Exílio e clandestinidade na ditadura militar em \"Acta General de Chile\" (Miguel Littín, 1986), 2015

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Exílio e clandestinidade na ditadura militar em Acta General de Chile (Miguel Littín, 1986)* Alexsandro de Sousa e Silva1 Al otro lado está el río y no lo puedo cruzar, al otro lado está el puente y no lo puedo atravesar. Aquí me pongo a esperar la respuesta con el sí y me quedo con ustedes cerquita de mi país. En la frontera – Isabel Parra

Este texto tem como objetivo analisar um dos quatro episódios de Acta general de Chile (1986), série de documentários dirigida por Miguel Littín. Trata-se da terceira parte, chamada De la frontera al interior de Chile, la llama encendida, que faz um percurso pelo sul do país até chegar a Santiago, no auge dos conflitos contra a ditadura militar chilena. Verificaremos como o cineasta tenta construir um discurso combativo contra o regime ao expor um duplo drama: a dos exilados no exterior (a fronteira) e a dos compatriotas reprimidos dentro do país (o interior do Chile). A escolha do episódio se justifica por colocar na tela o drama dos exilados impedidos de retornar ao país, em um momento em que vários deles retornaram ao Chile e engrossaram as fileiras da oposição ao regime autoritário. Miguel Littín é um reconhecido diretor chileno com experiência em teatro, literatura, televisão e cinema desde os anos 1960. Seu primeiro longa-metragem, El chacal de Nahueltoro (1969), teve boa recepção de público e crítica. Redigiu um conhecido documento em 1970, conhecido como Manifiesto de los cineastas de la Unidad Popular, no qual expôs suas concepções políticas. No governo de Salvador Allende (1970-1973), o cineasta dirigiu a estatal Chile Films por alguns meses e realizou o documentário Compañero Presidente (1971), além do longa-metragem La tierra prometida (1973). Com o golpe de 11 de setembro de 1973, foi para o México e durante seu exílio (1973-1990) transitou entre a América Latina e Europa, dirigindo diversos filmes.2 Carlos Orellana (2011: 68) diz que o projeto do cineasta em retornar ao Chile foi financiado pela empresa cubana International Network Group, com sede na Espanha. Miguel *

Texto publicado em AGUILERA, Yanet (org.). Imagem e exílio: cinema e arte na América Latina. São Paulo: Discurso Editorial, 2015, p. 321-334. 1Mestrando da FFLCH USP. 2Filmografia de Miguel Littín no exílio: Actas de Marusia (1976), Crónica de Tlacotalpan (1976), El recurso del método (1978), La viuda de Montiel (1979), Aquacultura – Granjas de água (1980), Alsino y el cóndor (1982), Acta general de Chile (1986) e Sandino (1990). O diretor voltou ao Chile em 1988, semanas antes do plebiscito, mas o retorno oficial aconteceu em 1990, com a redemocratização.

Littín foi o diretor da produtora que realizou o filme e, uma vez terminada a série de documentários, foi expulso do cargo por acusações de uso indevido do dinheiro, abalando as relações entre o chileno e o governo cubano. Por outro lado, acreditamos que o diretor recebeu também o apoio do Partido Comunista Chileno (PCCh) para ingressar e circular pelo país, dada a infraestrutura clandestina que o partido conseguiu estabelecer durante a ditadura (Álvarez Vallejos, 2011: 151-191).3 O cineasta relatou sua experiência na revista Araucaria de Chile (Littin, 1985). Gabriel García Márquez (2008) utilizou este relato e uma longa entrevista com o chileno para publicar em 1986 o livro La aventura de Miguel Littín clandestino en Chile, narrado em primeira pessoa.4 De acordo com a obra, o diretor passou por um processo de descaracterização na Europa, assumindo a identidade de um empresário uruguaio. Uma vez no Chile, provavelmente entre abril e junho de 1985, dirigiu algumas equipes de filmagem espalhadas pelo país. Antes de retornar à Europa, o cineasta concedeu uma entrevista à revista Analisis (1985), publicada após sua saída, com a manchete: “ENTREVISTA CLANDESTINA: MIGUEL LITTIN VINO, FILMO Y SE FUE”. Trata-se de uma alusão à frase “Veni, vidi, vici” (“Vim, vi, venci”), atribuída ao imperador romano Caio Júlio César. A série de documentários é composta de quatro episódios: Miguel Littín clandestino en Chile, Norte Grande - Cuando fui para la Pampa, De la frontera al interior de Chile - La llama encendida e Allende, el tiempo de la historia. A Televisión Española exibiu os quatro episódios de Acta general de Chile em julho de 1986. A série circulou por alguns festivais, como o de Veneza, Rio de Janeiro e Havana ainda em 1986, e uma versão reduzida, de 115 minutos, foi realizada para as salas de cinema (Actas de Chile). Carlos Orellana (2011: 68) diz que o interesse pela obra de Littín foi maior após o atentado contra o general Augusto Pinochet em 07 de setembro de 1986 pelo grupo Frente Patriótico Manuel Rodríguez (FPMR), entrevistado pelo cineasta no terceiro episódio de Acta general de Chile.

A fronteira Na abertura do episódio, o diretor aparece à frente de uma mesa de montagens (em segundo plano) e faz uma breve apresentação do capítulo:5

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pesquisa em desenvolvimento tem uma hipótese de que, devido ao apoio dos comunistas, o documentário concede espaço ao PCCh, com algumas tensões aparentes na leitura da obra fílmica. 4Os militares chilenos queimaram 14.846 edições do livro de Gabriel García Márquez em Valparaíso em 28 de novembro de 1986, causando desavenças com o governo colombiano. Cf. “Denuncian quema de libros en Valparaíso”. El Mercúrio, Santiago de Chile, s/p., 25 enero 1987. 5Inferimos que a cena tenha sido gravada na Espanha, país onde Miguel Littín vivia e onde editou-se a obra. No quarto episódio, o mesmo espaço é utilizado para que exilados chilenos no país dessem seus testemunhos das últimas horas ao lado de Salvador Allende no Palacio de La Moneda, no momento do golpe de Estado de 1973.

Chile, desde la frontera, de la Cordillera de los Andes al interior mismo, de las minas de Lota y Schwager en el sur. Chile, desde los testimonios de los exiliados que una y otra vez intentan regresar a Chile, pero son impedidos al usar ese derecho legítimo por la dictadura militar, a los combatientes que en el interior mismo de las poblaciones populares, amparados en la fuerza de las masas, luchan con las armas en la mano por derrocar la dictadura. As frases, as quais enfatizam um deslocamento geográfico e sociopolítico, abrem caminho para entender a primeira parte do título do episódio (De la frontera al interior de Chile) e a segunda parte (la llama encendida). As palavras “fronteira” e “interior” enfatizam um movimento de adentramento, de inserção, próprio da vontade de um exilado que busca o reencontro com seus pares. O discurso do cineasta enfatiza o deslocamento, sugerindo ao espectador uma forma de olhar para o episódio. A estrutura do documentário reforça o argumento, porque foi construída de modo a expor o adentramento no país, e as primeiras imagens e sons dão o ponto de partida: a abertura do episódio com o cineasta na Espanha seguida pelas imagens da Cordilheira dos Andes, colocada como personagem principal no primeiro bloco narrativo do episódio. Uma parte da cadeia de montanhas aparece na tela e escutamos no plano sonoro, além dos sons de vento, uma frase de Gabriela Mistral (1943) lida pelo cineasta em voz over: “Nosotros, al decir ‘cordillera’, nombramos una materia porfiada y ácida, pero lo hacemos con un dejo filial, pues ella es para nosotros una criatura familiar, la matriarca original. Nuestro testimonio más visible”. A frase citada reforça o imaginário nostálgico dos exilados sobre a Cordilheira dos Andes, presente na produção cultural dos chilenos no exterior como uma marca da nacionalidade. Atravessar a Cordilheira é o sonho dos que estão fora do país, é o reencontro com a pátria, e a primeira imagem externa do documentário abre o campo de visão para monumentalizar a cadeia de montanhas e enfatizar o “testemunho mais visível” na frase de Gabriela Mistral. A Cordilheira é a fronteira, o limite entre o exterior e o interior, entre os exilados e seus concidadãos. Ao fim da citação, os letreiros iniciais intitulam a série e o respectivo episódio, enquanto ouvimos os primeiros acordes e letras da canção La llama encendida, interpretada por Isabel Parra: Recordemos juntos que fue ayer cuando nos mirábamos crecer y luchábamos para vencer en la patria que nos vio nacer Aunque pasen días, aunque pasen años, la llama encendida no se apagará. Esta historia duele al corazón, la alegría espera en un rincón, la esperanza busca su canción, la memoria tiene su razón

Há um constante deslocamento entre o palco e a Cordilheira, e uma sobreposição dos sons entre os comentários sobre o exílio em over e a canção; tal arranjo constitui um discurso audiovisual no qual infere-se que a ultrapassagem da fronteira seria movida por essa “chama acesa” que, por enquanto, não é explicada. Ao comentar os significados sobre o exílio, o narrador evoca uma série de imagens poéticas: “duro castigo”, “frente perdida”,6 “los ojos cerrados por la ausencia”, “sueño desgarrado”, “calles desoladas”, o “medio-vivir” e a “espera sin tregua del regreso”. Percebe-se uma intencionalidade poética ao tratar da luta dos exilados em retornar ao país de origem. O discurso será encerrado para a entrada em cena dos intelectuais exilados em Buenos Aires. Uma transição de planos por fusão de imagens exibe-nos uma conversa entre quatro intelectuais chilenos: Luis Gustavino (PCCh), Eduardo Rojas (MAPU), Jaime Gazmuri (exMAPU, Partido Socialista (PS) em 1985) e Jorge Arrate (PS). Eles, em conjunto com mais dois exilados, Edgardo Condeza e José Vargas, tentaram entrar no Chile diversas vezes por avião e por terra, e foram expulsos entre setembro e outubro de 1984 pelos militares (Rajevic, 1984). Os chilenos retratados pela câmera fazem diversos comentários nacionalistas sobre a necessidade do fim do exílio, tais como: a ditadura não pode separar as “duas nações” (a interior e a exterior, ou seja, os exilados), a emoção de cantar o hino nacional dentro do país, etc. Alguns deles relembram da emoção de verem a Cordilheira dos Andes, e as imagens da cadeia de montanhas reaparecem em tela sob uma trilha musical, para logo voltar em outros momentos. Fechando o bloco narrativo, vemos o cineasta sozinho em tela atravessando a Cordilheira a pé, acompanhado pela canção En la frontera, interpretada novamente por Isabel Parra (apenas no plano musical), cuja letra diz: A cada uno su tierra, a cada uno su gente, a cada uno su espacio, el sol en su continente. La prueba de lo que digo al alcance de la mano, llamada por el amor del latinoamericano. Sujétenme el corazón que se me va pa’Santiago. Apúrense que el dolor es muy fuerte y me hace daño. Al otro lado está el río y no lo puedo cruzar, al otro lado está el puente y no lo puedo atravesar. Aquí me pongo a esperar la respuesta con el sí 6

A ideia de “frente perdida” está presente em Canto general (1950), de Pablo Neruda, no poema Himno y Regreso: “Patria, mi patria, vuelvo hacia ti la sangre. Pero te pido, como a la madre el niño lleno de llanto. Acoge esta guitarra ciega y esta frente perdida. [...]” Vale ressaltar que o título da série de documentários Acta general de Chile tem inspiração no livro de Pablo Neruda, que foi amigo de Miguel Littín.

y me quedo con ustedes cerquita de mi país. A encenação representa o retorno do cineasta ao Chile, e a letra da canção se mostra como expressão dos que não podem cruzar a fronteira. Em certo momento, o diretor olha para trás (a montagem faz-nos crer que estamos olhando sob seu ponto de vista), como se estivesse se despedindo dos que ficaram para além das Cordilheiras, pois os exilados que apareceram até então na narrativa (o grupo em Buenos Aires, Isabel Parra) não retornam presencialmente na tela até o final do episódio. Torna-se evidente um contraponto entre as imagens de Miguel Littín na Cordilheira e as demais: estas últimas foram filmadas em ambientes fechados ou parcialmente cerrados, como é o caso dos chilenos na Argentina, e com frágeis iluminações, como no estúdio onde o cineasta aparece na abertura do episódio. Essa composição imagética aparece de forma mais evidente nas imagens da Isabel Parra em sua performance, constituindo uma imagem barroca no contraste entre claro e escuro, uma exteriorização do drama vivido por ela e os chilenos que desejam voltar à pátria. Assim, há uma ideia de “encerro”, de “prisão” desses personagens, causada pela proibição de retornar ao país. Por outro lado, a Cordilheira mostrase em um espaço amplamente iluminado pela claridade do dia, além de uma indefinição da dimensão total do espaço, caracterizando um espaço de fronteira aberta, de afirmação da liberdade, visão legitimada pela presença do cineasta em meio à cadeia de montanhas. O primeiro bloco narrativo do terceiro episódio é o maior em relação às outras sequências e ocupa um quarto do tempo (14 min. de 56 totais). Os discursos sobre o fim do exílio e a encenação da travessia da fronteira são o salto inicial de um amplo movimento por parte da narrativa de “interiorização” no território chileno, e a chegada ao núcleo dos combates contra o regime fechará o episódio.

O interior Ao longo do episódio, a narrativa passa por Puerto Montt, no extremo sul do país, e pela região da Araucanía. Nesta última, a voz over do cineasta comenta as lutas dos indígenas contra a colonização espanhola, enquanto uma série de gravuras dos tempos coloniais ilustra a tela. O narrador faz citações do livro La Araucana, escrito pelo espanhol Alonso de Ercilla no séc. XVI, que ressalta a resistência dos indígenas frente aos colonizadores; enquanto isso, fotografias etnográficas dos mapuches ocupam o plano visual. Os comentários em over após a leitura do poema destacam a discriminação dos indígenas no país, esquecidos pela ditadura. No plano musical, Ángel Parra interpreta uma versão da música América Insurrecta, criada a partir de poemas de Canto General do Pablo Neruda (a obra é uma referência constante ao longo da série de documentários), seguida da canção Arauco tiene una pena, de Violeta Parra.

Os comentários do narrador, as músicas e as imagens ressaltam, ainda que brevemente, a importância do mapuche na história no país. A imagem da ponte entre Vale Central e Santiago é acompanhada pelo comentário sobre Nicolás Palacios, autor do livro Raza chilena e homenageado por Pinochet com monumento, vinculando o conservadorismo do intelectual com o do ditador. Na capital do Chile, há certo destaque para a organização dos estudantes, considerados pelo narrador em over a vanguarda do movimento de contestação. Logo depois, vemos imagens da casa de Pablo Neruda em Isla Negra, seguidas da comparação entre o Parque Isidora Cousiño (“el paraíso de amor sobre el infierno”) e as minas de Lota-Schwager em Concepción. Há constantes trânsitos pelo Chile nessas sequências intermediárias do episódio, com o intuito de fazer um diagnóstico geral do sul e da região central do país. Essa circulação da narrativa pelo país faz uma referência indireta a certa noção de “louca geografia”, imagem do título do ensaio Chile o una loca geografía (Benjamín Subercaseax, 1941), dados os contrastes regionais característicos do país, que vão desde o clima gelado no extremo sul até o calor “infernal” das minas de carvão em Lota y Schwager. Após um breve bloco narrativo dedicado às mulheres, inicia-se a entrevista com os membros do FPMR, que marca o avanço do processo de interiorização nos combates contra a ditadura militar. O relato do livro diz que a filmagem aconteceu com a “dirección suprema del Frente Patriótico” (García Márquez, 2008: 102). Este grupo foi o braço armado do PCCh, criado em 1983 como expressão da política dos comunistas de se valer de todas as formas de luta contra Pinochet. O Frente foi responsável por uma série de ações armadas pelo país com o fim de desestabilizar o governo militar (Álvarez, 2011: 193-253). No documentário, a bandeira do grupo está fixada na parede, atrás dos militantes, e o cineasta se exibe na cena como forma de legitimação para comprovar sua presença no Chile “clandestino”. Trata-se de um espaço anunciado na abertura do episódio (“[...] los combatientes que en el interior mismo de las poblaciones populares, amparados en la fuerza de las masas, luchan con las armas en la mano por derrocar la dictadura”) e concedido pelo documentário para a divulgação das ideias do grupo e para desarmar as críticas realizadas pela direita (que chama o FPMR de “terrorista”) e pela esquerda “moderada” (crente na derrubada do regime pelos meios democráticos). As identidades dos dois entrevistados são preservadas através de um jogo de luzes pelo qual vemos apenas seus semblantes; porém, um deles se destaca por ser mais enfático nos discursos e por ocupar mais tempo respondendo às perguntas do que seu companheiro. Inferimos que este seja alguma autoridade dentro do grupo, como o líder do

FPMR Raúl Alejandro Pellegrín Friedman, conhecido como Capitão Rodrigo ou Capitão José Miguel.7 A composição da imagem em claro e escuro, de forma contrastante, remete às primeiras imagens do filme quando os exilados foram retratados em ambientes fechados e com pouca iluminação. No entanto, a diferença é que, nos chilenos do exterior, a luz incide sobre eles de forma que podemos reconhecê-los, enquanto que nos membros do FPMR, a luz incide sobre o ambiente, impossibilitando o reconhecimento dos personagens.8 Reforça-se, assim, uma noção presente no livro que relata o processo de filmagem da obra: “También los que se quedan son exiliados” (García Márquez, 2008: 50); da mesma forma, a conversa entre os chilenos em Buenos Aires reafirma a comparação, segundo Luis Gustavino: Nosotros estábamos animados por… por… no por nosotros mismos, era… era… salir adelante para juntar a los dos Chiles: el Chile que lucha adentro, de manera tan emocionante, y el Chile del exilio que está combatiendo, luchando, porque Pinochet no logrará quebrar el alma de los chilenos y ¡nosotros estamos a contribuir a eso! “Quebrar a alma dos chilenos” equivale à “divisão do espírito nacional” imposta pela ditadura entre os que vivem dentro e fora do país. Clandestinos e exilados mantêm pontos de convergência frente à situação política do país: ambos negam a autoridade legal da ditadura, não podem exercer as liberdades públicas no país, e ambos buscam afirmar a identidade nacional em diálogo com seus pares. Os “dois Chiles” estavam separados por uma ditadura, e o documentário se insere na oposição ao regime pela “união” nacional. Apesar do destaque ao FPMR, o documentário conclui o episódio definindo o que é a “chama acesa”, a nosso ver. A última pergunta aos entrevistados do FPMR é sobre o significado de Salvador Allende para as lutas contra o regime. Um deles afirma: “[…] es un símbolo que nosotros también recorremos, el Allende que está con el fusil en la mano, que se enfrenta a quien […] avasalla la Constitución, a quien avasalla el pueblo”. O entrevistado constrói a imagem de um Salvador Allende guerrilheiro, empunhando um fuzil para defender o regime pelo qual foi democraticamente eleito. Tal imagem foi veiculada internacionalmente

7No

livro de García Márquez (2008:100), menciona-se que a poucos dias da entrevista filmada Miguel Littín tenha conversado com Fernando Larenas Seguel, uma autoridade militar do FPMR, que estava ferido pelos militares. Ou seja, teriam ocorrido dois encontros entre o diretor e sua equipe de filmagem com os “rodriguistas”. No entanto, acreditamos que o relato tenha colocado tal informação para deslegitimar a ditadura, mostrando que conseguiam circular livremente pelo país sem que os militares os alcançassem. Além disso, o perigo em torno de tal entrevista com toda a estrutura de filmagem, como fica evidente na leitura do livro (García Márquez, 2008), faz com que dois encontros sejam duplamente arriscados. 8Ao longo do episódio, há outras cenas com o contraste entre o claro e o escuro, de forma que a luz incide sobre os personagens retratados. É o caso dos atores da ópera japonesa no Teatro Nacional e dos mineiros no fundo de uma mina de carvão em Concepción. A potencialidade interpretativa das relações entre essas imagens barrocas extrapola os limites deste texto, mas será analisada ao longo da pesquisa em desenvolvimento.

em obras como o filme Chove sobre Santiago (Il pleut sur Santiago, Helvio Soto, 1975) e a conhecida fotografia do Presidente em La Moneda.9 Acta general de Chile pretende veicular uma imagem simbólica do Presidente, sem valorizar a democracia formal, necessariamente. No terceiro episódio, a importância de Salvador Allende se dá como um leimotiv contra a ditadura chilena. Após a entrevista com o FPMR, seguem imagens externas de confronto entre carabineros e jovens, seguidas de entrevistas com os civis. Uma dimensão geracional é levantada pelo narrador em over: os jovens que estão combatendo a ditadura eram crianças durante o governo da Unidade Popular e se recordam vivamente de Salvador Allende. Alguns dos entrevistados confirmam o dado e relatam algumas conquistas sociais do período 1970-1973, contrapondo com a situação repressiva após o golpe de Estado. Muitos deles deram depoimentos ao longo dos dois primeiros episódios da série de documentários, retomados na sequência para evidenciar um discurso convergente entre eles: a ditadura tinha que terminar e o “heróico exemplo” do Presidente em La Moneda inspirava a oposição combativa aos militares.10 A trilha sonora instrumental, de Ángel Parra, composta basicamente por instrumentos de corda em ritmo de marcha, une as imagens de protestos populares realizados em espaços públicos com as dos depoimentos. Não vemos referência às ações do FPMR no espaço público. No entanto, a última fala de um dos entrevistados do grupo ressalta o ânimo popular em derrubar o regime (“Para el pueblo chileno, Allende sigue vivo; y sigue vivo y se prolonga en la lucha del Frente Patriótico Manuel Rodríguez”), seguida pelas imagens de enfrentamento entre civis e militares e por testemunhos sobre o Presidente. Os últimos planos do documentário mostram o Palacio de La Moneda reformado, sob a música de Isabel Parra La llama encendida, que serve de moldura para o episódio. Há uma valorização da memória do golpe de Estado, e a memória do “exemplo” do líder que, na lógica discursiva do audiovisual, seria a “chama acesa” mobilizadora dos chilenos que lutam pelo fim do regime militar. Recuperar a memória da Unidade Popular, o “governo da razão”, segundo o narrador em over, é recuperar a razão em si mesma. Dentro do movimento de 9No

site da Fundación Salvador Allende (FSA), descreve-se uma controvérsia sobre a origem da imagem: “Esta foto, de autoría anónima, ganó el premio World Press por ser considerada “la última fotografía de Salvador Allende”. Sin embargo, se cree que la imagen corresponde al día 29 de junio de 1973; jornada en que la fuerza militar activó un fallido golpe de estado conocido como Tanquetazo. Colección FSA, Chile, 1973”. Disponível em: http://www.fundacionsalvadorallende.cl/archivo/centrode-documentacion/archivo-fotografico/salvador-allende/golpe-militar/. Acesso em: 05 fevereiro 2014. 10A série de documentários não entra na polêmica sobre as duas teses em torno da morte de Salvador Allende. A primeira, oficial, dizia que o Presidente cometeu suicídio antes da rendição aos militares. Esta tese foi confirmada por testemunhos como o do ex-ministro da Unidade Popular Arturo Girón, quem foi o primeiro a encontrar o corpo do mandatário, antes dos militares ocuparem o Palacio. Cf. documentário Salvador Allende (Patricio Guzmán, 2004). A segunda tese, defendida pelos opositores políticos do regime, afirmam que o líder foi assassinado. A narrativa de Acta general de Chile deixa a entender, ainda que não afirme categoricamente, esta última tese. Entre maio e junho de 2011, foi realizada uma autópsia no corpo do Presidente e confirmou-se a versão oficial. Cf.: Gallego-Díaz, 2011.

interiorização no documentário, a luta pela volta da democracia passa pelo fim do exílio, pelo FPMR, pelos estudantes, pobladores, até chegar ao La Moneda, que ocupa lugar destacado. Da Cordilheira dos Andes até o La Moneda, ambos monumentalizados na tela e sob a mesma canção como fundo musical-discursivo (La llama encendida), o episódio apresenta-se como o “porta-voz” das lutas políticas fora e dentro do Chile. Há uma tensão evidente no documentário em que se legitima, em alguma medida, o uso de armas contra a ditadura e também a democracia formal. No entanto, as imagens de revolta popular ocupam um lugar privilegiado, são mais dinâmicas (montagem dita o ritmo frenético), enquanto que o La Moneda é exibido em poucos planos e sua memória se remete à violência do golpe de Estado, e não ao sistema político democrático em si. Dessa forma, a narrativa esforça-se em unir forças contra a ditadura, defendendo de modo tímido (evitando a palavra “voto” na voz over) a mesma democracia formal outrora tida como “burguesa e elitista”.

Conclusão A fronteira e o interior constituem os limites dos espaços de ação contra a ditadura militar, segundo a narrativa do terceiro episódio de Acta general de Chile. Na primeira, os exilados expõem seus dramas particulares e coletivos através da reflexão política (exilados em Buenos Aires) e artística (Miguel Littín e Isabel Parra); há um empenho em denunciar no espaço público a truculência militar, cujo fim acreditava-se estar próximo. No interior, a população ocupa as ruas e a resistência armada atuava na clandestinidade, sendo ambas tão exiladas quanto os compatriotas que estão fora do país. Para encerrar, destacamos que a análise do documentário ajuda a esclarecer a construção de um discurso que legitima as ações políticas de oposição à ditadura. Em Acta general de Chile, exilados e clandestinos formam uma corrente de resistência que está enquadrada em uma forma cinematográfica, a qual representa o impedimento do exercício das liberdades públicas no Chile. Por outro lado, o documentário quer evidenciar a figura simbólica do líder Salvador Allende, através dos relatos de pessoas do “povo” e das ações armadas contra o regime. Dentro da relação Cinema e História, a análise fílmica evidencia tensões de uma época em obras que, como Acta general de Chile, se propõem a discutir ideias políticas

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