, dando vazão às suas visões pessoais e ao senso comum. N a precisa definição de N ilo Batista, “na televisão, os âncoras são narradores participantes dos assuntos criminais, verdadeiros atores - e atrizes - que se valem teatralmente da própria m áscara para um jogo sutil de esgares e trejeitos indutores de aprovação ou reproche aos fatos e personagens noticiados.”12. Para que estes apresentadores sejam reconhecidos pelo povo como seus legítimos representantes, tanto o Cidade Alerta quanto o Brasil Urgente contam com uma poderosa ferramenta: a interatividade. N os websites das duas emissoras existem portais referentes aos programas, nos quais o público pode deixar críti­ cas, sugestões e —o principal - denúncias. O s telespectadores também podem se comunicar com os âncoras via telefone ou correspondência, com a chance de serem os escolhidos pela produção para fazer um a participação ao vivo. A transm issão ao vivo, aliás, é um dos principais elementos utilizados por estes programas para atrair o público, tendo em vista que corrobora com a ideia de autencididade. Yvana Fechine13 aponta que “ao acompanhar, ao mesmo tem­ po, o “se fazendo” da transmissão e do próprio acontecimento transmitido, o

12

BATISTA, 2003, cit., p. 14.

13

FECHINE, Yvana. Tendências, usos e efeitos da transmissão direta no telejornal. In: DUARTE, Elizabeth Bastos; C ASTRO , Maria Lília Dias de (Org.). Televisão: entre o mercado e a academia. Porto Alegre: Sulina, 2006., cit., p. 145.

espectador é confrontado com a promessa de que aquilo que ele vê é mais “ver­ dadeiro” ou mais autêntico, justamente por ser menos manipulável a posteriori. Essa imprevisibilidade da transmissão, é o que pressupõe um menor controle sobre o que é levado ao ar e, consequentemente, produz um a maior impressão de “transparência”. Toda entrada “ao vivo” (...) parece estar sempre atrelada à tentativa de demonstrar ao telespectador que a T V pode m ostrar a realidade sem filtros (sem m anipulação pela edição do que vai ser exibido).”. Essa autenticidade também se dá a partir do uso do plano seqüência, ca­ racterizado por cenas gravadas ininterruptamente, com raros cortes de edição, que têm como função dar maior dinam ism o e agilidade às reportagens. Outro recurso utilizado por estes programas, como bem aborda Alexandre Campello14, são as vinhetas, o cenário e a trilha sonora, que fazem parte das es­ tratégias de endereçamento dos jornais. A vinheta funciona como um prelúdio, indicando o que o telespectador vai encontrar. Os cenários são sóbrios e simples, predominando em ambos os casos as cores preto e branco, com detalhes em azul e vermelho (qualquer referência ao sangue, aqui, não seria mera coincidência), sendo que o foco é sempre a figura dos apresentadores, usualmente vestidos com roupas sociais, o que traz ao programa popular um tom de formalidade necessário para a construção da credibilidade perante o público. Já a trilha sonora é inquietante, transmitindo sempre um ar de suspense e drama. Também é comum a utilização de sons de tiros, sirenes, vozes ofegantes, gritos e choros. Um dos aspectos marcantes deste tipo de formato televisivo é o uso corri­ queiro de expressões coloquiais, que aproximam o relato do universo de lingua­ gem do público-alvo do telejornal policial, de forma que os repórteres se valem preponderantemente, da função fática15. N esse sentido, Guilherme Rezende16 coloca que “ao cumprir a função fática, o discurso da T V se estabelece como

14

CAMPELLO, Alexandre de Assis. Novo olhar sobre os telejornais policiais: a interação pelo formato. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008, p. 106.

15

“A função fática tem por finalidade o afirmar, o manter ou o cortar a comunicação. Ela é importante quando o conteúdo da comunicação tem menos importância que o fato de estar ali e afirmar sua adesão ao grupo. A função fática é tautológica (diz que o que é, é).” (CASTRO, Rita de Cássia Marques Lima de. O poder da comunicação e a intertextualidade. Dissertação (Mestrado em Administração) Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2002.

16

REZENDE, Guilherme Jorge de. Telejomalismo no Brasil: um perfil editorial. São Paulo: Summus, 2000.

um contato permanente entre o emissor e o receptor, por meio de um espetáculo contínuo levado diretamente ao telespectador no aconchego do meio familiar”. Há, ainda, um recurso fundam ental utilizado pelos programas policias: a imagem. Trata-se de um tipo de linguagem materializada de forma específica, que não apenas comunica, mas tam bém constitui um discurso. N a visão de Roland Barthes17, a imagem é, por si só, polissêmica. A o analisar esta assertiva, Kleber M endonça18 coloca que, mais do que polissêmica, a im agem é caracte­ rizada por sua incompletude, diante da qual o sujeito é cham ado a dar sentidos. N os casos analisados a imagem não serve apenas para ilustrar e comprovar o que está sendo dito pela reportagem, como nos telejornais convencionais, mas também tem como objetivo reafirmar o status de veracidade e realidade res­ ponsáveis por criar no telespectador, ao mesmo tempo, os efeitos de fascinação, medo e insegurança, fazendo com que este deixe de ser um mero receptor de informações para poder assumir o papel de testemunha, convertendo-se em um verdadeiro participante daiiistória. O uso da imagem como estratégia discursiva tem como pretensão não apenas denunciar os crimes ou torná-los conhecidos pelo grande público, mas também busca promover o papel simbólico dos programas como a instância so­ cial capaz de controlar, fiscalizar e “promover o bom funcionamento da Justiça, tão falha e incompetente”19. Tudo nestes programas é pensado para convencer o telespectador da culpa dos suspeitos ali exibidos, sem qualquer responsabilidade quanto ao dano que se possa provocar aos seus direito à honra e à imagem. Tudo é construído como se quem estivesse sendo exibido ali fosse uma mera personagem de um a história elaborada para entreter o telespectador. O sensacionalismo procura fundir informação e entretenimento em um único programa20, à custa da imagem de seus protagonistas que são execrados diante das câmeras. E diante da impossibilidade de oferecer informações exatas

17

BA RTH ES, Roland. A Câmara clara: nota sobre fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

18

M ENDONÇA, Kleber. A punição pela audiência: um estudo do Linha Direta. Rio de Janeiro: Quartet, 2002.

19

M ENDONÇA, 2002, cit. p. 46.

20

V IA N N A , Túlio Lima. Notícias de tragédias particulares. Observatório da Imprensa (São Paulo), v. 264, p. 264QTV003, 2004. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/ noticias-de-tragedias-particulares

e suficientemente dramáticas para manter a atenção do público, estes programas não hesitam em sacrificar os fatos para provocar fortes sensações em seu público. N o jornalismo sensacionalista o que importa é a audiência. N ão há qual­ quer compromisso com a veracidade dos fatos narrados; tudo é produzido para se conquistar telespectadores a qualquer preço. E quem paga este preço inva­ riavelmente é um suspeito pobre e sem condições de pagar um advogado para lutar por seus direitos. O direito de captar audiência é colocado à frente dos direitos à honra e à imagem, em inequívoco detrimento dos direitos individuais em benefício do lu­ cro de empresas privadas. E o pior: todas estas violações de direitos individuais são praticadas em concessões públicas de T V em nítido descumprimento de sua função social.

3. Violações de direitos em concessões públicas de TV A Constituição da República de 1988 tutela a imagem em dois incisos do art. 5Q. N o inciso V, o legislador assegurou a todos o direito de resposta, propor­ cional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem. Já no inciso X, foi definida a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, sendo assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. O Código Civil brasileiro, por sua vez, dispõe, em seu art. 20, que “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publica­ ção, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.’’. Especificamente em matéria criminal, a Lei de Execução Penal prevê em seu art. 41, inciso VIII que a proteção contra qualquer forma de sensacionalis­ mo é um dos direitos do preso. M esmo com todas estas garantias legais os programas sensacionalistas de T V continuam sendo exibidos sem que as Corregedorias de Polícias punam os policiais que expõem suspeitos ao sensacionalismo da imprensa. Os Ministérios Públicos também não têm atuado com efetividade no combate à exposição de

suspeitos em programas sensacionalistas de TV. Tudo se dá como se a liberdade de imprensa constitucionalmente assegurada fosse um a carta branca concedida a jornalistas para achincalhar a imagem de cidadãos que são presumidos ino­ centes até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. A liberdade de imprensa, porém, como qualquer outro direito constitucional, não é absoluta. Nas palavras de Luís Gustavo Grandinetti Castanho de Carva­ lho*1: “a liberdade de expressão também se limita pela proteção assegurada cons­ titucionalmente aos direitos da personalidade, como honra, imagem, intimidade”. N o conflito entre dois direitos de natureza constitucional como são a li­ berdade de imprensa e o direito à imagem, não se pode de maneira simplista afirmar que a liberdade de imprensa deve sempre preponderar, por ser de inte­ resse público, ao passo que o direito à imagem tem caráter individual. O Brasil é um Estado Democrático de Direito e não um a ditadura da maioria. Em estados democráticos de direito, os direitos individuais devem ser respeitados mesmo contra á vontade da maioria. Se a maioria branca da popula­ ção de um país decidir escravizar os negros, isso evidentemente não é democrá­ tico. S e a maioria heterossexual da população de um país decidir impor restri­ ções à prática de relações homossexuais, isso evidentemente n ã o é democrático. E se a maioria da população que se auto-denomina de “cidadãos-de-bem” quiser se regojizar assistindo à execração pública na T V de uma minoria de suspeitos da prática de crimes, isso também não é nada democrático. A imprensa é livre para informar sobre fatos criminosos e mesmo para opi­ nar sobre sua autoria. O sensacionalismo, porém, como se viu anteriormente, não se limita a narrar fatos e opinar sobre eles. O sensacionalism o transforma suspeitos em personagens e crimes do cotidiano em novelas. N ão se trata de um mero exercício do direito de informar, m as da espetacularização programada para atrair audiência, sem qualquer respeito à imagem dos envolvidos. Um tratamento vexatório que, em regra, é reservado aos réus pobres, não assistidos por advogados na fase policial, e que se vêem abandona­ dos à própria sorte perante não só os órgãos repressores do estado, mas também ao afã da mídia de atrair audiência com base na demolição de reputações. E não bastasse a completa complacência das Corregedorias de Polícia e dos Ministérios Públicos com estas violações dos direitos à imagem dos presos,

21

CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Direito de informação e liberdade de expressão. São Paulo: Renovar, 1999, p. 49.

tudo isso é realizado em concessões públicas de TV. O Estado, por meio de suas concessionárias de serviços públicos, não só tolera, mas concede os meios para que direitos constitucionais sejam violados. A Constituição da República de 1988 assegurou à União, no caso específi­ co dos veículos de telecomunicação, a sua exploração direta ou por delegação à iniciativa privada, mediante autorização, concessão ou perm issão (art. 21, XII, a). A s emissoras de rádio e televisão se enquadram na modalidade de serviços públicos concedidos. N a definição de Celso A ntônio Bandeira de Mello22, a concessão é o “ins­ tituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço público a al­ guém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público.”. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso23 destaca que “algumas especificidades singularizam a radiodifusão, em contraste com outros meios de comunicação e formas de expressão. A primeira delas é a existência de uma delegação do Poder Público para a prestação do serviço, mediante contrato ou outro ato negociai.” Por tratar-se de um serviço público, existem normas jurídicas e adminis­ trativas que regulam as relações entre as emissoras de rádio e televisão e o Estado, tanto no que se refere às questões técnicas, quando às normas con­ sensuais, frutos do acordo pactuado. Tal disciplina não ocorre, entretanto, em relação à imprensa escrita ou à publicação de livros, atividades nas quais é até mesmo vedada qualquer forma de intervenção, conforme o § 6.2 do art. 221 da Constituição. Um jornal, um a revista ou um site na Internet não dependem de qualquer concessão pública para existirem. N ão há um limite para o número de jornais, revistas ou sites na Internet que possam ser publicados e qualquer investidor pode montar a sua empresa de informação livremente. Situação completamente distinta é a dos canais abertos de rádio e T V que são escassos. U m investidor que deseje criar uma rede de rádio ou T V aberta depende de uma concessão pública para explorar o serviço, já que não há núme­ ros de canais ilimitados disponíveis. Diante da escassez de canais de rádio e TV,

22

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 25- ed. São Paulo: Malheiros, 2008, cit., p. 690.

23

BARROSO, Luís Roberto. Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, cit., p. 780.

resta ao Estado criar critérios que tornem o uso destes canais o mais produtivo possível para a população. Já que estes canais são bens públicos, obviamente, devem atender prioritariamente ao interesse do povo e somente subsidiariamente ao interesse econômico das concessionárias. Por conta disso, o próprio texto constitucional institucionalizou diretrizes que devem ser seguidas pelas concessionárias da T V aberta brasileira, ao esta­ belecer eu seu art. 221, I, que “A produção e a program ação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios: I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”. A pesar da clareza das diretrizes constitucionais, as concessões públicas de T V que deveriam ser utilizadas para produzir programas educativos, artís­ ticos, culturais e informativos tornaram-se espaços de linchamentos morais. Uma programação pretensamente informativa, mas que longe de se limitar a narrar fatos, instiga o ódio a suspeitos de crime, sem lhes garantir qualquer meio de defesa real, em julgam entos sumários baseados na duvidosa moralidade particular do apresentador. Programas que não educam para a cidadania, muito pelo contrário: incentivam a cultura do desrespeito aos direitos constitucionais dos suspeitos, fazendo não raras vezes apologia à violência policial e ao abuso de autoridade. O sensacionalismo viola não só os direitos individuais à honra e à imagem do cidadão acusado da prática de crimes, mas também o interesse público de usufruir de uma programação educativa, artística, cultural e informativa na T V aberta. D iante do descumprimento das diretrizes constitucionais para a conces­ são de canais abertos de TV, cabe à União o dever de agir para fazer cessar as violações de direito e impor o cumprimento dos ditames constitucionais. |

A Lei 8.987/95 dispõe sobre o regime de concessão e perm issão da presta­

ção de serviços públicos e encarrega (art. 29, I) o Estado do poder de “regula­ mentar o serviço concedido e fiscalizar permanentemente a sua prestação”. O poder de agir da A dm inistração Pública, então, torna-se um verdadeiro dever de agir, na medida em que assegura um interesse coletivo, motivo pelo qual Eurico Azevedo e M aria Lúcia de Alencar24 destacam que “não pode a A dm inistração furtar-se à obrigação de atuar, no exercício de seus poderes”.

24

26 6

AZEVEDO, Eurico de Andrade; ALEN CAR, Maria Lúcia Mazzei de. Concessão de serviços públicos: comentários às Leis 8.987 e 9.074 (parte geral), com as modificações introduzidas pela Lei 9.648, de 27.5.98. São Paulo: Malheiros, 1998, cit., p. 114.

Dentre os poderes-deveres da Adm inistração, a regulam entação é capaz de organizar, à luz do ordenamento jurídico, as condições de funcionamento e a abrangência de determinado serviço. O s autores também apontam 25 que “as normas regulamentares do serviço concedido podem ser modificadas sempre, mesmo porque, tratando-se de um contrato de longa duração, suas característi­ cas técnicas e as necessidades dos usuários vão se alterando no curso dos anos, exigindo respectivas adaptações”. Cabe à União controlar os canais de televisão de modo a proibir que estes alavanquem suas audiências às custas da dignidade alheia. Compete privati­ vamente à União legislar sobre este assunto, vedando a veiculação vexatória da imagem de suspeitos e impondo limites aos programas de televisão que têm o objetivo de execrá-los. Um a das maneiras de efetivar e otimizar esta regula­ mentação seria a aplicação de medidas coercitivas, como por exemplo multas diárias, nos casos de violação das diretrizes fixadas. E bom deixar claro que tal intervenção estatal na program ação dos ca­ nais abertos em nada se assem elharia a qualquer tipo de censura. Com o bem esclarece Barroso26, entende-se por censura “a subm issão à deliberação de outrem do conteúdo de uma m anifestação do pensamento, como condição prévia de sua veiculação” e, portanto, não se pode confundir com esta “a existência de m ecanism os de controle, que é a verificação do cumprimento das normas gerais e abstratas preexistentes, constantes da Constituição e dos atos normativos legitimamente editados, e eventual im posição de conseqüências jurídicas pelo seu descum prim ento”. Definir pautas de programação não se confunde com censura. Fosse as­ sim, os donos e editores de telejornais seriam os maiores censores do mundo, pois a todo momento decidem o que vai ao ar e o que será cortado da progra­ mação. Qualquer programação de T V terá sempre o limite máximo de 24 horas diárias nas quais será impossível incluir tudo o que se almeja. Alguém sempre precisará decidir o que entra e o que sai. Hoje esta decisão cabe exclusivamente ao arbítrio do dono da emissora e de seus diretores. N ão é nada democrático, porém, que os donos de empresas privadas con­ cessionárias de um serviço público decidam de cima para baixo o que a popu­ lação deverá assistir. Eles estão explorando um serviço público e quem deve de­ 25

AZEVEDO; A LEN C A R, 1998, cit., p. 115.

26

BARROSO, 2011, cit., p. 779.

cidir que tipo de programação é socialmente adequada é o povo, seja por meio de seus representantes no parlam ento ou, mais diretamente, pela Conferência N acional de Comunicação. A s redes de rádio e T V abertas, ao contrário dos jornais, das revistas e dos portais de Internet têm natureza pública e, como tais, estão submetidas a diretrizes de programação a que não estão sujeitos os demais veículos por ex­ plorarem um negócio exclusivamente privado. O interesse econôm ico de captar audiência a todo custo não pode se sobrepor às finalidades constitucionais que recomendam uma programação educativa, artística, cultural e informativa.

4. Conclusão O sensacionalismo coloca em xeque o caráter público das concessões de T V brasileiras que vêm sendo paulatinamente apropriadas por empresas priva­ das que desrespeitam diariamente os ditames constitucionais quanto à natu­ reza da programação a ser exibida. Em busca de mafor audiência e do lucro a ela condicionado, instaurou-se um “vale-tudo” nas T V s abertas brasileiras que desrespeitam cotidianamente as leis e a Constituição da República sem que nenhuma providência seja tom ada pelas autoridades. A o permitir que as emissoras de televisão, beneficiadas com a concessão pública de um serviço extremamente lucrativo, execrem suspeitos da prática de crimes por meio do uso não autorizado de suas imagens, o Estado é omisso ao não estabelecer os mecanismos de controle previstos pela própria Constituição de 1988. A A dm inistração Pública tem, portanto, o dever de regulamentar os serviços públicos concedidos à iniciativa privada, como a televisão, de maneira a zelar pelos interesse público. O trauma coletivo da censura im posta pela ditadura militar brasileira ain­ da assola o im aginário popular que vê qualquer tipo de controle sobre a progra­ m ação com maus olhos por confundi-lo com censura. Com isso, estabeleceu-se um “laissez-faire” nas Tvs abertas brasileiras, em que empresas privadas impõem à população a programação que bem entender, por mais apelativa que seja. È preciso resgatar o caráter público das TVs abertas brasileiras, estabele­ cendo-se não só sanções nos casos de descumprimento das diretrizes constitu­ cionais, mas ampliando-se significativamente a participação popular na defini­ ção de critérios mais detalhados de programação a serem regulamentados por lei.

C oncessão pública de T V não é um presente que o Estado dá a um a em­ presa particular, mas um contrato em que há ônus e bônus. E um destes ônus é respeitar as diretrizes públicas quanto à programação. D o contrário estar-se-ia descum prindo o contrato e, portanto, sujeito às sanções administrativas que podem variar desde um a simples multa diária até a própria caducidade da concessão. Cabe à adm inistração pública federal fazer cumprir os dispositivos cons­ titucionais e ao Ministério Público federal fiscalizar o seu fiel cumprimento. A omissão das autoridades públicas em fazer cumprir as diretrizes constitucionais não deve ser confundida com respeito à liberdade de imprensa. A menos que se queira entender por liberdade de imprensa uma liberdade de grandes empresas privadas de execrarem suspeitos de crimes, pelo simples fato de serem pobres e não terem condições de recorrerem aos poder judiciário para garantir seu direito à imagem. Em países democráticos a liberdade de imprensa deve ser entendida como a liberdade de informar e de opinar; nunca como a liberdade de humilhar, de insultar, de difamar, de caluniar e de pré-julgar crimes. Enquanto concessões públicas de T V forem confundidas com salvo-condutos entregues pelo Estado para se execrar pessoas, nossas Tvs abertas não serão nada democráticas. E o maior termômetro disso será sempre as diferenças entre o tratamento dispen­ sado aos suspeitos pobres e ricos na programação diárias de nossas televisões.

5. Bibliografia AZEVEDO, Eurico de Andrade; A LEN C A R , Maria Lúcia Mazzei de. Concessão de serviços públicos: comentários às Leis 8.987 e 9.074 (parte geral), com as modifi­ cações introduzidas pela Lei 9.648, de 27.5.98. São Paulo: Malheiros, 1998. BA R R O SO , Luís Roberto. Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos. Vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. BA TISTA , Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Revista Brasileira de Ciências Criminais, “Revista Especial”, 82 Sem inário Internacional, n2 42. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

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