Expectativas Desalinhadas: Sony, Charlie e os Fundamentalismos Modernos

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EXPECTATIVAS DESALINHADAS: SONY, CHARLIE E OS FUNDAMENTALISMOS MODERNOS Carlos Frederico Pereira da Silva Gama1

Dois ataques marcaram as relações internacionais na virada de 2014 para 2015. Em Dezembro, os ataques cibernéticos à corporação Sony. Em Janeiro, o ataque armado ao prédio do periódico francês Charlie Hebdomadaire. Algumas semelhanças chamam a atenção, num planeta Terra cada vez mais globalizado. Orquestrados com sofisticação, os dois ataques atingiram importantes meios de comunicação. Pretexto 1: o lançamento pela Sony Pictures do filme “The Interview”, uma comédia na qual os protagonistas do filme buscavam matar o ditador da Coréia do Norte, Kim Jong-Un. Pretexto 2: o Charlie Hebdo reproduziu uma série de cartuns dinamarqueses que satirizavam o profeta islâmico Muhammad, lançados originalmente em 2005. Tentativas de retaliar “The Interview” e o Hebdo foram feitas com diferentes doses de violência. Os ciberataques contra a Sony violaram a privacidade de milhares de funcionários. Causaram prejuízo de centenas de milhões de dólares. O governo da Coréia do Norte – que protestou na ONU contra o filme – negou envolvimento com os ataques, apesar de felicitar o incidente. O ataque armado à sede do Charlie Hebdo matou 12 funcionários, dentre eles os cartunistas Stéphane Charbonnier, Jean Cabu, Georges Wolinski e Bernard Verlhac. Nos dias a seguir, a Al Qaeda no Iêmen assumiu a autoria do atentado ao periódico (que já era ameaçado com regularidade). Os ataques receberam um mesmo rótulo. Os governos dos Estados Unidos e da França (ambos em cruzada contra o ISIS na Síria e Iraque) os consideraram atos “terroristas” e “bárbaros”. Diferenças entre bytes e Kalashnikovs ficaram pequenas na tentativa de separar usos legítimos e ilegítimos da violência. De um lado, estados soberanos legitimados, fiadores da ordem e guardiões do futuro. Do outro, regimes párias e grupos insurgentes, bárbaros portadores de idades das Trevas. A construção dessa fronteira entre violências leva às mãos obras da memória. Acadêmicos, políticos e comunicadores recorreram ao 11 de Setembro, a Pearl Harbor, às Guerras Mundiais e às Cruzadas. Analogias mais e menos pitorescas foram criadas e devoradas ao sabor dos ataques e da imaginação. Essa profusão de imaginários redivivos oculta algo mais perturbador que textos: os contextos. Contexto 1: Os ataques à Sony ocorreram em meio ao escândalo de ciberespionagem de autoridades internacionais pela agência norte-americana NSA, denunciado por Edward Snowden. Semanas antes, documentos vazados da CIA apontaram práticas de tortura de agentes públicos na guerra ao “terror” que não foram comunicadas ao Presidente Obama por ser muito “bárbaras”.

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Professor de Relações Internacionais da PUC-Rio

Contexto 2: Na véspera do ataque ao Charlie Hebdo, manifestações em diversos países da Europa, convocadas pela extrema-direita, anunciavam que não aceitariam a “islamização” do continente. A resposta dos governos da União Europeia foi tímida. Em tempos bicudos na Zona do Euro, imigrantes (muçulmanos) se tornaram lugares-comuns nos discursos extremistas. No dia do ataque, o Hebdo anunciava o novo livro de Michel Houellebecq, Soumission (Submissão), o qual faz uma analogia entre a França colaboracionista ocupada pelo Nazismo e uma hipotética França dominada pelo Islã. Condenações aos “muçulmanos, argelinos, imigrantes, Islã” foram mais frequentes do que condenações ao ataque e assassinato dos cartunistas no Hebdo. Também houve críticas à “liberdade de expressão”. A reação ao ataque foi filtrada por expectativas – xenófobas, islamófobas, racistas. A tentativa de construção de fronteiras na modernidade líquida esbarra na fragilidade das expectativas mobilizadas. Por um lado, o custo crescente de manter a confortável ilusão de que estados soberanos são fortalezas e muros de proteção num sistema de relações humanas intensamente interligadas. A estupefação de sistemas de segurança de trilhões de dólares e euros diante de violência low cost intensamente moderna diminui o apelo das parcerias público-privadas derivadas do frenesi do 11 de Setembro em dias de estiagem econômica internacional. Por outro lado, os ataques e suas respostas redundam em situações inconclusivas, nas quais o incômodo de lado a lado reforça a intolerância mútua – fundamentalismos operando em paralelo. A tentativa de responder a ataques com shutdown dos serviços públicos e toque de recolher coloca estado e sociedade em xeque-mate. Agentes públicos tornados protagonistas de caçadas humanas (como a dos irmãos Tzarnaev em Boston, 2013) são presa fácil de expectativas e pré-conceitos. Quando o rótulo “terrorismo” traça a linha entre o estado e a sociedade, a violência se torna a resposta que produz o alívio imediato. Imigrantes e minorias (Jean Charles de Menezes em Londres, Eric Garner em Ferguson, muçulmanos nos banlieus de Paris) se tornam alvos a priori, independentemente de “credenciais” terroristas, igualados sob a mira da normalização. O valor da privacidade e direitos civis – tais como direito de defesa e julgamento previstos em lei – se tornam diminutos diante de “imperativos” da luta contra o “terror” impulsionados por atos patrióticos. A trama se desenrola violenta. A pressuposição do estado agir via uma ética de proteção se torna nebulosa. À fragmentação do estado em múltiplas instâncias frouxamente sobrepostas se unem as clivagens da sociedade civil. A lógica fragmentária que incide sobre os estados também rege práticas da mídia, religião e grupos insurgentes, em busca por interligar fragmentos societais via agendas concorrentes. A violência por vezes é o amálgama. O controverso Hebdo se torna unanimidade. Líderes da EU em crise caminham em Paris. Mesquitas e centros islâmicos são atacados em série. A apropriação da laicité para fins de surveillance é tão frágil quanto a declaração do “califado global” pelo grupo ISIS. Mesmo farsescas, expectativas são duradouras. O recurso ao passado (a Revolução Francesa, a fundação do Islã) para sacralizar atos presentes intensifica efeitos violentos. Que se provam inúteis. “The Interview” teve seu apelo global potencializado pelos ciberataques. O covarde assassínio de jornalistas tornou as charges do Hebdo o conteúdo mais compartilhado no planeta. Múltiplas diferenças em colisão frustram tentativas de soluções finais para complexidades humanas. Mas exclusões persistem, criando expectativas de um futuro estável sem “outros”. Face à infinidade de problemas humanos, o pensamento único é um fundamentalismo. Nosso desafio é coexistir.

18/01/2015

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Dois ataques marcaram as relações internacionais na virada de 2014 para 2015. Em Dezembro, os ataques cibernéticos à corporação Sony. Em Janeiro, o ataque armado ao prédio do periódico francês Charlie Hebdomadaire.

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Algumas semelhanças chamam a atenção, num planeta Terra cada vez mais globalizado. Orquestrados com sofisticação, os dois ataques atingiram importantes meios de comunicação. Pretexto 1: o lançamento pela Sony Pictures do filme “The Interview”, uma comédia na qual os protagonistas do filme buscavam matar o ditador da Coréia do Norte, Kim Jong­Un. Pretexto 2: o Charlie Hebdo reproduziu uma série de cartuns dinamarqueses que satirizavam o profeta islâmico Muhammad, lançados originalmente em 2005. Tentativas de retaliar “The Interview” e o Hebdo foram feitas com diferentes doses de violência. Os ciberataques contra a Sony violaram a privacidade de milhares de funcionários. Causaram prejuízo de centenas de milhões de dólares. O governo da Coréia do Norte – que protestou na ONU contra o filme – negou envolvimento com os ataques, apesar de felicitar o incidente.

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EXPECTATIVAS DESALINHADAS

O ataque armado à sede do Charlie Hebdo matou 12 funcionários, dentre eles os cartunistas Stéphane Charbonnier, Jean Cabu, Georges Wolinski e Bernard Verlhac. Nos dias a seguir, a Al Qaeda no Iêmen assumiu a autoria do atentado ao periódico (que já era ameaçado com regularidade). Os ataques receberam um mesmo rótulo. Os governos dos Estados Unidos e da França (ambos em cruzada contra o ISIS na Síria e Iraque) os consideraram atos “terroristas” e “bárbaros”.

Diferenças entre bytes e Kalashnikovs ficaram pequenas na tentativa de separar usos legítimos e ilegítimos da violência. De um lado, estados soberanos legitimados, fiadores da ordem e guardiões do futuro. Do outro, regimes párias e grupos http://noo.com.br/expectativas­desalinhadas/

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insurgentes, bárbaros portadores de idades das Trevas. A construção dessa fronteira entre violências leva às mãos obras da memória. Acadêmicos, políticos e comunicadores recorreram ao 11 de Setembro, a Pearl Harbor, às Guerras Mundiais e às Cruzadas. Analogias mais e menos pitorescas foram criadas e devoradas ao sabor dos ataques e da imaginação. Essa profusão de imaginários redivivos oculta algo mais perturbador que textos: os contextos. Contexto 1: Os ataques à Sony ocorreram em meio ao escândalo de ciberespionagem de autoridades internacionais pela agência norte­americana NSA, denunciado por Edward Snowden. Semanas antes, documentos vazados da CIA apontaram práticas de tortura de agentes públicos na guerra ao “terror” que não foram comunicadas ao Presidente Obama por ser muito “bárbaras”. Contexto 2: Na véspera do ataque ao Charlie Hebdo, manifestações em diversos países da Europa, convocadas pela extrema­direita, anunciavam que não aceitariam a “islamização” do continente. A resposta dos governos da União Europeia foi tímida. Em tempos bicudos na Zona do Euro, imigrantes (muçulmanos) se tornaram lugares­comuns nos discursos extremistas. No dia do ataque, o Hebdo anunciava o novo livro de Michel Houellebecq, Soumission (Submissão), o qual faz uma analogia entre a França colaboracionista ocupada pelo Nazismo e uma hipotética França dominada pelo Islã. Condenações aos “muçulmanos, argelinos, imigrantes, Islã” foram mais frequentes do que condenações ao ataque e assassinato dos cartunistas no Hebdo. Também houve críticas à “liberdade de expressão”. A reação ao ataque foi filtrada por expectativas – xenófobas, islamófobas, racistas.

A tentativa de construção de fronteiras na modernidade líquida esbarra na fragilidade das expectativas mobilizadas. Por um lado, o custo crescente de manter a confortável ilusão de que estados soberanos são fortalezas e muros de proteção num sistema de relações humanas intensamente interligadas. A estupefação de sistemas de segurança de trilhões de dólares e euros diante de violência low cost intensamente moderna diminui o apelo das parcerias público­privadas derivadas do frenesi do 11 de Setembro em dias de estiagem econômica internacional. Por outro lado, os ataques e suas respostas redundam em situações inconclusivas, nas quais o incômodo de lado a lado reforça a intolerância mútua. A tentativa de responder a ataques com shutdown dos serviços públicos e toque de recolher coloca estado e sociedade em xeque­mate. Agentes públicos tornados protagonistas de caçadas humanas (como a dos irmãos Tzarnaev em Boston, 2013) são presa fácil de expectativas e pré­conceitos. Quando o rótulo “terrorismo” traça a linha entre o estado e a sociedade, a violência se torna a resposta que produz o alívio imediato. Imigrantes e minorias (Jean Charles de Menezes em Londres, Eric Garner em Ferguson, muçulmanos nos banlieus de Paris) se tornam alvos a priori, independentemente de “credenciais” terroristas, igualados sob a mira da normalização. O valor da privacidade e direitos civis – tais como direito de defesa e julgamento previstos em lei – se tornam diminutos diante de “imperativos” da luta contra o “terror” impulsionados por atos patrióticos. A trama se desenrola violenta. A pressuposição do estado agir via uma ética de proteção se torna nebulosa. À fragmentação do estado em múltiplas instâncias frouxamente sobrepostas se unem as clivagens da sociedade civil. A lógica fragmentária que incide os estados também rege práticas da mídia, religião e grupos insurgentes, em busca por interligar fragmentos societais via agendas concorrentes. A violência por vezes é o amálgama. O controverso Hebdo se torna unanimidade. Líderes da EU em crise caminham em Paris. Mesquitas e centros islâmicos são atacados em série. A apropriação da laicité para fins de surveillance é tão frágil quanto a declaração do “califado global” pelo grupo ISIS. Mesmo farsescas, expectativas são duradouras. O recurso ao passado (a Revolução Francesa, a fundação do Islã) para sacralizar atos presentes intensifica efeitos violentos. Que se provam inúteis. “The Interview” teve seu apelo global potencializado pelos ciberataques. O covarde assassínio de jornalistas tornou as charges do Hebdo o conteúdo mais compartilhado no planeta.

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EXPECTATIVAS DESALINHADAS

Múltiplas diferenças em colisão frustram tentativas de soluções finais para complexidades humanas. Mas exclusões persistem, criando expectativas de um futuro estável sem “outros”. Face à infinidade de problemas humanos, o pensamento único é um fundamentalismo. Nosso desafio é coexistir.  

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