Experiência estética, comunicação e política: aproximações e rupturas

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Experiência estética, comunicação e política: aproximações e rupturas Márcia Larangeira Jácome1 “É possível elaborar as sensações em um panorama que não cessa de modificar-se?” (Claudine Haroche)

O ano de 2011 pode ser considerado um marco do início do século XXI, distinguindo-se como um período em que o aprofundamento das relações entre o virtual e o real e a diluição de fronteiras entre essas esferas revelam novas potencialidades e tensões num mundo que vive transformações profundas. Nesse entrelugar, se estabelecem dinâmicas e interações entre comunicação, cultura e política que afetam as maneiras pelas quais percebemos e construímos conhecimento sobre a realidade e com ela interagimos. Ao mesmo tempo, a convergência de mídias, associada à popularização de recursos de comunicação digital e à conectividade, expande as possibilidades de configuração e compartilhamento de experiências sensíveis entre diferentes, provocando novas subjetividades e (desejos de) novos modos de viver junto. Estes nos parecem ser alguns condicionantes das manifestações públicas massivas, contestadoras de modelos políticos de diferentes matizes que, ocorrendo progressivamente, e em escala mundial a partir de 2011, ganharam novos contornos em ruas, praças e na internet, instituindo comunidades inéditas e esboçando novos contornos à esfera pública. Tais manifestações guardam semelhanças e/ou vínculos com episódios históricos ocorridos anteriormente, atualizam uma série de questões e agendas políticas. Por outra

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Jornalista, mestranda em Comunicação no PPGCOM/UFPE e participa do Grupo de Pesquisas Narrativas Contemporâneas, sob orientação do Prof. Eduardo Duarte. Integrou o SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, com atuação nas áreas de comunicação, gestão e educação popular.

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parte, instituem práticas que rompem com modos tradicionais de ação política, gerando críticas por parte da intelectualidade de esquerda, que percebia aí a sua fragilidade: a ausência de um programa e o desinteresse por construir uma institucionalidade que lhes permitisse criar um consenso em torno da construção de propostas políticas concretas e viáveis ao enfrentamento dos modelos de Estado criticados – fossem estes ditaduras em países do hemisfério Sul ou o neoliberalismo na Europa, por exemplo. Em avaliação realizada recentemente, e com a qual concordamos, a socióloga Maria da Glória Gohn afirma que os novíssimos movimentos do tipo Occupy e ¡Indignados! estão operando uma renovação das lutas sociais da mesma magnitude que os então novos movimentos sociais centrados em demandas de identidade operaram nas décadas de 1960, 1970 –na Europa e Estados Unidos – e parte de 1980 e 1990 – na América Latina (GOHN, 2012, p.24).

Em síntese, é possível identificar como características das atuais movimentações sociais o fato de serem iniciativas populares, massivas e anônimas, organizadas e difundidas principalmente – mas não só - por meio de redes sociais virtuais, tendo ganhado força e visibilidade nas ruas, à margem de instituições políticas tradicionais, das quais querem se desvincular, tais como partidos políticos, sindicatos e outros tipos de associações. Há preocupação com a quebra de paradigmas expressa por meio da tentativa de recriar os sentidos da vida em comum, apoiando-se no que Jacques Rancière (2011, p.11) reconhece como atos estéticos, ou seja, aquilo que produz novas subjetividades capazes de reinventar o fazer político como dimensão inerente à vida cotidiana e gerar transformação social. Dentre esses atos estéticos, nos chama a atenção a construção dos acampamentos em praças públicas – a exemplo da Praça Tahrir (Egito), Praça del Sol (Madrid) e Zuccotti Park (Nova York) -, numa reinvenção da polis.

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As revoltas também impactaram o Brasil. Desde o ano passado, tem ocorrido novas iniciativas inspiradas nessas manifestações ou que, de alguma forma, delas se aproximam – seja pela semelhança de temas, pelo uso de símbolos, seja construção de estratégias de comunicação e mobilização que articulam a formação de comunidades de redes sociais na internet com a reocupação de ruas e praças -, porém mantendo características ainda muito diferenciadas, em especial no que diz ao grau de radicalidade das ações levadas a termo. Algumas iniciativas de cunho local, de críticas à gestão pública das cidades ou estados,

como

o

#ForaMicarla,

em

Natal,

#OcupeEstelita,

em

Recife

e

#Quemderaserumpeixe, em Fortaleza; outras de abrangência nacional, contra a corrupção na política, como o # FichaLimpa, ou de luta por moradia e território rurais e urbanos, a exemplo de #SomostodosGuarani-Kaiowá, #SomostodosPinheirinho, e outras vinculadas a iniciativas internacionalizadas, a exemplo da #MarchadasVadias, pelo direito das mulheres ao corpo - território primeiro da existência. Apesar dos vínculos com as mobilizações internacionais, que podem ser observados nos modos de ação, o envolvimento suscitado junto à população tem sido bastante diferenciado: não se logrou alcançar as mesmas proporções – o que pode variar, inclusive, entre as diferentes iniciativas nacionais, conforme a questão em pauta. Uma das explicações pode estar vinculada ao momento de euforia do crescimento que se vive no Brasil, reforçada pelo que Gohn (2011) identifica como grande fragilidade nos movimentos sociais da América Latina: a débil autonomia que caracteriza esses movimentos dado o seu vínculo histórico com partidos políticos na região. Citando os estudos de Mirza (2006) e Touraine (1989), a autora vai além ao afirmar que é esta “cultura política”, baseada nessa dependência do Estado é o que, em grande medida, limita a capacidade de ação coletiva autônoma.

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Nossa hipótese converge com essa afirmação, pois levamos em consideração que o fato de o país contar com um governo oriundo da esquerda, cujas políticas de cunho desenvolvimentista e sociais tem elevado o nível de renda e de consumo de boa parte da população, tende a não favorecer o mesmo tipo de movimento de resistência que se observa na Europa hoje, por exemplo, ou diluir a força e o alcance de algumas iniciativas. A realização de eleições gerais em 2012 municipais fez com que algumas dessas iniciativas, por exemplo, fossem suspensas temporariamente ou ficassem subordinadas aos debates ocorridos no contexto da disputa eleitoral. Uma coisa, entretanto, é comum entre todos esses movimentos: a convergência de mídias digitais, a conectividade e a formação de comunidades na internet a partir de diferentes formas de associativismo se integraram, definitivamente, ao desenho de estratégias e aos modos de articulação e desenvolvimento dessas ações. Neste sentido, tal acontecimento é emblemático de como a comunicação por meio de redes sociais digitais tem servido de elo entre diferentes, dando suporte à instituição de comunidades inéditas, nas quais é possível observar indícios de mudanças pautadas no princípio de uma partilha igualitária de experiências sensíveis; uma estética sobre a qual se funda a política, como propõe Jacques Rancière, em seu livro “A partilha do sensível: estética e política”. Esse panorama nos indica que uma multidão anônima supera, de forma criativa, as barreiras da mídia comercial, criando formas próprias de enunciação coletiva que a tornem visível e instalem o dissenso a partir do qual lhes seja possível inscrever seu “lugar numa ordem simbólica da comunidade dos seres falantes, numa comunidade que ainda não tem efetividade na civitas [...]” (RANCIÈRE, 1996, p. 38). É a partir desse quadro, portanto, que esboçaremos uma análise inicial de possíveis relações entre comunicação, estética e política, com a finalidade de dar a

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perceber traços possíveis da experiência estética em experiências públicas, tomando como referência a comunicação produzida e difundida por meio das comunidades de redes sociais na internet e circunscrita às mobilizações em torno do ¡Indignados!, também conhecido por 15-M. Este processo de movimentação social, de caráter cultural e político espanhol teve início com a convocação da população, por um grupo informal, formado por pessoas individualmente e por participantes de grupos de ação cidadã, reunidos na plataforma cidadã Democracia Real Ya! (CABAL, 2011. p.9-10), para uma manifestação contra a situação política, econômica e social do país, que atravessa um grave período de recessão provocada por medidas de austeridade econômica, associadas a cortes nas políticas sociais, tentativas de cerceamento à liberdade de expressão. A manifestação em 15 de maio de 2011 (o 15-M) tomou proporções imprevistas ao agregar milhares de pessoas que, em nome próprio e espontaneamente, se somaram à convocatória e decidiram manter um acampamento na Puerta del Sol, em Madrid, para influenciar as eleições gerais que viriam a acontecer na semana seguinte. A direita conservadora venceu as eleições e a #AcampadaSol se estendeu por 78 dias2, após os quais foi dissolvida, abrindo espaço para a realização de assembléias em bairros de diferentes cidades, tornando-se conhecido internacionalmente como movimento dos ¡Indignados! O que poderia vir a se tornar mais um fato destinado a cair no esquecimento quando se esgotasse como notícia na mídia, tornou-se um acontecimento social e político, provocando uma reação em cadeia, tornando-se intensa movimentação popular de proporções multitudinárias. Hoje, além de estar presente em mais de 60 cidades da Espanha, é possível afirmar que o ¡Indignados! favoreceu o surgimento de iniciativas similares e a ele vinculadas, não necessariamente circunscritas ao território espanhol, 2

Apesar de haver sido consensuado o levantamento do acampamento, a ser feito no dia 12 de junho, para formação das assembléias e bairros e cidades, os últimos campistas – que se recusaram a sair do local por não concordarem com o consenso – só foram expulsos pela polícia em 03 de agosto de 2011.

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tanto quanto tem estabelecido vínculos e articulações com outros movimentos semelhantes surgidos em diferentes continentes, com o intuito de fortalecer uma proposta de revolução global.3

Acampadas: traços da experiência sensível Será possível observar a seguir um mapa conceitual da #AcampadaSol (Ilustração 1). Constituído a partir de conceitos-chave (identificados em caixas) e dos modos como estes se relacionam, representados por meio de frases de ligação entre os conceitos, ele pode ser dividido em dos hemisférios. Na parte superior, uma linha do tempo, dá a perceber as raízes históricas e os vínculos do movimento dos ¡Indignados! com outros movimentos sociais que o antecederam, mas também as relações em redes estabelecidas com outros movimentos similares e/ou que surgiram a partir dele. Encontram-se ali desde movimentos sociais de trabalhadores organizados em torno da luta de classe, passando pelos novos movimentos sociais, vinculados às lutas de caráter libertário e/ou emancipatório características das décadas de 60 e 70, até movimentos antiglobalização, como o movimento Zapatistas. Também chama a atenção o caráter internacionalista de alguns movimentos. No centro do mapa, uma linha divisória demarca a realização da AcampadaSol, onde se envidencia a praça pública como o local da ação política e seu objetivo: “escrever a democracia real”. Como parte dessa trama, no centro do acampamento, as pessoas e seus afetos pessoais, estabelecendo relações afetivas, pondo em andamento entusiasmo coletivo, para tornar vívida a construção da democracia real.

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Ttalvez, o mais emblemático tenha sido a ocupação de Wall Street, a partir de 17 de setembro de 2011, pelo local estratégico e sua repercussão dentro do próprio país, o que contribuiu para chamar a atenção da imprensa internacional. Porém, outras mobilizações não pararam de ocorrer desde então, como a Marcha de Indignados a Bruxelas, iniciada em setembro de 2011 e concluída este ano; a criação dos Indignados de France, a mobilização conhecida como Toma La Plaza/Take the Square e o Toma Las Montañas y Las Playas; as articulações com outros países como Tunísia, Grécia, Itália; Israel, Islândia, Portugal, Chile.

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Na parte inferior do quadro, então, é possível encontrar os modos de organização dos ¡Indignados!; as estratégias, a articulação de ideais e construção de vínculos entre diferentes agendas e pautas, assim como os inimigos. A presença do sensível se expressa por meio da revelação de sentimentos - entre os quais o desconforto com a vida pessoal e a infelicidade, passando pelo desejo de estar e viver juntos -, mas também pelos modos como se caracteriza o papel exercido pela inteligência coletiva, capaz de articular diferenças e evitar a fragmentação diante da heterogeneidade. Esse quadro é completado pela referência à atmosfera amistosa que, ao lado do trabalho de conservação e limpeza do local e da papel dos comitês de ‘cuidadores’, responsáveis que são pela ‘construção do viver-junto’ garantem as condições para que a polis se torne habitável. O modo de conceituação do acampamento no mapa revela a preocupação em se dar visibilidade à experiência sensível como parte do método de reinvenção da polis., mas não permite analisar quais os tipos de desentendimentos internos, ficando sugerido apenas os modos encontrados para lidar com eles (escuta e respeito, não utilização de palavras violentas, engajamento em torno de problemas comuns a todos), evidenciandose os esforços para se construir um tipo de partilha igualitária desse comum. Entretanto, é justamente no lidar sobre o ‘comum entre diferentes’ que emergem as contradições e tensões que nos permitiriam extrair análises mais profundas sobre o papel da comunicação no enfrentamento dessas diferenças. Eis aí, portanto, uma lacuna.

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Ilustração 1 – Conceptual map – Acampadasol, Blog una Línea sobre el mar, s/d

Apesar disso, vale salientar que o método de construção do mapa reflete algumas daquelas que são características do movimento: a iniciativa coletiva, a horizontalidade e o fluxo constante de energia, posta em movimento por meio de ações concomitantes que, uma vez articuladas, se interpenetram e redefinem-se como um work in progress. Além disso, sendo fruto de colaborações anônimas, feitas na rua e transportadas para a internet por meio de tecnologia virtual, o mapa permite traçar as linhas de conexão entre diferentes processos a partir de percepções bem heterogêneas e não hierarquizadas.

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Ilustração 2 – Linha do Tempo da Acampada Sol – processo de construção. Montagem feita a partir de fotos de Eva e Rafa, publicadas no Blog Una línea sobre el mar, 2011

Apesar da permanência, da expansão do movimento dos ¡Indignados! e da complexificação de sua organização e dos processos levados a termo, ele ainda pode ser percebido como “comunidade que ainda não tem efetividade na civitas”, para usarmos a definição de Rancière, seja pela ausência de institucionalidade ou pelo fato de que está criando formas alternativas de ativismo, que incluem o lidar com a crise em paralelo ao poder constituído. Porém, essa ausência de institucionalidade é um dado a ser considerado por ser este um diferencial dos atuais movimentos de revolta popular, que buscam distanciar-se de movimentos sociais tradicionais como os sindicatos, assim como de partidos políticos. Por esse motivo, é de nosso interesse, justamente, tecer aqui análises iniciais sobre a experiência, sem esgotar as possibilidades de abordagem da questão. O que nos interessa, portanto, é pensar a experiência sensível como potência em fluxo, sem nos preocuparmos que estes alcancem sua ‘efetividade’ de resultados no campo da política institucional.

Experiência estética e política Com a finalidade de compreender as possíveis relações entre estética e política a partir da comunicação no âmbito de uma movimentação social como o ¡Indignados!, é 9

preciso localizar o modo como compreendemos experiência, dado que é no seu interior que se efetuam tais relações. Usaremos para este fim as postulações de John Dewey , no livro Arte como Experiência. A experiência é um fluxo permanente e vital, presente no cotidiano, como resultado de interações entre os seres vivos e o ambiente. Elementos de cada um e as relações produzidas nessa interação são passíveis de operar transformações ao longo da experiência, definindo seus rumos. Nesse sentido, o compartilhar do mundo com outras pessoas nos permite compreender que a experiência pode ser, ao mesmo tempo, individual e coletiva. Em grande medida, boa parte de nossa experiência é prosaica, e de tão entranhada ao nosso cotidiano, torna-se corriqueira. Apenas algumas se destacam, constituindo o que John Dewey classifica como “uma” experiência. Essa experiência pode ser considerada singular quando seu percurso chega a uma consecução “é uma consumação e não uma cessação. Essa experiência é um todo e carrega em si seu caráter individualizador e sua autossuficiência.” (DEWEY, 2010, p.110). Essas são as experiências que nos afetam, que criam um diferencial em nossas vidas. A experiência é um material carregado de suspense e avança para sua consumação por uma série interligada de incidentes variáveis. As emoções primárias [...] qualificam a experiência como uma unidade. Mas [ao longo da experiência] desenvolvem-se emoções secundárias, como variações do afeto primário subjacente. [...] Fatores como esses, de qualidade intrinsecamente estética, são as forças que levam os componentes variados [...] a um desfecho decisivo. (DEWEY, 2010, p.121)

Na experiência singular encerra-se uma unidade, assegurada pela qualidade daquilo que foi vivido. Dewey nos chama a atenção para o fato de que mesmo sendo possível, em momento posterior à experiência, distinguir suas diferentes propriedades (intelectuais, emotivas ou práticas), o pensar sobre a unidade que nela se dá, nos exige reconhecer que tais aspectos dão forma e conteúdo ao todo da experiência, não cabendo

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ser distinguidos. Assim, a experiência pode ser considerada não a soma desses traços diferenciados, mas como elementos que se fundem, ora se distanciam ou se sobrepõem, formando novas composições que constituirão a unidade, mas também a qualidade dessa experiência. Sendo assim, seria necessário esperar que a experiência vivida no âmbito dos ¡Indignados!, chegasse a uma consumação para poder ser pensada, fazendo emergir seu significado intelectual. Enquanto está em processo, torna-se difícil fazer qualquer apreciação que tente dar conta da unidade dessa experiência, uma vez que: a) trata-se de uma experiência coletiva de proporções multitudinárias; b) em seu interior abrem-se novos espaços de incidência no cotidiano das cidades e em meios de comunicação virtuais, que, por sua vez, mediam essa própria experiência nas ruas; c) opera-se ali com uma dinâmica de horizontalidade que favorece a autonomia de decisões e, portanto, multiplicam as iniciativas em rede; d) encontra-se em plena duração de processo; e) desenvolvem-se a partir delas processos autônomos e simultâneos de comunicação compartilhada. Percebemos aí motivações, que longe de se tonarem um limite à reflexão sobre a experiência, devem ser pensadas e incorporadas à construção de um método de pesquisa adequado a fazer emergir indícios sobre como se processa a experiência estética em contextos dessa natureza. Por enquanto, nos reservamos a tarefa de apontar elementos que possam servir como um balão de ensaio a essa construção. Por outra parte, seguir com o raciocínio de Dewey (2010, 112), nos leva a considerar que no caso da experiência do ¡Indignados!, o acompanhamento dos acontecimentos pode suscitar outros tipos de experiências, mediadas por recursos digitais, as quais delineiam e constituem, elas também, as percepções e análises sobre a experiência em questão.

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Neste sentido, avaliamos que a apuração de elementos, nas comunidades de redes sociais digitais, que subsidiem uma pesquisa sobre o tema, poderá apresentar apenas alguns indícios que nos permitam traçar algumas questões e análises a partir do que ocorre na atualidade. Um caminho a ser tomado é focalizar materiais de comunicação produzidos e difundidos em redes, entre os quais imagens - fotos, vídeos educativos e videoclipes, cartazes – e materiais de propaganda e de orientação estratégica para a ação, mas também daquilo que pode ser considerado como atos estéticos, ou seja, configurações da experiência que produzem novas maneiras de sentir e subjetividades políticas. Dentre os atos estéticos, destacam-se os acampamentos em praça pública reconstrução precária e provisória (como é a vida) da polis, onde se torna possível reinventar valores e práticas coletivos e igualitários. O próximo mapa (Ilustração 3) oferece um panorama da organização da #AcampadaSol, em Madri. Esta é uma dentre diferentes versões, que são alteradas de acordo com as mudanças ocorridas à medida em que novas pessoas e grupos chegavam ao acampamento, provocando sua expansão.

Ilustração 3 – Mapa de organização do acampamento realizado na Puerta del Soll, Madri, Blog #Acampadasol, maio, 2011

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Por meio dele, é possível observar como se operacionaliza a partilha do sensível no terreno ocupado: a distribuição dos locais centrais de trabalho, de lazer, representações de segmentos específicos, como as feministas, comedorias, entre outros. Da mesma forma, pela distribuição espacial é possível ver quais os trabalhos considerados mais estratégicos (coordenação interna, comunicação, setor jurídico) e aqueles que são periféricos (como setor de limpeza, imigração). Atos estéticos podem ser considerados também os blogs, quando estes contem narrativas da experiência. Um exemplo é o blog intitulado Spanish Revolution, organizado por um ativista dinamarquês. Ali, as pessoas que participam das ações escrevem suas experiências, postam fotos e vídeos, imprimindo visões pessoais acerca dos episódios, compondo uma espécie de diário aberto, coletivo e afetivo. São partilhas que evocam memórias, impressões, afetos, atmosferas, que se misturam aos fatos ocorridos durante manifestações, as assembleias, passando por acampamentos até as longas marchas que durante meses atravessaram a Europa convergindo para a Grécia – origem da democracia e, ironicamente, país que parece ter se tornado símbolo de sua derrocada. Tais iniciativas, a nosso ver, concretizam o rompimento com a lógica dicotômica, que coloca o sensível e a razão lógica em pólos opostos. Ruptura também proposta por Jacques Rancière para reaproximar a estética da política numa direção que se confronte com a sua espetacularização. Nesse percurso, Rancière identifica em Baumgarten e Kant os precursores do que viria a se tornar mais tarde a concepção de estética como teoria da arte, expondo como o limite de suas abordagens o fato de que nenhum dos autores foi capaz de construir uma teoria estética que superasse a dicotomia entre o sensível e a razão. Tampouco reconheceram que o sensível é, sim, inteligível, mesmo que guarde em si 13

certa confusão. A ruptura com a oposição razão versus sensível, que asseguraria um novo estatuto à estética, só viria mais tarde, quando o período romântico força de fato a linguagem a penetrar na materialidade dos fatos através dos quais o mundo material e social se torna visível a si mesmo, ainda que sob a linguagem muda das coisas e da linguagem cifrada das imagens [...] uma maneira de dar sentido ao universo empírico das ações obscuras e dos objetos banais.” (RANCIÈRE; 2005, pp.54-55).

É só então que a estética permitirá que se compreenda o ‘conhecimento confuso’ como aquilo que transforma a arte em território de um pensamento que, encontrando-se fora de si mesmo, é idêntico ao não pensamento. Neste sentido, a estética irá admitir a existência de “um pensamento daquilo que não se pensa”. (Idem, 2009, p.13; grifo do autor). Assim sendo, Rancière constrói uma concepção inovadora da estética como teoria, conferindo a ela historicidade e distinguindo-a da disciplina que, até então, tratava a arte de modo isolado. Com isso, a estética passa a designar “um modo de pensamento que se desenvolve sobre as coisas da arte e que procura dizer em que elas consistem enquanto coisas do pensamento” (Idem, 2009, pp.11-12). Deste modo, Rancière afirma que o caráter revolucionário do regime estético das artes se encontra no fato deste abolir um “conjunto ordenado de relações entre o visível e o dizível, o saber e a ação, a atividade e a passividade” (Idem, 2009, 25). Desse modo, oferece as condições para fazer emergir a identidade de contrários própria do modo de ser das artes, ou seja, quando agir e padecer, saber e não-saber encontram-se no fazer artístico. Colocar essas ideias em diálogo com a política permite a Rancière dois movimentos: o primeiro, evidenciar uma partilha do sensível, a partir da qual se define o que vem a ser um comum entre diferentes, o que deste se tornará ou não visível e o que cabe a cada um que compartilha desse comum. O segundo é demonstrar como a emergência da contradição torna-se o pressuposto para a instituição do dissenso (ou

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desentendimento) em relação à lógica da dominação, naturalizadora de uma ordem de corpos que define uma partilha desigual e suas partes: quem fala, quem é visível, quem participa (e como) das decisões que dizem respeito ao que é comum a todos. No caso dos ¡Indignados!, o desentendimento fica evidenciado em manifestos, artigos, reportagens, declarações públicas. É o caso do texto intitulado Como cocinar una revolución non violenta, publicado no blog Take the Square, onde se explicitam o descontentamento com a situação da população; a crise de representatividade do poder político; os desejos e afetos implícitos nas tentativas de se reinventar o fazer político como parte do cotidiano e como estas se expressam por meio da organização do trabalho coletivo e da criação de uma ‘atmosfera amigável’, como já foi dito anteriormente. Os ¡Indignados! (2011) afirmam que: No nos representan partidos, asociaciones ni sindicatos. Tampoco queremos que así sea, porque creemos que las personas podemos decidir por nosotras mismas. [...] Queremos idear y construir el mejor de los mundos posibles. Juntos podemos y lo haremos. Sin miedo. [...]Estamos cansados de sentirnos cifras en los periódicos, datos estadísticos, consumidores potenciales; cansados de sentirnos mercancía en manos de políticos y banqueros. Tenemos voto, pero no tenemos voz, y nos frustra la falta de voluntad de los políticos por desarrollar mecanismos directos de participación en la toma de decisiones. (¡INDIGNADOS!, 2011)

Por desentendimento, compreenda-se “uma determinada situação de palavra: aquela em que um dos interlocutores ao mesmo tempo entende e não entende o que diz o outro.” (RANCIÈRE, 1996, p.11) Não por desconhecimento daquilo que se diz ou pelo fato de cada um estar dizendo algo diferente do outro, mas porque ambos usam os mesmos termos para explicitar coisas diferentes. O desentendimento, ademais, não diz respeito apenas ao que se fala, mas também à situação de quem fala. Nesta perspectiva, é um elemento de tensão permanente que exige, dos que estão no poder, outra postura como parte do jogo político e de instituição de uma partilha igualitária. Esta perspectiva se faz presente nas maneiras como movimentos como o ¡Indignados! se autodefinem como uma mobilização de

“personas normales y 15

corrientes. Somos como tu” ou ainda como “ciudadanos de distintas ideologías” que começaram um movimento apartidário, surgido no “calor de la internet e de las redes sociales a través de un grupo de discusión completamente informal” (CABAL, 2011, p.9). É interessante notar que a retomada das ruas, com permanência da população por um tempo extenso, tem se imposto como a única forma de dar visibilidade aos sujeitos e assegurar a escuta das vozes dissonantes, que se expressam como atos de resistência fortemente permeados pela presença do sensível. Quando outros canais institucionais de interlocução com o Estado se esgotam, torna-se necessário criar um acontecimento de grandes proporções: Tomamos las plazas porque siempre han sido nuestras, pero lo habíamos olvidado. Nos llaman los indignados, y lo estamos. [...] Tomamos las calles y plazas por las mismas razones que las han tomado antes que nosotros otros movimientos ciudadanos en Islandia o en los países de la Primavera Árabe, y por las mismas razones que otros países después de nosotros saldrán a tomar sus plazas. (¡INDIGNADOS!, 2011)

No momento de elaboração deste artigo, a população voltava às ruas em Madrid e em Portugal para pedir a demissão do Congresso Nacional de cada um dos países, que hoje simbolizam, por meio da aprovação das políticas de austeridade, o interesse do capital, não importando as perdas significativas para os cidadãos comuns, com os cortes nas políticas sociais. Várias manifestações ocorreram ao longo de 2012, culminando em 14 de novembro, com uma greve geral tomou as ruas dos países da zona do euro mais atingidos pelas medidas de austeridade. Tudo isso sugere que a presença massiva nas praças, por outra parte, passa a adquirir novos significados pela repercussão que se pode fazer em tempo real por meio das redes sociais digitais. Nesse sentido, as produções comunicacionais geradas por esses movimentos constroem novas narrativas onde se compartilham percepções sobre a experiência de se viver sob as políticas de austeridade da Troika. O modo de comunicar 16

a revolta política está em transformação. Não é por acaso que uma grande parte dos vídeos produzidos são, na verdade, videoclipes, que criam forte impacto com imagens de rua, música vibrante, cadenciada, e pequenos textos, cujo sentido pode ser dado pelo todo ou pelas frases de efeito que os compõem. É, portanto, nesse vértice, nessa tensão instituída pela visibilidade do desentendimento, que se dá a perceber a política, compreendida como “invenção de uma forma de comunidade que suspende a evidência das outras instituindo relações inéditas entre as significações e os corpos, e os seus modos de identificação, lugares e destinos” (RANCIÈRE, 2011, s/p). É nessa tensão também que se evidencia o caráter estético da política, ou seja, aquilo que a torna revolucionária: em nome da igualdade entre diferentes, fazer emergir o dano; transgredir a ordem e instituir, por meio de novas vozes dissonantes em cena, uma comunidade inédita: “este no es el mundo en el que queremos vivir, y somos nosotros los que tenemos que decidir cómo debe ser. Sabemos que podemos cambiar el mundo, y nos lo estamos pasando genial haciéndolo.” (¡INDIGNADOS!, 2011) Toda nova comunidade, afirma Rancière, de algum modo rompe com aquela que existia anteriormente. Inédita porque torna comum o que não era comum entre seus integrantes, “declarando como atores do comum aqueles ou aquelas que não eram mais do que pessoas privadas, fazendo ver como relevando da discussão política assuntos que relevavam da esfera doméstica, etc.” (RANCIÈRE, 2011, s/p). A tensão estabelecida pela introdução do desentendimento em cena contrapõe-se à concepção de esfera pública segundo Habermas, para quem os sujeitos seriam já previamente reconhecidos e legitimados. E sendo assim, as diferenças devem ser tratadas como da esfera do interesse privado, portanto, “são suprimidas para defender a

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ideia de que os argumentos devem ser avaliados segundo os seus méritos e não segundo a identidade dos argumentadores.” (ORTEGA, 2001, apud. JÁCOME, 2011, 31). Neste sentido, a comunidade inédita é o acontecimento que abre a possibilidade para uma mudança radical nas formas de partilha do sensível entre todos que fazem parte deste comum, reforçando, assim a heterogeneidade como elemento fundante e da qual não abre mão. Essa comunidade, portanto, é aquela que toma o conflito como parte inseparável do jogo político igualitário.

Comunicação e experiência sensível A compreensão de estética com a qual nos propusemos a trabalhar e suas vinculações com a experiência compreendida como algo inerente ao viver, nos permitem perceber a experiência estética como emergente da experiência. Não sendo algo externo a ela, a experiência estética rompe com o dualismo entre razão e afeto, evidenciando que a dimensão estética de uma coisa não se encontra apenas na criação artística, mas também no pensamento. Dialogando com esta perspectiva, avaliamos como importantes as contribuições de Marcondes Filho (2010), em sua abordagem sobre comunicação. Dada a intensidade de fluxo de informações que se faz circular acerca desses episódios e que se tornam parte constitutiva de sua existência, nos parece particularmente importante refletir acerca dos fundamentos da comunicação, propostas por Marcondes Filho. Na perspectiva do autor, a comunicação se dará, na medida em que nos modifique a maneira de ver, de sentir, de pensar o mundo; que propicie uma reconfiguração do pensamento, uma possibilidade de encontrarmos um pensamento que, até então, não sabíamos existir em nós. E “essa descoberta de algo que não se sabia antes é o expor-se

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à ‘violência’, é o ato de a comunicação nos fazer pensar nas coisas, nos outros, em nós mesmos, na nossa vida.” (MARCONDES FILHO, 2010, 22). Nesse sentido ela se diferencia da sinalização, já que “tudo ao nosso redor produz sinais”, mas se esses virão ou não a ser convertidos em elementos do processo comunicacional é contingência. Para que os sinais se transformem em informação é preciso que haja interesse, intencionalidade por parte de quem os recebe. Ao mesmo tempo a comunicação não se confunde com informação na medida em que esta última tem apenas o poder de nos confirmar aquilo que não abala nossas certezas, mas por outro lado, nos faz sentirmos seguros do que somos e pensamos. O caráter estético se faz presente aqui, na medida em que esta abordagem da comunicação evidencia ser plausível o rompimento com a dicotomia entre a razão e o sensível, o que nos apresenta um ponto de convergência que aproxima a comunicação das relações entre estética e política para refletir sobre seu papel nos processos atuais de mobilização social. Neste sentido, concordamos com Marcondes Filho, quando este afirma que este tipo de comunicação se aproxima da arte como forma de apreensão do mundo e que [...] ocorre igualmente nas formas sociais de maiores de contato com objetos, especialmente com objetos culturais das produções televisivas, cinematográficas, teatrais, nos espetáculos de dança, nas performances, nas instalações, nas possibilidades de criação de situações similares, inclusive em ambientes de relacionamento virtual. (MARCONDES FILHO, 2010, 23).

Se a comunicação – em contraposição à sinalização e à informação – é aquela que faz o sentir e o pensar como partes de um mesmo movimento estético, será um dos elementos que permitirão a expressão do desentendimento, podendo sustentar o tensionamento daí decorrente, que é próprio do caráter estético da política. Esta, portanto, me parece ser uma chave de leitura importante para se tecer uma análise crítica da comunicação desses movimentos nas redes sociais digitais de forma a

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compreender em que medida estes guardam coerência com a tensão que se busca imprimir por meio dessas manifestações populares ou se contribuem com sua diluição.

Considerações finais As movimentações sociais da atualidade têm buscado recriar os sentidos da vida em comum, apoiando-se em atos estéticos que produzam novas subjetividades capazes de reinventar o fazer político como dimensão inerente à vida cotidiana. Esses processos são mediados e potencializados pela convergência de mídias digitais, em um ambiente de alta conectividade, no qual as redes sociais jogam um papel importante como catalizadoras de afetos e ações, tendo se integrado, definitivamente, ao desenho de estratégias e aos modos de articulação e desenvolvimento dessas ações políticas. Desta forma, uma multidão anônima atua na resistência política, pautando-se na criatividade para gerar formas próprias e inovadoras de enunciação coletiva que lhes permita instituir uma partilha igualitária do sensível, por meio da qual participem de uma nova ordem simbólica, como uma comunidade inédita de seres falantes. A comunicação joga um papel importante na determinação dos condicionantes da experiência estética em experiências públicas coletivas. A singularidade dessa experiência pode ser evidenciada por meio da indistinção de fronteiras entre o sensível e o racional que a compõem e que formando múltiplas composições que constituirão a unidade, também conferem qualidade a essa experiência.

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