Experiências e experimentos da pesquisa

September 23, 2017 | Autor: S. Rangel Vieira ... | Categoria: Qualitative Research, Research with Children, Metodologias de Pesquisa, Pesquisa com crianças
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Publicado no livro “Processos e práticas na pesquisa em Cultura Visual e Educação”, Santa Maria: Editora da UFMS, 2013.

Experiências e experimentos na pesquisa Susana Rangel Vieira da Cunha O que será O que é pesquisa para cada um de nós, pesquisadores/as, orientadores/as, orientandos/das? Certamente poderíamos elaborar inúmeras reflexões sobre os fundamentos teóricos da pesquisa, os embates dos caminhos metodológicos, os conceitos operacionais, as formas de análises, enfim, há muito para se pensar e dizer sobre a pesquisa nas Ciências Humanas, em especial quando se trata de um campo de estudos jovem: os Estudos da Cultura Visual na interface com a Educação. No entanto, minha contribuição será no que diz respeito às experiências que tive e tenho com a pesquisa educacional como pesquisadora, professora de arte, mestiça de referências, orientadora de trabalhos na graduação e pós-graduação em uma faculdade de Educação. Minha intenção inicial era focalizar a pesquisa com crianças, porém, apesar de traçar as linhas e um sumário para essa escrita, como se fosse a proprietária dela, esqueci a advertência de Skliar (2003, p.20) “ela [a escrita] tem um dono diferente, que é a única responsável por suas artimanhas e por suas manhãs”. Iniciei disciplinadamente contextualizando meu trabalho atual, depois sigo com um breve relato sobre minha primeira experiência como pesquisadora quando “necessitava” saber sobre como as professoras de arte elaboravam suas concepções de arte e trabalhos pedagógicos e por que concepções e práticas eram muito semelhantes entre si. Em seguida, por ter mencionado os vínculos afetivos dos investigadores com suas temáticas, enfoquei as relações afetivas implícitas para empreender uma pesquisa e para logo após, mostrar o trabalho pedagógico que desenvolvo junto alunas e orientandas para que encontrem e delimitem suas paixões de pesquisa no amplo cotidiano profissional e pessoal. Quando me dei por conta, a escrita com suas

2 artimanhas e como se fosse algo autônomo e independente de minha vontade, foi desviada para a conjugalidade da forma e conteúdo nos trabalhos acadêmicos, onde discorro brevemente sobre o quanto ainda precisamos repensar, transformar, inovar sobre as formas de apresentar nossos textos visuais e escritos. E a pesquisa com crianças, um campo também muito jovem, que está experienciando metodologias e criando outras possibilidades de fazer pesquisa, terei como abordá-la em meio a esse artigo panorâmico? Para que não seja tão desviante, trago, ao final, algumas situações de pesquisa com crianças que venho desenvolvendo junto às minhas orientandas. Ressalto que como o título indica, o artigo está fundado em minhas experiências e experimentos com a pesquisa, caminhos que tracei, e venho traçando junto com outros /as pesquisadores/as que compartilham incertezas e acreditam que a pesquisa é algo sempre a ser inventado. Das percepções à pesquisa O que me leva a fazer pesquisa? Para responder essa pergunta, me reporto aos meados da década de 80, quando percorri por dois anos o Rio Grande Sul ministrando cursos1, denominados Cursos de Atualização em Artes, para professoras que lecionavam a disciplina de artes nos mais diferentes contextos educativos. Naquela época, logo depois de formada em licenciatura em Artes Visuais, sequer sabia o que era pesquisa, mas notava que havia uma similaridade no que se referia aos modos de pensar das professoras, aos seus conceitos sobre arte e seu ensino e também em suas produções gráfico-plásticas, entre outras semelhanças. Nos cursos, observava que havia uma semelhança muito grande nas formas como as diferentes professoras desenvolviam as aulas de Educação Artística nas escolas, independentemente das suas formações (com ou sem licenciatura em Artes) e dos contextos sócio-culturais nos quais se desenvolviam os trabalhos. Constantemente, após o término dos cursos, me perguntava: como uma professora da região litorânea, com formação em Artes Visuais, pensa e se expressa quase da mesma maneira que uma professora de arte da região das Missões2, com formação em Magistério? A similaridade me incomodava e esse desconforto sobre o desconhecido gerava questionamentos. Durante os cursos não “encontrava” respostas as minhas perguntas. Não entender as recorrências me levou à perguntas que “precisavam” de respostas. Em relação aos nossos questionamentos frente as nossas temáticas de pesquisa, Costa (2005, p.200) afirma que as perguntas “emergem de uma certa insatisfação, de uma certa instabilidade, de uma dúvida, de uma certa insatisfação (...)” e 1

A Secretaria de Cultura do RS (SEDAC) no início dos anos 80 promoveu uma série de cursos em diversas áreas para professores. 2 Região das Missões é uma região localizada no Noroeste do Rio Grande do Sul, fronteiriça a Argentina. A cultura regional é uma combinação entre os costumes do homem branco e dos povos guaranis.

3 prossegue: “parece que nenhuma indagação nasce de um vazio, sem um território e sem um tempo que fecunda as idéias, as dúvidas, as inseguranças.” Para melhor entender como e porque aconteciam as recorrências, organizei um longo questionário com perguntas sobre a formação e atuação das professoras, além disso, anotava comentários durante os cursos e fotografava as produções visuais realizadas pelas professoras. Não percebia que aquilo que fazia se configurava em uma pesquisa e que aqueles procedimentos gerariam dados e possíveis compreensões sobre os acontecimentos. Posteriormente, ao ingressar em um curso de Especialização em Arte - PUC/RS/1985 – onde iniciei a aprender formalmente a fazer pesquisa, retomei meus dados, organizei-os e procurei entender os fatores constitutivos, princípios teóricos e metodologias que as docentes desenvolviam na disciplina de Educação Artística nas escolas públicas do RGS. Assim, minha primeira investigação iniciou com algumas percepções sobre como as professoras de artes pensavam e ensinavam essa disciplina e pela minha falta de entendimento sobre os “porquês” dos acontecimentos. Percebo que até hoje, o estopim para desencadear os processos investigativos é acionado quando me deparo com semelhanças em situações diversificadas e “preciso saber” como é produzida a homogeneidade - e será que na homogeneidade não há diversidade? Ou seja, minha curiosidade, e interrogações decorrentes, surgem diante de cenários onde as semelhanças (de qualquer coisa) se tornam naturalizadas e as questões formuladas inicialmente me movem em busca de respostas. E antes do estopim? A escolha de nossas temáticas e objetos de pesquisa acontece quando temos um vínculo afetivo muito estreito com elas, aquilo que Chico Buarque diz ao se referir à paixão: O que será que me dá Que me bole por dentro, será que me dá Que brota à flor da pele, será que me dá (...) Que desacata a gente, que é revelia (...) O que não tem descanso, nem nunca terá O que não tem cansaço, nem nunca terá O que não tem limite (...) O que será que me dá Que me perturba o sono, será que me dá

Entretanto, entendo que o que me perturba não se dá numa relação imediata, espontaneístas entre eu e as coisas, o que me bole é produzido pelo meu conhecimento sensível e racional, pelas vivências, pelos contextos culturais que vivi e vivo e pela minha história pessoal e social. Entendo que acontecimentos da nossa vida profissional e/ou pessoal devem nos convocar, causando estremecimentos e nos solicitando olhar com mais atenção e sensibilidade

4 determinados aspectos do cotidiano. A respeito das relações entre nossas experiências de vidas, afeto e pesquisa, Tourinho (2012, p.247) esclarece que: “A pulsão pelo trabalho de investigar e a motivação que o alimenta dependem da sensibilidade que cria e institui nossas relações com o mundo; dependem dos sentimentos que construímos e que nos fazem transitar entre experiências, sempre embebidas na nossa vida cotidiana.” Elliot Eisner (1998, p. 267) também enfatiza que o/a pesquisador/a deve ter uma sensibilidade refinada que faz emergir no campo da pesquisa aquilo que tem significado para nós, formando assim um domínio de interesse a partir de nossas experiências. Rose (2001) também evoca a paixão como elemento propulsor das investigações, na introdução de seu livro sobre metodologias de pesquisa para interpretar materiais visuais diz que os trabalhos mais interessantes, surpreendentes não dependem dos métodos, mas sim “do prazer, emoção, fascinação, admiração, medo ou repulsa da pessoa que esteja apreciando e escrevendo sobre as imagens. A interpretação de êxito depende de um engajamento apaixonado com aquilo que você vê.” E adverte: “Use a sua metodologia para disciplinar a sua paixão, não para amortizá-la.” (ROSE, 2001, p.4) Entendo que disciplinar a paixão é passar para outro “estado”, talvez um estado de distanciamento sobre os objetos de nossas paixões, colocando-os em uma situação de outras descobertas e de tensionamentos sobre o conhecido e o desconhecido. Alerto que às vezes o estado de apaixonamento é tão intenso, que o pesquisador passa a ser um narrador de experiências bem sucedidas3 e não compositor de um enredo com intrigas e desfechos. Uma investigação necessita de problematizações, muitas intrigas, questionamentos do início ao fim do trabalho, sobressaltos, idas e vindas não lineares, enroscos, dúvidas e dívidas com o conhecimento, pois sempre falta algo a dizer, e como disse Madalena Freire em relação às professoras e sua docência: “quem pensa que sabe tudo, cutuca que está morto4”. O vestido de Tita Para testar minha hipótese sobre a relação afetiva do pesquisador com seu tema-objeto de pesquisa, elaborei, recentemente na disciplina Metodologia da Pesquisa em Arte5, um planejamento que objetivava um entendimento experiencial da pesquisa e não um passo a passo das metodologias de pesquisa. Para tanto, optei, no início do trabalho, por desenvolver junto às alunas uma abordagem pedagógica auto-reflexiva, onde elas tivessem espaço para falar de si, 3

Noto que a maioria das dissertações e teses que enfocam os trabalhos pedagógicos das professoraspesquisadoras, apresenta dificuldades em levantar problematizações e de questionar o próprio trabalho. 4 Essa frase de Madalena Freire foi dita em uma palestra, lá pelos anos 80, portanto não há exatidão nas palavras, mas o sentido é este. 5 Curso de Especialização em Arte Educação: Arte, ensino e linguagens contemporâneas, FEEVALE - RS

5 sobre a escolha do lugar de onde falariam e o que falariam. Solicitei que no primeiro encontro, elas levassem algo – objeto, imagem, música, roupa, bijuteria, livro, calçado, panela, bebida, aroma, entre outras coisas - que fosse importante, significativo e tivesse uma ligação profunda com elas. Minha intenção com esse exercício era “provar” às alunas o quanto precisamos estar engajadas e envolvidas com o que queremos investigar e que esse envolvimento é proporcional a nossa disposição em querer saber cada vez mais. Foi um exercício de prospectar vidas, de trazer a superfície o que fazia sentido para elas. Outra intenção foi fazer com que as alunas percebessem que qualquer objeto, acontecimento que nos afete pode suscitar uma investigação, mas isso não está dado a nós, precisamos mergulhar nos acontecimentos e experiências de nossas vidas e perceber o que é importante. Hernández (2007) sugere que a escolha de temáticas, ou problematizações relacionadas à cultura visual em um trabalho investigativo, deve estar conectada as experiências subjetivas dos sujeitos. “Significa optar por um tema que tenha a ver com suas inquietudes, que represente desafios a eles, que os convide a fazer relações e a desfrutar do prazer de aprender.” (p. 82) A maioria das alunas levou objetos pessoais de seus cotidianos e fotografias. Muitas trouxeram qualquer coisa que estava à mão e outras foram a fundo em suas buscas, apresentando objetos que compunham suas histórias de vida. Aquelas que não consideraram fundamental minha solicitação: trazer algo significativo, emperraram no desenvolvimento posterior do exercício, que foi justificarem os porquês daquela escolha; o que sabiam daquele objeto; o que gostariam de saber mais sobre ele; como ele poderia ser importante para os outros; que argumentos, teóricos e vivenciais, poderiam ser tecidos em torno dele para que se tornasse relevante para outros sujeitos e grupos. Localizo como ponto de entrave a etapa “o que gostariam de saber mais sobre o objeto” e acredito que isso se deva pela escolha aleatória e não afetiva que elas tinham com o objeto, se o objeto não tinha significado que pudesse mobilizá-las, não havia curiosidade, interesse em buscar coisas originais e desconhecidas. Se não ultrapassamos o ponto de “querer saber mais sobre algo”, não teremos uma investigação, talvez um relato de experiências, pois uma investigação deve ter como principal objetivo buscar ampliar aquilo que não sabemos sobre algo. Qual o sentido de empreendermos uma investigação sobre apenas o que já sabemos? Aquelas que levaram seus tesouros, o exercício fluiu e ao mesmo tempo contagiou o outro grupo que foi em busca de outros objetos significativos. Uma das alunas apresentou uma roupa de sua infância semelhante a da Branca de Neve. Ao apresentá-la, a aluna fez um relato sensível sobre sua infância, dos acontecimentos que circundaram a confecção e o uso da roupa em meados dos anos 60. Ressaltou o quanto àquela roupa era importante para pensar sobre suas

6 questões em relação ao seu corpo e da fabricação dos corpos a partir das normalizações culturais. Posteriormente, nossas discussões em torno de seu depoimento e da roupa resultaram em contribuições em seu trabalho de conclusão: Sou o que aparento: a pose no retrato fotográfico do adolescente6 onde a professora elaborou um trabalho investigativo junto aos seus alunos com o intuito de entender as significações do corpo adolescente, de como ele é visto e entendido pelos próprios adolescentes, na contemporaneidade. O exercício proposto proporcionou a aluna-professorapesquisadora estabelecer trânsitos entre suas histórias e experiências pessoais – autobiografia - com o que ela observava e a inquietava como professora de arte junto a seus alunos adolescentes. O vínculo afetivo com a roupa – não foi qualquer peça de roupa -, que marcou um momento importante da sua vida, serviu como um disparador para direcionar sua temática e foco da pesquisa.

Quando as alunas apresentavam seus objetos, discutíamos sobre os questionamentos que tais objetos nos solicitavam e dessas perguntas, pensávamos como abordar as temáticas teoricamente, quais conceitos seriam centrais e quais caminhos metodológicos seriam adequados para a investigação. O propósito era ver a infinidade de possibilidades que se dão nos cruzamentos entre temáticas, objetos, campos teóricos e metodologias, bem como perceber como cada uma de nós, conforme suas experiências, “vê” os objetos/temáticas dos outros. Trago o vestido de criança de Tita para exemplificar essa etapa do exercício, onde as alunas teriam oportunidade de compartilhar pontos de vista e perceber um aspecto fundamental na fase de constituição do projeto de pesquisa, que seria “a compreensão da construção do eu, a influência

desse

eu

na

percepção

e

a

influência

desta

na

natureza

da

investigação”.(KINCHELOE, 2007, p.21). Na ciranda dos debates, o vestido de Tita suscitou possíveis temáticas, abordagens e metodologias7:

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STRAPPAZZON. Maria Lucia. Sou o que aparento: a pose no retrato fotográfico do adolescente. Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização em Arte-Educação, Programa de Pós-Graduação da Universidade Feevale. Novo Hamburgo: 2011 7 Minha referência é a memória, tentei recriar o que foi dito há 2 anos atrás.

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Sujeitos da pesquisa: crianças e/ou professoras

Contextos: Escolas, festas infantis, shoppings

Possíveis ferramentas teóricas: Estudos Culturais, da Cultura Visual, Relações de Gênero e Midiáticos, Literatura Infantil, História da Arte, Vestuário e Moda, Sociologia, Antropologia da Infância

Possibilidades Temáticas: “As roupas das princesas e o imaginário” “Relações entre pinturas barrocas e moda infantil” “Constituição do corpo e subjetividades infantis” “A cor como elemento na roupa” “Jogo simbólico na escola” “Quem é Princesa, quem é príncipe? “Infância e consumo”

Caminhos Investigativos Pesquisa bibliográfica, documental e imagética, pesquisa etnográfica, pesquisa- intervenção; estudo de caso, entre outros

Posteriormente, depois de quatro encontros onde as alunas haviam apresentado e discutido suas temáticas e/ou objetos, iniciei um trabalho específico, semelhante ao realizado com os objetos trazidos, porém com as possíveis temáticas que seriam desenvolvidas na monografia final do curso. Foi possível constatar que os exercícios em aula possibilitaram delinear as futuras investigações. Em outras disciplinas de metodologia da pesquisa, ministradas em cursos de pós-graduação e graduação, tenho desenvolvido esta proposta auto-reflexiva junto às alunas tendo como referente um objeto pessoal e posso afirmar que se há um vínculo vigoroso entre sujeitos-objetos, abrem-se possibilidades investigativas de caráter inovador. Com minhas orientandas, em qualquer nível, minha estratégia para que elas “afinem” suas temáticas e objetos de pesquisa é solicitar, no início das orientações, uma argumentação escrita sobre como sua temática a coloca em movimento para investigá-la. Uma de minhas exorientandas, a Profa. Dra. Anelise Barra Ferreira, escreve como foi afetada:

8 “Confesso que estou apaixonada, que tenho o fotografar como amante. Ele se apoderou da minha fala, da minha forma de olhar. Como fotógrafa amadora, descompromissada, toco com o olhar. Meu lado voyeur intensificou-se, observo e registro o teu/o meu desejo. Vejo com gosto, cheiro, forma, sinto, me deleito na poesia de compor cenas. A câmera passeava pela escola no horário do intervalo, desvinculada do peso do trabalho. Captava por querer, ao acaso do encontro: um rosto desatento, uma cena inusitada, texturas do pátio,... Aproximava-se da sala de aula. O prazer de fazer imagens compunha-se na forma de “ser fotógrafa”, de me relacionar. Identificava-me como a “pessoa com câmera fotográfica”, que podia assim registrar. Imagens eram realizadas, vistas, consumidas,... Compunham-se em relicários – objetos preciosos, memórias, afetos O fotografar se atreveu a interferir no meu trabalho. Insistiu e acabou sendo meu parceiro de sala de aula. Ser amadora virou profissão e estudo. O fotografar passou a ser objeto e instrumento de pesquisa – constituiu o meu trabalho pedagógico em uma Oficina de Fotografia na escola. Seduziu os meus alunos que também criavam suas imagens. Os encontrava pelos cantos conversando pelas fotos. Um retrato declarava outro amor, gerava cumplicidade, encantava. Suas mochilas carregavam fotografias “roubadas” de casa como recurso para mostrar, partilhar suas vidas. Incitavam conversas - quem não falava com palavras mostrava cenas da sua casa, da sua família, da Kombi do pai, do cachorro, se expressava pelas fotografias, convidando os colegas à dele falar. O olhar pelas imagens estabelecia as narrativas. Os alunos apoderaram-se da minha câmera e simplesmente fotografavam. Eram convidados a deixar seu lugar de objeto/foco do olhar do outro e registrar suas próprias imagens. Participavam de um ambiente artesanal, colocavam literalmente suas mãos à obra na oficina sob minha coordenação. Não tinha mais jeito, eles se espalhavam, deleitam-se, transformam-se em fotógrafos - também amadores (que amam). O fotografar passou a ter horário e espaço próprio no fazer da Escola. A paixão foi intensificada neste novo relacionamento. Invadiu os espaços e os modificou: o banheiro tradicionalmente foi transformado em laboratório. Provocou “uma química”. Um canto escuro, com luz vermelha, suscitou a concepção de variadas imagens. A câmera digital participou desta relação. Assumimos o compromisso de tentar experimentar outros jeitos de ser escola, envolvidos (impulsionados) por esta linguagem que flerta intensamente com a arte e a educação.”(FERREIRA: 2012, p.13-14

Suas profundas motivações iniciais seguiram na tese O aluno faz foto? o fotografar na escola (especial), evidenciadas principalmente na composição textual e visual do trabalho. Forma É conteúdo Por mais interessantes que sejam os enfoques temáticos, os processos metodológicos diferenciados da pesquisa de campo, o campo teórico explicitado e situado em abordagens contemporâneas, a forma como vamos narrar uma pesquisa determinará o que ela é. Classificar uma pesquisa como sendo “pós-estruturalista, pós-moderna, pós-tudo” e adotar abordagens autobiográficas, etnográficas, narrativas performativas, entre outras tantas abordagens atuais, não garante que o “produto final” esteja dentro daquilo que os marcos teóricos sugerem, orientam, discutem, provocam. Muitas vezes, os trabalhos anunciam estar em consonância com as

9 reflexões atuais, no entanto estão confinados em formas antigas, acadêmicas anêmicas, sem vida, sem autoria e assim perdem sua potência argumentativa pela forma como são narrados e apresentados como um artefato acadêmico de nosso tempo. A forma física ou virtual, composta por textos escritos e visuais deveriam estar em sintonia com os conteúdos expostos, relatados, analisados nas investigações sob a abordagem dos Estudos da Cultura Visual. Sobre os modos de escrita, Larossa (2003. p. 212) salienta que: “(...) a escritura às vezes é, ou deveria ser, uma aventura pessoal....e a leitura, às vezes, é ou deveria ser, uma aventura pessoal... e o resto é verborragia e política no mau sentido da palavra política, no sentido da produção, a reprodução e a imposição de discursos e de ideias no interior de aparatos altamente institucionalizados e hierarquizados de controle de discursos e de controle de pensamentos.

No cenário nacional, alguns pesquisadores, entre eles Belidson Dias tendo com referência os estudos da A/r/tografia, nos instigam a romper com o conforto dos contornos da folha branca A4, composta por textos com a mesma fonte, preenchida com parágrafos, citações e escassas imagens, ordenados conforme as normas da ABNT. Na perspectiva da a/r/tografia os textos visuais estão em diálogos com os textos escritos. A imagem deixa de ser explicativa e passa a ter um papel enunciativo próprio. Segundo Dias (2007. p.2): “A/r/tografia é uma forma de representação que privilegia tanto o texto (escrito) quanto a imagem (visual) quando

eles

encontram-se em momentos de mestiçagem. Na a/r/tografia saber, fazer e realizar se fundem. Eles se fundem e se dispersam criando uma linguagem mestiça, híbrida.” Outra pesquisadora, Sandra Corazza, “inspirada pelo pensamento deleuziano da diferença, uma pesquisa feita entre Deleuze e a educação... com Deleuze... tendo Deleuze no meio...” (CORAZZA, 2004, p.2), também nos incita a buscarmos formas singulares da escrita acadêmica, segundo orientações da autora sobre a escrita em seu blog “1) Os textos não são tratados como objetos estáveis ou estruturas delimitadas; não apresentam limites definidos nem são entidades fechadas; não têm significações determinadas nem significados fixos; não possuem hierarquias de níveis e sequencias nem começo ou fim; não têm um único centro, essência ou significação unívocas nem possibilitam recursos ao autor ou à última palavra. 2) São textos abertos, plurais e dispersos, polissêmicos e difusos, experimentais e ambíguos, que carregam galáxias de sentidos, tramas de códigos e processos fragmentários; que se espalham por outros textos, aglutinados em sua vizinhança e geram outras perspectivas. 3) Os textos considerados mais interessantes não são os que podem ser lidos; mas aqueles que são redigíveis (scriptible)” (CORAZA, Sandra, http://escrileituras.blogspot.com.br) Produzir e/ou orientar investigações onde linguagem verbal e visual “carregam galáxias de sentidos” é um árduo trabalho experimental “para a qual não existe nenhum mapa prévio, e na qual eles são [nós somos] forçados a deixar para trás as pesquisas habituais, sem nunca ter certeza sobre o lugar onde irão aportar”. (CORAZZA, op.cit, p. 7). Também requer do

10 pesquisador/orientador um contínuo e complexo processo de criação e coragem para romper com nossas formatações. Nas pesquisas nas quais oriento, desde o início dos trabalhos, incentivo as orientandas a pensarem a forma do trabalho, que deverá ser gestada em parceria com o texto escrito, assim como deverão ser pensadas as apresentações verbais-visuais. Uma de minhas primeiras orientandas de mestrado, profa. Me. Daniela da Rosa Linck Diefenthäler, apresentou sua proposta de qualificação dentro de caixas de tamanhos diferentes onde se encontravam cadernos com textos e imagens para que o leitor criasse seus modos de interação. Essa forma de organizar o trabalho não foi apenas um recurso formal, estético alienado do conteúdo do trabalho e das motivações pessoais que levaram a pesquisadora a empreender a pesquisa “A gente pode fazer casa do jeito que a gente quiser”? Ações Propositoras e Materiais Provocadores: ampliando o imaginário infantil”. Para a pesquisadora: “parti da idéia da mala de viagem, da mala de guardados, em que fui colocando algumas coisas que marcaram minha vida.” (p.11). Para as pareceristas, a forma do trabalho caixas-cadernos-malas8 era conteúdo e não apenas algo para causar efeito, segundo as avaliadoras do trabalho: “Não há como ignorar que a forma que escolheste para apresentar tua proposta é instigante, deslocadora e provocativa: condiz com a perspectiva que estás trabalhando e constitui algo novo. Não a boboca forma dos “pós-pósqualquer-coisa” que indica apenas irreverência. A forma em tua proposta é conteúdo. Remeteu-me a uma mudança de casa: com as tuas caixas fui obrigada a empacotar as minhas memórias – de criança que se mudou várias vezes, de aluna das aulas de artes, tão chatas - e me mudar contigo para as tuas casas – das memórias, dos desafios de educadora, de pesquisadora que principia. E “Amar é mudar a alma de casa”, como dizia o Mário Quintana. Assim, mudei minha alma de casa.” Parecerista 3 “Tuas caixas me fizeram sair do meu lugar de leitora e escrever ao teu lado, saboreando e brincando ao teu lado, deliciosamente envolvida com o ato de ver/antever nas tuas páginas a pesquisadora criteriosa, sensível e arguta que estás construindo. (....) A ousadia de Daniela em seu projeto de dissertação, a alegria do presente casa/caixa/trabalho, a delicadeza de cada montagem, o cuidado com a diagramação, com as imagens em acetato, a oferta generosa, a visível cumplicidade de orientadora me fazem agradecer a oportunidade da conversa solitária, sedenta por ser compartilhada. Parecerista 2 “Ao receber o trabalho de Daniela fiquei um misto de surpresa e apreensão, curiosa em saber o que se encontrava naquela imensa caixa que chegava as minhas mãos. No interior da caixa, fragmentos de outras tantas caixas e caixinhas. Num primeiro momento apropriei-me da folha de indicação “Para percorrer o caminho...”, que sinalizava caminhos possíveis de serem trilhados... (....) A decisão nas escolhas desses caminhos, que aqui tinham as 8

Na dissertação, as caixas foram substituídas por pequenas malas.

11 caixas como referenciais, também de certa forma definem as leituras, interpretações e resignificações que fazemos a cerca do objeto estudado. Portanto, sabia que havia muitas possibilidades de leituras, mas, que naquele momento estava como leitora/parecerista, escolhendo uma delas para desvelar questões sobre a infância, a arte na educação, a cultura visual, e, tantas outras questões explícitas e implícitas no projeto.” Parecerista 1 Posteriormente para entrar na biblioteca, projeto e dissertação, foram colocados dentro das formas institucionalizadas, perdendo assim “conteúdos” que aquela forma/objeto expressavam. Ou seja, as normas institucionais, baseadas na ABNT e o controle e vigilância da biblioteca sobre o que está dentro do padrão, acabaram retirando outras possibilidades de compreensão do trabalho que se dá, em grande parte, por sua forma de apresentação, que por sua vez propunha a interação entre leitor/vedor/artefato acadêmico. Sobre as imagens que compõem nossos trabalhos, há muitas questões que ainda não conseguimos driblar, como a fatídica legenda explicativa da imagem, a diagramação e a “lista de figuras”. As imagens deveriam estar situadas nas “referências”9 e não isoladas na “lista”, na mesma categoria dos gráficos e mapas. As imagens deveriam ser entendidas como “citações” e narrativas visuais. A narrativa visual não é simples de ser composta, exige compreensão dos elementos da linguagem visual e esforço para sintetizar o que pretendemos dar a ver, idas e vindas, assim como na escrita. Apesar da complexidade que requer “escrever” por imagens, dedicamos menos tempo para os textos visuais.

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Nesse artigo as imagens não são acompanhas de legendas e foram entendidas e colocadas como referências.

12

Essa composição imagética de Ana Cristina Crosseti Vidal (2011) necessita de legenda?

13 Para muitos pesquisadores na área educacional, e também das Artes Visuais, a imagem, principalmente a fotográfica, ainda tem a função de “ilustrar”10, “autenticar” os acontecimentos, seria a imagem-exemplo, aquela que mostra algo que poderíamos descrever por palavras. Na perspectiva dos Estudos da Cultura Visual, a imagem passa a ter a função de texto visual, acrescentando outras possibilidades de compreensão. As imagens deveriam produzir e provocar outras leituras e não apenas referendar o texto escrito. Fichman e Gabriela Cruder (2003. p.46) argumentam que “As imagens exigem o olhar de um outro. O outro precisa ser perturbado pela imagem.” Porém, se nos subjugarmos às normas acadêmicas, colocando a imagem a serviço do texto escrito, dificilmente nossos leitores sofrerão deslocamentos. Pesquisa com crianças No Brasil, ainda são recentes os estudos sobre a pesquisa com crianças, principalmente no que se refere às metodologias e posições das crianças nas pesquisas. Pesquisadores do campo da Sociologia da Infância tem dado grandes contribuições a este segmento da pesquisa. No entanto, empreender pesquisas com crianças e sob a abordagem dos Estudos da Cultura Visual, requer dos pesquisadores uma busca de referências teórico-metodológicas em vários outros campos do conhecimento e ao mesmo tempo disposição e coragem para criar caminhos investigativos sem uma “bula” que indique algumas prescrições. Compartilho com Tomás (2008, p. 492) sobre nosso trabalho com as crianças: “Para escrever sobre a infância é necessário lê-la e compreendêla, mesmo que muitas vezes ela se mostre, à primeira abordagem, ilegível, incompreensível, talvez até inacessível. Escrever sobre a infância é, afinal, uma tentativa de mapear a multiplicidade de sentidos, as múltiplas vozes e as diferentes escalas onde as crianças se movem e são movidas.” A maioria das pesquisas11 que compõe a investigação Cultura Visual e os modos de ser criança, na qual participo como coordenadora, pesquisadora e orientadora, tem como sujeitos as crianças pequenas em contextos escolares, crianças que ainda não utilizam a escrita com forma 10

No editor de texto Word, legenda é: ilustração, tabela e equação. O word tem dificuldade em aceitar as imagens e mantê-las na diagramação, precisaríamos de um “word/image para escrever com as duas linguagens em parceria 11 Entre elas: Aluno faz foto? O fotografar na escola (especial) de Anelise Barra Ferreira, 2012; Minha vó é pouco veia, pouco jovem”: articulações das crianças sobre as representações de velhice de Ana Cristina Crossetti Vidal, 2011; Bruxas, bruxos, fadas, princesas, príncipes e outros bichos esquisito: as apropriações infantis do belo e do feio nas mediações culturais de Luciane Abreu, 2010; Pés descalços e tênis, carroça e carro, boneca de pano e computador, entre o rural e o urbano: experiências num entrecruzar de infâncias de Ticiana Elisabete Horn, 2010; Aprendendo a ser menino e menina : a construção de identidades emergentes em uma turma de jardim nível B de Fabíola Zanotelli, 2010; "A gente pode fazer casa do jeito que a gente quiser"? Ações propositoras e materiais provocadores ampliando o imaginário infantil de Daniela da Rosa Linck Diefenthäler, 2009; Sala de aula e consumo : a produção de novos sujeitos infantis de Ana Regina Schröpfer, 2008; "Essa é linda, heim!" o feio e o belo através do universo da Barbie de Micheli Schmidt da Silveira, 2008. Representações visuais de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero de Susana Rangel Viera da Cunha, 2006-2010. Todas se encontram em http://sabi.ufrgs.br/F?RN=564221098

14 de expressão, portanto, desenvolvemos propostas metodológicas lúdico-expressivas ou ações propositoras (DIEFENTHÄLER, op.cit 2009) priorizando e enfatizando as possibilidades das linguagens gráficas, pictóricas, tri-dimensionais, fotográficas, fílmicas, orais, gestuais, entre outras

modalidades

expressivas.Também

elaboramos

materiais

visuais

ou

materiais

provocadores (DIEFENTHÄLER, 2009) com a intenção de desafiar as crianças. Brum (2011) denomina de artelharia tanto os materiais expressivos quanto aqueles materiais visuais que produzimos para desenvolvermos as investigações. Horn (2010, p.59-60), criou e desenvolveu “um conjunto de propostas para desenvolver com as crianças, proporcionando e sugerindo a elas a utilização de diferentes meios de expressão.” Ao longo da pesquisa fui (re)criando ferramentas à medida que as necessidades e emergências da investigação se apresentavam. Uma das minhas escolhas iniciais foi eleger os modos de expressão das crianças, aqui entendido como: falas, escritas, desenhos, produção de áudio-visual, e tê-las como produtoras e interlocutoras na pesquisa. Assim, as produções verbais e visuais das crianças, as formas delas se expressarem, falarem, narrarem sobre si e sobre os outros através de outras linguagens, foram as referências principais dessa investigação, onde busquei entender as visões e versões de rural e urbano a partir dos olhares e modos de expressão das crianças.Acredito que ao desenvolvermos pesquisas com crianças, devemos recorrer a outros modos de linguagens, pois tais recursos ampliam seus modos de expressar suas vivências e suas formas de entendimento sobre o mundo, articulando tanto a expressão verbal quanto a visual das crianças.(...) Nessa pesquisa produzi com as crianças alguns materiais como o desenho, o vídeo, a fotografia e a escrita. (grifo meu)

As temáticas escolhidas e desenvolvidas partem das experiências docentes das orientandas ao sentirem-se cutucadas por situações acontecidas nos seus cotidianos escolares. Isso não quer dizer que as investigações não tenham a ver com temáticas, histórias, demandas das crianças, elas são engendradas na confluência de interesses entre professoras-pesquisadoras-crianças. Pesquisa com crianças significa um recomeçar a cada investigação, uma recomposição de nós pesquisadoras nos cotidianos escolares com professoras, diretoras, monitoras, horários, rotinas, exigências administrativas, legais, autorizações em várias esferas e principalmente com os grupos de crianças e com cada criança. Para além do “reajuste” a cada entrada em campo, precisamos sempre de olhares muito atentos para as metodologias e materiais que serão/são elaboradas no próprio desenvolvimento da pesquisa, bem como em pensar outras possibilidades de transver, compor e examinar o que vislumbramos durante nossa convivência junto às crianças e por fim como narrar e visibilizar os acontecimentos. É um trabalho árduo porque requer adequação e recriação constante por parte dos pesquisadores. O que é significativo nas palavras, frases, expressões, olhares, gestos, silêncios, risos, murmúrios, correrias, empurrões, toques, carinhos, afagos, cheiros, barulhos,

15 deslocamentos, agrupamentos, solidões...? Como podemos compreendê-los, traduzi-los e depois narrá-los para que outros estudiosos possam compartilhar nossas investigações? Investigação junto à crianças, significa realizar um trabalho de criptografia, onde há a necessidade de decifrarmos e não interpretarmos, aquilo que vai além da evidência explícita, ou aquilo que Eisner (1998, p.221) nos ensina sobre o modo como capturamos os contextos, segundo o autor, o pesquisador deve ter a capacidade para discernir o que é significativo e significante. “O que é significativo não se enuncia a si mesmo para que seja ouvido por todos” As cenas e os acontecimentos da pesquisa com crianças sempre nos surpreendem devido a sua fugacidade e da nossa impossibilidade de enquadrá-las em nossas lógicas cartesianas de causa e efeito. A respeito de como nos posicionamos para “entender” à infância, Kohan (2003, p.240) diz “Sabe-se por ela, pensa-se por ela, luta-se por ela.” Procuramos – isso não quer dizer que seja sempre possível - nos descolarmos desta posição de “falar por elas” e entender que a pesquisa com crianças requer outros (re)posicionamentos por parte do pesquisador, tendo em vista que há uma imensa distancia entre o que supomos saber sobre o que as crianças e o que elas pensam, dizem e expressam sobre suas relações com o mundo, no caso de nossas pesquisas, objetivamos: entender como as crianças se relacionam com o universo visual na contemporaneidade; examinar os efeitos que os diferentes artefatos visuais produzem sobre os elas e como são (re)construídas, (re)elaboradas e expressas suas representações e simbolizações. Gottschalk (1998, p.220) sugere como poderiam ser as trocas entre pesquisadoras e sujeitos da pesquisa: Tal participação não pode ser reduzida a citações estrategicamente inseridas para afirmar este ou aquele ponto; as pessoas que interagem precisam ser incorporadas como vozes teóricas que guiem a própria construção do conhecimento que produzimos acerca das experiências que elas e nós temos. (…) Tal posição requer que integremos nosso status de observador-participante com o status deles/as numa forma proposital de maneira que eles/as sejam “participantes” ativos e não meros informantes oportunos. A questão das crianças se tornarem “participantes ativos” é uma tentativa para que nossa voz não passe a ser dominante e autoritária, no sentido de nos colocarmos em uma posição assimétrica nas relações interpessoais durante a pesquisa e nos modos de lidarmos com os saberes infantis. As colocações de Gottschalk nos alertam para que tanto no desenvolvimento da pesquisa, quanto ao narrarmos sobre os acontecimentos, não sejamos oniscientes e que os conhecimentos das crianças sejam entendidos como saberes e não como dados. Um procedimento que modifica a posição das crianças de “pesquisados” para sujeitos coautores da pesquisa é em relação à produção das imagens fotográficas. Em geral, utilizamos

16 cenas onde o pesquisador é o que vê e faz o registro da cena. Porém, várias pesquisadoras, entre elas Müller (2006), Horn (2010) e Ferreira (2012), atribuem às crianças os registros fotográficos e fílmicos. Com isso as crianças se posicionam como investigadores e não “apenas” investigados. São seus pontos de vista sobre o mundo, seus enquadramentos, seus critérios, valores estéticos que são expressos. Também em relação aos registros fotográficos, temos deslocado a câmera fotográfica para a posição do olhar da criança na tentativa de capturarmos o que ela estaria vendo e não o que o pesquisador entende como cena ou pose a ser registrada. “Essa linguagem é trazida como um olho (olhar) que mergulha, invade e compartilha. Que quer sentir esse olhar, participar, fazer. Não apenas registrar, mas oportunizar uma análise, uma revelação de outros gestos. Um olhar afetivo que quer ver o “ver” dos bebês. Um olhar que cheira, que sente, que entra nos materiais a partir dos outros sentidos”. (PINTO, 2010, p.11) Mais do que modificar o ponto de vista do fotógrafo para a criança, essa mudança implica em uma ruptura nos modos como costumamos enquadrar as cenas da pesquisa. As fotografias da profa. Mda. Camila Bettim Borges (2012) mesclam os pontos de vista infantis com os dela:

Mesmo que tenhamos a intenção de minimizar a hierarquia entre pesquisadoras e crianças, e situar as crianças em um lugar de protagonismo, somos nós adultas que decidimos e propomos a pesquisa e por mais sensível que seja nosso olhar sobre as crianças, ele nunca será desprovido de nossas referências, (pré)conceitos e limites. O que não tem limite As artimanhas e manhãs da escrita me conduziram nesse artigo por assuntos que não estavam em meus planos e por mais que quisesse voltar ao meu sumário, não foi possível essa volta. Isso acontece e daria um extenso artigo sobre os descaminhos da escrita. Como escrevi no início, minha intenção era abordar e dar ênfase à pesquisa com crianças sob a abordagem dos Estudos da Cultura Visual, campo no qual me dedico. No entanto, quando trouxe algumas

17 lembranças sobre quando me dei conta que estava fazendo pesquisa, fui capturada e solicitada por muitas outras proposições que deram texturas diferenciadas a escrita. E agora, ao tentar limitar o que não tem limite, percebo que esse texto teve a voz da professora que reconta suas experiências com a pesquisa, não no sentido de prescrever algo, mas de compartilhar algumas tentativas de modificar as “fórmulas” de realizar pesquisa na educação. Gostaria de ter me alongado sobre as paixões que nos movem e como podemos detectar e delimitar nossas pesquisas, aprendendo o exercício do desapego aos nossos escritos. Aprendendo que o trabalho acadêmico, um relatório de estágio, TCC, monografia, dissertação, tese não é a nossa vida, mas um pequeno fragmento de nossas experiências. Também gostaria de ter ido mais além sobre a discussão entre forma e conteúdo e o quanto as estruturas convencionais amputam, mutilam nossas idéias, restringindo o trabalho de criação. Gostaria de ter dito que quando temos alguma coragem para transgredir, justificamos e pedimos desculpas pelos “desvios”. Muitos pesquisadores ainda acreditam que o texto escrito – e é essa a cultura acadêmica que nos constitui- é soberano e que outras modalidades expressivas, como a imagem, são acessórios nos trabalhos acadêmicos. Paradoxalmente acreditamos nas pedagogias visuais, no entanto, para “provar” isso, utilizamos a argumentação verbal. Ainda há um longo caminho para percorrermos e transformarmos nossos modos de narrar. Gostaria de ter visibilizado a atual pesquisa “ConversAÇÕES: Arte Contemporânea e Crianças” na qual participo com minhas orientandas objetivando desenvolver as possibilidades de criação-expressão das crianças tendo a arte contemporânea, seus materiais, artistas, processos de expressão, temáticas, entre outros aspectos, como referência teórica para desenvolvermos nossas premissas, problematizações e argumentações. Gostaria de mostrar alguns motivos pelos quais continuarmos insistindo em pesquisarmos as crianças em suas relações com o mundo visual e em especial com a arte contemporânea, entre eles: acreditamos nas possibilidades de (re)criação das crianças em relação a cultura direcionada a elas e na necessidade das escolas e instituições culturais reverem suas concepções de ensino de arte, crianças e infância(s); Pretendia muitas outras conversas em meio a essas que apresentei aqui, mas também precisamos aprender a dar um fim ao texto sem fim, não necessariamente fim as conversações. Deste modo, encerro dizendo o que é de praxe: “espero ter contribuindo” com meu mosaico de situações de pesquisa. Referências: BORGES, Camila B. Registros dos Encontros com Bebês e Arte. Porto Alegre: Azul Anil Espaço de Arte, 2012

18 BRUM, Luciana Hahn. O KAÑE (OLHAR) NA CIDADE: práticas de embelezamento corporal na infância feminina Kaingang. Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, Programa dePós-Graduação em Educação, Porto Alegre, 2011. COSTA, Marisa V. Velhos temas, novos problemas- a arte de perguntar em tempos pósmodernos. In: Caminhos Investigativos III: riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras. (Org) Marisa Costa e Maria Isabel Bujes. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. CORAZZA, Sandra, M. Pesquisar o currículo como acontecimento: em V exemplos. Anais da 27 Reunião da ANPED. Caxambu, 2004. Acesso: http://www.anped.org.br/reunioes/27/gt12/t1211.pdf ___ http://escrileituras.blogspot.com.br, acesso em junho 2012. DIAS, Belidson. Preliminares: A/r/tografia como Metodologia e Pedagogia em Artes. Anais do XVII CONFAEB – Congresso Nacional da Federação dos Arte Educadores do Brasil – VI Colóquio sobre Arte. Florianópolis: UDESC/UFSC. 2007. acesso http://aaesc.udesc.br/confaeb/main.php?l=lista_anais DIEFENTHÄLER, Daniela, R.L, Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre, BRRS, 2009. EISNER, Eliot. El ojo ilustrado: indagación cualitativa y mejora de la práctica educativa. Barcelona, Paidós, 1998. FERREIRA. Anelise B. O aluno faz foto? o fotografar na escola (especial). Tese de Doutorado, Faculdade de Educação/Programa de Pós-Graduação em Educação, UFRGS, Porto Alegre: 2012. FISCHMAN, Gustavo E. e CRUDER, Gabriela.Fotografias Escolares como Evento na Pesquisa em Educação. Revista Educação e Realidade. Porto Alegre: Faculdade de Educação, UFRGS, V.2, n28, p. 41-53, 2003. GOTTSCHALK, Simon. Introduction: The postmodern Turn In Ethnography — (At least) Five Methodological Implications In: BANKS, Anna & BANKS, Stephen P. Fiction and social research: by ice or fire. Ethnographic Alternatives Volume 4.Walnut Creek/London/New Delhi: Altamira Press, p.205-233, 1998. HORN, Ticiana E. Pés descalços e tênis, carroça e carro, boneca de pano e computador, entre o rural e o urbano: experiências num entrecruzar de infâncias. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação, UFRGS.Porto Alegre,2010. KINCHELOE, Joe e BERRY, Kathleen S. Pesquisa em Educação: conceituando a bricolagem. Porto Alegre: Artmed, 2007. KOHAN, Walter. KOHAN, W. O. A infância escolarizada dos modernos (M. Foucault). In: Kohan, W. O. Infância. Entre educação e filosofia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 61-95. MÜLLER, Fernanda. Em busca de metodologias investigativas com crianças. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 125, p. 161-179, maio/ago. 2005. Acesso 12/02/2012 http://www.scielo.br/pdf/cp/v35n125/a0935125.pdf LARROSA, Jorge. A arte da conversa. In: Pedagogia (improvável) da diferença, e se o outro não estiver aí? (org) Carlos Skliar. Rio de Janeiro: DP&A, 2003 Acesso: http://www.univates.br/revistas/index.php/signos/article/viewFile/185/134 PINTO, Vera, L.P. CORPO/GESTO/AÇÃO: um olhar sensível sobre um berçário. Proposta de dissertação. Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS, 2010. ROSE, Gillian. ROSE, Gillian. Visual methodologies-an introduction to the interpretation of visual materials. London: Sage, 2001 TOMÀS, Catarina A. A investigação sociológica com crianças: caminhos, fronteiras e travessias. In: Pesquisa-intervenção na infância e juventude. (Org) Lucia Rabello de Castro e Vera Lopes Besset. Rio de janeiro: NAU/Trarepa/FAPERJ, 2008.

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