Fabulações eletrônicas: apropriações artísticas da comunicação e da tecnologia em Laurie Anderson

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FABULAÇÕES ELETRÔNICAS Apropriações artísticas da comunicação e da tecnologia em Laurie Anderson

Fernando do Nascimento Gonçalves

Rio de Janeiro, 2006

Agradecimentos

Agradeço ao CNPq, pelo apoio à pesquisa que resultou neste livro; à Uerj e ao Programa de Capacitação Docente da Sub-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (SR-2), bem como aos colegas da Faculdade de Comunicação Social, em particular, aos professores e amigos Fátima Regis, João Maia, Ricardo Freitas e Ronaldo Helal, e também a Franklin, Fabiana e Fábio pelo suporte técnico. Aos professores e colegas da Escola de Comunicação da UFRJ, em especial à professora Janice Caiafa, cuja amizade, carinho e apoio de longa data contribuíram para a consecução deste trabalho; à professora Diana Taylor, do Departamento de Estudos da Performance, da Tisch School of the Arts, pelo acolhimento e acesso aos recursos da Universidade de Nova Iorque. Ainda na NYU, agradeço aos professores Jon McKenzie e Peggy Phelan, pelo apoio e valiosa troca intelectual; aos amigos do Boa Nova, em NYC, pelo carinho, em especial, ao Nelson, Katy, Márcia, Vanessa, Jenny, Daniel, Eliete, Vera e Fátima; aos amigos Paulo, Sylvio e Fernando, por compartilharem comigo fases importantes da vida e do trabalho. Não posso deixar de lembrar também dos membros da lista de discussão virtual sobre Laurie Anderson no Yahoo!, a quem sou grato pela troca de informações, dicas e opiniões.

A única finalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade auto-enriquecendo de modo contínuo sua relação com o mundo. Félix Guattari

© Fernando do Nascimento Gonçalves/E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2006. Todos os direitos reservados à Fernando do Nascimento Gonçalves/E-papers Serviços Editoriais Ltda. É proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização dos editores. Impresso no Brasil. ISBN 85-7650 Projeto gráfico, diagramação e capa Livia Krykhtine Revisão Elisa Sankuevitz Helô Castro

Esta publicação encontra-se à venda no site da E-papers Serviços Editoriais. http://www.e-papers.com.br E-papers Serviços Editoriais Ltda. Rua Mariz e Barros, 72, sala 202 Praça da Bandeira Rio de Janeiro CEP: 20.270-006 Rio de Janeiro Brasil

Sumário

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Mil e uma vozes em Laurie Anderson

15 Introdução 19 1. Performance: uma arte de fronteira 19

As vanguardas artísticas e as condições de surgimento da arte da performance

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Performance: um conceito inclusivo e controverso

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Os anos 50 e 60 e os precursores da performance

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A performance como forma de expressão artística

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Performance e a linguagem-collage

63 2. A cena contemporânea e as mutações da performance 63

Os anos 70 e a “morte” da arte

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Os anos 80 e a geração de artistas midiáticos

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Performance, pós-modernismo e resistência

103 3. Laurie Anderson e a vanguarda pop 103 A construção de um estilo 106 Anderson e o ambiente das artes nos anos 70 108 Primeiras produções: esculturas minimalistas, foto-narrativa e objetos falantes 113 Rumo à performance 129 Cruzando as margens: as primeiras megaproduções high-tech 142 Blitz multimídia

167 4. Narrar, estranhar: histórias sobre linguagem, identidade, tempo, poder e tecnologia 168 Persona Anderson: narração e performance de si 175 Autobiografia e diluição da autoridade identitária 182 Ventriloquismo e estratégias narrativas 188 Tempo e circularidade 192 A comunicação como artesania 200 Jogos de linguagem e a rede de signos

215 5. Gagueiras e intensidades: usos singulares da tecnologia 215 Esculpindo a linguagem com idéias e bits 220 Táticas e ambivalências 225 Do low ao high-tech: apropriações da tecnologia e experimentações linguageiras 237 Dream world: ambiências sonoras e visuais como formas narrativas 248 Corpo mediado e status ciborgue: instrumentos corporais, máscaras eletrônicas, bonecos digitais e outros truques para desafiar o poder

273 6. Um sonho, um lugar 279 Referências bibliográficas

Mil e uma vozes em Laurie Anderson

What Fassbinder film is it? The one-armed /Man walks into a flower shop and says/ What flower expresses/ Days go by/And they just keep going by endlessly/ Pulling you/ Into the future. /Days go by/ Endlessly/ Endlessly pulling you/Into the future. /And the florist says:/ White Lily. Laurie Anderson. White Lily Il y a beaucoup de passions dans une passion, et toutes sortes de voix dans une voix, toute une rumeur, glossolalie. Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mille Plateaux.

Fabulações eletrônicas apresenta ao leitor o longo e intenso percurso de Laurie Anderson na construção de sua obra. Num texto muito interessante e minucioso, Fernando do Nascimento Gonçalves vai mostrando como a artista coligiu recursos nos diferentes momentos, como partilhou idéias com outros artistas, reafirmou caminhos em alguns momentos e em outros mudou ou fez novas descobertas. Ao descrever, portanto, as peripécias e as inspirações dessa arte tão singular, Fernando vai-se deixando, por sua vez, inspirar por ela. É um trabalho muito dedicado que, numa primeira versão, foi sua tese de doutorado. Envolveu, inclusive, uma estadia de Fernando na New York University – com uma Bolsa Sanduíche do CNPq – e, nessa ocasião, um levantamento muito cuidadoso da obra de Laurie Anderson e suas circunstâncias, além de um contato direto com o seu mais vívido cenário, Nova Iorque.

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Desde as suas primeiras atraentes esculturas e performances de rua, até os álbuns de estranhas músicas e as monumentais e ao mesmo tempo rigorosas performances no palco e em filmes e vídeos, Laurie Anderson manteve a intensidade e a radicalidade que a singularizam como grande artista. Ela parece ter a capacidade especial de, no mesmo golpe, falar às pessoas do mais quotidiano de suas vidas e mostrar-lhes como aí mesmo se encontra o mais inesperado. Em cena, por exemplo, Laurie Anderson consegue invocar com tanta beleza imagens, palavras e sons para acompanhá-la, usando e intervindo em seu corpo, em sua voz, que uma atmosfera muito envolvente nos atinge. Ao mesmo tempo, tudo é feito com muito rigor e somos, portanto, não apenas afetados em nossa emoção, mas também levados a pensar sobre os temas que levanta. Laurie Anderson distorce sua voz com dispositivos eletrônicos, fazendo-se acompanhar dessas muitas variações, dessas outras vozes que vêm falar com ela ou por ela, e conosco. Mas não há formação de personagem, não são diferentes identidades que se produzem. A velocidade medida e elaborada de todos os aparecimentos em cena – imagens projetadas, os sons, os movimentos – faz predominar a variação. Os próprios conteúdos que as vozes e as imagens anunciam não permitem a simples representação. Ao mesmo tempo, nessa dispersão que impede a explicação simples e a identidade, nada é gratuito. São doses medidas e intensas. Vemos Laurie Anderson com seu violino, que a tem acompanhado desde os primeiros trabalhos. Toda uma artesania desenvolvida por essa artista permitiu modificar de várias maneiras seu instrumento favorito – que ela aprendeu a tocar em menina e que lhe agrada por soar próximo da voz humana e feminina –, como relata Fernando. É emocionante, por exemplo, vê-la tangendo um violino iluminado de neon e tirando daí uma sonoridade estranha, como em United States. Mas, ainda mais interessante é que esses dispositivos vêm acoplados a movimentos muito elegantes da artista, eles produzem sua sonoridade conectados a um corpo também performático. É uma movimentação precisa, entre a dança e o gesto. No filme Home of the Brave, Laurie Anderson aparece vestida com um longo

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macacão branco – de aparência sintética, quase espacial –, batendo com os punhos fechados no peito e nas pernas, com movimentos sóbrios e assertivos, provocando um som profundo e estranho e uma movimentação muito forte em cena. A roupa está ligada a uma bateria eletrônica e o corpo da artista vira um instrumento de percussão. A cena forte é um emblema de Laurie Anderson: os estranhos sons, a sua presença, imagens projetadas em telas ou sobre ela mesma, os objetos e por vezes outros artistas cantando ou movendo-se – tudo isso provoca uma variação inebriante, mas ao mesmo tempo pensante e que não transtorna. Não é o atordoamento que se busca, mas, parece, a melhor dose de variação para surpreender e ao mesmo tempo propiciar uma fruição. Na performance Stories from Moby Dick, a que felizmente assisti em 1999, em Nova Iorque, há no palco uma imensa poltrona branca em que Laurie Anderson se senta para contar histórias e, em certos momentos, aparecem imagens de uma miríade de tomos de livros projetadas no fundo. Com citações dispersas do livro, prepara-se uma atmosfera emocionante que evoca a potência narrativa de Melville e nos faz entrar agora na narração que se realiza na performance. Não se trata apenas de um acoplamento muito interessante de variados recursos, posto que não é a quantidade ou o acúmulo que ali impulsiona. É a atitude criadora de Laurie Anderson que tudo move. Por isso também não é menos intenso vê-la sozinha no palco ou no vídeo contando uma história, ou entoando uma estrofe entre o falado e o cantado com o violino comum. Ou mesmo ouvi-la apenas, com sua voz clara que vai variando sutilmente com a narração. O leitor vai encontrar, em Fabulações Eletrônicas, uma excelente descrição de todos esses recursos e modalidades de arte que Laurie Anderson mobilizou em cada momento. Fernando vai ao mesmo tempo pensando, indicando questões e apontando com sensibilidade as intensidades dessa obra. Ele faz também uma revisão minuciosa dos comentários e críticas ao trabalho da artista. Explora muito bem, por exemplo, essa atitude de Laurie Anderson, de deslocar a própria presença e a própria voz. Destaca que Laurie Anderson toca violino ao mesmo tem-

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po em que aciona uma fita pré-gravada ali contida: é “um duo consigo mesma”, comenta. Menciona também os “clones” que Laurie Anderson cria dela mesma em vídeo e os bonecos de ventríloquo. Ela é fascinada com essa confusão da fonte da voz e essa espécie de produção de um falso duplo do ventríloquo. São estratégias de multiplicação, de dispersão que produzem grande estranhamento e beleza. Na obra de Laurie Anderson temos antes de tudo essa incrível multiplicação de vozes no contexto de uma enunciação coletiva. Ela inclui sua voz num murmúrio coletivo. Vai-se conectando com outras presenças, introduzindo uma diversidade de sons sob o arco do violino, distorcendo sua voz, deslocando-a. Deleuze e Guattari afirmam que a enunciação coletiva é a condição central de efetuação da linguagem, ou seja, todos nós realizamos em algum grau essa comunicação com o discurso do outro, incluindo-o naquilo mesmo que dizemos. A linguagem é uma construção coletiva. Esse aspecto fundamental da linguagem tende a se perder, contudo, no contexto de discursos centrados no sujeito. Mas o sujeito individual na linguagem não passa de um efeito casual e em algumas ocasiões pode ser desafiado – por exemplo, na arte. A grande força da arte é produzir uma enunciação coletiva. A obra de Laurie Anderson desenvolve particularmente essa força – ao fazer de sua presença como artista um dos componentes de um arranjo múltiplo, liberando as muitas vozes na sua, as muitas paixões que são dela e que se tornam nossas também se nos deixamos afetar. Se nos deixamos afetar, podemos de alguma forma nos transformar – ingressar na obra –, participar de seu campo criativo e talvez pensar ou sentir algo que nunca nos ocorreu antes. Esse é um aspecto que interessa a Fernando, e já percebemos isso pela epígrafe do livro, extraída do texto de Guattari. E, ainda, a certa altura do texto, Fernando cita o momento em que Guattari, ao tratar da potência transformadora da arte, faz uma aposta especial na performance. Essa aposta adquire ainda mais consistência diante da obra de Laurie Anderson, sem dúvida. É uma obra performática no sentido mais forte do termo, para além de qualquer rótulo e na sua singularidade extemporânea, constantemente diferente também de seu tempo.

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No contexto da multiplicação de vozes, encontramos ainda essa atividade constante a que se entrega Laurie Anderson em sua obra desde o início: a de contar histórias. Fernando relata que ela mesma se anuncia assim, como “contadora de histórias”, de preferência a adotar qualquer rótulo que a identifique com tendências ou escolas. São histórias que ela coleta como grande observadora do mundo – “espiã”, diz ela. Laurie Anderson é uma etnógrafa perspicaz dos Estados Unidos, mas também quando toca em questões, atitudes e gestos que dizem respeito à vida das pessoas em geral numa sociedade mundializada. Aliás, para o etnógrafo existe também a problemática da enunciação coletiva. Na pesquisa etnográfica precisamos saber mobilizar as mil vozes que vamos conhecendo e fazê-las entrar no relato. Nesse trabalho também mudamos no arranjo múltiplo, também experimentamos, de forma específica, esse descentramento do eu. A pesquisa, de fato, pede um pouco emprestado à arte de contar histórias essa habilidade de falar com, de invocar o outro. Laurie Anderson, ao mobilizar todos esses componentes tão atraentes de sua performance, consegue contar com muita habilidade suas histórias. O discurso do outro se combina com o dela que por sua vez se deixa contagiar e muda – novas vozes entram servindo-se da dela e acolá se separam – num exercício particularmente rico de transmissão das palavras e entonações de outrem. Fernando cita palavras dela: “mudar de voz de tantas formas quanto for possível e não me identificar fortemente com quem sou. Narrar. Narrar”. A narração em Laurie Anderson é esse processo de variação intensiva que leva ela mesma e nos chama. E são histórias de fato simples, do quotidiano, que nos dizem respeito – alguém que ela encontra na rua, a conversa entre um homem e uma mulher, a lembrança de uma avó, uma chamada telefônica ou o diálogo sobre a flor – que expressa o passar do tempo e que é de fato o souvenir de um filme (“And the florista says:/White Lilly”). São situações e ritornelos quotidianos intensificados nesse contexto de variação. Fernando fala da construção de uma “máquina estética” de Laurie Anderson. A artista está interessada antes de tudo nisso, ela não está particularmente interessada, por exemplo, na tec-

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nologia em si. Ele explora, então, com propriedade, o problema do uso da tecnologia na obra de Laurie Anderson. O leitor verá como Fernando destaca sempre a singularidade e a radicalidade dessa obra. Respeita, por exemplo, o desejo da artista de não ser rotulada. Ele evita interpretações, preocupado em realçar como Laurie Anderson compõe sua “máquina estética” e explora a potência transformadora dessa experimentação. É assim que Fernando, ao descrever com minúcia e num texto elucidativo todo o contexto de época em que se coloca a obra da artista, também mostra as particularidades dessa obra e aponta com cuidado sua posição especial. De fato, as histórias de Laurie Anderson vararam com sucesso um longo percurso, elas não caíram em desuso, mas conservam sua potência até hoje. Isto se dá justamente porque sua obra nunca foi, literalmente, datada, nunca recebeu uma data que a enquadrasse na cristalização de uma tendência. Embora Laurie Anderson tenha acompanhado tantos movimentos – da vanguarda ao pop, em suas muitas facetas, como mostra Fernando –, ela não parece ter-se deixado traduzir por nenhum deles. Laurie Anderson não parece ter passado totalmente para cada atualidade, mas sim preservado algo para além do momento, que não correspondia perfeitamente ao presente, algo – aproveitando as palavras de Nietzsche – inatual ou intempestivo. Viajante, “espiã”, poeta musical e contadora de histórias, Laurie Anderson recebe agora a homenagem de Fernando.

Janice Caiafa Antropóloga, poetisa e professora da Escola de Comunicação da UFRJ

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Introdução

Este livro nasceu do desejo de investigar fenômenos culturais que privilegiassem a criação e a experimentação nos processos comunicativos. Esses processos poderiam ser flagrados em vários campos, mas o interesse particular pelas artes veio da percepção de que nela se estabelece uma relação diferenciada com o tempo e com a comunicação. A artista americana Laurie Anderson explora exatamente as relações entre arte, cultura e tecnologia de forma rica e inusitada, produzindo interessantes interferências nesses campos. Meu primeiro contato com seu trabalho foi no início dos anos 90, através do filme Tão perto, tão longe, de Wim Wenders, no qual apareciam duas de suas músicas. Mas logo perceberia que a artista era conhecida pela justaposição de distintas linguagens artísticas e pelo uso freqüente da tecnologia, estabelecendo uma verdadeira imageria visual e sonora como parte integrante de sua obra. Além de performances de larga escala, pelas quais ficou mais conhecida nos anos 80, Anderson ainda compõe músicas, produz filmes, vídeos e instalações nos quais lança mão de slides, computação gráfica e outros recursos para criar a animação de formações visuais que por vezes são narrativas e por outras, simples elementos iconográficos. Descobriria também que Anderson era considerada por críticos e pesquisadores uma artista de vanguarda com incursões pelo universo pop e que seu trabalho era situado dentro do que se convencionou chamar de “performance multimídia” ou “pós-moderna”, categoria típica das apresentações da arte-performance nos anos 80 e 90. A performance multimídia – marFABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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cada pela pesquisa de linguagem com a mídia e a tecnologia e por uma cena que apresenta e discute as questões do corpo e das imagens e os modos de percepção da realidade no contexto de uma “cultura mediatizada” – é, porém, a etapa atual da longa história de forma expressiva “performance”. A performance pode ser considerada uma expressão artística em que o corpo é utilizado como um instrumento de comunicação que toma objetos, mídias, situações, lugares – naturalizados e socialmente aceitos – para resignificá-los. Historicamente, é possível localizá-la como um fenômeno artístico de fronteira, que representa o elo contemporâneo de um conjunto de expressões estético-filosóficas do século XX, da qual fazem parte o futurismo, o dadá, o expressionismo, o surrealismo do início do século e o happening e a body art dos anos 60 e 70. Esses movimentos criaram as condições de possibilidade para certas manifestações artísticas contemporâneas e, direta ou indiretamente, para o próprio trabalho de Anderson. Analisando a trajetória da artista, pode-se dizer que, juntamente com outros criadores, ela testemunhou e ajudou, por sua vez, a promover uma série de transformações no campo das artes a partir da década de 1970 nos Estados Unidos. Muitos dos elementos utilizados em seus trabalhos, principalmente a partir dos anos 80, seriam dificilmente concebíveis nos anos 60 e 70, como recursos tecnológicos ao lado de uma linguagem simples, oralizada, pouco hermética, além do humor, de elementos do cotidiano e da cultura de massa. Curiosamente, suas criações se apóiam exatamente nesses dois elementos: as histórias e a tecnologia. As narrativas são o meio pelo qual Anderson problematiza os fatos cotidianos e dilui a função autoral de sua presença em cena. A tecnologia vai ser uma forma de viabilizar distintos modos narrativos e de tornar Anderson uma poderosa medium, mediante a minimização de sua figura enquanto conteúdo e sua maximização enquanto canal, por onde falam vozes de pessoas anônimas e vozes da cultura, da história, da arte, do poder e das lutas contra o poder. A conexão feita pela artista entre histórias e tecnologia faz com que as primeiras não sejam simples relatos orais, mas também narrativas de natureza escultória, musical, imagética, so-

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nora, hipertextual e multimidiática. Ao descrever o corpo de seu trabalho, tentei mostrar que uma de suas marcas é a recorrência de temas, a apropriação e colagem de distintas linguagens, fragmentos de objetos e imagens, que se acumulam e associam entre si, formando uma obra que não existe fora desse universo de combinações e recombinações. O que se observa nas produções da artista é que o elemento “técnico” se presta a uma experiência estética e sempre se associa à linguagem. Ao mesmo tempo, o “estético” geralmente está impregnado de tecnicidade. Essa imbricação, porém, não tem como único propósito produzir um efeito estético, mas também o de efetivar certas condições de discurso, necessárias a seus questionamentos. Nisso consiste a singularidade de seus processos criativos: tecnologia e narrativa se aliam para a organização de uma complexa rede de signos, que é, a um só tempo, base para suas criações e ferramenta para suspeitar dos pressupostos do momento em que vivemos. Como observa Janice Caiafa, nossa época é marcada particularmente por uma valorização não-crítica da disponibilidade da informação, dos bancos de dados e das redes de informática. Contudo, são exatamente as possibilidades criativas que poderiam ser instaurandas a partir desses recursos que acabam muitas vezes abortadas por essa valorização não-crítica. É quando a profusão pode paradoxalmente limitar. É que essa disponibilidade estabelece uma relação de consumo que é contrária à densidade e à duração necessárias a um trabalho, por exemplo, com a arte e com o pensamento, que exigem um tempo maior para sua elaboração. Percebemos como hoje os usos majoritários das mídias e das tecnologias se aliam a essa valorização não-crítica, embora certamente outros usos sejam possíveis. Apesar de algumas práticas artísticas contemporâneas se inserirem no mesmo espaço-tempo da supercomunicação midiático-tecnológica, outras vêm se utilizando dos novos suportes para redimensionar o fazer artístico e garantir o tempo de duração necessário à criação e à produção de diferença. Descrevendo seus principais trabalhos de 1970 a 2002, procurei mostrar como seus usos da narrativa e da técnica propõem

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uma releitura da cultura contemporânea e redefinem os papéis que a tecnologia pode assumir nesse contexto. Ao incorporar recursos tecnológicos em suas performances, a artista busca, por exemplo, desconstruir os discursos apoiados na mídia, na cultura de massa e na tecnologia e investigar os modos de constituição desses discursos numa sociedade como a americana. As criações de Anderson podem, portanto, ser vistas como formas de pensar as possíveis relações entre cultura e mídia e as experimentações de linguagem na arte por meio de elementos da cultura de massa e da tecnologia. Trata-se de uma artista que se originou dos meios artísticos da vanguarda novaiorquina dos anos 70 e que alcançou projeção fora deles, sem ter uma proposta abertamente comercial. Observamos como ela consegue, inclusive a partir desse trânsito que cultivou, fazer entrar os recursos tecnológicos em novos arranjos, usando-os para fazer “outra coisa”. Dentro das configurações da época atual, a artista consegue fazer ressoar em suas histórias uma dimensão criativa e também uma resistência, através de jogos que estabelece com as noções de “presença” e de “identidade”, a partir de inusitadas narrativas autobiográficas, contos de viagem e aventuras em sua própria cidade. Com ajuda da tecnologia, Anderson forja também para si uma persona com status ciborgue, espécie de corpo eletrônico constituído por uma série de disfarces, próteses e duplos eletrônicos que a posicionam entre o masculino, o feminino, o humano e a máquina. Com esse corpo e seus jogos, Anderson articula uma resistência cultural contra os discursos de poder, gerando processos comunicativos em que há uma permanente quebra e um rearranjo de códigos capazes de produzir singularidades. Finalmente, por insistir em desacomodar categorias e definições artísticas, seu trabalho segue, nesse início de século, não apenas interpelando nossas visões de mundo, mas também nos fazendo pensar sobre o estatuto da arte e da comunicação na atualidade.

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1. Performance: uma arte de fronteira

As vanguardas artísticas e as condições de surgimento da arte da performance A história da performance – gênero artístico no qual costumam ser situados os trabalhos de Laurie Anderson – está ligada a um conjunto de práticas contestadoras, produzidas principalmente no início do século XX na Europa e também nos Estados Unidos do pós-guerra e que ficaram conhecidas como as “vanguardas artísticas históricas”. Seguindo a vocação das vanguardas européias de provocar rompimentos, a performance, em seu início nos anos 70, também propunha a quebra das convenções formais e estéticas, fazenco com que o pesquisador brasileiro Renato Cohen a chamasse de “arte de fronteira”. O termo designa a própria natureza dessa expressão artística que opera quebras e aglutinações, ao mesmo tempo em que vai situar-se formalisticamente entre dois gêneros, mais exatamente “no limite das artes plásticas e das artes cênicas, sendo uma linguagem híbrida que guarda características da primeira enquanto origem e da segunda enquanto finalidade” (COHEN, 1987:4). “Fronteira” aqui tem também o objetivo de demarcar algo que termina e começa, e, sobretudo, o de anunciar algo que acontece de forma liminal, num “entre”. A performance pode . Deste movimento fazem parte, dentre outros, o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo e o futurismo, que lançaram novos rumos para a arte ocidental e mais tarde teriam forte influência sobre os movimentos artísticos dos Estados Unidos do pós-guerra e da atualidade. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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ser considerada “fronteira” exatamente por se dar num interstício, num limiar entre algo que termina (a representação, que é abolida nas artes visuais, na música, na dança e nas artes cênicas dos movimentos de vanguarda) e algo que se deseja instaurar (uma outra concepção de arte, de prática artística e de linguagens/processos criativos). A performance se relaciona com esse conjunto de práticas que estamos aqui também considerando como sendo de “fronteira”, mas só chegou a ser aceita como expressão artística autônoma na década de 70. Naquele momento, a arte conceitual – uma arte de idéias, mais do que de produtos, arte não comprável ou vendável – estava em seu apogeu e a performance teria sido uma das formas de demonstração dessas idéias (GOLDBERG, 1996:7), à medida que se apoiava fortemente no corpo como elemento gerador de novas significações, na transitoriedade das apresentações e no fim da representação. Para isso, buscava desenvolver uma linguagem própria, caracterizada pela apropriação e justaposição de outras linguagens. Em seus primórdios, RoseLee Goldberg vê na performance, antes de tudo, uma forma de dar vida a idéias formais e conceituais nas quais se baseia a criação de arte. Na história da arte do século XX, os “gestos vivos” foram usados constantemente como arma contra as convenções da arte estabelecida: Todas as vezes que uma escola determinada, seja o cubismo, o minimalismo ou a arte conceitual parecia haver chegado a um ponto morto, os artistas começavam a trabalhar com a performance como uma maneira de acabar com as categorias e indicar novas direções. Por outro lado, dentro da história da vanguarda – querendo dizer aqueles artistas que encabeçaram a ruptura com cada tradição sucessiva –, a performance no século XX tem estado na primeira linha de tal atividade: uma vanguarda das vanguardas. (GOLDBERG, 1996:7).

Desde o início do século XX, percebe-se nitidamente o surgimento de uma arte de ruptura, liberta das preocupações da representação figurativa e com franca disposição para renovar 20

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também as relações entre homem e sociedade. Só que estas práticas artísticas passaram a exigir novas formas expressivas que não apenas deslocassem limites e fronteiras, mas também dessem visibilidade a seus discursos e experimentações. Em seu início, a performance foi exatamente um dos mecanismos que colaborou para o desenvolvimento da expressão artística dos movimentos da vanguarda, como afirmou Goldberg. A existência desse tipo de mecanismo – que operava solidariamente entre as artes e permitia sua renovação – é uma das razões pelas quais acredito que a chamada “morte da arte”, decretada em vários momentos da história da arte no ocidente, longe de representar efetivamente seu fim, parece significar menos um esgotamento definitivo do que uma pausa, uma tomada de fôlego para a realização de novas experiências, como inclusive defende hoje Artur Danto (2003), ao tratar do surgimento do que convecionamos chamar de arte contemporânea. Mas, juntamente com os decretos da morte da arte, vieram também os das vanguardas. Aparentemente diluídas hoje em sua própria consciência, as vanguardas tiveram, porém, em seu início, um papel central para a discussão sobre as relações entre arte e sociedade. Arnold Aronson localiza a origem do termo “vanguarda” numa terminologia própria do militarismo francês, que teria sido ligado às artes através do escritor Henri de Saint-Simon. Segundo Aronson, os escritos de Saint-Simon tiveram profundas influências sobre Marx e Comte e propunham basicamente a criação de uma sociedade que seria liderada por uma tríade formada por cientistas, “industriais-artesãos” e artistas, sendo esses últimos “a força de elite do grupo”. O termo começou a ser utilizado precisamente para designar a guerra dos artistas pela criação de novos caminhos na sociedade, como afirma Aronson: “As tensões e contradições entre arte como ferramenta de transformação social e como exploração estética colocaria uma briga permanente para os artistas de vanguarda. Para estes, o desafio era transformar a sociedade de fora dela” (ARONSON, 2000:6). Nesse contexto, arte e ideologia eram consideradas inseparáveis e o significado do trabalho era inerente ao próprio

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trabalho e não poderia ser destacado dele sem destruí-lo. Esse programa era visto como uma utopia que desejava criar “um mundo ideal para o futuro”. De fato, era possível verificar, nos vários campos da arte, um esforço de reestruturação radical das formas de percepção do público com relação à arte e à sociedade, cujo objetivo era exatamente mudar crenças e atitudes. A estratégia empregada, segundo Aronson, era a de minar o sistema estabelecido de reconhecimento e interpretação de signos. A ordem era “desvirtuá-los e divorciá-los de seus contextos de significação até tornarem-se vagos e irreconhecíveis”. Com isso, a diferença entre arte e vida começa a ser problematizada, num movimento que influenciaria bem mais tarde uma série de artistas nos Estados Unidos, como John Cage, Allan Kaprow e Joseph Beuys, alguns dos pais da vanguarda americana do pós-guerra. Mesmo que não se tenha alcançado o objetivo de uma transformação radical, isso não significa que esses movimentos tenham fracassado. É importante lembrar que essas práticas artísticas fizeram parte do modernismo e, como tal, expressavam os valores modernos de ruptura com o presente. De fato, a modernidade, com seu sentido manifestamente liberatório, não era simplesmente a afirmação de novas possibilidades de existência, mas, sobretudo, a revolta contra os valores instituídos. Nessa revolta, é preciso ver, contudo, o desejo de estabelecer uma nova relação entre arte e política, que é, ao mesmo tempo, a essência do movimento vanguardista do começo do século XX e a condição para uma nova concepção de arte, em que o homem e a sociedade se tornam o centro das preocupações, logicamente de forma problematizadora. Para Silvana Garcia, a relação entre arte e política nas vanguardas se estabelece em um nível diferente daquele reivindicado pelos movimentos socialistas e operários, cuja idéia da arte implicaria uma “pedagogização das massas com fins revolucionários”. A arte de vanguarda teria sim um caráter ideológico, como afirmava Aronson; mas, para Garcia, não seria tão idealista, à medida que negaria o “paradigma da arte doutrinária”. Isso permitiria, em princípio, pensar a relação entre arte e política em outros termos. Segundo a autora, aí já não se

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trataria de “ajeitar um novo conteúdo às velhas formas, como fez o agit prop – grupos de propaganda ligados aos movimentos operários que proliferaram após a revolução russa –,” mas “de configurar o novo que, na tradição da ruptura, é político na medida mesma em que se insere, alternativamente, em atitude de confronto, no interior do próprio sistema produtivo artístico” (GARCIA, 1997:17). Mesmo que esse “novo” e essa “ruptura” estejam em alguns momentos imbuídos de um caráter utópico ou idealista, não se deve desprezar sua potência. Principalmente porque eles provocam, como indica Garcia, mudanças no próprio sistema de produção de arte, que cada vez mais irá buscar diluir as distinções entre arte e vida e, sobretudo, questionar a institucionalização da arte. Como veremos, o desenvolvimento das artes no pós-guerra é diretamente credor dessas mudanças. Isto é fundamental também para perceber como mais tarde tornam-se possíveis o surgimento da performance e, mais especificamente, trabalhos como os de Laurie Anderson, que se baseiam na incorporação e apropriação de elementos de seu próprio tempo – a cultura de massa e a tecnologia – para questionar discursos e práticas comuns na cultura contemporânea. Seguindo este raciocínio, compreende-se a afirmativa de Ronaldo Brito de que o projeto estético moderno representou “um esforço duplo e aparentemente contraditório: de matar a arte para salvá-la” (BRITO, 2001:203). Se a arte, em muitos momentos, tornou-se uma “antiarte” e abandonou definitivamente a representação, perdendo assim suas referências tradicionais, foi porque seu antigo ambiente passou a ser considerado por muitos artistas como um obstáculo para sua ação criativa e incapaz de captar e reprocessar o espírito de seu tempo. Além disso, é preciso dizer que a arte já sofria um forte processo de mercantilização muito antes do século XX, além da sacralização de que se via investida, contra a qual também se voltava a vanguarda. Tratava-se, então, de esboçar um outro lugar para a experiência de arte ou de criar condições de possibilidade para as práticas artísticas. Nesse período, sentia-se que a arte deixava atrás de si um abismo e que à sua frente vislumbrava apenas incógnitas e per-

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plexidades. A experimentação com novas linguagens e suportes, principalmente na pintura e no teatro – mas também na dança, na música e na literatura – da primeira metade do século XX, correspondeu exatamente a esse esforço de se criar para a arte novas referências e da arte criar para si mesma um outro estatuto. Na pintura, por exemplo, a partir de 1910, o Futurismo de Marinetti, com seu manifesto inspirado em Alfred Jarry (final do século XIX), imprime às telas suas idéias de “velocidade e aficção ao perigo”; no mesmo período, o teatro de cabaré de Munique (Hugo Ball e Frank Wedekind), com suas críticas e sátiras ao comportamento burguês do pré-guerra, dá origem, em 1916, em Zurique, ao Cabaré Voltaire. Deste, a partir da experiência futurista, surgiria o movimento Dadá, de Tristan Tzara e Francis Picábia, que influenciaria o próprio Marcel Duchamp. Em 1924, Paris assiste ao lançamento do manifesto surrealista de André Breton, que, juntamente com Pablo Picasso e Erik Satie, criam o surrealismo e agitam a cidade com suas soirées inusitadas. Esses movimentos, cada um com suas especificidades e em diferentes níveis, não se desenvolveram sem apresentar tensões entre si e mesmo contradições, mas tiveram em comum o fato de cruzar as referências da pintura com as da poesia e da música e o de detonar as bases das artes estabelecidas e suas fronteiras, como foi o caso do mimetismo naturalista do século XIX. Com essa atitude, as vanguardas reivindicam uma nova postura para o artista e para a arte já no início do século XX. Desse modo, como destaca Garcia, “as vanguardas negam não só a pretensão mimética do Naturalismo, mas também a pretensão aí vislumbrada de idealização da obra de arte” (GARCIA, 1997:17). Já na dança, ainda em 1899, Serge Diaghilev transforma o balé numa síntese de dança, música e artes visuais (cenografia . Não se pode deixar de comentar que a crítica vanguardista feita à pintura, ao teatro e à literatura tradicionais parece não levar em conta as mudanças introduzidas, por exemplo, pelo Impressionismo, que já fizera a pintura distanciar-se de certos parâmetros da Renascença. Dessa forma, os movimentos então considerados “tradicionais” já haviam sido considerados de “vanguarda” na época de seu surgimento. O tratamento dado às artes estabelecidas reflete exatamente esse desejo de rompimento com as origens, típico do modernismo, ao qual as vanguardas históricas se afiliavam. 24

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e figurinos), valorizando cada linguagem enquanto unidade e enquanto conjunto. Picasso e Satie, que trabalharam com Diaghilev, escrevem mais tarde o libreto para o espetáculo Parade. Conta Glusberg que o balé coreografado por Massime causou grande tumulto entre os espectadores em sua estréia. Os cenários, figurinos e adereços de Picasso, as partituras de Satie – que usava sirenes e ruídos de máquina de escrever – e o argumento de Jean Cocteau – que satirizava o estilo music hall e incorporava cenas cotidianas pela primeira vez em um balé – irritaram profundamente o público, que se sentiu iludido. “Os artistas só conseguiram fugir da platéia enfurecida graças à intervenção de Apollinaire, que apareceu vestido com um uniforme de tenente do exército” (GLUSBERG, 1987:17). No teatro, os experimentos de Gordon Craig com a animação de um espaço cênico mínimo explora a materialidade sonora; os palcos rítmicos de Adolf Appia dão fluidez à cenografia; a insurreição artaudiana contra o império do texto busca a desteatralização do “teatro de ilusão e da autoria” e o resgate da teatralidade. Vemos também, bem mais tarde, já na segunda metade do século XX, a autonomização do ator grotowskiano que participa da autoria de um espetáculo que desabilita a preponderância do objeto cênico, do figurino e do texto para realizar seu teatro “pobre”, rico em recursos inexplorados do próprio ator e da própria encenação; vemos ainda a polissemia e o distanciamento do texto brechtiano, que fazem intervir ao mesmo tempo uma série de modos de teatralização do texto em benefício do conjunto do espetáculo, recusando a naturalização da realidade; e, finalmente, a visceralidade do “teatro do absurdo” em Beckett. Esses são apenas alguns exemplos evidentes do questionamento incessante sobre as noções de autor, espetáculo, ator, espectador e dos demais elementos da encenação teatral. É toda uma nova idéia de arte e de teatro que aí se forjava, cuja base passaria a ser a encenação, um “além-dotexto”, o revelar de um “rosto secreto”, que o francês Gaston Baty (apud ROUBINE, 1998) acreditava ser tarefa do encenador. A performance surge, segundo Goldberg, exatamente apoiando esses movimentos, tendo sido “uma expressão de dissidentes que tentaram encontrar outros meios para avaliar

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a experiência da arte na vida cotidiana” (GOLDBERG, 1996:8). Mas, enquanto Goldberg vê nas vanguardas históricas o início da performance, Glusberg localiza nestas apenas sua ancestralidade. De fato, a performance comparece inicialmente como forma expressiva para outros campos da arte, sobretudo as artes plásticas e visuais e a poesia, e não como uma expressão artística “autônoma”, o que só aconteceu a partir dos anos 70. Glusberg (1987) reivindica para a estréia de Ubu Rei, de 1896, em Paris, uma espécie de pré-história da performance como expressão artística. O espetáculo de Jarry demoliu os frágeis pressupostos dramáticos de sua época, atacando suas convenções sociais, valendo-se das palavras para criar um clima onírico e delirante. Mas foram as noitadas futuristas (seratas) – de praticamente 15 anos após a encenação de Ubu Rei e a menos de um ano do lançamento do manifesto de Marinetti – que incluíram em suas apresentações recitais poéticos, números musicais, leitura de manifestos, dança e representação de peças teatrais. Foram os pintores futuristas italianos que começaram a se converter em seus próprios intérpretes na tentativa de demonstrar que proclamavam uma arte sem distinções de gêneros, que “encontrava seus elementos em seus arredores”. Essa concepção de arte já aparecia nos escritos de pintores como Boccioni, para quem a pintura já não era uma cena exterior, o cenário de um espetáculo teatral, assim como para Soffici o espectador deveria viver no centro da ação pintada (apud GOLDBERG, 1996:12). Segundo Roubine, a relação da pintura com o teatro no início do século XX vivia um momento de grande tensão. Sua participação tradicional, herdada do teatro naturalista do século XIX, entrara definitivamente em crise e estava sendo posta em questão. “Foi com o simbolismo que os artistas se recusaram a usar a pintura como simples fundo que recriava um cenário ‘o mais realístico possível’ e reivindicaram para ela um outro status, como objeto cênico aplicado à parte cenográfica do es. Glusberg emprega o termo “pré-história” pelo fato de as vanguardas artísticas do começo do século terem somente alguns pontos de contato com a arte da performance do final dos anos 60 e início dos anos 70. 26

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petáculo” (ROUBINE, 1998:32). Ou seja, a preocupação dominante deixou de ser a fidelidade ao real para ser a organização das formas, os jogos com as cores, com as áreas vazias e cheias, com as sombras e luzes. Foram os futuristas que, segundo Goldberg, começaram a usar a “performance” como um “método mais direto de obrigar o público a tomar ciência de suas idéias”. A atitude era geralmente agressiva e provocativa: “a performance foi a maneira mais segura de transtornar um público complacente. Deu aos artistas autorização para serem tanto ‘criadores’ no desenvolvimento de uma nova forma de teatro de artistas, como ‘objetos de arte’, nos quais não se estabelecia separação entre sua arte como poetas, como pintores ou como intérpretes “ (GOLDBERG, 1996:14). Assim é que, em suas manifestações, os artistas lançavamse às ruas em ataque aos teatros e introduziam a força na batalha artística. A resposta do público não era menos frenética, continua Goldberg: batatas, laranjas ou qualquer outra coisa que estivesse ao alcance dos espectadores voavam em direção aos artistas. Ora, “inventar incessantemente novos elementos de assombro” era a “única razão para existir”, dizia Marinetti (apud GOLDBERG, 1996:17). Também os dadaístas, conhecidos por sua grande irreverência, encontraram nas “performances” o elemento perfeito para a expressão de suas idéias. Entre 1920 e 1923, Tzara, auxiliado por Breton e um grupo de artistas que incluiu Picabia e Duchamp, realiza uma série de eventos em Paris. Um deles, ocorrido em 1921, é destacado por Glusberg (1987:19-20): a visita de dez dadaístas à Igreja de St-Julien-le-Pauvre, numa espécie de excursão pelo centro da cidade. O grupo convida “seus amigos e adversários” para o que prometia ser um típico passeio de turistas e colegiais. A finalidade era a mesma de sempre: desmistificar atitudes e convenções. Cerca de cinqüenta pessoas se juntam para a vi. Para De Micheli (1991:135), o dadaísmo consistiu menos numa tendência artístico-literária do que numa “disposição específica do espírito”. Essa disposição, polêmica e antidogmática por princípio, considerava o “gesto” mais importante que a “obra”. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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sita, sob forte chuva. Breton e Tzara provocam o público com discursos, num procedimento semelhante ao dos futuristas. Outro artista se faz de guia e, diante de cada coluna ou estátua, lê um trecho do dicionário Larousse, escolhido ao acaso. Depois de uma hora e meia, os espectadores começam a se dispersar. Então recebem pacotes contendo retratos, ingressos, pedaços de quadros, figuras obscenas e notas de cinco francos com símbolos eróticos. Glusberg chama a atenção para a semelhança do evento com os happenings dos anos 60, razão pela qual considera esses movimentos do início do século XX como parte da pré-história da performance. Igualmente importantes para a renovação da prática artística e para a criação das bases do que mais tarde seria a performance foram o movimento surrealista e a Bauhaus. Com a separação de Breton de seus amigos dadás em 1923, abre-se espaço para a fundação do surrealismo, que pretendia ser algo mais do que “provocações sem grandes conseqüências” e que tinha a pretensão de criar obras artísticas e de “substituir a total rejeição dadá, espontânea, primitiva, pela pesquisa experimental, científica, baseada na filosofia e na psicologia” (DE MICHELI, 1991:151). Em 1924, Breton lança o manifesto surrealista e estabelece os fundamentos do novo movimento, cuja tática era realizar uma “estética do escândalo”, atacando veementemente, por exemplo, o realismo no teatro. É interessante destacar que as peças surrealistas acontecem tanto em edifícios-teatro, quanto em caminhadas de demonstração, o que evidencia mais uma vez, assim como alguns eventos dadaístas, uma clara identificação com os happenings dos anos 60. E, embora os surrealistas, em determinado momento, passassem a não mais fazer “performances” e sim a se concentrarem na difusão da poesia, de esculturas e do cinema, continuavam a guardar sua irreverência para seus comunicados, notas e manifestos. Glusberg (1987:20) lembra que o estilo surrealista se aplicaria perfeitamente aos happenings e às performances dos anos 60 e 70, principalmente quanto ao abandono do raciocínio lógico e linear. Esse estilo apoiava-se no chamado “automatismo psíquico”, fundamento definido por Breton em seus manifestos e que foi definido como o “ditado do pensamento com a ausência

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de todo controle da razão, além de toda e qualquer preocupação estética e moral (BRETON apud DE MICHELI, 1991:157). Apesar do gradual abandono das “performances” pelos surrealistas, nesse mesmo período é realizado o balé Relâche (1924), que continha elementos dadaístas, mas que era mais afinado com as novas idéias surrealistas. A música era de Satie, o roteiro e o cenário eram de Picabia, que, juntamente com Duchamp, Man Ray e o Ballet Suedois de Rolf de Maré, montaram o espetáculo. No intervalo, o público assistiu a Entr´acte, filme de René Clair que já continha os germens do estilo dos filmes de Buñuel e Man Ray. Também nessa época, os departamentos de dança e de teatro da Bauhaus alemã, fundada em 1919 e dirigida por Gropius, faziam importantes experimentos sob a direção de Oskar Schlemmer. O objetivo da Bauhaus era o de buscar “uma fusão das artes e dos artesanatos em geral, aproximando-os da evolução industrial”. Uma das principais materializações do grupo foi a Semana da Bauhaus (1923), que teve como título “Arte e Tecnologia – uma nova unidade”, antecipando em mais de 60 anos as discussões em torno da hoje chamada arte tecnológica. Schlemmer, que alcançara notoriedade com seu “Bale Triádico” em 1922, buscava integrar numa mesma linguagem a música, o figurino e a dança. Em sua última fase, o artista fez experimentações cênicas que se estendiam à pintura e à escultura na utilização do espaço. Para Glusberg (1987:21), alguns de seus trabalhos, como Figuras no Espaço e Dança no Espaço, são seguramente precursores da arte da performance. Goldberg, por sua vez, comenta que as “performances” realizadas por futuristas, surrealistas e dadaístas precederam o desenvolvimento das outras expressões desses movimentos (poesia, literatura, pintura e música), ou seja, funcionavam como ensaio para suas idéias: as “performances” ou manifestações desses artistas “geralmente nasciam de exercícios de improvisação ou de ações espontâneas. Mas havia, ao mesmo . Até então, o termo “performance” não era utilizado e as manifestações artísticas desses movimentos eram referidas simplesmente como “espetáculos” ou “apresentações”, embora no caso do dadá se aproximassem bastante do que nos anos 60 ficou conhecido como “intervenção” ou happening. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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tempo, uma incorporação das técnicas do teatro, da dança, da fotografia, da música e do cinema” (GLUSBERG, 1987:12). É importante ressaltar que a incorporação das linguagens de distintos gêneros artísticos nas manifestações desses artistas foi o embrião da justaposição e da mesclagem que caracterizariam, mais tarde, a linguagem da performance. E a questão da linguagem não é o único indicativo dessa protogênese. A busca do envolvimento com o público, o espaço da realização das manifestações, o uso diferenciado dos elementos cênicos e a diminuição da distância entre arte e vida já apontavam para uma renovação da concepção de espetáculo, de espaço, da relação com o espectador e do próprio texto, que, como enfatiza Roubine (1998:38-39), marcaram o surgimento do teatro moderno. Essas experiências abriram espaço para os trabalhos daquilo que já se poderia considerar o teatro experimental, iniciado na Europa do final dos anos 50 com Grotowski, Ionesco e Beckett e realizado posteriormente nos Estados Unidos por Richard Foreman, Living Theater, Wooster Group e Bob Wilson, entre tantos outros, em cujos trabalhos percebe-se nitidamente o predomínio do encenador/diretor sobre o autor, a autonomização do ator – algumas vezes também transformado em criador –, a ênfase na encenação em detrimento do texto, além da justaposição de linguagens. As vanguardas do início do século XX, ao possibilitar uma abertura entre as formas de expressão artística e ao converter o artista em “mediador do processo social”, de alguma forma precederam e criaram condições para o desenvolvimento de diferentes linguagens, processos criativos e concepções de arte na atualidade, inclusive a performance. Ou seja, a performance mantém com os movimentos de vanguarda uma dupla relação: por um lado, esses movimentos funcionaram efetivamente como laboratório para a criação da performance como forma artística “autônoma”; por outro, foi a própria performance – ainda como forma de expressão e não como gênero – que, de certa forma, precedeu e subsidiou, como apontou Goldberg, o desenvolvimento das vozes dos próprios movimentos, ao servir-lhes como canal para suas idéias e igualmente como laboratório.

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Mas é no início dos anos 30 que ocorre um importante fato que marcaria a história dos movimentos de vanguarda e do surgimento da performance. Em 1933, com o advento do nazismo, fecha-se a Bauhaus, primeira instituição a organizar workshops de “performance” (Schlemmer). De forma geral, percebe-se um enfraquecimento do movimento artístico na Europa. É quando o eixo principal do movimento se desloca para os Estados Unidos, com a fundação, em 1936, do Black Mountain College. O instituto de educação artística da Carolina do Norte, sob a direção de Josef Albers, passa a contar com professores da Bauhaus e rapidamente se transforma no ponto de geração das novas manifestações artísticas da época e das vanguardas americana e internacional. Mantendo viva a corrente precursora da performance, a Black Mountain produz três artistas exponenciais: o coreógrafo Xanti Schawansky, o bailarino Merce Cunningham e o músico John Cage. Grande admirador de Satie (Dadá), Cage inicia em 1952 a fase histórica que culminou, segundo Glusberg, com o efetivo surgimento da arte da performance. Com o trabalho intitulado Untitled Event, Cage se propõe a realizar uma fusão do teatro, da poesia, da pintura, da dança e da música. Sua intenção era “conservar a individualidade de cada linguagem e, ao mesmo, tempo, formar um todo separado, como uma sexta linguagem” (GLUSBERG, 1987:25). Em Unitled, Cage aplica suas idéias sobre o acaso e a indeterminação, que vinha testando na música, juntamente com Merce Cunningham, em suas tentativas de renovar o balé, tarefa já iniciada por Diaghilev (1913), Massime (1917) e Schlemmer (1922). Apesar de todas essas influências, sobretudo de Schlemmer, Cage foi o primeiro a organizar nos Estados Unidos um evento baseado na intermídia, ou seja, na articulação de distintas linguagens artísticas. Muitos críticos e teóricos, inclusive, atribuíram a Cage a fonte geradora da produção artística dos anos 70, quando nasce oficialmente a “arte da performance”. . Notadamente, as experimentações sonoras com objetos, ruídos e silêncios e a incorporação de conceitos orientais do zen-budismo e da não-previsibilidade. Essas experimentações consagraram a noção de música como “organização do ruído”, apresentada por Jacques Attali (1977:9). FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Essa “segunda onda vaguardista do pós-guerra”, assim chamada por autores americanos como Aronson (2000) e Carlson (1996), criaria idéias e trabalhos com características bem próprias, embora ainda com a herança dos movimentos europeus sobre os ombros. O termo “performance” nasce desse novo espaço de experimentações não só de práticas, mas também de idéias.

Performance: um conceito inclusivo e controverso Como se tentou demonstrar até aqui, a performance está associada diretamente ao advento do modernismo do século XX. Mas, a rigor, alguns pesquisadores como RoseLee Goldberg, Jorge Glusberg e Richard Schechner defendem a existência de toda uma “corrente ancestral” da performance, que passaria pelos ritos tribais, pelas celebrações dionisíacas dos gregos e romanos, pelo histrionismo dos menestréis e inúmeros outros gêneros. Esses ritos e celebrações teriam influenciado o surgimento do cabaré do século XIX e o projeto estético moderno como um todo. É, porém, na segunda metade do século XX que a performance – um fenômeno reivindicado como sendo “histórica e teoricamente” americano – iria desenvolver sua história própria. História que é a de um “meio permissivo e sem limites fixos com variáveis intermináveis, realizado por artistas que haviam perdido a paciência com as limitações das formas de artes mais estabelecidas e que decidiram levar sua arte diretamente ao público” (GOLDBERG, 1996:9). A performance como gênero artístico surge em fins dos anos 60 e está ligada a uma série de manifestações da arte radical e da contra-cultura. Como fizera com as vanguardas européias do começo do século XX, vai servir de canal para os movimentos ativistas desse período, como o feminismo. Essa filiação ajuda a entender as causas da variedade de significados que lhe eram dados, bem como da dificuldade de uma definição generalizante ou mesmo a falta de um desejo nesse sentido. Aronson (2000:157) afirma que a dificuldade de definição do termo parte também e principalmente dos próprios artistas 32

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e críticos de arte: “Os artistas referiam-se a seu próprio trabalho como live art, body art, action art, art performance ou simplesmente performance, segundo o grau de orientação artística do performer ou do crítico que discutia o trabalho. Dessa forma, apesar de haver semelhanças formais entre, por exemplo, a “performance” dos artistas plásticos (ou visuais) e dos atores de teatro, cada grupo tinha diferentes razões e intenções para a criação de seus trabalhos e disso dependia a definição e a compreensão do termo. Exatamente por sua natureza, a performance escapa a uma definição exata ou redutora além da simples noção de que seria uma “arte viva feita por artistas”, como explica Goldberg: Qualquer definição mais estrita negaria de maneira imediata a possibilidade da própria performance. Posto que recorre livremente a qualquer número de disciplinas e meios de comunicação – literatura, poesia, teatro, música, dança, arquitetura e pintura, além do vídeo, filme, slides e narração – em busca de material, os desdobra em qualquer combinação. De fato, nenhuma outra forma de expressão artística tem uma manifestação tão ilimitada, uma vez que cada intérprete faz sua definição particular no processo e na maneira de sua execução (...) (GOLDBERG, 1996:9).

A crítica de arte Linda Novak capta um aspecto importante da questão, ao sugerir que, em seu início, a performance era mais um meio de abordar um problema intelectual do que um gênero rapidamente identificável. Para Novak, a performance seria “mais um modo de discurso (um processo de discussão sobre um assunto) do que uma categoria artística com propriedades formais exclusivas” (apud ARONSON, 2000:157). No Brasil, Renato Cohen localiza a performance dentro do que ficou conhecido nos Estados Unidos (e em outros países de língua inglesa) como live art (“arte ao vivo”). A live art seria uma forma de arte “em que se procura uma aproximação direta com a vida, em que se estimula o espontâneo, o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado” (COHEN, 1987:16) e que buscava dassacralizar a arte – resgatando sua característica FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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ritual – e tirá-la dos “espaços mortos” dos museus, galerias e teatros. A live art, em vez de representar a vida, vai tentar reelaborá-la e reapresentá-la, não mais representa-la. No entanto, mesmo dentro da live art, o termo performance é problemático por ser tão inclusivo. Parece haver de fato pelo menos três problemas relativos ao termo, ou, se quisermos, seria possível perceber três níveis de problemas nele. Primeiramente, como bem identifica Rosângela Leote (2000:4), o problema do termo americano “performance”, é que, na prática, se refere à generalidade dos trabalhos fundamentados na atuação. Isso gera ambigüidade especialmente porque existem dois termos em inglês que se referem a este tipo de trabalho: performing art e performance art. Performing art (no Brasil, “artes cênicas”), sugere e abriga, como indica Leote, uma infinidade de trabalhos que inserem a atuação e, conseqüentemente, o corpo – aí estando incluídos não só o teatro, mas também a dança e a música. Já performance art, mais específico, seria utilizado para os trabalhos que utilizam a forma de expressão da performance, tal como a estamos considerando aqui, ou seja, “arte da performance”. O segundo problema ou nível de problema encontra-se no próprio modo de emprego do termo. Carlson, por exemplo, afirma que os termos performance e performance art começaram a ser amplamente utilizados somente a partir dos anos 70 e, embora muitas dessas atividades fossem chamadas de “performances”, pelo menos nos Estados Unidos o termo curiosamente não era comum para designar tais manifestações (CARLSON, 1996:99), e sim para designar as performing arts (artes baseadas na atuação) e, principalmente, o teatro. Talvez por isso tenha havido uma tendência entre os teóricos americanos a utilizar o termo de forma generalizante, para designar “atuação” ou “encenação”, como faz, por exemplo, Richard Schechner, reconhecido pesquisador americano da área. Outro exemplo da confusão no uso do termo é o próprio procedimento da historiadora da performance RoseLee Gold­ berg, que aplica o termo “performance” a todas as manifestações artísticas precedentes à performance art – o que, na prática, significa tratar as diversas manifestações pré-arte-performance

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como “gêneros da performance”. Já Jorge Glusberg trata conceitualmente as mesmas manifestações como “uma ‘pré-história’ da arte da performance”, o que nos parece mais adequado, embora ele próprio, em alguns momentos, se refira às intervenções de alguns artistas como “performances”, notadamente na época dos happenings, nos anos 60. É comum, portanto, flagrar o uso do termo “performance” para designar tanto as artes performáticas em geral – as artes baseadas na atuação –, quanto para indicar a “arte da performance”, ou seja, o gênero artístico. O terceiro e último tipo ou nível de problema, resultante dos dois primeiros, é relativo à condição histórica da produção artística e ao seu discurso, sobretudo no Brasil. Renato Cohen analisa a questão a partir de duas premissas. A primeira diz respeito a uma carência teórica. Se, do ponto de vista prático, muito foi feito em termos de performance no país, principalmente a partir dos anos 70, o mesmo não se deu no nível conceitual. Ou seja, as publicações brasileiras não teriam acompanhado, de forma sistemática, o desenvolvimento das formulações teóricas sobre novas formas expressivas nas artes cênicas e/ou visuais, que englobem, por exemplo, o universo de trabalho de grupos como o de Bob Wilson, Living Theater, Wooster Group e Laurie Anderson. Explica Cohen: Dentro da carência que caracteriza nossa produção cultural nacional, enveredou-se, nas publicações de artes cênicas, pelos textos dramatúrgicos e pelo teatro engajado, na linha brechtiana, criando-se um vácuo para toda produção voltada para o imagético, para o não-verbal, produção esta suportada em termos existenciais e em processos de construção mais irracionais (COHEN, 1987:2).

Apesar de o autor não concordar que os processos artísticos que se baseiam na experimentação sejam “irracionais” – seriam, no mínimo, concernentes a uma lógica não-aristotélica –, é, contudo, importante perceber que esta primeira premissa, a da carência teórica, leva paradoxalmente ao problema de um excesso, que é a segunda premissa com a qual Cohen busca explicar este terceiro nível do problema conceitual da performance. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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A segunda premissa é então relativa a um risco pelo excesso. A chegada da performance como gênero artístico num momento de “jejum cultural” dentro do cenário artístico brasileiro teria vindo, segundo Cohen, “preencher com um nome mágico todo o vazio da vanguarda” e “passou a existir um risco por excesso, com uma grande quantidade de espetáculos oportunistas que vieram trazer um desgaste para as tendências da experimentação dentro da arte” (COHEN, 1987:3). A partir do momento em que a “performance” passou a ser associada a uma “vanguarda”, qualquer artista ou grupo que fizesse um trabalho “menos acadêmico” receberia essa designação, independentemente ou não da produção ter alguma ligação com o que se entende por “arte da performance”. A crítica especializada também esteve atenta ao fato: em seu comentário sobre o I Festival de Performances, ocorrido em São Paulo, em 1984, Sheila Leiner escreve um artigo publicado no Jornal O Estado de São Paulo intitulado “A perda de uma excelente oportunidade de revelação”. O teor da crítica aponta para uma falta de curadoria para o evento, mas a questão é que, na realidade, em conseqüência da série de eventos “mal produzidos, improvisados e, principalmente, de baixa qualidade” que receberam a denominação de ‘performance’, o termo caiu em total desgaste e passou a ser conotado como “qualquer coisa” (LEINER apud COHEN, 1987:12). E a noção que ficou para o público brasileiro é que “performance” é “um conjunto de sketches improvisados e que é apresentada eventualmente em locais alternativos” (COHEN, 1987:3). Tendo feito essas considerações iniciais, vamos agora percorrer um pouco da história dos movimentos que podem ser considerados, a rigor, os precursores diretos da arte da performance, por constituírem, por sua vez, as condições de possibilidade dos trabalhos de artistas como Laurie Anderson.

Os anos 50 e 60 e os precursores da performance Os anos 50 foram, sobretudo nos Estados Unidos, pródigos em experimentações no campo artístico. Como vimos, os trabalhos de Cage e Cunningham representaram o início de uma nova sé36

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rie de pesquisas com linguagens e materiais, o que caracterizou a formação da nova vanguarda da segunda metade do século XX. Ao mesmo tempo, essa década invoca e resgata para suas criações idéias do início do século, desde Marinetti, Tzara, Baty, Artaud e Duchamp. É quando vemos, então, na pintura, o surgimento do conceito de action painting (“pintura instantânea”) de Jack Pollock e as assemblages e os environments de Allan Kaprow, que irão desaguar no happening e na body art, estes últimos considerados por Glusberg precursores diretos da performance. O trabalho de Pollock, bem como o de Cage, é também considerado precursor da performance, especialmente por sua liberação dos padrões estéticos ainda vigentes e pelo aproveitamento de outras linguagens, justapostas umas às outras. A action painting é, na realidade, uma adaptação da técnica de collage (que, para Glusberg, transforma o ato de pintar no tema da obra e o artista em ator), idealizada pelo surrealista Max Ernst. No trabalho de Pollock, grandes lonas estendidas no chão funcionam ao mesmo tempo como tela e como palco. O artista transita sobre a lona, espalhando sua pintura em torna dela. O próprio pintor-ator – e não apenas sua mão e braço – move-se no espaço da lona-tela, transformado em espaço artístico, embora aí o corpo ainda não seja a obra em si – o que aconteceria mais tarde com a body art e com a performance. Na action paiting, a arte consiste no próprio processo de produção do objeto pictórico. O passo seguinte foi a “assemblage” (encaixes), no início dos anos 50, que consiste em pinturas sobre material inteiramente não tradicional e dispostas de forma a dar à obra altos e baixos relevos, texturas. Pode ser considerada uma forma mais elaborada de collage, com a diferença de que aí “a collage já não é apenas suporte do processo criativo, mas sim o ato artístico em si, eliminando-se o pictórico” (GLUSBERG, 1987:28). Na prática, a assemblage foi uma espécie de escultura ambiental . Por collage, segundo Cohen, não se deve entender simplesmente “colagem”. Collage caracterizaria uma linguagem de justaposição de imagens não originalmente próximas que são rearranjadas com uma determinada intenção expressiva. A “colagem” seria apenas uma das partes do processo de seleção, picagem e montagem de imagens que ganham uma nova significação em seu novo conjunto, por exemplo, num quadro surrealista, como explica Cohen (1987:41). FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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ou de pintura-escultura, onde podia ser utilizado qualquer elemento plástico-sensorial – lâmina de estanho ou alumínio, palha, telas, fotos, jornais, alimentos (COHEN, 1987:17). Em 1955, Kaprow deixa o expressionismo abstrato – caracterizado pela supremacia da sensibilidade em detrimento da figuração/representação – e passa a se dedicar às assemblages. O mesmo acontece com vários artistas, como Jasper Johns, Claes Oldemburg e Rauschemberg, que, entre 1956 e 1958, tiveram aulas com Cage na New School of Social Research, em Nova Iorque. Ou seja, os anos 50 já indicavam o surgimento de uma cena que se tornaria realmente efervescente a partir da década seguinte. Em seguida, as assemblages foram se tornando mais complexas e, aos poucos, a técnica foi apresentando limitações para Kaprow, que passou a incorporar a técnica de Pollock e também a noção de acaso e indeterminação de Cage. Disso resultou a action-collage (“colagem de impacto”), na qual os elementos da obra passaram a ter, segundo o próprio Kaprow, “um significado que se incorpora melhor nas construções não pictóricas do que na pintura” (apud GLUSBERG, 1987:28). Com o tempo, as “colagens de impacto” crescem de tamanho e ganham efeitos de iluminação (lâmpadas que ascendem em intervalos) e de som (ruídos de timbres, campainhas, sinos, brinquedos). O acúmulo destes elementos faz com que Kaprow busque um novo nome para essa nova fase das colagens: surgem então os environments, que seriam “representações espaciais de uma atitude plástica multiforme” (KAPROW apud GLUSBERG, 1987:31). À época, estava em auge a pop art, surgida na Inglaterra e consolidada nos Estados Unidos, o que de alguma forma facilitou o desenvolvimento dos environments, pela reavaliação e uso de objetos, máquinas e utensílios como elementos estéticos. Os próprios artistas pop, como Claes Oldenburg e Andy Warhol, lançaram mão de environments, como o foi o caso de The Store (Oldemburg), uma loja de verdade cujas mercadorias eram fabricadas todas pelo próprio artista, e as pilhas de caixa de sabão de Warhol. Interessante notar que esta “inovação” dos anos 50 e 60 também tem suas origens nos trabalhos da vanguarda do início do século, mais precisamente com os surrealistas.

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É importante destacar que, antes disso, os surrealistas já faziam de alguma forma trabalhos que se aproximavam dos environments e assemblages. O próprio Duchamp, antes de seus ­ready-mades, concebeu telas, esculturas e objetos que formavam uma mesma obra, um todo homogêneo, e transformou o salão central da I Exposição Internacional do Surrealismo (Paris, 1938) numa gruta, com teto forrado por 1.200 sacos suspensos, recheados de papel e com o solo levemente ondulado, coberto com tapete espesso de folhas secas. A própria obra em que trabalhou em segredo durante 20 anos (1946-1966), Étant Donnés, que foi inaugurada postumamente em 1969 no Museu de Belas Artes da Filadélfia, era uma enorme obra ambiental. Dentro da proposta da live art, que implicava a possibilidade de participação do público e da integração entre vida e arte, as expressões da collage invocavam também uma arte tirada da vida, do cotidiano, aspecto que era expresso nos objetos utilizados. Al Hansen começou a criar intervenções em rebeldia contra “a completa ausência de algo interessante nas formas de teatro mais convencionais”. Reconhecendo que suas idéias provinham dos futuristas, dadaístas e surrealistas, Hansen propôs uma forma de teatro na qual “se juntasse partes à maneira como se fazia nas collages” (apud GOLDBERG, 1996:126). Era, portanto, um campo receptivo a inovações. Foram justamente as concepções da live art incorporadas aos environments que deram origem aos happenings. Em determinado momento, o espaço das galerias tornouse improdutivo para o trabalho com environments. É o próprio Kaprow quem diz: “tentei destruir a noção de espaço limitado com mais sons do que nunca, tocados continuamente. Mas isto não foi uma solução, apenas aumentou o desacordo entre minha obra e o espaço (...) Ao mesmo tempo percebi que cada visitante do ambiente fazia parte dele (...) Progressivamente, durante 1957 e 1958, isso me sugeriu a necessidade de dar mais . Certamente, os environments evoluíram para o que hoje é conhecido como “instalação”, que seria, na definição de Cohen, “esculturas-signo-interferentes” e que muitas vezes funcionam como cenário para a realização de performances. O mesmo faziam os surrealistas, que utilizavam os “ambientes” para criar uma nova realidade, dando curso ao delírio ou ao absurdo em sua acepção mais poética, como observou Glusberg. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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responsabilidade ao espectador e continuei a oferecer-lhes cada vez mais, até chegar ao happening” (apud GLUSBERG, 1987:32). Em 1959, Kaprow realiza com Cage, na Reuben Gallery de New York, seu 18 Happening in 6 parts, criando um novo conceito de encenação que seria propagado através da década seguinte. Durante uma hora e meia, dezoito cenas ou fragmentos de atos ou “acontecimentos” divididos em seis partes (três happenings simultâneos em cada parte) se desenrolaram junto ao um público que era tido tacitamente como parte do espetáculo. Segundo Glusberg, os intérpretes atuavam sob uma marcação cuidadosamente controlada por Kaprow por meio de desenhos, luzes e sinais de sino. Os seis intérpretes executavam ações físicas simples, episódios da vida contemporânea – como espremer laranjas e ler textos e cartazes. Havia também monólogos, projeção de filmes e slides, músicas com instrumentos de brinquedo, ruídos e sons (Cage), além de pinturas (assemblages) que formavam verdadeiros environments. O salão era dividido em três salas por paredes de plástico semitransparentes. Em cada uma delas, cadeiras para o público e espaço para os intérpretes. Os espectadores podiam mudar de sala segundo instruções recebidas no início do espetáculo. O interessante é que o programa advertia também que as ações não significariam nada claramente formulável, posto que se referiam tão somente às ações dos próprios artistas. Seu término, igualmente sem significado (quatro rolos de quase três metros caíam de uma barra horizontal entre os intérpretes masculinos e femininos que recitavam palavras monossilábicas: “mas”, “bem”), pretendia tão somente “indicar algo espontâneo, que acontece porque acontece” (KAPROW apud GOLDBERG, 1996:130). Contudo, é digno de nota que o espetáculo foi ensaiado durante duas semanas antes da estréia e diariamente durante a apresentação que durou uma semana. O 18 happening teve forte influência sobre outros espetáculos da época, que também utilizaram o que pode ser considerada uma “collage de acontecimentos” como linguagem de atuação. Diversos artistas desenvolveram a partir disso, sua própria iconografia para os objetos e ações de seus trabalhos.

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Entretanto, há uma divergência entre as versões de Goldberg e Glusberg quanto ao estabelecimento do termo happening. Goldberg defende que, apesar de apresentarem estruturas e características particulares, as atividades desses diferentes artistas acabaram todas rotuladas e estabelecidas pela imprensa como happening, mesmo contra sua vontade e sem haver um consenso entre eles. Já para Glusberg, esse consenso teria existido e o termo teria sido empregado por uma série de artistas, mesmo que optassem por nomes diferentes, sendo suas atividades chamadas pela primeira vez de performances, por Oldenburg, event, por Brecht, aktion, por Joseph Beuys, e dé-collage, por Wolf Vostell. Contudo, explica Glusberg, esses artistas tinham em comum o enfoque e o objetivo, apesar das diferenças de suas técnicas. A diferença principal da versão de ambos é que, ao contrário de Goldberg, Glusberg afirma ter havido a assinatura de uma declaração, em 1965, por parte de cinqüenta artistas autores de happenings dos Estados Unidos, Europa e Japão, que definia o gênero: Articula sonhos e atitudes coletivas. Não é abstrato nem figurativo, não é trágico nem cômico. Renova-se em cada ocasião. Toda pessoa presente a um happening participa dele. É o fim da noção de atores e público. Num happening pode-se mudar de “estado” à vontade. Cada um no seu tempo e ritmo. Já não há mais uma “só direção”, como no teatro ou no museu, nem mais feras atrás das grades, como no zoológico (GLUSBERG, 1987:35).

Nos anos 60, com o happening, assistimos à passagem da sucessão de environments para a sucessão de acontecimentos e ao surgimento de uma multilinguagem, que incluía várias mídias, como as artes plásticas, o teatro, a música e a dança, recuperando dos futuristas italianos a experiência de uma arte sem distinção de gêneros e da Bauhaus a idéia da fusão das artes. De . Na lista, segundo Glusberg, figuravam artistas como Oldenburg, Rauschemberg, Meredith Monk, Robert Morris, Carolee Schneemann, Jacques Lebel, além de Joseph Beuys, Cage, Cunningham e o próprio Kaprow, entre outros. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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fato, como afirma Cohen, o happening funcionou como uma “vanguarda catalizadora”, que irá tomar o que se produz de novo nas diferentes artes: do teatro, incorpora o laboratório de Grotowski, o teatro ritual de Artaud, o “teatro dialético” de Brecht; da dança, as expressões minimalistas de Martha Grahan e Yvonne Rainer. Mas é das artes plásticas, com a action paiting, que surgiria o elo principal a partir do qual nasceria a performance (COHEN, 1987:22). Pollock já anunciara, na década anterior, que o artista deveria ser o sujeito e o objeto de sua obra, ou seja, que a obra só estaria completa com sua própria presença como obra. Com a influência da action painting e sua idéia de transferência da “pintura” para “o ato de pintar”, o happening vai dar importância à movimentação física do corpo do artista durante a encenação. “O caminho das artes cênicas será percorrido então com o mesmo enfoque das artes plásticas: o artista irá prestar atenção à forma de utilização de seu corpo-instrumento, à sua interação com a relação espaço-tempo, à sua integração com o público” (COHEN, 1987:23). Ainda nos anos 60, surgiram na Europa movimentos artísticos que realizavam criações com dança e música e acrescentaram novos elementos ao happening. Exemplos disso são as Antropometrias do Período Azul, de Yves Klein, onde três modelos nus, untados de tinta azul, prensam seus corpos contra telas enormes, como pincéis vivos, ao som da Sinfonia Monótona de Pierre Henri. A experiência que levou ao extremo a action painting de Pollock criava espaço para o que mais tarde caracterizaria a body art da segunda metade dos anos 60 e dos anos 70. Da mesma forma, na Itália, Piero Manzoni deu um passo além, em 1961, com a apresentação de sua Escultura Viva: homens e mulheres tiveram parte de seu corpo assinada pelo artista e se transformaram em “obra-de-arte”, um gesto que permite um paralelo, embora grosseiro, com os ready mades de Duchamp, objetos comuns destacados de seu contexto e transformados em obras-de-arte. Mas foi com a fundação, em 1961, do movimento Fluxus, por George Maciunas – cujos concertos mesclavam happenings (mais livres que os habituais) com música experimental, poesia

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e intervenções individuais – que se faz a ponte para a criação da arte da performance. Participam do Fluxus artistas como Yoko Ono, Joseph Beuys, John Cage e Stockhausen, entre outros. Maciunas definia o Fluxus como “teatro neobarroco de mixed-media” e o descreve através de um manifesto: A arte Fluxus não leva em consideração a distinção entre arte e não-arte, não leva em consideração a indispensabilidade, a exclusividade, a individualidade, a ambição do artista; não considera toda pretensão de significação, variedade, inspiração, trabalho, complexidade, profundidade, grandeza e institucionalização. Lutamos, isso sim, por qualidades não estruturais, não teatrais e, por impressões de um evento simples e natural, de um objeto, de um jogo, de uma gag. Somos uma fusão de Spike Jones, vaudeville, Cage e Duchamp (apud GLUSBERG, 1987:38).

O Fluxus realizava suas aktionen através de mixed-media,10 mesclando o happening com a música experimental de Cage e Stockhausen, poesia e apresentações individuais, em que a presença física do artista torna-se parte essencial do trabalho. Em 1963, o artista alemão Joseph Beuys, que dirigia desde 1961 o Departamento de Escultura da Academia de Artes de Düsseldorf, organiza o Festival Fluxus na Alemanha. Embora fosse organizador de happenings e membro do Fluxus, suas ações extrapolavam a tônica dadaísta dos happenings, tanto pelo sentido social e político de seus trabalhos quanto por sua implicação filosófica. O exemplo clássico disso ocorreu quando, em 1965, realizou, na Galeria Schmela, de Düsseldorf, uma de suas mais famosas “performances”: How to Explain Pictures to a Dead Hare (“Como explicar pinturas a uma lebre morta”). Com o rosto coberto por mel e folhas douradas, Beuys, carregando uma lebre morta nos braços, percorre o salão, onde estão expostos seus desenhos e pinturas a óleo. Ao final do percurso, senta-se num 10. Aktionen (“Ações”, em alemão) é o nome dado às criações artísticas do grupo Fluxus, e mixed-media refere-se à fusão de várias mídias, no caso, teatro, dança, fotografia, artes plásticas etc., explica Glusberg. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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canto iluminado do recinto e declara: “Mesmo uma lebre morta tem mais sensibilidade e compreensão intuitiva que alguns homens presos a seu estúpido racionalismo.” Depois, continua explicando para o animal o significado das obras em exposição (GLUSBERG, 1987:38). Esse e outros trabalhos apontam para a dissolução do happening em modalidades expressivas mais elaboradas. Como já dissemos, essa transição, iniciada com as idéias de Pollock, parte, na verdade, dos próprios artistas que trabalhavam com o happening, ao transformar o artista na própria obra. Nessa nova tendência se inclui o Grupo de Viena que, em 1962, começa a sistematizar o que viria a se chamar body art (arte do corpo). O grupo parecia concretizar as idéias de Merleau-Ponty acerca do trabalho com o corpo: “em se tratando do meu próprio corpo ou de algum outro, não tenho outro modo de conhecer o corpo humano senão vivenciando-o. Isso significa assumir total responsabilidade do drama que flui através de mim e fundir-me com ele” (apud GLUSBERG, 1987:39). As ações do Grupo de Viena chamavam a atenção pela violência e pelos espetáculos de autoflagelação, tendo um de seus membros, Schwarkogler, morrido em 1969, aos 29 anos, em conseqüência de mutilações e feridas que se infligira. Já outro artista, Nitsch, em seu Teatro de Orgia e Mistério, organizava rituais envolvendo sacrifícios de animais, que terminavam com abundante derramamento de sangue, o que provocou sua prisão na Áustria e na Inglaterra. A experiência radical do corpo na body art significou para Cohen “a sistematização da significação corporal e a inter-relação com o espaço e a platéia. O fato de se lidar com os velhos axiomas das artes cênicas, sob o ponto de vista plástico, traz uma série de inovações à cena: o não uso de temas dramatúrgicos, o não uso da palavra impostada” (COHEN, 1987:23). É claro que a incorporação das experiências das artes plásticas nas artes cênicas, ou melhor, que o diálogo que se estabeleceu entre ambas é um fato que, na verdade, já se anunciava desde o início do século XX, com as pesquisas de Craig, Meyerhold e Appia – com o ator e espaço cênico – e, um pouco mais tarde, as de Artaud, Beckett, Brecht e Grotowski, para citar apenas alguns

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nomes, com suas tentativas de desteatralizar o teatro e resgatar nele a teatralidade, o vigor de uma criação artística já muito longe da representação. Mas o fato é que, com as sucessivas experimentações das vanguardas artísticas do século XX, começaram a surgir a visão e a prática de um tipo de arte que se constituiu exatamente no interstício das diferentes linguagens, pelo status que a própria experiência do artístico vinha alcançando até então. Neste sentido, foi notável a influência da arte conceitual nos anos 70, que enfatizou a eliminação do objeto e antecipou a arte minimalista, a funk art e sua corrente italiana, a art povera. Esse tipo de arte representou uma reação à estética da pop art11 e um interesse maior no processo criativo em si. Para tanto, foi necessário que interviesse um outro elemento, que já vinha sendo forjado no teatro de Craig, Artaud, Brecht, Beckett e Grotowski, mas que notadamente no ambiente do happening e da body art ganhou um status diferenciado: o corpo. Dizemos forjado, porque embora logicamente a figura do ator fosse a base e a possibilidade mesma do espetáculo até o período que precedeu a performance, foi preciso que essa figura fosse desconstruída enquanto noção histórica do teatro de representação para dar lugar a outra figura que viabilizasse e desse suporte às novas pesquisas de linguagem e às novas concepções artísticas: surge então a noção de performer. A figura do performer já se localiza totalmente à parte de uma ligação com a interpretação de personagens e de um contexto cênico-autoral de narrativa linear e mimética. Embora a desconstrução das noções de ator e espetáculo tenha se dado nas vanguardas artísticas do teatro experimental, foi somente com as artes plásticas, com a qual manteve, pode-se dizer, uma solidariedade estreita e orgânica, que a redescoberta do corpo 11. A operação de “eliminação” realizada pela arte conceitual e pela arte minimalista poderia talvez ser considerada uma tentativa de “salvar a arte”, da mesma forma como sucedeu, em parte, com a pop art, cuja proposta, nesse ponto, se aproxima muito da dos ready-mades de Duchamp. Esse aspecto político da pop art é, contudo, controverso. Para alguns autores, ela própria seria uma nãoarte que tentou repensar a arte e tirá-la de sua linha institucionalizada. Para outros, refletiu simplesmente a influência da mídia e a massificação da cultura. Para mais detalhes, sugere-se a leitura dos estudos de Marco Livingston (1990). FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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como objeto estético e fabulador de novas narrativas tornou-se possível e dizível. O ambiente criado pelo happening e pela body art pareceu corresponder aos anseios que essas experimentações nutriam e, de certa forma, concretizavam. Muito do que visionários como Craig, Appia, Duchamp, Schlemmer, Artaud, Brecht e Beckett sonharam em termos de linguagem cênica em seus distintos elementos – e em termos de autonomia e liberdade – se realizava de certa forma em Pollock, Grotowski, Cage, Cunningham, Kaprow e Beuys. E continuaria a reverberar e até se concretizar a partir dos anos 70 com os trabalhos do Living Theater, Théâtre du Soleil, Bob Wilson, Wooster Group e Laurie Anderson. Esse foi o exercício e a função precursora primordial da body art. Pinturas sobre corpos que dançam, feridas e flagelações impostas por artistas a si mesmos, a reprodução e a desconstrução de movimentos corporais cotidianos que se naturalizaram e cristalizaram, as mímicas: a body art teve como objeto o que usamos como instrumento e que representou o início de um processo de investigação artística sobre o corpo em relação às suas qualidades plásticas, sua energia, sua resistência, seus poderes gestuais e suas relações com o espaço.12 Ora, o corpo é passível de todo esse processo formal de investigação, uma vez que constitui um sistema simbólico e uma de nossas mais antigas e complexas instituições sociais – e talvez uma das menos visíveis enquanto tal. Graças a ele definimos nossa identidade de humanos, nos diferenciamos das coisas e de outros humanos e hierarquizamos nossas relações com eles. Para Tucherman (1999:23), foi graças à separação que a cultura ocidental impôs entre logos e physis que o corpo sofreu “um longo processo de constituição e invenção, rupturas e metamorfoses, o que nos permite dizer que o nosso corpo tem uma realidade lógica”, ou seja, de “logos”, o que não corresponderia à evidência segundo a qual seríamos naturalmente physis.

12. Deve-se, contudo, a Grotowski algumas das primeiras explorações das potencialidades do ator (timbres desconhecidos de voz, o trabalho com o corpo e gestos), em seus laboratórios, que, mais tarde, dariam origem a seu Teatro Pobre. 46

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É a partir da perspectiva de sua constituição enquanto discurso que o corpo foi trabalhado no happening e na body art e, mais tarde, na performance, onde então será desconstruído inclusive em sua imediatez e presença física, como nos trabalhos de Laurie Anderson. Anderson, como veremos, torna evidente, com os usos que faz da tecnologia, a ilusão do corpo como uma simples evidência imediata, através da produção de um “corpo tecnologicamente mediado”, que se apresenta sempre deslocado, nunca imediatamente presente. De forma mais ampla, Glusberg viu no happening e na body art o agrupamento de diversas tendências internas que tinham como denominador comum a proposta de “desfetichizar o corpo humano – eliminando toda exaltação à beleza a que ele foi elevado durante séculos pela literatura, pintura e escultura – para trazê-lo à sua verdadeira função: a de instrumento do homem, do qual, por sua vez, depende o homem” (GLUSBERG, 1987:43). O estudo das relações entre corpo e cultura permitiria uma decodificação e um questionamento das condições de geração dessas ações e dos fatores que as determinam. Portanto, como afirma Glusberg “a performance e a body art não trabalham com o corpo e sim com o discurso do corpo” (GLUSBERG, 1987:56). É assim que em 1972 a body art teve reconhecimento internacional na Documenta de Kassel, com uma mostra que contou com seus artistas mais relevantes. Mas, mesmo expandindo-se pelos Estados Unidos, Europa e Japão, aos poucos a body art dá lugar a que outros criadores interessados em pesquisar novos modos de comunicação e significação convergissem para uma prática que, apesar de utilizar o corpo como matéria-prima, não se reduz somente à exploração de suas capacidades, incorporando também outros aspectos tanto individuais quanto sociais, vinculados com o princípio básico de transformar o artista na sua própria obra, ou melhor ainda, em sujeito e objeto de sua arte (ibid).

É assim que, nos anos 70, vai se partir para experiências mais sofisticadas e conceituais, que irão incorporar aparatos técnicos e diferentes mídias, “incrementando” assim o resultado estético FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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dessas experiências. A body art se diluiria, ainda segundo Glusberg, dentro de um gênero mais amplo que passou a ser chamado de “arte da performance”. Esta passaria, assim, a representar esse conjunto de experiências artísticas que consubstanciariam aquilo que esse autor chamou de um “fenômeno de arte-corpocomunicação” (GLUSBERG, 1987:66), que embora se apóie em formas de teatro, música e dança, as retoma para desarticular seus elementos e criar outra coisa que não é teatro, nem música, nem dança. A seguir, passaremos a discutir especificamente a performance e em que esta se distingue de outros modos de expressão artística sem, contudo, isolar-se deles. Buscaremos analisá-la tanto em seu “projeto ideológico” – em seus aspectos transformadores – quanto em seu “projeto formalístico”, caracterizando sua linguagem e seus recursos.

A performance como forma de expressão artística A performance poderia ser considerada uma manifestação artística em que o corpo é utilizado como um instrumento de comunicação e arte que se apropria de objetos, situações e lugares – quase sempre naturalizados e socialmente aceitos – para darlhes outros usos e significações e propor mudanças nas formas de percepção do que está estabelecido. Em seu início, a performance abandona os locais tradicionais da arte – teatros, museus e galerias – para utilizar a rua, galpões e outros espaços para a realização de suas apresentações. Ao mesmo tempo, lança mão da ação do próprio corpo como base para os trabalhos, situação que se modifica a partir dos anos 80, com a introdução da televisão e do vídeo e de novas tecnologias (slides, desfigurador de voz, imagens computadorizadas), como nas performances de Laurie Anderson, por exemplo. De forma geral, happening e performance enquanto modos de expressão artística têm uma raiz comum (ambos são movimentos de contestação e se apóiam na live art, no acontecimento presente e numa valorização do imagético preferencialmente ao texto). Contudo, a performance distingue-se do happening 48

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e da body art por uma maior complexidade de sua proposta e por um “aumento de esteticidade” (COHEN, 1987:151) obtido por um maior controle sobre a produção e pela criação de uma linguagem mais elaborada, em detrimento da espontaneidade. Enquanto o happening vai se apoiar mais em sketches, no elemento grupal, numa ênfase social e integrativa (com objetivos terapêuticos e anárquicos), em materiais simples e no improviso e realizará eventos geralmente sem repetição, a performance vai, comparativamente, adotar a collage como linguagem, tomará mais o elemento individual que o grupal para suas apresentações, terá objetivos mais estéticos e conceituais, utilizará materiais mais sofisticados e seus eventos terão mais possibilidades de repetição, embora com diferenças entre cada apresentação (COHEN, 1987:128). Ainda assim, logicamente vai utilizar os elementos do happening, bem como os da dança, do vídeo, da TV e do teatro, mas os reprocessará de forma mais elaborada através da fusão desses elementos (mecanismos intermídia), para criar uma comunicação e uma interação diferenciadas com a platéia – menos espontânea e um pouco mais distanciada. É importante destacar que a comunicação estabelecida pela performance em nenhum momento retorna à representação. Ao contrário, ao funcionar como um composto de “artecorpo-comunicação”, a performance o faz em detrimento de uma compreensibilidade linear e de uma significação que se estabelece no nível da limitação dos códigos. Cria, com isso, a possibilidade daquilo que René Berger, em suas pesquisas sobre as relações entre arte e comunicação, chamou de funcionamento da linguagem ao nível da comunicação “artística”. Nesta, a mensagem “não seria um dado e não estaria constituída nem no ato da emissão, nem da transmissão, nem finalmente na recepção, mas se consubstanciaria no próprio ato de comunicar” (BERGER, 1977:132). Tal concepção da comunicação a desloca necessariamente da noção de “transmissão” – que não raro a banaliza e a reduz aos processos midiáticos – para a noção de processo, da comunicação como ato instaurador, criador, portanto, de outras possibilidades de realidade. A mensagem artística introduziria no-

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vidades em todos os momentos da comunicação e apresentaria novas invenções toda vez que a comunicação operasse. Essa era é proposta da performance. Um exemplo de como se processaria essa comunicação poético-processual são os trabalhos do americano Robert Wilson, analisados por Luiz Galizia. Para Galizia (1986:87), Wilson “liberaria os ritmos da comunicação” através de seu “teatro de imagens”, ao demonstrar que o que importa para o artista é o processo de experimentação com a linguagem e com a criatividade que a performance deflagra dentro e fora de cena, como processo e não como produto final. O trabalho de Wilson caracteriza-se por uma qualidade “não-emocional”, se considerarmos a emoção sob um ponto de vista mais brechtiano (distanciamento) que stanislawskiano (proximidade por identificação). Para Wilson, a emoção se insere numa experiência de outra ordem: gerar interesse pelo que não é conhecido ou familiar e agitar a criatividade do espectador, engajando-o e compelindo-o a produzir “histórias” a partir de nãohistórias e apresentações sem dados factuais. Logo, a história psicológica dos performers é irrelevante. O que importa são as estruturas rítmicas desencadeadas pela performance, que operam em níveis não-racionais (mas nem por isso irracionais), que Wilson considera os “ritmos básicos da comunicação humana”. Segundo ele, haveria um elemento na linguagem que precederia o significado e que tornaria possível a comunicação, uma espécie de “energia”, cerne de seu trabalho. Nesse sentido, a performance, ao utilizar-se de uma linguagem híbrida – formada pela apropriação e justaposição de outras linguagens – e ao basear-se em não-histórias e em não-contextos, provoca no espectador uma recepção que é muito mais sensorial do que racional e funciona exatamente como “um topos de experimentação com a linguagem e com a comunicação”, como afirma Renato Cohen. Na ópera-teatro Einstein on The Beach, caso evocado por Cohen, a música de Philip Glass não é utilizada como marcação para a dança, apesar de ocorrerem simultaneamente; ou seja, a dança não é marcada pela música. Cada elemento cênico do espetáculo tem um valor próprio e um valor na obra total, pro-

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duzindo, em sua integração, uma leitura de maior complexidade sígnica. É possível e necessário então definir nitidamente para a performance dois projetos: um “formalístico” (formato, linguagem) e um “ideológico” (filosófico, político), que se interpenetram a todo instante. Ideologicamente, segundo Cohen, a performance estaria ligada ao movimento da “Não-Arte”, proposta por Kaprow, na medida em que iria contra um profissionalismo e uma “intencionalidade” na arte. Essa “intencionalidade” deve ser compreendida como o esforço de produzir “obras-de-arte” e institucionalizá-las. Kaprow define a “não-arte” como sendo “tudo aquilo que não foi aceito como arte, mas que prendeu a atenção do artista por sua possibilidade de sê-lo. A “não-arte só existiria como algo efêmero, como uma partícula subatômica, ou talvez como um postulado”. Mas não se confundiria com a “antiarte” dadá, que teria sido uma “Não-Arte agressivamente inserida nas artes para desestabilizar valores convencionais e provocar respostas éticas ou estéticas positivas” (KAPROW, 1993:98). Em seu manifesto, Kaprow afirma, por exemplo, que seria difícil deixar de admitir que o diálogo transmitido entre o Centro Espacial de Houston e os astronautas da Apolo II seria melhor que poesia contemporânea, ou que os movimentos aleatórios entrelaçados dos fregueses de um supermercado seriam mais ricos que qualquer dança contemporânea. Nesse sentido, a “não-arte” se aproxima conceitualmente da live art, na medida em que proclama que a própria vida seria arte e superaria tentativas arbitrárias de imitá-la. Dessa forma, o projeto ideológico da performance se compromete com a proposta da live art, da qual faz-se um dos principais representantes a partir dos anos 70. Tanto que Glusberg chama a atenção para o fato de que o termo “performance” apresenta duas conotações: a de uma presença física e a de um espetáculo. Mas o caráter e a função desses elementos já não serão os mesmos daqueles das tradicionais formas de teatro e da dança, nem as da pintura ou da música. Antes, tratam das relações entre corpo e espaço, questionando-as e buscando renovar as próprias práticas artísticas tradicionais. Mas a performance, por toda a trajetória das expressões que

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a antecederam, apresenta fundamentalmente duas outras conotações: a de intervenção e de experimentação. De fato, como expressão artística, pode ser considerada mais uma arte de intervenção do que de fruição, a exemplo do que se fazia nos movimentos surrealista e futurista; uma arte cujo objetivo era causar uma transformação no espectador através da criação de jogos com a percepção, embora não de forma tão radical quanto a body art e o dadá. Sua proposta está muito mais voltada, como vimos, para a instauração de outras formas de percepção da realidade e das formas de expressão. É justamente esse caráter de instauração que a torna nitidamente intencional, o que nos permitiria propor a noção de performance como uma arte de “intervenção”. Ou seja, uma “ação performática”, como se procurou demonstrar no caso da body art e do happening, nunca é gratuita – notadamente no exemplo de Beuys e do próprio nome que o grupo Fluxus dava às suas criações. Trata-se de uma ação consciente de questionamento por meio da arte. Mas, ao mesmo tempo, é possível dizer que, em princípio, a noção de intervenção não definiria inteiramente o caráter do qual está imbuída a performance. Mais do que um simples acting, a performance propõe novas experiências perceptivas e questiona certos aspectos de nosso cotidiano, da comunicação e da cultura, o que também lhe conferiria um caráter de “experimentação” com fins de mudança. A esse respeito, afirma Félix Guattari que a performance teria o mérito de levar ao extremo as percepções e os estados de alma banais, fazendo-nos passar do que estes teriam de mais padronizados a “formas radicalmente mutantes de subjetividade”. Isso porque a performance carregaria “blocos de sensações compostos pelas práticas estéticas aquém do oral, do escritural, do ges­tual, do postural, do plástico... que têm como função desmanchar as significações coladas às percepções triviais e às opiniões, impregnando os sentimentos comuns” (GUATTARI, 1993:114). A performance potencializaria, assim, o instante, engajando-o num processo de “descentramento estético”, em que os componentes de expressão e elementos retirados do cotidiano sofreriam “extrações intensivas” e passariam por uma desconstrução de suas estruturas e códigos para propiciar uma recomposição, uma recriação desses

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elementos. A performance seria, portanto, ao mesmo tempo, um questionamento do natural e uma proposta artística. Nesse contexto, a relação arte-corpo seria encarada como uma relação de enfrentamento, pois através dela se produz o estranhamento do próprio corpo que se vê objetivado através de trocas de identidades, posições e formas imprevistas de ocupação do espaço, gestuações e associações com objetos e com outras pessoas de forma incomum. É esse estranhamento que permite à performance funcionar como operadora de transformações de condicionamentos generalizados e imagens corporais cristalizadas, mesmo que de forma efêmera e localizada. Essas idéias se refletiram em práticas que marcaram a construção de um projeto formalístico e de uma linguagem que, por sua vez, foram também reflexos das preocupações e das lutas da época13. O início dos anos 70, sobretudo, foi marcado pela arte conceitual, que representou um processo de reflexão sobre a arte e o fazer artístico. A arte conceitual procurou “desestetizar” a arte num momento de freqüentes questionamentos sobre o significado e a função da arte frente à sua crescente mercantilização, através do uso recorrente de materiais não-artísticos (lixo, pedaços de madeira e de papel, plásticos e objetos comuns) e do próprio corpo para apresentação em locais alternativos. Como a arte conceitual, a performance representou mais uma experiência de tempo e de espaço do que de produção de objetos de arte; o corpo se converteu num meio de expressão mais direto: daí a importância dos happenings (intervenções rápidas e relativamente simples) e da body art na época, que mais tarde dariam origem à performance como gênero artístico. É interessante observar que arte conceitual e performance mantiveram-se interligadas ao longo dos anos 60 e 70. Em alguns momentos a própria performance parece ter se apropriado de elementos da arte conceitual para fazer seus questionamentos, muitas vezes “conceituais”, e vice-versa, conforme analisa Frazer Ward:

13. Para Cohen (1987:126), o movimento que está por trás do happening é o movimento hipppie, externado pela contracultura. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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A justaposição ajuda a revelar a ambigüidade trazida para a categoria da arte conceitual com elementos da performance, que, por sua vez, torna impensável a visão da performance art como uma resposta corporal a um paradigma lingüístico dentro de um momento particular da história da vanguarda. Antes, algumas manifestações da performance podem ser vistas como tendo desafiado algumas limitações da arte conceitual, particularmente sua noção de racionalidade, através da própria estrutura conceitual. Nesse sentido, arte conceitual e performance estão engajadas numa contínua conversa, que algumas vezes é diálogo, outras vezes, discussão (WARD, 1997:36).

Por isso, em seu mapeamento, Cohen reivindica para o projeto formalístico (formas de apresentação, recursos) da performance um topos de experimentação com a linguagem. Essa experimentação se caracteriza pelo uso da collage como estrutura, pelo predomínio da imagem sobre o texto – que geralmente se apresenta desarticulado, fragmentado – e pela fusão de mídias. Para facilitar sua compreensão, definiremos este topos de experimentação de uma forma que contradiz sua própria natureza – que rejeita rotulações e apreciações estáticas e lineares. Isso, porém, se faz necessário para melhor descrevermos seu funcionamento. Embora a forma de apresentação da performance seja mais credora das idéias vindas das artes plásticas do que do teatro, para compreender seu funcionamento, adotaremos a conceituação de Jacó Guinsburg sobre a “encenação”, que caracteriza a expressão cênica pela tríade “atuante-texto-público”. Nesse caso, será preciso concordar com Cohen quando ele afirma que a performance poderia ser considerada “uma forma de teatro” (COHEN, 1987:35). Para evitar maus entendidos, será preciso entender, a partir da afirmação de Cohen, que a performance seria uma “forma de teatro” enquanto processo que ocorre através de uma mis-en-scène (encenação), mas de forma alguma é vista como uma “derivação do teatro”. Para entendermos melhor a performance como expressão cênica, voltemos à tríade de Guinsburg. Nela, devemos enten54

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der por “atuante” não necessariamente um ser humano (ator/ performer), mas, por exemplo, um boneco, uma tela de vídeo – como nos trabalhos de Laurie Anderson –, ou um simples objeto, como o rádio falante de Guto Lacaz, que pisca enquanto “fala”. “Texto” deve ser entendido num sentido mais amplo, isto é, como um conjunto de signos que podem ser simbólicos (verbais), icônicos (imagéticos) ou indiciais (COHEN, 1987:6) e poderiam ser sombra, ruído, fumaça, figuras delineadas pela luz ou a própria luz. A noção de “público” também passa por uma reformulação, podendo este ser concebido também como “participante” da cena, como pretendia Appia com sua idéia de cena como “sala Catedral do Futuro”, onde não haveria mais espectadores e sim, “atuantes”, no sentido de participantes. Com tudo isso, é a própria concepção de espetáculo que se modifica. Desde a criação do antiteatro de Ionesco – sem ação, sem personagens precisos, com textos cheios de palavras inventadas, gestos gratuitos e cronologia abolida – ao teatro de Beckett – que segue a mesma linha formal, porém marcado pelo tema do absurdo da própria existência, pela ausência de sentido da vida, pela solidão, pela idéia do nada e da morte –, é a própria vida que se apresenta, perturbadora, em seus distintos aspectos, sem retoques ou máscaras. É a própria vida que, ao ser assumida enquanto arte e espetáculo, é literalmente “posta em cena”. Em seu projeto de investigar os condicionamentos sociais e individuais, de expor a vida e o cotidiano, a performance representa um meio privilegiado, embora não único, de viabilizar esses questionamentos. Para tanto, vai lançar mão de recursos expressivos conquistados por outros campos da arte e vai tornar-se ela própria uma expressão artística de convergência, híbrida e descolada de rótulos. E será desse princípio que virá seu potencial criativo. Por essa razão, a performance tem, por natureza, o caráter de fluxo e seria então, antes de qualquer coisa, uma “expressão” cênica e dramática e não rigorosamente uma “arte” cênica. Cohen oferece um exemplo: “um quadro sendo exibido para uma platéia não caracteriza uma performance; alguém pintando esse quadro, ao vivo, já poderia caracterizá-la”. De fato,

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o que teremos com a performance será uma ação apresentada ao vivo14 para um determinado público, com alguma ‘coisa’ (atuante) significando algo (no sentido de gerar outros signos), mesmo que esta ‘coisa’ seja um objeto ou um animal, como o coiote de Beuys.15 Essa “coisa”, ao significar algo e ao alterar dinamicamente seus significados, comporia o “texto” (situação, discurso ou seus fragmentos), que, juntamente com o atuante (“a coisa”) e o público, constituiria a relação triádica definidora da encenação formulada por Guinsburg.

Performance e a linguagem-collage Como “expressão cênica”, a performance ocorre sob a forma de espetáculo com uma infinidade de variações. Pode se dar com atuações “solo” ou em grupo, embora prepondere o individual; pode ser apresentada apenas uma vez ou várias, dependendo do tipo da proposta; pode ocorrer em ruas, parques, edifícios, espaços abandonados como fábricas e galpões; pode eliminar o texto ou valorizar fragmentos desconexos de frases que mantenham uma coerência interna apenas com a cena que se desenrola; pode, finalmente, se centrar mais na figura do performer, que então verticalizará o processo da encenação e transformará a si mesmo e o processo de encenação em obra; ou ainda pode “diluir” sua presença em meio a outros elementos cênicos, tais como a iluminação, a sonoplastia e a cenografia, que é um procedimento típico de artistas como Laurie Anderson. É através da apropriação e da justaposição de outras linguagens que a performance construiria para si um estatuto “próprio”. Se, por um lado, o performer é ao mesmo tempo criador e intérprete de sua obra, por outro, nem sempre é único em 14. A noção de “ao vivo” será um dos principais elementos que mudaria na performance a partir dos anos 80 e 90, sobretudo com a incorporação da tecnologia, fato bastante característico dos trabalhos de Laurie Anderson. 15. “Coyote: I like America and America likes me” foi uma “performance” que Beuys realizou quando chegou aos Estados Unidos vindo da Alemanha, logo que desembarcou no aeroporto John Kennedy, em Nova Iorque. Enrolado dos pés à cabeça num feltro, Beuys é levado de ambulância ao local deserto onde conviverá isoladamente com um coiote, com o qual interagirá por sete dias. 56

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cena. Há uma série de elementos como a iluminação, a sonoplastia, a cenografia, além de outras formas expressivas como a dança, a música, o vídeo, as esculturas e as instalações, que também podem integrar o espetáculo, como nas performances de Anderson. Ora, essa habilidade de dialogar com os diferentes elementos que constituem uma nova cena remete sobretudo a uma questão de linguagem e de jogos com a linguagem. Desde Craig, Artaud e Brecht, nas artes cênicas, passando pelo dadá e o surrealismo, nas artes plásticas, a linguagem e a comunicação já eram objeto de grandes questionamentos, sobretudo pela crise sofrida pela representação. Se cada vez menos as artes moderna e contemporânea se permitiriam prender e fixar a fórmulas previsíveis e redutoras, seria preciso inovar na linguagem que se dispõe a apresentar uma realidade fugidia e fragmentada que assume seu estado de vertigem. Não raro, a pesquisa de novas linguagens e de formas expressivas nasce ou da negação de experiências precedentes, e/ou da exaustão destas e/ou da reconfiguração interna de elementos já existentes em outras linguagens. Com a performance não foi diferente. Expressão artística híbrida por natureza, a performance não surge rigorosamente por negação ou exaustão, mas por expansão, por experimentos com a mescla e com o excesso. Como linguagem, vai resultar de uma verdadeira catálise que incorpora elementos das artes plásticas (o imagético e a collage), do teatro (a cenografia, a iluminação, os jogos de apresentação, dentro da tríade guinsburgiana), da dança (o movimento, os ritmos e os tempos do corpo), da música (a capacidade de atingir os sentidos por uma materialidade sonora). A performance como forma de expressão artística é também uma tentativa de produzir uma linguagem que não se torne barreira para uma comunicação poética, que não se limite ou reduza à manipulação de seus códigos para alcançar uma inteligibilidade “pura” ou à busca da mera transmissibilidade. Falamos de uma comunicação em que a mensagem não corresponderia, como afirma René Berger, a uma significação necessariamente preestabelecida. Lidamos aqui com uma co-

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municação que se produz “num permanente estado de tensão entre a forma e a fórmula, entre a mensagem que é ativada na fonte e a imagem estabilizada que é seu produto (...)” (BERGER, 1977:124) e cujo fluxo, no contexto de uma comunicação pragmática, é obstruída por uma necessidade permanente de previsibilidade e controle. Nessa concepção de comunicação, vislumbra-se a possibilidade de um novo arranjo entre os signos, arranjo este que é dado para cada novo olhar promover. Trata-se de uma comunicação cuja produção de sentido não é dada a priori, segundo uma regra esperada de decodificação, e que necessita, portanto, de outro olhar para instaurar-se (e não para gerar significados definidos): o sentido só se constituiria no arranjo que o outro olhar estabelece no momento do encontro entre olhar e mensagem. A produção de sentido é aí condicional sem ser, contudo, condicionada. Trata-se, finalmente, como sugere Berger, de uma mensagem que questiona o próprio circuito de comunicação. No caso da performance, é o princípio da mescla e da collage, característico de sua linguagem, que irá promover esse exercício de intensificação da expressão e que buscará viabilizar a expressão do indizível. O que caracteriza a collage é uma linguagem de justaposição de textos e imagens que necessariamente não fazem parte de um mesmo sistema de referência ou de um mesmo tipo de fonte e que aparentemente não têm nenhuma conexão interna. Não por acaso, Chénieux-Gendron demonstra a filiação da collage com toda uma discussão dos surrealistas acerca da linguagem e da poesia na década de 30, especialmente na França. Para André Breton, a imagem – no sentido da figuração alegórica do texto – e seus jogos com as formas codificadas da linguagem criariam sentido e, portanto, fariam um trabalho “puramente sintático”, que lhe conferiria uma função poética (CHÉNIEUXGENDRON, 1992:76). Nas artes visuais, será a collage o campo em que essas reflexões sobre a linguagem teriam lugar. Em sua proposta de releitura, a collage reúne imagens que na realidade cotidiana jamais estariam juntas. Como exemplo, temos as gravuras que retratam mundos impossíveis, no rea-

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lismo fantástico de Escher ou de Magritte, em cuja obra – decisivamente influente nas obras de Robert Wilson, no teatro, e de Pina Bausch, na dança – vemos uma tentativa de “liberar os objetos de suas funções ordinárias, alterar as propriedades originais dos objetos, mudar a escala e a posição dos objetos, organizar encontros fortuitos, desdobrar imagens, criar paradoxos visuais, associar duas experiências visuais que não podem ocorrer juntas” (TORCZYNER apud COHEN, 1987:42). Daí a collage ser considerada por Cohen um “ato entrópico e lúdico”. Ela brinca com antinomias ao mesmo tempo em que causa um estranhamento, que tem pelo menos duas funções: a de destacar um objeto de seu contexto original e forçar uma melhor observação, a exemplo do que fazia Brecht no teatro; e a segunda, mais próxima dos surrealistas e, portanto, das artes plásticas, que é a de criar novas utilizações para o objeto em destaque, além da função que lhe foi inicialmente atribuída. Ao recriar imagens e objetos, o artista o faz por insatisfação com o “atual”, no sentido deleuziano, e busca sempre instaurar um outro possível para a realidade (o real). O artista nunca toma a realidade como definitiva. Visa, através de um processo de elaboração onírica, chegar a outra realidade que não pertence ao cotidiano, mas que existe como um “virtual”,16 que pede para ser efetuado. Portanto, o uso da collage na performance reforça aquilo que Cohen considerou o uso de uma linguagem “mais gerativa que normativa”, tanto no nível do verbal, quanto do imagético. O trabalho com o fragmento faz-nos entrar em outro discurso que estaria mais próximo da livre-associação, o que implica, por sua vez, a importância do “colador”, no caso, o encenador, que passa a ser o elemento preponderante no processo da concepção e da execução de uma performance, o que fica muito claro em trabalhos do Wooster Group, Robert Wilson e também de Anderson.

16. O termo “virtual” é empregado aqui no sentido deleuziano, isto é, de um real que existe de forma “latente”, mas que pode ser efetivado ou “atualizado” a qualquer instante. O “atual” seria um real já efetivado, que seria, porém, passível de ser alterado. É apenas uma faceta possível da realidade. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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É o princípio de collage que permite à performance estabelecer uma relação diferenciada com os elementos cênicos que compõem um espetáculo. Seu projeto formalístico privilegia a forma em detrimento do conteúdo e da linha narrativa. Nele, os elementos cênicos não têm uma clara preponderância entre si, o que vai depender da necessidade de uma cena ou do efeito que ela exija. Nem mesmo o performer será sempre essencial. Em alguns casos, pode ser tão importante quanto um boneco ou um vídeo, um ruído ou um jogo de iluminação que produz sombras e objetos imagéticos que são os próprios atuantes de uma cena. Num espetáculo de performance, um cenário pode ganhar o status de texto paisagístico, como os environments de Kaprow, da mesma forma como o texto pode ser utilizado não por seu aspecto narrativo, mas por sua sonoridade, ou então pode ser simplesmente eliminado (pensemos no Teatro Essencial de Denise Stoklos, em sua fase puramente gestual). O rompimento com a cena convencional, de inspiração aristotélica (espetáculo com “início-meio-e-fim”), não elide, contudo, sua carga dramática. Ao contrário, fornece à performance uma ferramenta privilegiada, enquanto forma de expressão, para materializar disposições interiores, aspectos da imaginação que explodem em cena aparentemente de forma “irracional”, mas que são coerentes com o estado de vertigem em que muitas vezes essas disposições e as situações imaginativas se produzem. Daí Cohen atribuir à performance a característica de um “drama abstrato”: A eliminação de um discurso mais racional e a utilização mais elaborada de signos fazem com que o espetáculo de performance tenha uma leitura que é antes de tudo uma leitura emocional. Muitas vezes o espectador não “entende” (porque a emissão é cifrada), mas “sente” o que está acontecendo. Na performance, a intenção vai passar do What para o How. Ao se romper o discurso narrativo, a história passa a não interessar tanto, e sim “aquilo”que está sendo feito (COHEN, 1987:49).

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Com isso, fica evidente a característica da performance em operar uma comunicação que se faz no instante. A performance constrói, por meio de sua linguagem-collage, uma relação muito particular com o tempo e com os arranjos que este pode oferecer com os signos que ela materializa. Há intervenções que podem durar alguns minutos, outras podem durar várias horas, como as óperas-teatro de Wilson e algumas apresentações de Laurie Anderson, para quem, aliás, a linguagem-collage desempenha um importante papel, permitindo-lhe criar uma verdadeira rede sígnica, que ela articula com o objetivo de produzir suas narrativas descontínuas e fragmentadas, por meio de histórias, músicas, imagens e sonoridades mediadas pela tecnologia. Mas há também intervenções que não se repetem mais que uma vez. Outras já são passíveis de serem reapresentadas, porém sempre com variações. Há, finalmente, performances que são concebidas para serem apresentadas apenas em certos lugares e apenas por certos performers, respectivamente, por suas qualidades geográficas ou corporais intrínsecas. O tempo perde em cronologia para ganhar em intensidade. Expressão típica dos anos 70 e herdeira direta dos ideais libertários dos anos 60, a performance nasce na fronteira de diversas artes e vai se caracterizar, nesse momento, como uma forma híbrida de expressão dotada de grande mobilidade e capacidade de auto-reciclagem. Contudo, a partir do final dos anos 70, a performance passa a se aliar a outros elementos e a produzir outros tipos de proposta. A crise dos modelos estético-ideológicos que a inspiravam, em meio a profundas mudanças sociais e econômicas, faria emergir um novo cenário cultural, marcado pela forte presença da mídia e do mercado como instâncias modelizadoras da vida social. Apesar disso, a performance não deixaria de funcionar como um topos de experimentação com a linguagem e a comunicação. Como veremos a seguir, é desse conjunto de mudanças que se formariam outras condições de possibilidade para o surgimento dos trabalhos de performance de Laurie Anderson.

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2. A Cena Contemporânea e as Mutações da Performance

Os anos 70 e a “morte” da arte Caracterizados por um espírito de experimentação no campo das artes e de uma grande contestação político-ideológica, os anos 60 foram marcados por ondas de resistência ao sistema, dentre as quais se destacam o movimento hippie e a contracultura. Quando a década termina, porém, há uma nítida sensação de esgotamento desse espírito contestador, o que se reflete nos rumos tomados pelas artes, sobretudo nos anos 70, que seriam um período de transição. Esse período assistiu também o surgimento de uma nova direção para a performance e suas pesquisas de linguagem. Os anos 70 já não apresentavam o mesmo espontaneísmo radical da década anterior. Contudo, nessa época, muitos artistas ainda se voltavam contra os modelos vigentes da arte e tentavam redefinir seu significado e sua função. A galeria – como espaço tradicional de circulação das idéias artísticas – foi atacada como “instituição do mercantilismo” e muitos artistas passaram a creditar um cunho investigativo às suas intenções de fazer arte. Segundo Goldberg, essas mudanças levaram a uma redefinição do conceito de obra: “o objeto de arte chegou a ser considerado como supérfluo dentro desta estética e a noção de ‘arte conceitual’ foi formulada como uma arte ‘cujo material são os conceitos’” (GOLDBERG, 1996:152).

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A materialidade icônica do objeto de arte – levada ao extremo pela pop art – gerou por parte de muitos artistas um sentimento de recusa à obra de arte como produto ou mero objeto para o mercado. Se o objeto de arte parecia fadado a ser vendido, a arte conceitual tentaria desviá-lo desse destino. Mesmo que as circunstâncias fizessem disso um sonho efêmero, os artistas conceituais lutariam por uma arte em que o objeto se tornasse intangível, não deixasse rastros e nem pudesse ser comprado ou vendido. Com isso, torna-se compreensível, no início dos anos 70, a recusa de muitos artistas conceituais e de performance em permitir o registro de seus trabalhos mediante a fotografia, de documentos impressos ou do vídeo. Laurie Anderson foi um desses artistas que optaram, naquele momento, em não documentar seu trabalho. Anderson acreditava que arte constituía mais um processo do que um produto acabado. Seus trabalhos de escultura, instalação e performance nessa fase são considerados por ela mesma como uma discussão sobre tempo e memória, sendo esta última o único meio pelo qual o trabalho poderia ser registrado – na memória dos espectadores, mesmo com suas inevitáveis distorções, associações e elaborações. Nascida nesse contexto de questionamentos, a performance compartilhou a seu turno das idéias conceituais e foi uma das formas de materializar as concepções nascentes ao recusar materiais convencionais e ao usar o corpo como suporte, como explica Goldberg: “porque a arte conceitual implicava antes uma experiência de tempo e espaço, mais do que sua representação na forma de objetos, o corpo converteu-se no meio de expressão mais direto” (1996:152). A esse respeito, Cristina Freire comenta que, para o espectador, a performance era uma visualização da consciência do tempo e que sua recepção era sobretudo “tátil, corporal e manipulatória”. As sensações produzidas nesse contexto não eram, portanto, passíveis de serem reproduzidas em imagens fotográficas ou nos vídeos. De fato, uma vez registradas, as performances tornavam-se outra coisa, uma vez que sua relação com a intensidade do instante era diluída e despotencializada. “Para quem vê a fotografia de uma performance, a aquisição da ima-

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gem se dá como informação e não como experiência”, resume Freire (1999:104). Segundo Goldberg, os quatro anos de auge da arte conceitual (1968-1972) tiveram um enorme efeito sobre a ainda jovem geração de artistas que estava saindo das escolas de arte onde ensinavam os artistas conceituais. A própria Anderson estudou com Sol Lewitt em 1971 – um dos grandes nomes da arte conceitual americana – durante o tempo em que fez seu mestrado em escultura, na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Seus primeiros trabalhos de escultura dessa fase eram francamente conceituais. Contudo, a partir dos anos 70, Goldberg afirma ser possível perceber um nítido arrefecimento desse espírito contestatório na sociedade americana e também nas artes: “em 1972, as questões fundamentais propostas já haviam sido absorvidas, mas o entusiasmo pela mudança radical e pela emancipação das minorias havia sido consideravelmente acalmado” (GOLDBERG, 1996:154). As crises financeira e energética teriam também sido fatores decisivos para uma mudança nos estilos de vida americanos, o que repercutiu severamente no mundo das artes. Em tempos de crise, a arte de vanguarda e as especulações conceituais começaram a ser consideradas um luxo insustentável e até desnecessário. Howard Smagula comenta, a esse respeito, que à medida que a economia se viu às voltas com várias restrições, as pessoas tiveram que encarar o desafio de “fazer mais com menos”. O público passou a “desconfiar do significado, da efetividade e do valor de obras de arte que pareciam funcionar como um vácuo auto-reflexivo” (SMAGULA, 1989:215). Segundo o autor, começou-se a freqüentar menos o teatro e a assistir mais televisão, passando-se a redirecionar as preferências para os produtos da indústria do entretenimento e para as artes decorativas. É assim que vemos a galeria, antes tão rechaçada, voltar a ser considerada uma saída conveniente para a circulação das produções artísticas. A performance refletiu essas mudanças, abandonando, aos poucos, as abstrações e os hermetismos próprios da “celebração” conceitual, passando a tornar-se

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“mais elegante, chamativa e divertida”, como indica Goldberg (1996:156). É quando vai associar-se aos meios de comunicação, começando a ser um gênero artístico reconhecido e aceito nos meios oficiais de arte, como veremos mais adiante. De fato, as pesquisas de linguagem com o corpo, típicas do happening, da body art e do início da performance começam a dar sinais de cansaço. Como arte de fronteira, a performance sempre percorreu caminhos que visavam eliminar ao máximo a redundância e exigia de seus praticantes um altíssimo grau de criatividade e reciclagem, o que, com o tempo, foi se tornando difícil de sustentar, gerando uma falta de adesão a esse projeto. Por outro lado, com a consolidação dos meios de comunicação de massa, o corpo adquire outro estatuto. Em vez de constituir um espaço para experimentação, o corpo começa a ser construído como objeto de consumo. Ora, do happening dos anos 60 para a performance dos fins dos anos 70 percebe-se uma nítida diferença de proposta artística. Sobrevive a característica da collage, a preponderância da imagem sobre a palavra, a fusão de mídias (teatro, dança e música). Mas a espontaneidade radical pouco a pouco ganha um ar de déjà vu e cede espaço à criação de trabalhos que vão sofrer uma cristalização maior e dificultar os improvisos durante as apresentações, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Para Cohen, isso decorre “tanto da necessidade de passar signos mais elaborados que demandam um maior rigor formal, quanto do desejo dos artistas de produzir uma obra mais delineada, menos bruta” (COHEN, 1987:129) e que tivesse maior visibilidade pelo público. Essas produções marcam um período de grandes mudanças para a performance, que se complexifica e perde em espontaneidade. Perde-se de certa forma o frescor de acontecimento, mas a proposta non sense continua predominando e sugerindo releituras do mundo. Essas mudanças parecem ser o reflexo do movimento que Goldberg definiu como o “deslocamento da vanguarda para a cultura de massa” (GOLDBERG, 1996:189). Nesse deslocamento, as produções de performance passaram a ficar mais sofisticadas, com um apelo mais midiático, próprio do universo do lazer e do entretenimento de massa.

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Verifica-se aí uma certa dubiedade que iria durar muito tempo. Ao entrar no território da cultura de massa, a performance começaria a ser encarada em muitos momentos como espetáculo comercial. É preciso, contudo, ver, no abandono dos ideais libertários dos anos 60 das idéias conceituais e nas mudanças da performance, não uma simples mudança na mentalidade dos artistas, e sim uma alteração no próprio estatuto da arte e no seu funcionamento. Com as mudanças por que vinha passando a sociedade americana, parece ter havido a consolidação dos processos de mercantilização da arte e, conseqüentemente, uma redefinição de proposta artística. Os anos 60 produzem um modelo de expressão revolucionário, de ruptura, e, portanto, de feição modernista (as experiências radicais com o corpo, as apresentações em lugares alternativos, a desmaterialização do objeto de arte etc). Já os anos 70 e 80 vão passar a oferecer modos de expressão descomprometidos com uma necessidade de romper com padrões considerados dominantes e com o engajamento ideológico. Abre-se, assim, o caminho para uma arte que vai previlegiar cada vez mais um compromisso com a arte enquanto processo criativo que faz conexões com questões do cotidiano, do corpo, da comunicação e da tecnologia, por exemplo, o que não implica necessariamente que se trate de uma arte “apolítica”. Apenas muda aí a noção de “político” e esse elemento deixa de ser o que define a experiência própria da arte, como nos anos 60. Essas mudanças nos ajudam, assim, a compreender os rumos tomados pela performance nesse período, sobretudo sua ligação com a cultura de massa. Por outro lado, essa ligação – vista por alguns artistas como algo inevitável e por vezes desejável – foi um dos fatos que tornou possível o surgimento de outros tipos de experimentação no âmbito da própria performance. Discursos e práticas presentes nessa nova configuração cultural não mais seriam recusados de imediato ou “transgredidos”, antes, seriam apropriados, reprocessados e resignificados. É também por meio dessa mudança que podemos compreender o surgimento de novos artistas que deixaram de lado o hermetismo formalístico da vanguarda para incorporar elementos

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presentes no cotidiano, nos meios de comunicação e na cultura de massa em seus trabalhos, não raro para realizar uma crítica a esses mesmos elementos, dentre os quais se encontram Wooster Group e Laurie Anderson. Uma série de movimentos na arte já indicava de alguma forma essas mudanças, que levariam ao surgimento do que hoje conhecemos como “arte contemporânea”. Identificadas por muitos como sintomas inequívocos da “morte da arte”, essas e outras transformações, contudo, parecem indicar, de forma mais ampla, menos um beco sem saída e mais o abandono de um tipo de experiência que caracterizou historicamente os movimentos artísticos conhecidos no ocidente. É o que afirma Arthur Danto, ao constatar a “morte” da arte enquanto término de um relato majoritário e unificado sobre a experiência artística e ao propor-nos pensar uma “arte depois do fim da arte” (DANTO, 2003:27). Para Danto, essa morte começa, na verdade, com a arte moderna, que, dotada da consciência de uma certa descontinuidade, vai romper com os cânones da arte clássica por meio da aposta na crise dos modelos de representação. Na segunda metade do século XX, as grandes narrativas sobre o mundo, o homem e a sociedade definitivamente se esfacelam e a história deixa de ser centrada num relato oficial e passa a ser contada “em migalhas”, como sugere François Dosse (2003). A década de 1980 é considerada por Danto justamente como marco de percepção dessas crises, onde se localiza a “morte da arte”. O fim da arte significa, em parte, “uma legitimação do que havia permanecido para além de seus limites”. O que morre então não é a arte em si, mas sua identificação com um relato oficial e uma experiência de arte que produz objetos auráticos concebidos para serem contemplados. Seria, afinal, necessário pensar a arte como uma atitude que busca efetivar no presente outras formas possíveis de sensibilidade e de vida em sociedade. Com isso, seria possível reconhecer que muitas práticas artísticas das décadas seguintes e mesmo da atualidade tiveram e têm essa atitude. Essas tentativas de instaurar outras possibilidades para a arte produziram, mesmo que de forma isolada e efêmera, interessantes exercícios de criação.

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É curioso perceber que esse espírito de experimentação nasce do interior das artes dos anos 70 e 80, quando a cultura de massa já estava plenamente consolidada nos Estados Unidos e a mercantilização da cultura parecia ter se tornado a regra. Ou seja, mesmo em meio à tendência dominante de tudo querer transformar em mercadoria, muitos artistas continuaram a estranhar o que estava estabelecido e a explorar novas conexões entre suportes, linguagens artísticas e questões da cultura e da sociedade. O resultado, mais uma vez, foi a produção de trabalhos que desafiavam definições fáceis e, ao mesmo tempo, produziam fraturas naquilo que era comumente reconhecido como teatro, dança etc.17 Essa seria a tônica do experimentalismo que se verificou no teatro, na dança e no vídeo, nos anos 70 e 80. Ao mesmo tempo, esse experimentalismo teve o poder de revitalizar essas artes e de provocar nelas um movimento diferente das tendências que imperavam na época. O interessante é que parte dessa experimentação viria da incorporação das técnicas e da linguagem da performance. Como mostra Vanden Heuvel, o experimentalismo do teatro dos anos 70 e 80 deve muito à proposta formalística da performance. Ao analisar a dinâmica que se estabelece entre teatro e performance naquele período, Vanden Heuvel afirma que o teatro “toma emprestado alguns elementos da performance para revitalizar suas estruturas”. A rarefação do texto, a narrativa não-linear, o privilégio da forma em detrimento do conteúdo, o potencial da presença são elementos típicos da linguagem performática. Já a performance migra para locais fechados e passa a admitir elementos mais “teatrais” em suas composições, como o texto, os recursos de iluminação e de sonoplastia. Do cruzamento dessas referências surge aquilo que Heuvel chamou de um “novo híbrido” – por seu aspecto de mescla. Nesse híbrido, o autor reconhece um aspecto interessante: “tal 17. A diferença parece ser que, no início do século, essas experimentações questionavam radicalmente condicionamentos estéticos, instituições e modos de vida. Nos anos 60, o radicalismo teve um cunho nitidamente político-ideológico e, nos anos 70 e 80, abriu-se mão do radicalismo e do engajamento político para se fazer um questionamento mais individualista que coletivo. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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interface entre os paradigmas da performance e do drama no teatro contemporâneo não necessita ser construída de forma conflituosa, com uma solução antecipada ou uma síntese determinista, mas como um permanente processo” (VANDEN HEUVEL, 1991:20). Há, assim, uma espécie de acúmulo, uma justaposição dessas referências nesses novos trabalhos, que passam a realizar a fusão de uma ou mais formas de expressão artísticas. Esse procedimento – típico da performance – resultou, sobretudo nos Estados Unidos, numa série de trabalhos chamados de “intermídia” (teatro com performance, teatro com dança, vídeo com performance, ópera com teatro, teatro com vídeo etc). No mesmo período, seria a vez da dança usar as referências do teatro, da performance e da arquitetura para realizar o que ficou conhecido como teatro-dança. Nos Estados Unidos, Trisha Brown, Yvonne Rainer, Meredith Monk, Lucinda Childs e diversos coreógrafos aproveitam a explosão do espaço e da noção de espetáculo do teatro para elaborar complexas produções, muito próximas de uma linguagem cênica e arquitetônica. Inspirada pela arte conceitual, Yvonne Rainer vai tentar “zerar” o vocabulário da dança, rompendo com suas referências clássicas ao criar a dança-movimento minimalista. Seguindo os questionamentos sobre o movimento, porém de forma um pouco menos abstrata, Trisha Brown vai descadenciar a seqüência coreográfica, usando músicas não relativas aos movimentos observados ou mesmo suprimindo a música enquanto dança. Lucinda Childs explora a arquitetura do espaço como referência para os ritmos do corpo. Com Meredith Monk, vemos o retorno do uso contínuo da sonoridade através de usos inusitados da voz, que funcionam como marcadores rítmicos para os dançarinos. Suas óperas-dança-teatro, como chamava, tinham como narrativa exatamente essas sonoridades estranhas e movimentos repetitivos do corpo. Já na Europa, o dança-teatro de Pina Bausch é um exemplo mais conhecido das experimentações na dança, ao menos no Brasil. Segundo Ciane Fernandes, seu processo criativo baseiase numa técnica muito comum na performance, a repetição, que é usada como forma de desarranjar as construções gestuais­

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da técnica e da própria sociedade e “torna-se instrumento criativo por meio do qual os dançarinos reconstroem, desestabilizam e transformam suas próprias histórias como corpos estéticos e sociais” (FERNANDES, 2000:42). Dentro dessa experiência de trabalhos de dança intermídia, verdadeiros híbridos, fortalece-se a noção da dança como puro movimento e o uso de gestos cotidianos nos espetáculos, surgidos com Merce Cunningham (anos 50 e 60). Desenvolvidos por Trisha Brown e Lucinda Childs (anos 60 e 70), esses elementos teriam grande influência sobre a dança contemporânea. Exemplos disso são, mais uma vez, os espetáculos de Pina Bausch, que costumam levar aos palcos movimentos comuns, como caminhar e conversar, além de utilizar terno e gravata, vestidos longos e salto alto. Também o vídeo participa desse processo de experimentação, iniciado nos anos 60. Antecipando uma tendência que viria a se consolidar na segunda metade dos anos 70, artistas como Nam June Paik, Vito Acconci, Bruce Nauman, Joan Jonas e Bill Viola, entre tantos outros, utilizaram no vídeo a técnica da collage própria da performance para expandir suas possibilidades. Vemos, ainda no início dos anos 70, a criação das primeiras videoinstalações (Paik e Viola) e videoperformances (Acconci, Jones, Nauman), em que a imagem se desreferencializa oferecendo-se para ser manipulada de forma criativa pelos artistas. Esse fenômeno indicava a tendência de popularização do uso da tecnologia nas artes, que influenciaria, por sua vez, os rumos da própria performance. De fato, a simplicidade dos recursos do corpo do performer, marca das apresentações dos anos 60, cede, aos poucos, a uma literal “tecnologização” da cena artística, com o uso de equipamentos eletrônicos e recursos como a televisão e o vídeo. Esse uso possibilitou a muitos artistas uma mudança de proposta criativa. Alguns, em vez de tomarem a tecnologia e os meios de comunicação como uma resposta à tendência dominante de objetificação da performance, passaram, conscientes ou inconscientemente, a reforçar essa objetificação. Em pouco tempo, o uso sistemático da tecnologia nas performances abriria espaço para a produção de criações com um

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formato que facilitava tanto qualidades inéditas em termos de criação quanto sua banalização. O risco de que as performances se tornassem meros shows para entretenimento – o que em muitos casos de fato ocorreu – fez com que se temesse a perda total do espírito contestador dos anos anteriores. O fato é que, principalmente a partir dos anos 80, muitos artistas deixaram de lado as preocupações formalísticas e conceituais para tentar um lugar no show bizz, criando talk shows televisivos, como foi o caso de Spalding Gray. Diante desses fatos, Josette Féral, pesquisadora canadense da performance, chega a escrever em 1992 um artigo em que se pergunta o que teria restado da performance, ao afirmar que esta teria deixado de ser uma forma de expressão artística e uma função (contestadora) para se tornar um gênero artístico dentre outros, com distintas funções. Alguns fatos parecem confirmar a hipótese de Féral. Ao entrar nos anos 80, pode-se constatar que a performance passou a contar com variadas formas de apresentação e distintos funcionamentos, dependendo do tipo de proposta do artista. Nesse novo campo de forças, a performance poderia tanto estar agenciada com a criação transformadora – quando continuaria a catalisar os elementos de seu tempo para promover sua releitura –, quanto com a banalização – quando o uso da mídia e da tecnologia é apenas um fim em si mesmo, pura espetacularidade. Nesse caso, a performance torna-se um “gênero próprio para o consumo”. Mas, quando é agente criador, traça um outro caminho em plena era de consumo midiático e não deixa de desafiar os rótulos e as fáceis definições que eram aplicadas às suas manifestações. Confirmando essas tendências, Howard Smagula, ao analisar o desenvolvimento das artes visuais nos anos 80, na parte dedicada ao vídeo e à performance, afirma que, nesse período, as artes de cunho abstrato e hermético começaram a ser consideradas coisa do passado. Smagula observa um retorno do gosto pela arte decorativa e o restabelecimento da tendência da arte como mercadoria. Diante da “iminência sinistra do mercado” na cena artística e da suposta obsoletização das formas artísticas questionadoras, Smagula, vai afirmar que

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isso não significa, porém, que expressões artísticas desafiadoras como a performance e o vídeo não são mais válidas. É provável que esses modos de expressão mudarão e responderão às contingências e à dinâmica da vida contemporânea de um jeito novo e positivo. Já há sinais de que isso esteja acontecendo no trabalho de uma nova geração de artistas midiáticos (SMAGULA, 1989:215).

Embora realmente muitos artistas, incluindo Laurie Anderson, fossem criar respostas consistentes às tendências de mercantilização observadas por Smagula na performance e nas artes visuais, esse processo de mudança imputaria grandes transformações à performance. É o início daquilo que, nos anos 80, muitos estudiosos passaram a chamar de “performance pós-moderna”, uma prática que estilisticamente deriva de formas mediadas e que seria ao mesmo tempo “um produto e uma resposta à mediatização da cultura” (AUSLANDER, 1992:50). Um dos principais efeitos desse processo de mediação na performance será a mudança nas concepções e nas formas de apresentação da presença do artista, que passa a ser afetada freqüentemente pelo uso da mediação. Nos Estados Unidos, o fim da contracultura, a crise da arte conceitual e o uso da mídia e da tecnologia nas artes tiveram grande influência na formulação de novas concepções da performance, que teve seu acesso franqueado às tendências da mainstream e da cultura de massa. Esse movimento teve como principal resultado uma mudança nas noções de corpo e presença, mudança que foi sendo destilada sob complexas operações. Essa mudança já vinha sendo sinalizada por meio de um interessante fenômeno, o da coexistência de estilos e formas artísticas como a arte conceitual e a pop art. A partir das mudanças econômicas e culturais na passagem dos anos 60 para os 70, houve um movimento, por parte de muitos artistas, em aceitar e se engajar numa arte que refletia os valores de uma cultura de massa que se consolidava longe dos hermetismos e formalismos estéticos das vanguardas. Essa coexistência dá margem a interessantes questionamentos.

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Para alguns estudiosos, a pop art foi a submissão total da arte aos ditames da sociedade de consumo, uma arte que expressava os valores de uma “sociedade do espetáculo”, para usar o termo empregado por Guy Debord. Para outros, como Marco Livinston, representou uma crítica irônica a esses mesmos valores. Livinston acredita que os métodos dos “novos realistas” se fundamentavam no desenvolvimento da noção do readymade duchampiano, segundo a qual “um objeto de série pode tornar-se obra de arte em virtude de uma mudança de contexto e de intenção”. Ele afirma: os objetos, seja de segunda mão ou comprados novos, são então apreciados ao mesmo tempo por sua imagem e por suas conotações culturais específicas. Eles são encarregados de manifestar os valores materialistas da sociedade de consumo do pós-guerra e sua bulemia de objetos estimulados pelas indústrias, cuja prosperidade está ligada à natureza perecível dos produtos fabricados (LIVINSTON, 1990:54).

Se considerarmos a perspectiva de Livinston, seria possível ver na pop art dos anos 6018 – e em seu desenvolvimento nas décadas seguintes – o começo de uma associação muito peculiar entre arte e os meios de comunicação, que, independentemente de ser considerada uma crítica cultural ou um casamento com a banalidade, gerou uma série de questionamentos acerca do status da arte e do papel do artista naquele momento. A arte conceitual do final dos anos 60 e começo dos anos 70, como vimos, foi nitidamente uma resposta à concepção da arte como “produto”. Porém, muitos artistas, já a partir da segunda metade dos anos 70, passaram a considerar os questionamentos conceituais uma “cerebração excessiva”, sendo este um dos fatores que teria, segundo Goldberg, gerado o desejo de retorno às condições mais “materiais” de produção artística. É 18. É interessante observar que a pop art, com toda sua iconografia midiática inspirada em cartazes e anúncios publicitários e em produtos em série, foi contemporânea da contracultura, do happening e até da body art, o que evidencia o estado de efervescência cultural deste período, que oferecia elementos bastante heterogêneos, com os quais a arte se agenciava. 74

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interessante observar que, em muitos casos, o ponto de partida para esse retorno foi precisamente o uso da tecnologia. Embora a conexão entre arte e tecnologia já tivesse sido experimentada no começo do século pelos futuristas e surrealistas e, sobretudo, pela Bauhaus, o período da pop art e da arte conceitual deu a esta relação uma grande ambigüidade. Os movimentos de vanguarda utilizaram dispositivos como a fotografia e filme na arte para promover outras leituras do mundo e romper com condicionamentos estéticos e culturais. Já os anos 60 e 70, ao desenrolarem-se sob a égide dos meios de comunicação de massa, produziriam tanto uma arte de resistência quanto uma arte com vocação para ser mercadoria. A coexistência de uma “arte-mercadoria” e de uma arte de idéias que recusava ser comprada ou vendida demonstrava que os movimentos artísticos se desenvolviam sempre longe de uma unanimidade e que havia toda uma dinâmica de redefinições, insistências e novas experimentações no campo das artes. Foi precisamente essa dinâmica que permitiu o desenvolvimento dessa articulação ambígua entre arte e tecnologia, influenciada principalmente pela presença da televisão. O apelo da imagem televisiva e da publicidade, seu discurso fragmentado e o formato espetacular que passou a fazer parte do cotidiano inspiraram muitos artistas da época, que, dependendo do caso, apostaram na banalidade ou na apropriação desses elementos para fazer outra coisa. Efetivamente, fatores como o desenvolvimento dos meios de comunicação, certas expressões da pop art19 e a entrada de alguns expoentes da vanguarda para o universo da cultura de massa – fenômeno chamado de crossover por artistas e críticos americanos – tiveram grande influência na guinada por que passou a performance a partir da segunda metade dos anos 70. Essa guinada traduziu-se de forma mais acentuada no questionamento de duas de suas características mais marcantes: a presença imediata e “ao vivo”, como melhor forma de evitar a transformação da arte em mercadoria e a recusa da representação como “operação inautêntica”. 19. Como movimento, a pop art comportou diversas tendências, algumas com características nitidamente “publicitárias” outras que fizeram da serialização uma crítica social. Cf. Livinston (1990) e Richard (1997). FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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A ênfase que a imediatez do “aqui e agora” teve no início da performance fez com que a presença física do performer constituísse um dos principais elementos de sua força. O corpo como signo (GLUSBERG, 1987) ou como arma revolucionária (SCHECHNER, 1968) representou tanto para o happening quanto para a body art uma ferramenta para engajamento e conscientização do público em torno dos valores das vanguardas. Como vimos, fazer arte com o corpo era uma forma de fazer uma arte que se negava a ser transformada em mercadoria (perspectiva da arte conceitual). Daí também a recusa de muitos artistas da época, como Laurie Anderson, em permitir o registro de suas apresentações e trabalhos, pois se tratava de uma arte de processo, cuja essência era incapaz de ser captada pelos mecanismos de reprodução. Com o tempo, porém, a resistência sistemática ao registro foi vencida, até porque trabalhos memoráveis efetivamente perderam-se no tempo e não poderiam, por sua natureza, ser repetidos. Além disso, havia também muita pressão sobre os artistas por parte das galerias e da imprensa para que os trabalhos fossem documentados. Mas o registro documental dos trabalhos de arte não passaria incólume. Em pouco tempo, os próprios artistas se apropriariam dos mecanismos de reprodução para fazer arte. Foi assim que a fotografia, o vídeo e o filme passaram a ser, já em meados dos anos 70, uma forma de documentação desses trabalhos e, ao mesmo tempo, elementos integrantes de um trabalho de arte. Curioso observar que essas experiências com os dispositivos tecnológicos de reprodução da imagem vão se dar no âmbito da arte conceitual. Como observa Phillipe Dubois, citado por Freire (1999:95), “depressa ficou claro que a fotografia, longe de se limitar a ser apenas instrumento de uma reprodução documentária do trabalho, que interviria depois, era de imediato pensamento”. Rapidamente, a imagem fotográfica torna-se, na arte conceitual, um componente da obra, passando a integrar o projeto artístico, sendo muitas vezes considerada um instrumento com o qual as idéias são iniciadas, mais do que gravadas ou ampliadas. Se, por um lado, o registro das performances através da fotografia ou do vídeo impediria a celebração da potência do ins-

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tante, por outro, sua introdução permitiria novas experimentações, através das quais a própria realidade poderia ser colocada em suspeição. Para citar apenas alguns exemplos, temos os próprios trabalhos de cunho autobiográfico de Laurie Anderson, no início dos anos 70, que, longe de se apoiar em qualquer intenção personalística, como veremos, abririam espaço para discutir questões como tempo, crença e poder nas relações de gênero. Vemos também as auto-imagens fotográficas de Cindy Sherman em diferentes locais e situações discutindo a condição do feminino numa sociedade machista, integrando a chamada photograph performance, prática comum nos anos 70 e 80 nos Estados Unidos. A partir dos anos 70, haveria, porém, mais que uma ambígua conexão entre arte e tecnologia ou a coexistência de uma arte-mercadoria e de uma arte de idéias: essas mudanças operariam uma profunda transformação nas relações entre arte e corpo. É difícil precisar se essas mudanças vieram a partir do status adquirido pelo corpo na sociedade de consumo pósanos 60 ou se da mudança nas formas de apresentação do corpo com o uso da fotografia e da introdução do vídeo e do filme nas artes. Curiosamente, é nesse mesmo período de transição que Laurie Anderson começa a se afastar de suas esculturas e instalações conceituais e de suas performances de rua para utilizar com mais freqüência a tecnologia em suas apresentações e a se dirigir a um público maior e mais eclético.

Os anos 80 e a geração de artistas midiáticos Os anos 80 marcaram oficialmente a entrada da performance para o circuito artístico dominante, a mainstream. Até então, suas produções, podiam ser vistas apenas em lugares alternativos e, quando muito, em galerias e museus, ganhavam visibilidade por meio da mídia, ao serem apresentados em locais maiores e mais sofisticados. Muitos artistas viram na mídia uma forma de se comunicar mais diretamente com o público e de disseminar seus trabalhos. Outros parecem ter desejado efetivamente abraçar o show bizz com intenções basicamente comerciais e de alcançar a fama. Em ambos os casos, porém, FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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fica evidente uma disposição em superar o distanciamento em relação ao público, criado nos anos 70, o que faria a performance iniciar um longo e nem sempre tranqüilo diálogo com a cultura de massa. É interessante observar como, antes dos anos 80, em Nova Iorque, a performance habitava os clubes do Soho, do East Village e do Lower East Side, na parte sul de Manhattan, e era conhecida apenas por outros artistas ou por um reduzido público formado por intelectuais e estudantes de arte. O grande público a desconhecia quase por completo, o que pode ser verificado nas matérias relativas ao assunto publicadas no New York Times no final dos anos 70 e começo dos 80. Não raro, as matérias faziam referências à performance como uma espécie de novidade estranha e algumas até iniciavam com uma breve introdução sobre o gênero, para explicar aos leitores em que consistia o trabalho de artistas como Laurie Anderson. Goldberg afirma que Anderson teria sido a primeira artista de performance a ganhar notoriedade na mídia, com a apresentação, em 1983, de United States, no Brooklyn Academy of Music, um dos teatros mais famosos de Nova Iorque: United States marcou o início da “apresentação à sociedade” da performance na cultura de massa. Pois, ainda que em fins dos anos 70 a performance tenha sido aceita como meio, por direito próprio, na hierarquia institucional do mundo da arte, no começo dos anos 80, entrou para o mundo comercial (GOLDBERG, 1996:190).

Esse é apenas um dos exemplos que demonstra a visibilidade que alcançou a performance a partir dessa época e que se traduziram nos novas ligações da presença com os meios de comunicação e com as tecnologias de reprodução. Importante lembrar que essas experimentações começaram com a introdução, pela pop art, de imagens provenientes da mídia nos anos 60, e desenvolveram-se nas artes através dos modos de apresentação do corpo mediado, resultando no que Auslander chamou de “experiências com orientação midiática” (1992:2). Ou seja, produções artísticas de performance, teatro, artes visuais e dança, que passaram a se

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apresentar nos meios de comunicação e a introduzir tecnologias como o vídeo e o computador em seus processos criativos. A experiência com a mídia, nos formatos dos comic shows televisivos, demonstrou como algumas manifestações da performance “em sua orientação midiática nos anos 80 tomou o brilho profissional do circuito comercial, com gêneros cômicos, talk shows e trabalhos em estilo cabaré que examinaram bem de perto o impacto da cultura de massa na vanguarda” (GOLDBERG, 2000:27). Já as experiências com o vídeo começaram bem mais cedo, embora de forma isolada, nos anos 50, se desenvolvendo nas décadas de 1960 e 1970. Conta Goldberg que, nessa época, diversos artistas cujo trabalho envolvia performances, como Nam June Paik, Joan Jonas, Vito Acconci e Bruce Nauman, incorporaram o vídeo em suas criações. Fortemente influenciados pela arte conceitual, os processos de fazer um vídeo ou de fazer uma performance eram mais ou menos os mesmos, o que tornava as duas formas expressivas muito solidárias. Joan Jones, por exemplo, utilizava performances ao vivo juntamente com imagens de vídeo como estrutura de seu trabalho, “uma podendo tomar o lugar da outra”. Vito Acconci, poeta e artista conceitual, realizou inúmeras experiências polêmicas de body art e performance no início dos anos 70 e testou, como Chris Burden, os limites do corpo através do risco e da dor. Acconci, porém, ficou mais conhecido por suas performances ousadas que investiam na “rejeição da tradição ilusionista do teatro”. Chamou a atenção nesse período o trabalho intitulado Seedbed (1971), onde Acconci se masturbou de baixo da rampa de uma galeria, por onde passava o público, que apenas ouvia seus gemidos amplificados por alto-falantes. Bruce Naumann, também body artist, começou em meados dos anos 60 fazendo videotapes de partes de seu corpo e registros de áudio de seus próprios sons, tornando-os personagens, ao manipulálos e movê-los através de séries de gestos repetitivos. Seguindo a mesma linha de ação, Joan Jonas explorava a simultaneidade da live performance com a imagem do vídeo. Para ela, o interessante era que “um podia ocupar o lugar do outro, a atividade ao vivo se alternando com uma imagem ou vice-versa”.

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Chama a atenção nessas explorações com o vídeo no começo dos anos 70 exatamente a preocupação de muitos artistas em realizar uma estética mais artesanal, ao mesmo tempo em que mantinham a qualidade gestual da performance ao vivo. Esses usos de recursos tecnológicos como o vídeo foram analisados por Howard Smagula em seu estudo sobre as tendências nas artes visuais20 entre os anos 60 e 80. Smagula observa que nos anos 70 o uso da tecnologia nesse campo teve um caráter eminentemente experimental, já que a televisão e o vídeo eram basicamente utilizados com função informativa e de entretenimento. Os pioneiros da videoarte do final dos anos 60 compartilhavam então das idéias da vanguarda e da arte conceitual e rejeitavam “o materialismo de uma sociedade inclinada para um consumismo cego”. Esses artistas acreditavam no poder coletivo de despertar a consciência da população embotada pela publicidade e pelos programas de televisão e começaram a questionar os valores emergentes através da própria mídia, só que dentro do formalismo e do hermetismo típicos da vanguarda. O resultado de uma arte que parecia ser feita mais para outros artistas do que para o público foi que as pessoas não habituadas ao gênero passaram a considerar essas produções “tediosas”, reforçando a atitude negativa que já existia em relação a esse tipo de arte. Smagula lembra que, apesar de na época haver artistas preocupados com os excessos de maneirismos formalísticos era a própria vanguarda que mantinha para com o grande público uma atitude de grande distanciamento, para não dizer de quase desdém. Se as audiências preferiam a mídia, os artistas buscavam, por sua vez, o entrosamento com intelectuais e com seus pares. A afirmação a seguir capta o espírito da problemática: “era considerado aristocrático se preocupar com as minúcias da arte formalista; logicamente, essa era uma atitude fácil de sustentar quando a economia ia bem e quando o dinheiro era farto”. (SMAGULA, 1989:243).

20. O termo “arte visual” vem sendo usado nos Estados Unidos de forma a abranger uma série de expressões artísticas além da pintura e da escultura, como o vídeo, a fotografia, a gravura, entre outras. 80

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Um dos artistas que colaboram para essa mudança de atitude de distanciamento foi Nam June Paik, um dos pioneiros da videoarte. Desde o início dos anos 60, o artista coreano primeiramente radicado na Alemanha e mais tarde nos Estados Unidos foi um dos primeiros a se preocupar em “espremer arte de um meio tão aparentemente inartístico e do qual muitas pessoas de refinada sensibilidade haviam se afastado há algum tempo: a televisão”. O começo de sua carreira foi marcado por uma série de “concertos” na Europa que muito se assemelhavam aos eventos dadaístas, sobretudo pelo choque e pela violência das apresentações. “Performáticos”, seus eventos mais pareciam happenings nos quais era freqüente, por exemplo, a destruição de pianos no palco. Com isso, Paik se propunha a detonar a reverência cega aos instrumentos clássicos como o violino e o piano, que haviam deixado de ser instrumentos musicais para se tornarem “símbolos do refinamento da cultura européia”. Tendo estudado música e filosofia na Universidade de Tokyo, no início, a abordagem de Paik se deu mais em termos de tempo e ritmo do que propriamente em termos visuais. Ele começou tentando traduzir algumas de suas preocupações com música eletrônica para o campo do vídeo. Dominando os complexos circuitos eletrônicos da televisão, conseguia obter estranhos efeitos da tela, num procedimento que lembra os experimentos com o piano feitos por John Cage, com quem, aliás, estudou em Nova Iorque nos anos 60. Já estabelecido nos Estados Unidos, iniciou suas pesquisas com equipamentos eletrônicos e, especialmente, a TV. No final dos anos 60, Paik participou com um de seus trabalhos de um programa de televisão de Boston. Electronic Opera N.2 consistia em imagens e sons que se chocavam e se sobrepunham totalmente, formando uma espécie de “montagem pós-cubista” (SMAGULA, 1989:236). Impressionado com o resultado desse trabalho, desenvolveu, mais tarde, juntamente com um amigo engenheiro eletrônico, um equipamento sofisticado para a época: um sintetizador de vídeo que lhe permitia alterar escala, forma e cor de qualquer imagem estocada nele. Ligado ao banco de dados do computador, Paik podia manipu-

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lar completamente sons e imagens, antecipando experimentações com a tecnologia que anos mais tarde caracterizariam o trabalho de artistas como Laurie Anderson. Em 1972, Paik começou a trabalhar com vídeo-instalações. Esses primeiros trabalhos buscavam questionar o conteúdo, o contexto e os efeitos de percepção de uma experiência mediada “ao vivo” e que ele chamou de “televisão interativa”. Uma de suas mais famosas instalações foi TV Buddha, onde uma escultura do século XVIII de um Buda aparece sentada olhando para sua própria imagem projetada num pequeno aparelho de televisão (imagem transmitida por uma câmera ligada atrás do aparelho). Participando dos workshops da New York’s WNET (National Educational Television), seus trabalhos eram assistidos por milhões de pessoas que nunca haviam estado numa exibição de arte. Essas e outras experiências pioneiras abriram espaço para que, na década seguinte, outros artistas adotassem os meios de comunicação e a tecnologia na arte, embora com características diferentes. Como afirma Goldberg, “criados à base de televisão 24 horas por dia, de uma dieta de filmes B e rock n’roll, os artistas dos anos 80 interpretaram que o antigo grito para derrubar as fronteiras entre arte e vida era uma questão de derrubar as barreiras entre arte e os meios de comunicação”. Surge assim o que Goldberg chamou de “artistas da geração midiática” (1996:190), definida como sendo uma nova geração de artistas que passam a trabalhar com os excessos da “supercomunicação” e a explorar a estética da “imageria visual da mídia”. Goldberg acredita que, pela própria natureza mutante da performance, teria sido inevitável que os artistas tentassem unir as novas tecnologias a suas inclinações vanguardistas, resistindo ao óbvio e explorando seu potencial de forma inesperada. Contudo, o risco de uma sensibilidade desenvolvida numa ambientação tecnologizada, seria, em princípio, muito semelhante ao dos futuristas do início do século, caracterizados pelo fascínio pela tecnologia, pelo gosto pela velocidade. Ou seja, o risco de reificar o uso da técnica pela técnica e de banalizar o processo criativo, transformando suas produções em objetos estéticos high-tech. De toda forma, o uso da mídia e da tecno-

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logia nas artes e na performance ajudou a criar uma “vanguarda para as massas”, em que os artistas se apropriaram desses meios tentando inicialmente desenvolver uma habilidade para responder positivamente às mudanças que ocorriam. Dessa geração de novos artistas americanos participaram nomes como Robert Longo, John Jesurun, Bill Viola, Cindy Sherman, entre outros, cujo trabalho utilizava mais filme, vídeo e fotografia, e Spalding Gray e Eric Bogosian, mais voltados para o gênero conhecido como stand up comedy (comédia televisiva), que foi uma das direções que tomaram alguns artistas de performance nos anos 80. Laurie Anderson também fez parte dessa geração de artistas, embora seu trabalho fosse de uma classificação mais difícil, o que fez com que ela fosse considerada por muitos como uma performance artist, por outros uma video-artist, cineasta, música ou, como é mais comum, tudo isso ao mesmo tempo. Segundo Goldberg, Robert Longo foi um dos artistas mais ativos dessa geração. Longo fazia conexões entre rock, música punk, televisão e cinema. Organizou exposições de vídeo e produziu suas próprias video-performances em galerias e clubes alternativos de Nova Iorque, como o The Kitchen e o Artists Space, no final dos anos 70. Um de seus trabalhos mais conhecidos foi Sound Distance of a Good Man, uma performance de sete minutos que utilizava filme, dançarinos ao vivo e uma cantora de ópera. No final dos anos 80, ficou mais envolvido com a produção de filmes, entre os quais destaca-se Arena Brain, que descrevia a vida alternativa de downtown New York. Já John Jesurun realizava, nos anos 80, performances com tecnologia que faziam experimentos com os limites entre os meios de comunicação e a “vida real”. Jesurun utilizou seu background como cineasta, escultor e assistente de direção de televisão para “opor as realidades de celulóide com as de carne e osso” e criar inúmeros trabalhos que, segundo ele, seriam “uma justaposição de dizer a verdade e dizer mentiras”. Em uma de suas produções mais conhecidas, Sono Profundo (1985), quatro performers apareciam em cena, enquanto dois outros apareciam como uma imagem projetada em grandes telas suspensas nos extremos da sala. Um após o outro, cada um era “absorvido”

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pelo filme, como os gênios através da boca de uma garrafa, até que ficava apenas uma figura solitária para manejar e sustentar o projetor. Em Água brava (1986), atores vivos e “cabeças falantes”, que apareciam em 24 monitores de vídeo dispostos ao redor do público, travavam uma batalha verbal de 90 minutos sobre o que era ilusão e o que era realidade (GOLDBERG, 1996:195). Outro artista, dessa vez ligado mais à videoarte, foi Bill Viola. Seus primeiros trabalhos datam de meados dos anos 70 e têm como principal marca a unidade espacial, a manipulação do tempo e a inserção do artista e de seu corpo como parte fundamental da obra. A idéia de ambiente ou cena é a base dos mecanismos tecnológicos que caracterizam suas produções, especialmente as vídeo-instalações. A investigação das possibilidades de transformação da resolução da imagem, sua textura e duração feitas em Migration (1976), por exemplo, fazem com que a imagem deixe de ser simplesmente “representativa de um mundo para se tornar um ser vivo, mundo ou ambiente que pode ser explorado do interior”21. Na obra de Viola, o uso de imagens da natureza não se opõe à técnica antes funciona ela mesma como uma primeira tecnologia, na qual o calor, os sons e a luz funcionam como verdadeiros filtros que provocam alterações na percepção, dando uma sensação de estranhamento e plenitude que parece sustentar as imagens. As experimentações com som e imagem nos anos 80 levou ao surgimento de um fenômeno interessante. Vídeos, fotografias e gravações sonoras deixaram de ser considerados meros registros de performances para tornarem-se eles mesmos “performances”. São as chamadas “videoperformances” e “áudioperformances”, que eram espécies de “instalações interativas”. As fotos movie-still que Cindy Sherman tirava de si mesma foram um exemplo famoso de materiais dotados de um “caráter performático”. Reproduzindo representações tipicamente femininas, as fotos não documentavam a performance; antes, consistiam em performances que só existiam nas imagens (AUSLANDER, 1992:58). 21. Cf. Bentes, Ivana. Arqueologia do invisível. In: Território do Invisível. Catálogo da exposição de Bill Viola na Centro Cultural do Banco do Brasil, Rio de Janeiro, 1994, p. 12. 84

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A própria Laurie Anderson realizou muitos trabalhos desse tipo no início de sua carreira. Um dos mais conhecidos foi Jukebox (1977), uma áudioinstalação exibida na Holly Solomon Gallery, em Nova Iorque, que consistia em 24 músicas dela gravadas numa máquina de música, com fotografias que eram acionadas automaticamente de acordo com a música selecionada. As pessoas podiam escolher e ouvir músicas como Unlike Van Gogh, Quartet for Sol Lewitt ou If you can’t talk about it, point to it (for Screamin’ Jay Hawkins e Ludwig Wittgenstein). Saindo um pouco do âmbito dos Estados Unidos, é importante registrar que essas experiências com tecnologia na segunda metade dos anos 70 e na década de 1980 eram realizadas também na Europa, Japão e, em menor escala, no Brasil.22 Renato Cohen, destaca, inclusive, uma produção de videoperformance nacional: o videoteatro de Otavio Donasci (1982). Esse tipo de expressão artística foi analisado em detalhe por Rosângela Leote (2000) e demonstrou a incursão do vídeo na performance dos anos 80 no País. No videoteatro de Donasci, uma videocriatura de dois metros de altura, totalmente vestida de negro e com uma cabeça de aparelho de TV, entrava em cena diante de uma audiência que se aglomerava de pé numa sala da Galeria de Arte de São Paulo. A criatura começava a falar e em seguida punha-se a cantar. A voz, distorcida eletronicamente, soava metálica, maquinal, e o ser parecia um estranho híbrido, metade homem, metade máquina, muito próximo da concepção surrealista da personagem da tela de O sangue, de Max Ernst, que tinha cabeça de águia. É notório que as produções de muitos artistas dessa nova geração – embora realizassem geralmente alguma crítica social ou se apoiassem em reflexões de ordem filosófica ou mesmo política – não tinham caráter contestatório. Antes, muitas delas desenvolveram um formato comercial e um apelo mais pop. Os precursores desse estilo foram, segundo Goldberg, Eric Bogosian e Michael Smith. Os dois primeiros começaram em Nova 22. Para um panorama da arte tecnológica, ver Santaella, Lúcia. Culturas e Artes do pós-humano. São Paulo: Paulus, 2003. Para o panorama de seu surgimento no Brasil, sugiro o artigo de Walter Zanini em Domingues, Diana. “A arte no século XXI”. São Paulo: Unesp, 1997. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Iorque fazendo números cômicos no final dos anos 70 em clubes noturnos do Lower Manhattan e, em menos de cinco anos, já eram famosos na mainstream, criando um “novo” gênero – “cabaré de artistas” –, mesmo conservando o título de “artistas de performance”. Com Bogosian e Smith, entre outros, vemos o uso dessas formas populares capazes de atrair um público heterogêneo, que vai caracterizar esse formato mais pop da performance. Foi o começo da disseminação da performance como forma de entretenimento marcada pelo estilo do monólogo autobiográfico, comum nos anos 70. O uso do monólogo e dos talk shows nos “cabarés de artistas” marcam efetivamente uma mudança de ambiência na performance dos anos 80. Do comunitarismo dos anos 60 e 70, há nitidamente uma migração dos artistas para uma produção “solo”, que parece caracterizar uma “individualização” dos processos criativos. O monólogo – talvez por fazer parte de uma longa e valorizada tradição cênica americana, como indica Marvin Carlson (1996b:603) – foi um dos principais canais utilizados pelos artistas dessa geração, pelo baixo custo e por seu apelo simples e direto ao público. O material autobiográfico não tinha necessariamente função narcísica ou de auto-referência, e sim de lançar um olhar sobre algo que a experiência individual do artista propiciava. O tom confessional dessas apresentações funcionou em alguns momentos como um veículo para uma sátira de comportamentos e também para uma auto-ironia. Bogosian, por exemplo, criou uma série de personagens surgidos de roteiros de rádio, televisão e cabaré que satirizavam tipos masculinos americanos: “irritados, não raro violentos e deseperançosamente deprimidos”. Já Smith trabalhava no limite entre performance e televisão, fazendo trabalhos que eram a combinação de ambos. Em um deles, “Começa no lar”, Smith aparece em sua sala de estar discutindo pelo telefone com seu (detestável) “produtor” (na verdade, a voz de Bogosian) a possibilidade de um importante show de comédia na TV. O quadro captava perfeitamente a situação de um artista de performance que “sonhava em se tornar uma celebridade nos meios de comunicação” (GOLDBERG, 1996:192).

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Outro artista de destaque nesse contexto foi Spalding Gray, que fizera parte do vanguardista Wooster Group nos anos 70, e que também desenvolvera trabalhos no estilo de monólogo. Seu conhecido Swimming to Cambodia também girava em torno do desejo de alcançar sucesso e fama. Apesar de alguns críticos terem sugerido que Gray realizou um feito significante para uma conscientização política in Swimming to Cambodia e transcendeu “seu narcisismo e sua perspectiva pessoal” pela ironia, Auslander acredita que, na verdade, teria se dado o contrário (AUSLANDER, 1992:63). Como Gray, Laurie Anderson também apresenta impecáveis credenciais de downtown, embora seu trabalho siga em direção bastante diferente ou quase oposta a de Spalding, como sublinha Auslander. Foi com ela que o autobiográfico ganhou uma caraterística distinta das de outros artistas. Anderson também usaria a autobiografia, mas como ponto de partida para contar suas histórias insólitas, sempre combinadas com o uso da tecnologia. Era com essa combinação que ela ampliava a capacidade de reverberação de seus questionamentos. Anderson também adquiriu significativo sucesso na mídia e em outras arenas da cultura de massa. Em muitos momentos, segundo Auslander, ocuparia inclusive uma posição mais próxima do rock pop do que da performance. Tanto ela quanto Gray teriam “traduzido seus trabalhos de performance em gravações, filmes e livros. Trabalhos que esperaríamos encontrar somente no contexto cultural da vanguarda agora estão disponíveis tanto no contexto da vanguarda quanto no da cultura de massa” (AUSLANDER, 1992:59). O sucesso de Gray e Anderson, afirma Arnold Aronson, significou a entrada da performance e da vanguarda na consciência do público e no mundo saturado pela mídia dos anos 80 e 90. Só que, ao contrário dos movimentos de vanguarda dos anos 10 e 20, que foram absorvidos pelo circuito comercial como elementos estilísticos e estruturais, a atual vanguarda manteve sua superficial aparência enquanto se tornava um braço da cultura contemporânea. A performance, senão a van-

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guarda em geral, tornou-se mais um estilo do que uma abordagem para a criação artística (ARONSON, 2000:180).

Sem dúvida, essas questões geraram produtivas polêmicas por parte de artistas, críticos e pesquisadores. Esse é outro aspecto importante da emergência da media generation e do uso maciço da tecnologia nas artes nos anos 80 e 90: os novos desafios eram lançados não só aos artistas, mas também às teorias da arte e da cultura, que aparentemente estariam em débito com esses acontecimentos. A esse respeito, John Mowitt observa que, para compreender trabalhos de artistas como Anderson – de difícil definição e que colocam na mesa novos problemas –, seria necessário um diálogo cada vez mais próximo entre as teorias da performance e a “performatividade da teoria”. Mowitt acredita que, com o desenvolvimento das práticas da performance, teria havido uma “estetização da teoria”. As mesmas forças que estariam registradas nessas práticas teriam precipitado a teoria em importantes transformações, fazendo com que ambas passassem a experimentar uma sugestiva proximidade. Tomando o exemplo de Anderson, Mowitt vai afirmar que, como muitos artistas, ela vai articular em seu processo criativo inovações que constituiriam uma espécie de “novo saber teórico-prático”. Essas criações não apenas se antecipariam às prefigurações da teoria, mas efetivamente fariam teoria, por sua natureza investigativa e de experimentação. O advento das teses sobre o pós-moderno – como forma de compreender os fenômenos e as práticas culturais surgidas nesse contexto de mudanças – seria indício das transformações pelas quais passa a teoria, transformações que “obrigariam o esforço de teorizar a arte contemporânea a confrontar-se com o caráter pós-moderno de seu próprio empreendimento teórico” (MOWITT, 1990:48). Como veremos, será desse esforço de acompanhar teoricamente as recentes tendências artísticas que nascem as novas concepções de resistência criadas na prática pelos artistas dos anos 80 e 90, que fariam parte do que se convencionou chamar “performance pós-moderna”.

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Performance, pós-modernismo e resistência Com os artistas da media generation, tornou-se freqüente o uso de recursos tecnológicos sofisticados que passaram a conferir às performances efeitos visuais e teatrais surpreendentes. Esses espetáculos também adotavam muitas vezes referências da linguagem e da estética televisa, seja para discutir a fragmentação dos discursos, o apelo da imagem e da representação, seja para adotar o modelo e produzir shows ao vivo na própria TV. Por essas razões, o formato de muitos desses espetáculos foram rapidamente percebidos como interessante para ser vendido. Nessa apropriação da tecnologia e dos elementos da estética televisiva pela performance é possível distinguir nitidamente a coexistência de dois movimentos. O primeiro era o de experiências que sobrevalorizavam a interface artista-máquina, levando a uma submissão exagerada do fazer artístico ao sistema técnico, comprometendo o processo criativo e perdendo criticidade. O segundo, de produções, mostrando que, mesmo utilizando a tecnologia ou os elementos dos meios de comunicação, a performance seguiria como um modo de derrubar limites e convenções artísticas. Observando as mudanças de linguagem na performance, é possível perceber que esta ainda vai manter em muitos momentos seus propósitos iniciais, embora, sem dúvida, alguns artistas tenham adotado outros princípios. Certos tipos de uso da tecnologia na performance serviriam, inclusive, para retomar muitas das idéias das vanguardas artísticas da Europa do início do século, como afirma Renato Cohen (1987:172): Ao incorporar o multimídia, visando a uma totalização das artes e na busca de um discurso cênicopoético, na sua forma mais pura, apoiada na imagética e na exploração dos recursos da linguagem cênica, a linguagem da performance se aproxima muito da cena proposta por Craig e Appia.23

23. Craig e Appia foram importantes nomes da vanguarda teatral do início do século XX, responsáveis por uma série de experiências com a linguagem cênica e com as concepções de espaço, ator e espetáculo, que possibilitaram certas expressões da performance e do teatro contemporâneo. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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A conexão com o espírito das vanguardas históricas – que em muitos momentos inspirariam essas experimentações com os dispositivos técnicos – evidencia em certas produções da performance dos anos 80 e 90 a continuidade dos questionamentos daquilo que está estabelecido e do funcionamento da cena contemporânea como uma espécie de caleidoscópio de novas tendências. Essa “tecnologização” vai permitir às performances, em muitos momentos, articular e reprocessar os elementos presentes no nosso tempo e atualizar-se enquanto forma expressiva para as práticas culturais críticas da atualidade. Mais importante que isso: vai permitir também a criação de estratégias de resistência à mercantilização da cultura, mesmo que provisórias. Um exemplo disso é a apropriação da tecnologia no teatro de Foreman, de Wilson, do Wooster Group, nas artes do vídeo de Paik e Jesurun e nas performances de Anderson. Todos esses artistas faziam refletir em seus trabalhos grande dose de experimentalismo e crítica social, embora esta crítica já não fosse mais necessariamente a tônica dessas ações, como faziam os artistas dos anos 60. Como afirmam Zílio, Resende, Brito e Caldas: “está patente que as linguagens emergentes nos anos 70 não pretendem tanto – como as vanguardas do início do século XX – promover rupturas formais e sim construir um ponto de vista diferente acerca da arte e sua inserção cultural e ideológica” (2001:190). Não se deve crer, porém, que o uso intensivo de tecnologia nas performances dos anos 80 siga uma lógica evolucionista, em relação às suas primeiras experimentações nos anos 60 e 70. Antes, esse uso corresponde a novos arranjos dos elementos presentes na sociedade (econômicos, políticos, culturais, artísticos). Esses rearranjos foram percebidos, de alguma forma, como mudança nas mentalidades e no ambiente cultural, identificado por muitos autores como o surgimento da cultura pós-moderna. Como explica Johannes Birringer, o uso da tecnologia na arte em trabalhos de larga-escala como os de Laurie Anderson ou nas óperas high-tech de Robert Wilson, Richard Foreman e Philip Glass, deve, portanto, ser entendido,

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menos nos termos de um progresso das práticas artísticas do que nos termos da mudança nas condições de percepção e nos parâmetros de sensibilidade ditados por todas as práticas institucionais de construção, processamento e circulação das imagens do mundo para nós (redes de TV a cabo, vídeo, cinema, MTV) que se justapõem em galerias, museus e teatros (BIRRINGER, 1991:174).

A afirmativa de Birringer permitiria pensar que teria surgido uma espécie de fluxo de recodificação da realidade dado pela constante redistribuição e recontextualização de materiais que circulariam como fragmentos de um meio para outro. Essa codificação fragmentária, fruto de um processo de manipulação da representação, parece ter contaminado os distintos campos do social, operando neles mudanças formais e estéticas. Tratase de mudanças nas próprias condições de percepção e sensibilidade que, em certos momentos, passariam também a se dar de forma mediada, pela formação de uma ambientação tecnológico-midiática que criaria filtros para nossa visão e nossas formas de nos relacionarmos com o mundo. É esta ambientação que Auslander chamará de “cultura mediatizada”, ou seja, uma cultura que se definiria em grande parte pelo impacto dos meios de comunicação e que literalmente encarnaria seus mecanismos de disseminação ao se caracterizar como cultura de fluxo: “as tecnologias midiáticas e de informação não só criaram um banco de imagens que levou as práticas estéticas a basear-se no pastiche e na apropriação, mas também um ambiente no qual os discursos culturais são disseminados” (1992:17). Para Auslander, a constituição de uma “cultura mediatizada” corresponde ao princípio daquilo que Baudrillard chamou de “êxtase da comunicação” – hiperpresença de um sistema relacional –, experiência que expressa pela “condição de fazer parte de uma cultura que parece operar como um único e gigantesco sistema de informação” (BAUDRILLARD, 1988:24). Ao levar em conta a tese de Auslander, será preciso, porém, evitar a tendência de considerar a “mediatização da cultura”

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como um fenômeno totalizante. Não é demais lembrar que se trata de uma configuração que toma corpo e se torna em muitos momentos sobrecodificadora de práticas e discursos sociais. Isso não significa, porém, que essa mediação abarque e modele a totalidade da vida social e suas experiências, como sugerem de algum modo esses autores. A “mediatização da cultura” seria, portanto, a cristalização de um arranjo de forças nesse momento de nossas sociedades e não um destino. Embora reconheça os riscos de inserção da performance numa “cultura mediatizada”, Auslander sustenta que é possível criticar e resistir a essa mediatização “de dentro dela”, ou seja, a partir da própria mediatização, através da apropriação e manipulação da representação. A noção de uma resistência que vem “de dentro” do sistema marcaria uma nova direção para as tentativas de subversão nas artes e na performance, que passariam freqüentemente a negociar com as estruturas de poder de dentro delas. De certa forma, embora outras formas de resistência continuassem a existir, a sensação de estar num beco sem saída envolveu muitos segmentos das artes de vanguarda, que viram nessa forma de oposição um meio possível para continuar seus questionamentos. Essa sensação de amordaçamento e o surgimento de uma resistência que se organizaria a partir das próprias estruturas de poder, ao invés de negá-las, não surgiram por acaso. Antes, se inscrevem em todo um processo de mudança que já descrevemos. A combinação da “exaustão” do espírito transgressivo dos anos 60, a influência do pensamento pós-estruturalista, a consolidação da cultura de massa e dos usos da tecnologia nas artes efetivamente afetaram a performance, especialmente a partir dos anos 80. Conseqüentemente, essas mudanças também afetam premissas teóricas e políticas nas artes, fato visível na rejeição da noção da presença imediata do artista como “pura diferença”. Como explica Auslander, “enquanto a geração anterior estava preocupada com o frescor do corpo, com a presença física, a nova geração está mais preocupada com a palavra que com o corpo” (1992:57). Auslander observa que essa nova geração, considerada como pertencente à “perfomance pós-moderna”,

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aceitou o mundo mercantilizado da cultura de massa”, um mundo em que a economia da comunicação de massa tem um impacto decisivo na produção artística. Trata-se de uma cultura na qual a distinção entre high ou mesmo vanguard art e mass culture não seria mais clara, tanto do ponto de vista dos produtores como do público (1992:65).

Por um lado, essa nova configuração, aceita e assumida por muitos artistas de performance, indica a perda de sua expressão puramente libertária. Por outro, o contato com a cultura de massa e com a mídia poderia produzir novas condições de possibilidade de criação e resistência, através de usos criativos desses elementos. Esses usos poderiam também criar um novo estatuto para o corpo e a presença em contato com a mediação tecnológica. A esse respeito, Auslander vai afirmar basicamente duas coisas. Primeiramente, que o corpo e a presença na performance pós-moderna devem ser compreendidos como já mediados ou pelo menos como afetados pela mediação. Isso não significa, porém, que deixam de existir performances ao vivo ou que não existe mais diferença entre as performances ao vivo e as mediadas. Na verdade, para Auslander, tanto uma quanto a outra têm o mesmo peso e as mesmas condições de produzir diferença. Auslander argumenta ainda que, por meio da mediação, a presença poderia adquirir novas possibilidades de negociação com as configurações da cultura de massa, a partir das quais diferentes estratégias de resistência poderiam ser concebidas. Por isso mesmo, defende, em segundo lugar, que, apesar de funcionar no contexto da cultura de massa, a performance não perderia sua perspectiva crítica, nem o corpo, seu potencial de intervenção. Esses elementos persistiriam em muitos momentos, só que de forma diferente dos períodos anteriores. Desse ponto de vista, pode-se afirmar que o corpo não desaparece com a mediação: apenas encontraria meios para negociar com a representação, ao tornar-se “mediatamente presente”. O argumento de Auslander ressoa na visão de Johannes Birringer sobre os modos de apresentação do “corpo pós-mo-

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derno”, um corpo mediado. Birringer chama atenção para a “invasão do impacto da imagem e das tecnologias midiáticas de reprodução na estrutura visual da performance atual, que começou a reconstruir as imagens do corpo (...) (BIRRINGER, 1991:223). Para Birringer, a questão não seria mais o que teria restado da performance e do corpo – como se perguntava Féral –, mas como poderia o corpo e o artista negociar seu lugar dentro das estruturas formais da performance pós-moderna. Birringer afirma que a antiga condição de “ausência de textualidade” da performance em seus primórdios se modifica. A performance passaria a partir dos anos 80, a privilegiar “o visual” ou “a relação entre corpo, espaço, som, luz e objetos”, para a qual volta sua atenção crítica: O foco inicial, redutivo, na presença física do corpo em performance foi sendo gradualmente superado tanto por uma exploração criticamente formalista e reflexiva quanto por uma aceitação mais massiva e comercialmente orientada, artisticamente desafiadora dos limites entre a mídia e as novas possibilidades de intervenção através da tecnologia (BIRRINGER, 1991:221).

Desse modo, torna-se mais compreensível o surgimento de uma resistência que vem “de dentro” do sistema, ou seja, que aceita as ferramentas disponíveis para dar-lhes outros usos. Essa forma de oposição ao sistema, como veremos, não deve ser vista como a única possível ou mais desejável. A exemplo das estratégias corporais conceituais que foram consideradas nos anos 70 como as únicas capazes de fazer frente ao poder, a resistência “de dentro” é uma das respostas possíveis aos desafios de sua época. Na verdade, todo modo de resistência é uma construção histórica produzida a partir das formas de se compreender e lidar com as estruturas dominantes, formas e estruturas igualmente passíveis de mudança. Em seu estudo sobre a arte política, Hal Foster analisa as formas de oposição que tentaram de alguma forma fazer face ao poder na história das vanguardas artísticas. Essas formas podem ter variado na proposta, no formato e na estratégia, mas 94

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sempre tiveram em comum uma forte disposição por mudanças, uma disposição que continua a produzir novas formas de resistência no presente. Foster identifica dois modos de oposição ao poder nas artes, considerando o período a partir do final do século XIX: a transgressão – adotada pelas vanguardas européias e pelos artistas nos anos 60 – e a resistência – perspectiva desconstrutiva desenvolvida a partir dos anos 70 e 80, influenciada pelo pósestruturalismo. Foster vê a “transgressão” associada ao desejo modernista de ruptura (dadaístas, futuristas e surrealistas). Para Foster, esse desejo corresponderia a uma “paródia passiva” ou a uma “recusa puritana”, pois a “transgressão” colocaria um limite para a experiência cultural ao apresentá-la como “amordaçada numa espécie de beco sem saída” (FOSTER, 1985:150). Já a “resistência” seria uma forma diferenciada de oposição “numa nova ordem social com elementos heterogêneos” e uma “luta imanente de dentro e por de trás desses elementos” (FOSTER,1985:149). Ou seja, um movimento que não nega as configurações sociais – como a “transgressão” teria feito –, mas que trabalha através e contra essas configurações.24 Daí vem a tese das estratégias de resistência da performance pós-moderna, proposta por Auslander, uma resistência produzida “de dentro”, através da apropriação e rearranjo dos códigos sociais. Nesse sentido, o argumento de Auslander é o de que a resistência “de dentro” implica “levar em conta a produção cultural numa economia industrializada” para “tornar tal produção viável e significativa” (AUSLANDER, 1992:29). Com esse procedimento, à “resistência” seriam dadas as mesmas ferramentas desse ambiente para lutar contra ele. Mas, diferentemente da “transgressão”, que usa a presença imediata do artista para protestar, uma prática política e estética de “resistência” seria sempre representacional. Para esclarecer essa idéia, Auslander aponta o trabalho de Anderson, a partir da análise de Herman 24. O tom de crítica assumido por Foster em relação às estratégias transgressivas não as invalida de forma alguma. Muitas delas foram decisivas para a renovação das concepções de arte e até hoje servem como fontes de inspiração para muitas das práticas contemporâneas. Por isso, mesmo que não se apliquem ou não sejam viáveis no momento atual, não é claro que essas estratégias possam ser consideradas “ingênuas” ou “ultrapassadas”. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Rapaport, como exemplo de uma produção desse tipo de representação, que “mimetizaria as estruturas hegemônicas de dentro, enquanto busca ao mesmo tempo abrir espaço para criticar essas estruturas” (AUSLANDER, 1992:25). O termo miming (mimetização) é utilizado por Rapaport para melhor descrever um modo de representação que não busca reproduzir, mas apresentar a realidade de outra forma, usando para isso mecanismos de mediação. A “voz da autoridade” de Anderson, usada em suas performances (distorcida eletronicamente através de filtros especiais), é considerada por esses autores uma forma encontrada pela artista para dirigir ironicamente sua crítica às formas de controle. A manipulação da mediação feita por Anderson para criticar a televisão e a banalização da informação seria considerada uma forma de miming. Para Rapaport, performatizando a hegemonia, Anderson está também mimetizando-a e assim, está liberando ou ativando ressonâncias… que minam sua eficácia e estabilidade (...) Mimetizando o poder, Anderson está sutilmente revelando suas dissonâncias e discrepâncias, mas sem necessariamente estabelecer a postura de uma crítica pessoal, uma postura que poderia ser considerada como uma mera ideologia com intenção de dominar um determinado campo de relações (RAPAPORT apud AUSLANDER, 1992:25).

Por esse motivo, o tipo de resistência produzido por Anderson é comumente considerado por esses autores como “de dentro”, porque busca “uma saída e uma desconstrução sem mudar de terreno, através da repetição do que está implícito nos conceitos e nas problemáticas originais, usando contra o edifício instrumentos ou pedras disponíveis na construção” (AUSLANDER, 1992:25). É interessante observar que Anderson, porém, nunca concebeu seu próprio trabalho como fazendo parte deste ou daquele modelo de resistência ou de arte política. Talvez algumas de suas estratégias efetivamente se assemelhem aos procedimentos caracterizados por Auslander e Rapaport. Como afirmava John Mo96

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witt, a teoria aqui parece mais uma vez “correr atrás da prática”, ao mesmo tempo em que parece querer legislar sobre ela. Esse movimento deve ser encarado então com cautela. Como veremos, o trabalho de Anderson, sempre que possível, buscará fugir de classificações e evitar que suas práticas se cristalizem. De toda forma, Auslander vê a resistência “de dentro” como parte integrante da política de resistência pós-moderna. Esse modo de resistência tem como uma de suas características não se vincular a práticas “libertárias” – como nos anos 60 –, e sim a uma crítica aos discursos e práticas dominantes presentes nos processos da representação. Nessa concepção, a arte poderia fazer uma crítica à representação e se opor a determinadas configurações do poder sem, entretanto, subordinar-se à intenção de crítica. De fato, a força de uma obra não estaria necessariamente localizada no formato de uma prática ou de um discurso eminentemente “político”, e sim em seu potencial de criação e nas experimentações a que pode dar lugar. É isso que tornaria possível pensar a desvinculação da noção de resistência da idéia de um “ativismo” sem implicar, contudo, em uma despolitização. É basicamente esse o argumento de Auslander, Carlson e outros autores que buscarão discutir e flagrar a possibilidade de produzir resistência ao poder no interior do pós-modernismo e da cultura de massa. Para Nick Kaye, por exemplo, as narrativas das chamadas performances pós-modernas teriam o poder de operar com a resignificação e seriam uma forma de promover resistência, que não seria encontrada na defesa ou articulação de um ponto de vista, mas “que ocorre enquanto desestabilização daquilo que é “assumido”, daquilo que aparece para o público como algo já “dado” (...) Não se pode confinar uma noção como a do “político” a trabalhos que incorporam narrativas e imagens abertamente sociais e políticas”. O “político”, nesse caso, seria também o efeito de uma “disrrupção do significado, desestabilizando as hierarquias e a estabilidade das formas” (KAYE, 1994:23). É assim que, em muitos momentos, a performance desafiaria os processos de representação através da própria representação, usando para isso dispositivos tecnológicos e midiáticos, como, inclusive faz Andeson em suas performances. Esse procedimen-

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to é identificado por Auslander, Rapaport e outros autores como aquele que estaria sendo adotado por alguns artistas de performance em suas incursões pela cultura de massa nos anos 80 e 90, entre os quais se incluiria Anderson. Esse efeito de alteração está muito próximo do resultado das técnicas de “apropriação”, que é uma das características daquilo que Craig Owens chamou de “alegoria”. A alegoria seria um elemento estético que permite que um texto seja “lido através de um outro texto”, operando uma “rescritura de um texto primário em termos de seu significado figural” (OWENS, 1995:205). Owens explica que a apropriação de uma imagem, por exemplo, consiste não em inventar imagens e sim em “confiscá-las”, através do que estas “se tornariam outra coisa”. Trata-se não de restaurar um significado original que havia sido perdido ou obscurecido. Antes, o procedimento alegórico adicionaria outro significado à imagem. Mas essa adição, complementa Owens, só ocorre para uma substituição, que suplanta o significado anterior. A alegoria tem na “apropriação” sua principal ligação com a arte contemporânea. Através dela, muitos artistas geram imagens através da reprodução de outras imagens – que, freqüentemente, consistem elas próprias em uma forma de reprodução –, como a fotografia, o desenho e o movie still. Contudo, o que vai interessar, como indica Owens, serão as manipulações feitas pelos artistas com essas imagens, de forma a esvaziá-las de seu significado e de sua ressonância originais. O resultado é a transformação das imagens em fragmentos que podem ser combinados para criar outras significações. Nesse sentido, o trabalho alegórico é produtor de heterogeneidade, pois quebra e reprocessa elementos estéticos, inclusive de distintos gêneros e linguagens, gerando formas híbridas que sugerem diferentes leituras de um objeto, de um discurso ou de uma situação. O ecletismo da alegoria não deve, porém, ser confundido com o pastiche. A apropriação na alegoria não é uma imitação de estilos ou mero acúmulo, mas uma adição que visa a uma substituição ou transformação. Sua estrutura, como observa Owens, seria mais bem descrita como a do pa-

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limpsesto, ou seja, como a da acumulação por superposição de imagens, que funcionam como camadas de significados que se cruzam, produzindo outros. A partir dos anos 80, ao tornar-se um gênero híbrido – “entre vanguarda e cultura de massa” –, como afirma Auslander (1992:68), a performance se recicla e sua linguagem passa a habitar os diversos campos da arte. Isso faz com que muitas vezes seja difícil adotar classificações rígidas para esses novos trabalhos, todos já desgarrados de suas raízes. Em sua fase “pós-moderna”, a performance vai continuar lançando mão das apropriações – como sempre fez com sua linguagem-collage –, só que, dessa vez, o fará sem isolar-se das fontes que lhe servem de inspiração. Ao contrário, passa a aceitá-las e a incorporá-las. Para o melhor e para o pior. Ora, o risco supremo dessa incorporação é ser, a seu turno, incorporado, assim como o da apropriação é ser contra-apropriado. Não se poderia deixar de dizer, portanto, que a condição de produção da política de resistência pós-moderna seria necessariamente, como reconhece o próprio Auslander, a de “um discurso perigoso e frágil sempre forçado a andar na corda bamba entre crítica e cumplicidade” (AUSLANDER, 1992:31). A condição por vezes ambígua desse modo de resistência que vem “de dentro” poderia ser efetivamente problemática, pois, ao mimetizar o poder, de alguma forma estaria reforçando suas estruturas. O procedimento mimético pode ser considerado de fato uma “esperteza”, mas parece também caracterizar, de certa forma, uma estratégia reativa. Isso, no entanto, poderia ser encarado mais como um limite do que como um sinal de “erro” ou “ineficácia” desse modelo. Logo, seria possível apoiarse nele, porém, sem celebrá-lo cegamente. Seria preciso então buscar formas afirmativas de produzir resistência. Uma pista é dada por Jon McKenzie, ao discutir as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias. Afirma ele: Se pensarmos no espaço eletrônico, por exemplo, a resistência seria menos assumir e manter uma posição física ou lógica exterior ao poder e mais operar com múltiplas linguagens de forma a aprender uma variedade de movimentos, indicar regras

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diferenciadas para governá-los e inventar novas regras quando necessário (MCKENZIE, 1996:38).

Inventar novas regras pode ser um investimento concreto da mídia e da tecnologia nas artes. Os muitos exemplos de usos inusitados desses elementos nos permitem afirmar que é possível pensar esses usos como potencializadores estéticos e vetores de produção de singularidades. Mais do que simplesmente fazer a arte esquivar-se da lógica de padronização do mercado cultural e artístico e de suas instâncias de valoração, esses usos poderiam também levar a arte a experimentar, inventar e tornar-se criação mesmo dentro de uma cultura que privilegia o mercado, produzindo brechas e interessantes interferências. Um exemplo disso seria o trabalho de Laurie Anderson, cujo uso da tecnologia propõe em muitos momentos a releitura de uma sociedade “tecnológica”. Esses usos servem também para criticar de modo muito particular os processos de banalização da cultura e da vida em sociedade, especialmente nos Estados Unidos. Autores como Auslander e Birringer situaram seu estilo e sua técnica dentro da categoria da performance pósmoderna, típica das apresentações dos anos 80 e 90. Apesar disso, Anderson recusa rótulos e prefere apenas ser uma “artista” ou uma “contadora de histórias”. Anderson desenvolveu, de fato, uma série de estratégias “miméticas” para lidar com a super-exposição midiática e fazêla afetar a si mesma, o que poderia ser considerado uma tática de resistência. Em alguns trabalhos em vídeo feitos para TV, Anderson contracena com ela mesma através de seus dummies (bonecos) e clones eletrônicos, a partir dos quais realiza paródias sobre a cultura televisiva e reflexões sobre a reprodutibilidade técnica. Grande parte das produções de Anderson é feita por mediações técnicas, que ganham um tratamento crítico e irônico e, ao mesmo tempo, sutil e espirituoso, e que não abrem mão de ser arte. Apesar disso, Anderson não renuncia às performances ao vivo, ao contato com o público, mesmo acompanhada ou mediada por seus aparatos multimidiáticos. Para a artista, a performance ao vivo tem um “potencial para o desastre em tempo-real”, que lhe permite fazer o que mais gosta: improvisar e manter uma qualidade efêmera e conceitual em seu trabalho. 100

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Como veremos, é com o auxílio da tecnologia, de suas histórias e músicas insólitas que Anderson parece deslocar e diluir sua presença em cena, dando oportunidade a que outros discursos tenham lugar. Esse deslocamento parece ser um dos exemplos possíveis de criação de novas estratégias de produzir diferença, tanto a partir dos próprios mecanismos de controle, quanto da invenção de novos jogos e novas regras. Ao analisar o trabalho da artista, a intenção será então a de evidenciar as articulações feitas a partir da exploração da interface arte, comunicação e tecnologia.

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3. Laurie Anderson e a Vanguarda Pop

The art I inspire to make helps people live this life as well as possible. Art must addres the issues – sensually, emotionally, vividly, spiritually. Laurie Anderson

A construção de um estilo Por mais de 30 anos, Laurie Anderson vem atuando em diversos campos da arte e operando com distintas linguagens. Isso permitiu a produção de um inédito e curioso diálogo da vanguarda com a chamada mainstream. Seus trabalhos podem ser vistos como uma espécie de “vanguarda pop” e cumprem uma trajetória muito peculiar, que teve início nos anos 70. Desde aquela época, Anderson atravessa tendências e concepções de arte que são recicladas para forjar um estilo próprio, apoiado tanto num viés teórico – ao qual, porém, não se limita – como em elementos do cotidiano e da cultura americana – com as quais mantém distância suficiente para fazer seus questionamentos. Anderson aceitou para si o termo “artista de performance” por este estabelecer uma imprecisão formal e estética necessárias à compreensão de seu trabalho. Na verdade, o termo parece lhe ter sido imputado mais por indicar uma tendência ainda “não-classificada” do que por uma identificação direta com o que estava sendo feito e reconhecido na época como “performance”, indica Samuel McBride (1997:98). Se a partir de meados dos anos 70 a performance se tornou um “gênero artístico” e não mais uma FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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“função”, como afirmou Josette Féral, Anderson seguiria na contramão desse movimento, ao criar um estilo que, a rigor, não se encaixaria em nenhum “gênero” e que tentaria, ao contrário, constantemente diluir categorias e desafiar rótulos. O estilo de Anderson nasce da hibridação dos elementos da vanguarda dos anos 70 com elementos da cultura pop americana, com a qual mantém uma ligação até então improvável para uma artista de “vanguarda”. Para Howard Smagula, Anderson representou, por isso mesmo, a indicação de uma nova tendência na arte contemporânea americana, tendência identificada pela “distinta sensibilidade pós-moderna de seu trabalho”. Rompendo com o hermetismo formalista de sua época e disposta a realizar um trabalho que fica “entre a fácil compreensão, o formato pop e proposições significativas que questionam a natureza da vida contemporânea, Anderson sente que pode ser divertida, interessante e teatralmente viável sem comprometimento em termos de conteúdo, significado e eficiência” (SMAGULA, 1989:242). Sua história familiar, suas experiências pessoais e artísticas, os meios de comunicação, a tecnologia e a cultura de massa são as principais fontes nutridoras de uma arte que se quer múltipla e distante de classificações. Sua originalidade está na forma como combina esses diversos elementos, subvertendo meios e práticas, transformando-os em elementos capazes de questionar os valores estabelecidos, inclusive os da “vanguarda”. Anderson vem desde o início de sua carreira associando-se a artistas e músicos experimentais como Philip Glass, na então fervilhante cena do Soho25, em Nova Iorque, e engajando-se em vários trabalhos de performance em espaços de arte alternativos dos Estados Unidos e da Europa, com instrumentos musicais e equipamentos frequentemente concebidos por ela mesma. É interessante observar que seu trabalho é resultado de uma série de deslocamentos e acumulações realizados ao longo de sua trajetória, que foi documentada e discutida por historiadores da performance, críticos de arte e teóricos da cultura e da linguagem. 25. O Soho hoje perdeu praticamente todo seu caráter alternativo e de experimentação e transformou-se num verdadeiro “shopping de luxo”, com cafés e galerias de arte sofisticados e caros. 104

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No ensaio que escreveu para a primeira grande mostra retrospectiva do trabalho da artista (de 1969 a 1983), no Instituto de Arte Contemporânea da Universidade da Pensilvânia, em 1983, a curadora Janet Kardon diz: Laurie Anderson, por consenso, desenvolveu um dos trabalhos mais significativos na arte contemporânea. Mas sumarizar a meia-carreira de uma artista de performance é um desafio de uma ordem diferente da maioria das exposições de museus. (…) As complexidades aumentam quando a “artista de performance” é escritora, fotógrafa, produtora de cinema, bem como uma música enamorada pela tecnologia (…) Se o depreciado termo “artista multimídia” um dia já mereceu aplicação, essa é a ocasião (KARDON, 1983:6).

De fato, chama atenção a forma como Anderson, no início de sua carreira, parte da escultura – sem, porém, abandoná-la – para associar-se às artes gráficas e ao filme, apropriando-se de suas técnicas para explorar as linguagens escrita e visual. Mais tarde, liga-se à música para aproveitar os elementos sonoros sem, no entanto, tornar-se rigorosamente música; quase simultaneamente, passa a usar a performance como uma espécie de catalisador trans-mídia, que, por sua vez, iria, em seguida, incorporar elementos do rock, da comunicação de massa, do vídeo, da computação gráfica e até do ciberespaço. Até o início dos anos 80, Anderson ainda não era muito conhecida, apesar da notoriedade que conquistara na cena alternativa nova-iorquina dos anos 70. Segundo o crítico americano Mel Gordon, isso se explica possivelmente por ela realizar apenas um ou dois trabalhos por ano em Nova Iorque, em galerias e museus – prática que começou a ser abandonada pouco a pouco pelos artistas de vanguarda, que voltaram para o teatro e outros espaços convencionais. Adiciona-se a isso o fato de Anderson também ter realizado muitos trabalhos na Europa nos anos 70, de forma que foi com os trabalhos de larga escala dos anos 80 que se tornou efetivamente conhecida. Decisivo para o reconhecimento artístico de Anderson foi o lançamento da música O Superman (1981) – que na época FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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alcançou o segundo lugar nas rádios inglesas – e sua primeira mega-produção, United States, apresentada integralmente pela primeira vez em 1983. Com quase 8 horas de duração e dividido em 4 partes, o trabalho era marcado pelo uso maciço de tecnologia e por efeitos visuais surpreendentes para a época, aliados a discussões sobre arte, linguagem, política, gênero e influência da mídia e da tecnologia na cultura americana, por meio de músicas e histórias insólitas. Esse formato de mega-performance high-tech – ao qual seu nome ficou associado – foi sendo lentamente destilado ao longo de anos de experimentações com distintos campos e linguagens da arte. Enquanto a forma em muitos momentos a aproximava do pop, o conteúdo e o tom conceitual de suas apresentações a ligavam à vanguarda. No entanto, seus trabalhos não se resumem apenas às performances high-tech de larga escala. A tecnologia e os grandes concertos seriam, respectivamente, ferramentas para amplificar o escopo de suas ações e partilhar de forma ampla e direta com o público uma arte feita de imagens e palavras.

Anderson e o ambiente das artes nos anos 70 Laurie Anderson deixou cedo Glen Ellyn, Illinois, meio-oeste dos Estados Unidos, onde nasceu, em 1947, e, após uma breve passagem pela Califórnia, chegou à Nova Iorque em 1966. O período era marcado por grande efervescência política e cultural na cidade. Desejando tornar-se bibliotecária – segundo ela, para ficar mais próxima dos livros –, acabou graduando-se em história da arte em 1969, pelo Barnard College, onde se especializou em arquitetura egípcia. Em 1970, começou a cursar o mestrado em escultura na Universidade de Columbia, onde estudou filosofia com ênfase em Merleau-Ponty com Arthur Danto, história da arte com Meyer Shapiro e artes gráficas com Tony Harrison. Concluindo o mestrado em 1972, ingressou na Escola de Artes Visuais, onde estudou com os artistas conceituais Sol Lewitt e Carl André. A partir de 1972, Anderson passou a escrever críticas de arte para revistas como ArtForum, ARTNews e Art in America e deu 106

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aulas de história da arte em vários locais, como o Community College em Staten Island, Pace University e City College, todos em Nova Iorque. Por um breve período deu também aulas de poesia em prisões. Todas essas experiências a inspirariam mais tarde e fariam parte de futuros trabalhos. Anderson conta, por exemplo, que, durante o período em que escrevia para a ArtForum – revista de cunho teórico e formalista –, estava fascinada por Van Gogh e que costumava iniciar todas suas críticas sobre esculturas minimalistas fazendo referência ao pintor. Chamada a atenção pelo editor pelo excesso de entusiasmo, começa sua próxima crítica com um “Unlike Van Gogh, this artist...”. O episódio reapareceria em 1977, na instalação Jukebox, sob a forma de uma das músicas disponíveis na máquina, Unlike Van Gogh. Já nas aulas de história da arte que dava à noite no City College ou aos domingos pela manhã na Pace University, Anderson conta que costumava usar slides e contar sua própria versão dos fatos, o que era “muito mais divertido que se ater aos livros”. Segundo ela, foi dando aulas, projetando imagens e contando histórias para seus alunos, mais do que qualquer outra coisa, que efetivamente iniciou-se na performance. Nessa época, apesar de já se dedicar a trabalhos com forte inspiração conceitual, Anderson afirmava ainda não estar certa em relação à sua carreira: Eu lembro de dizer: ‘por que estou fazendo isso?’ Estava decidindo se seria uma artista. Eu não tomei essa decisão até ficar vários meses na cama (…) E aí decidi que precisava de um plano; eu não queria sair da cama até ter alguma coisa que realmente, realmente, realmente quisesse fazer. Não algo que tivesse que fazer (ANDERSON apud HOWELL, 1992:39).

Imersa no ambiente político e na política das artes do início dos anos 70, Anderson acaba por alinhar-se a um grupo de jovens artistas e em torno das propostas minimalistas e conceituais. O grupo ainda vivia os resquícios do comunitarismo dos anos 60 e trabalhava de forma colaborativa, diluindo as fronteiras entre as artes e entre arte e vida, conforme preconizaram

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artistas como Beuys e Kaprow. Anderson afirma que, na época, o grupo sentia-se consciente de que estava criando “uma cena inteiramente nova”. Por “nova”, entende-se uma reação às tendências correntes do minimalismo e da arte conceitual e o interesse pela tecnologia, que decididamente não fazia parte da proposta da década anterior. Na época, a performance ainda era um fato novo, mesmo nos meios da vanguarda nova-iorquina e era recebida com uma certa distância, compartilhada de certa forma também por Anderson: Como uma jovem artista da downtwon scene de Nova Iorque dos anos 70, eu estava bem certa de que estávamos inventando uma nova forma de arte. Havia até o estranho, sonoro e novo nome “performance art” e críticos e pessoas que brigavam para definir essa “nova” forma híbrida que combinava tantas mídias e quebrava tantas regras sobre o que a arte supostamente seria (ANDERSON, in: GOLDBERG, 2000:6).

Primeiras produções: esculturas minimalistas, foto-narrativa e objetos falantes Foi nesse período que a artista começou a produzir e exibir seus primeiros trabalhos de escultura, que Janet Kardon chamou de “objetos lingüísticos” (KARDON, 1983:7). Eram trabalhos de collage, ilustrações, livros artísticos e esculturas de inspiração conceitual. As explorações de linguagem presentes nas esculturas do início da carreira de Anderson ainda não dão bem a dimensão de sua busca pela diversidade. Contudo, esboçam já sua disposição por experimentações com as formas narrativas, uma marca importante de seus trabalhos de performance. Essas primeiras peças (1969-1972) são consideradas por Kardon como tendo variados “formatos comunicativos”. De fato, Anderson utiliza as propriedades de cada tipo de objeto e vai rearrumá-las de forma a garantir sua força expressiva, embora essa força seja canalizada através de um meio preponderante, no caso, a escultura.

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Anderson produziu, como estudante em Columbia, peças influenciadas pelo movimento conceitual, como a série March Cancelled, Seven weekends: Saturdays Horizontal, Sundays Vertical e Ten days in May, apresentada como trabalho de conclusão do mestrado em escultura. Todas feitas em papel-jornal reciclado, eram chamadas por Anderson de “cápsulas de tempo”. Ao desenvolver trabalhos com materiais leves e baratos, Anderson ia, de alguma forma, na contramão das tendências estéticas então valorizadas em Columbia para a escultura – que deveria ser “pesada e em aço” – e com as quais não se afinava. Anderson explica que usaca mais reciclados porque eram baratos e porque ela morava próximo a uma banca de jornais onde havia “toda sorte de jornais estranhos e estrangeiros” (ANDERSON, 1994:13). Na mesma época, inspirada na escultora Eva Hesse, Anderson produziu Eight Standing Figures, segundo ela, um auto-retrato na forma de oito colunas circulares em resina translúcida com aproximadamente 1,65 m de altura. Curiosamente, a peça aparece no livro organizado por ela mesma em 1994, que documenta sua carreira de 1972 a 1992, na parte que trata dos “alter egos”, espécie de “máscaras” ou duplos, que a artista mais tarde passaria a usar para se “disfarçar”, juntamente com suas séries de dummies (bonecos), clones eletrônicos, falsos hologramas e estátuas de animais. Tendo conhecido a filosofia budista durante o tempo que passara em Columbia, criou uma série de “mudras” – esculturas também em papel reciclado, em forma de posturas e gestos com a mão – que representavam “estados de alta consciência”. Essas figuras, inspiradas num livro que ensinava como fazer palavras com esses gestos, se tornariam, nas décadas seguintes, um dos ícones recorrentes do repertório de imagens usado em suas performances. Algumas dessas esculturas eram feitas a partir de moldes tirados de partes de seu próprio corpo – a mão, por exemplo –, podendo ser consideradas como escrituras corporais e, portanto, “objetos lingüísticos”, densos em referências, que iam do conteúdo das páginas dos jornais dos quais eram feitos ao significado dos gestos “mudras”, conectados a esses conteúdos. Outro objeto pertencente a essa fase conceital foi o livro Handbook (1972), que consistia em um texto que descrevia

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a ação física do leitor. As frases eram escritas sem nenhuma pontuação e com letras grandes escritas à mão em cada página. Para lê-lo, o leitor precisava virar sempre as páginas, num jogo que visava “engajá-lo numa ação física e interativa”, explica Goldberg, ação que explorava também as questões do tempo e da duração. As frases guardavam quase sempre alguma relação com o papel (suporte) – que tinha uma textura especial – e se dirigiam diretamente ao leitor, no mesmo tom de muitas de suas futuras performances. Handbook foi um exemplo das experiências que desenvolveu especificamente, ainda no começo dos anos 70, com esse meio que a fascinava e que era então considerado um verdadeiro trabalho de “arte imediata”, que podia ser produzido de forma caseira e distribuído para pequenos grupos de interessados, a custo reduzido. Entre 1971 e 1979, Anderson criou cinco desses livros artesanais, muitos dos quais produziu desde o papel e a história até as ilustrações. Como muitos artistas da época, Anderson mesclava distintas linguagens da arte para realizar seus trabalhos. A transposição e a justaposição de linguagens e meios presentes nesses objetos indicavam a preocupação da artista, naquele momento, com a linguagem escrita e de sinais. Mais tarde, essa preocupação iria expandir-se para outras formas expressivas, que iriam, porém, a seu turno, acumular-se e mesclar-se com as primeiras. Mesmo após a conclusão do mestrado – com uma alta distinção – em Columbia, Anderson hesita entre ser escritora ou escultora. A solução para esse dilema parece ter surgido na associação dos primeiros objetos com elementos textuais, verbais e sonoros, que passam a expressar melhor seu interesse em combinar diversos meios. Mais tarde, a performance surgiria como uma forma de favorecer essas associações, ao permitir o acúmulo desses distintos elementos através da linguagem-collage. Em 1972, realiza Automotive, considerado seu primeiro experimento de “performance”: uma espécie de “concerto ao ar livre”, na pequena cidade de Rochester, Vermont. Os moradores do local tinham o costume de levar seus carros, caminhões e motocicletas até o estacionamento público, todos os domingos de

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manhã, para ouvir a banda da cidade. “Definitivamente, vocês precisam ter um concerto de automóveis aqui”, pensou. Sob o impulso de seu background conceitual, resolveu “reverter a relação de espectadores/participantes”, convidando-os a tocar suas buzinas e com elas realizar um concerto (GORDON, 1980:52). Mas ninguém atendeu ao convite. Decidiu então lançar mão de uma tática tipicamente americana: propor um desafiocompetição. Ela colocou um cartaz no estacionamento da cidade perguntando: “Seu carro consegue dar um dó-sustenido?” Então vários motoristas apareceram e Anderson montou assim uma espécie de audição, na qual dizia a muitos “não, seu carro não dá essa nota”. Interessados, muitos perguntaram se podiam participar mesmo assim. Ao final, cerca de trinta automóveis se reuniram para realizar um “concerto”, cujo objetivo, segundo Anderson, era “explorar o potencial da buzina do automóvel” (GOLDBERG, 2001:37). Concerto for Land Rover with Six-Cylinder Backup, dentre outras peças, lembravam as experiências dos futuristas italianos e construtivistas russos com ruídos e objetos não considerados instrumentos musicais. Anderson, porém, achou a experiência “bem ruim”, afirmando que “mais parecia um bando de focas gritando”. Nesse período, Anderson começou também a realizar trabalhos baseados em suas experiências pessoais. Um dos primeiros trabalhos desse tipo surgiu de experiências com sonhos, que Anderson usou para discutir as relações entre espaço e sono. O trabalho foi inspirado em sonhos que tinha de dia, durante as aulas de história da arte – “sonhos povoados por elementos estéticos do século XIX”. A experiência, registrada por Geraldine Pontius – amiga e estudante de arquitetura e fotografia – levou-a a dormir em vários locais públicos, desde praias e banheiros da biblioteca da Universidade de Columbia até prédios da Côrte de Justiça, como uma forma de verificar “como seria ficar vulnerável em situações institucionalizadas”. O resultado foi a série fotográfica intitulada Institutional Dream Series (1973) e um conjunto de histórias insólitas que passaria a contar mais tarde também em performances como Empty Places, de 1989. Esse tipo de trabalho inaugurou uma fase que Kardon chamou de “trabalhos autobiográficos” (1972-75),

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marcados por produções de séries fotográficas e filmes, além de performances solo com o uso mínimo de objetos em cena – geralmente projetores de slides e aquele que seria seu companheiro inseparável, o violino. Com o uso desses elementos, Anderson começou a contar histórias que partiam de experiências pessoais da infância, de sua família e de sua carreira. A exploração do elemento autobiográfico era uma prática comum na arte conceitual do início dos anos 70, especialmente pelos então chamados “artistas autobiográficos”, alguns também associados à performance. Anderson chegou a ser considerada por muitos como um deles, juntamente com artistas como Adrian Piper e Julia Heyward, com a qual chegou a trabalhar (GOLDBERG, 2000:56). O autobiográfico – seja na arte conceitual ou na performance – não tinha uma função narcísica ou auto-referente, e sim de lançar um olhar sobre algo que a experiência individual do artista propiciava. A experiência pessoal do artista era, portanto, um ponto de partida, não de chegada. O autobiográfico teve papel importante no desenvolvimento da performance nos Estados Unidos, sendo inclusive considerado por muitos como seu elemento mais típico, como afirma Marvin Carlson. Daí o emprego do termo “performance autobiográfica”, surgido nos anos 70 e que passou a ser comumente utilizado. Mas esse tipo de expressão artística não foi importante apenas para a história da performance – que abandona a proposta da presença abstrata do performer para a de uma presença a serviço do texto. Jacki Apple (citada por Marvin Carlson, 1996:600) destaca sua importância para os movimentos feministas dos anos 70 naquele país, cujas “performances feministas” – basicamente performances autobiográficas – foram uma forma de dar visibilidade à sua luta e que, ao mesmo tempo, deram à performance uma orientação profundamente envolvida com questões sociais e políticas. Provavelmente não por acaso Anderson realizou nesse mesmo período vários trabalhos de foto-narrativa, que registravam seu interesse pelos fatos do cotidiano, a partir de eventos ocorridos com ela mesma. Object/Objection/Objectivity, de 1973, por exemplo, consistiu na tomada de fotos de nove homens que flertavam com ela enquanto caminhava na East Houston Street,

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onde morava. Surgido de forma acidental, o fato inspirou Anderson a transformá-lo em uma série fotográfica. O objetivo, segundo Anderson (apud GOLDBERG, 2000:39), era flagrar os diferentes tipos de reação das pessoas quando perguntadas se se importavam em serem fotografadas. Em alguns momentos, a fotografia funcionava também como uma espécie de contra-ataque ou assalto. Mas, ao invés de intimidar os homens, isso mais os estimulava, pois ficavam lisojeados por ela estar tirando suas fotos. Anderson considerou que a experiência tornara-se assim “muito humana”. Além disso, como se tratava do começo dos anos 70, viu no trabalho um tom político, uma forma de responder à “instituição machismo”. A série foi freqüentemente considerada um trabalho feminista, outro rótulo do qual Anderson buscará, contudo, manter distância.

Rumo à performance Ainda em 1973, Anderson participa pela primeira vez de uma exibição em uma galeria fora de Columbia: o Artists Space, no Soho. Inicialmente, O-Range foi concebido como um foto-documentário de estilo conceitual, que tratava, segundo ela, de “um estudo sobre a crença cega”, simbolizada por imagens de metades de laranja colocadas sobre seus olhos. A mesma idéia de jogos de imagens e palavras gerou, mais tarde, uma “versão” sonora e outra fílmica do trabalho. Embora totalmente diferentes entre si, as versões discutiam as mesmas questões: espaço, tempo e duração (GOLDBERG, 2000:40-41). Na época, o Artists Space introduzia novos talentos na cena artística alternativa de Nova Iorque, sendo os novatos apresentados por artistas mais conhecidos. No caso de Anderson, foi Vito Acconci, poeta, artista conceitual e performer muito conhecido da época, que não só a apresentou como também a influenciou durante muitas fases de sua carreira. O-Range marcou não apenas a entrada de Anderson no espaço da vanguarda nova-iorquina, como também representou uma sensível mudança de direção em sua trajetória artística.

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A realização de distintas versões do mesmo trabalho, em meios diferentes (foto-narrativa, filme, performance), aponta para uma interessante mudança de perspectiva de Anderson: o uso de sua presença como parte do trabalho e também o uso da palavra falada e não apenas escrita. Com isso, verifica-se que a entrada de Anderson para a performance realiza-se do mesmo modo como a da maioria dos artistas dos anos 60 e 70, ou seja, via artes plásticas ou visuais, embora a partir daí ela fosse criar para si outras possibilidades. Nessa época, Anderson afirmava ver a si mesma mais como uma “faladora” do que como uma “escritora”. Segundo Goldberg (2000:5), ela se identificaria mais com uma “escola de escritores que trabalhavam verbalmente” e faria parte de um grupo de artistas oriundos da arte conceitual dos anos 70 chamados “artistas narrativos”. Esses artistas, explica Goldberg, colocavam palavras, frases manuscritas ou impressas numa página ou numa parede, deixando que estas ressoassem como simples imagens gráficas e como uma série de idéias relacionadas à percepção e à experiência da produção de sentido e da linguagem, técnica muito comum à arte conceitual. Os artistas narrativos usavam a linguagem para infundir figuras com o máximo possível de significados e vice-versa. Esse estilo, segundo Goldberg, teria ligação com a extensa história de artistas que usavam a linguagem – de Duchamp a Magritte – e de artistas que utilizavam a palavra isoladamente em “performances”, como os artistas plásticos Kurt Schwitters e Joseph Beuys. Os primeiros trabalhos autobiográficos de Anderson foram documentados em peças que eram penduradas em paredes, exatamente nos moldes desse estilo artístico. Foi o caso das três séries fotográficas anteriormente citadas, que consistiam num conjunto de grandes fotos em preto e branco montadas em murais e acompanhadas de textos manuscritos, que poderiam ser considerados como extensões de seu corpo – no caso, de sua voz – e o começo da construção de suas novas estratégias narrativas. Foi dessa experiência com o texto impresso que Anderson partiu para suas primeiras “performances faladas”. Anderson se perguntava “por que achatar as palavras” (com o texto) se elas poderiam simplesmente ser ditas e se se podia obter “mais

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informação da voz”. Sem dúvida, esse argumento reflete seu interesse pela língua falada, interesse que iria explorar em futuros trabalhos, onde haveria espaço tanto para a palavra escrita quanto para a falada. Sua escolha em introduzir a palavra falada em suas produções foi também, de certa forma, uma decisão de romper com o estilo inicialmente adotado pela escola de artistas narrativos, que se apoiava na palavra escrita e tinha inspiração na arte conceitual. Contudo, em suas explorações com a linguagem, Anderson jamais poderia deixar de ser considerada uma “artista narrativa”, só que o seria a seu modo, reinventando o estilo com o uso de outros elementos. Na verdade, isso também já começara a acontecer com alguns artistas conceituais que se apropriaram da performance para expressar suas idéias. Foi o caso, por exemplo, de Vito Acconci, que partiu da poesia concreta e da linha puramente narrativo-conceitual para também se utilizar da body art e da performance. Não se sabe ao certo se o movimento de Anderson rumo à performance teria sido no sentido de acompanhar essa tendência (possivelmente por influência de Acconci) ou se ela teria efetivamente visto na performance uma estratégia viável para ampliar e diversificar seu trabalho. O fato é que a palavra falada e as explorações com a voz se tornariam elementos importantes para seu trabalho. Nele, palavra, som e voz muitas vezes soariam como instrumentos sem corpo,26 como é o caso, principalmente, do violino. O mesmo pode ser dito da mediação eletrônica da voz – que seria mais tarde um mecanismo para produzir sonoridades incomuns e um potente canal para seus questionamentos – e de sua criatividade em usar as palavras, que seria empregada para se dirigir diretamente ao público e prender sua atenção, com suas músicas e histórias. Em seus primeiros trabalhos de performance – da primeira metade dos anos 70 –, Anderson passou a usar a palavra falada (músicas e histórias) ao vivo, ao lado da projeção de palavras, 26. Princípio do uso do violino, o qual ela afirma “ter ensinado a falar”, inicialmente com suas fitas pré-gravadas (self-playing violin e tape-bowl violin) e, mais tarde, com outros tipos de recursos, geralmente eletrônicos (digital violin, neon violin etc.), como veremos em detalhe no Capítulo 6. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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frases e fragmentos de textos em paredes ou em telas de fundo, no palco, inicialmente de forma quase “caseira” e, posteriormente, de forma bem mais sofisticada. Pode-se afirmar, então, que a tela de fundo teria vindo substituir o antigo mural onde antes pendurava seus trabalhos de arte narrativa. Em muitos casos, sua presença ao vivo ou em filmes e slides teria ocupado o lugar das fotografias, e suas músicas e histórias, o dos comentários escritos que acompanhavam suas esculturas. Não por acaso, um dos meios utilizados por Anderson para produzir trabalhos “autobiográficos” nessa nova fase foi o filme.27 Um dos primeiros – Dearreader28 (1974) – consistiu em nove curtas histórias filmadas e narradas em off num quarto. Com 27 minutos de duração e filmado em super-8, Dearreader foi considerado por ela um “filme falante”. Nele, Anderson aparecia no começo e no final da projeção, diante do projetor, tocando violino e contando histórias, de modo que o filme era projetado sobre ela própria, contra uma parede branca. Esse procedimento de projetar imagens sobre si mesma seria retomado mais tarde, em 1975, quando criaria um screening dress, todo branco, feito com material próprio para se projetar nele imagens fílmicas.29 Anderson conta que a idéia de fazer filmes experimentais surgiu em função dos numerosos “festivais de cinema” que aconteceram nos anos 70 e dos quais participou: “por festival de cinema eu quero dizer oito pessoas num loft. Eu estava sempre atra27. Suas esculturas conceituais também eram autobiográficas ou remetiam a aspectos de seu cotidiano, como seus livros de arte e as peças fotonarrativas. Os trabalhos autobiográficos dessa fase não deixavam de ser “objetos lingüísticos”, que “falavam” por meios cada vez mais diversos. Vê-se, assim, desde o início, a recorrência e a acumulação como elementos característicos de seu estilo, elementos, que, como veremos, também estarão presentes nas fases posteriores. 28. Uma homenagem a três de seus escritores preferidos: o filme é dedicado ao novelista Laurence Sterne; e o título é inspirado em Herman Melville, autor de Moby Dick, e em Mark Twain, pela maneira como se dirigiam aos leitores em seus contos. 29. A experiência da produção de imagens fílmicas e de sua projeção sobre si foi o gérmen das futuras experiências que faria no final dos anos 70 e nas décadas seguintes, nas quais Anderson passa a tornar-se também parte das imagens que aparecem no palco. Em suas performances high-tech, Anderson quase sempre aparece em cena diante de projeções de filmes e slides em enormes telas muito semelhantes às do cinema e transforma o palco num verdadeiro laboratório de experimentações visuais e perceptivas. 116

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sada; mal dava tempo de terminar a edição e nunca conseguia preparar a trilha sonora. No último minuto eu pegava meu violino e corria para o festival. Eu ficava em frente ao filme, tocava o violino e fazia o diálogo ao vivo” (ANDERSON apud GOLDBERG, 2000:47). O uso do violino já começava a tornar-se comum em suas primeiras apresentações, que para Anderson ainda não tinham um caráter de “performance”.30 O instrumento – que começara a estudar ainda pequena e que tocara até os 16 anos – era um verdadeiro acompanhante, como ela mesma explica: “para mim, o violino é o perfeito alter ego.31 É o instrumento mais próximo da voz humana, da voz feminina.” (ANDERSON, 1994:33). Com ele, Anderson criaria um verdadeiro laboratório de sonoridades, ao mesmo tempo em que o transformaria num objeto que constituiria outra presença em cena, uma espécie de “máscara”, com a qual Anderson deslocaria e minimizaria sua própria presença no palco para permitir que outros elementos – como as músicas, histórias e imagens – se destacassem. Em 1974, dois trabalhos franqueariam “oficialmente” sua entrada na vanguarda nova-iorquina: As:If e Duets on Ice. Na verdade, Duets é a versão ao “ar livre” de As:If, que foi primeiramente apresentado no Artists Space. Anderson considera As:If uma crossover piece, ou seja, uma peça de passagem, o primeiro trabalho com o qual “deixou de considerar a si mesma como uma escultora” para aceitar a idéia de ser chamada de “artista de performance”. Apesar de Anderson não se ver necessariamente como tal, As:If foi considerado por ela mesma seu primeiro trabalho “mais maduro de performance”, no qual abordava temas que se tornariam recorrentes: sua infância e adolescência no meio-oeste, a Bíblia – e suas histórias “surreais”, “nas quais os adultos acreditam como crianças”, como ela diz em seu livro 30. Cabe lembrar que Anderson não estava preocupada em se alinhar com gêneros artísticos, mas em usar recursos que julgasse conveniente a seu trabalho, recusando, por isso, ser encaixada em rótulos. Apenas mais tarde, como indicou McBride, é que seu trabalho passou a ser designado como “performance”, termo que ela não reivindicou para si, mas que veio a aceitar, mais por sua abertura do que necessariamente por seu significado. 31. “Alter ego” é o termo usado por Anderson para designar um duplo, um substituto, que ela usa para “falar por ela” como um boneco de ventríloquo. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Stories from the Nerve Bible – e sua fascinação pela linguagem e a memória. Com histórias sobre duração e tempo e a projeção de imagens de palavras, Anderson discutia nesse trabalho questões relativas à arte e à linguagem, através de curiosos jogos de palavras. O uso de um violino com músicas pré-gravadas (self-playing violin) permitia a Anderson fazer um dueto consigo mesma, enquanto narrava suas histórias. Foi também a primeira vez que Anderson usou um pequeno alto-falante na boca, o pillow speaker. O dispositivo era usado comercialmente num curso de alemão que prometia ensinar o idioma durante o sono. Percebendo que o método não funcionava, Anderson, “sendo uma pessoa oral”, como ela mesma afirmou, resolveu por o speaker na boca. O resultado foi sua utilização em performances, onde o speaker se ligava a um gravador com fitas de solos de violino. Mexendo os lábios, Anderson modulava o som que saía dos speakers (ANDERSON, 1994:28). Em As:If, Anderson entra em cena vestindo um roupão branco e calçando um par de patins com dois blocos de gelo presos em suas lâminas. Enquanto tocava o violino e, alternadamente, contava histórias sobre passagens de sua vida, slides de palavras separadas por uma coluna – que propunham jogos de linguagem como roof:rof, hood:hod, here:hear; sink:synch – eram projetados num telão atrás dela e funcionavam como sub-textos para suas narrações pré-gravadas. A fita reproduzia discussões/especulações sobre a linguagem e a simultaneidade. A performance terminava quando os blocos de gelo derretiam completamente. Então, Anderson saía se equilibrando nas lâminas dos patins. Duets on Ice, performance de rua apresentada nos verões de 1974 e 75 em todos os cinco distritos de Nova Iorque e também nas ruas de Gênova, Itália, foi exemplo de um trabalho de comunicação com o público que se transformava em arte. Para essa performance, as músicas eram em “um estilo western-spaghetti, meio-italiano, meio-inglês”. Duets demonstrava igualmente algumas das preocupações centrais de Anderson: a apresentação ao vivo, a duração e os objetos. Entre as músicas, Anderson também fazia comentários em estilo conceitual, como os paralelos que traçava entre os atos de “esquiar” e de “tocar violino”, lembrando

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que ambos têm lâminas que deslizam sobre superfícies, equilíbrio, simultaneidade, por exemplo. O procedimento era semelhante ao de As:If e surpreendeu igualmente americanos e italianos: Anderson tocava o violino com fitas pré-gravadas com música até o gelo derreter completamente. Mel Gordon acredita que, influenciada por seu estilo de contar histórias e pela experiência em dar aulas, Anderson tentava impor-se uma certa disciplina, mantendo a duração da performance dentro de limites pré-estabelecidos, mais ou menos de 60 a 75 minutos, tempo que os blocos de gelo costumavam levar para derreter. O cuidado demonstrado por Anderson reflete em alguma medida as transformações por que passou, nos anos 70 a própria performance, que deixou o espontaneísmo de seus primórdios – quando se aproximava muito dos happenings – para se tornar uma prática mais elaborada. É importante também perceber que, com Duets, Anderson ensaiava uma prática então desprezada pelos artistas de vanguarda da época: a proximidade com um público distinto do seleto grupo freqüentador de museus e galerias. Smagula acredita que Anderson tenha assumido o “disfarce de música de rua” para atingir um público que os artistas de performance raramente alcançavam. Com essa proximidade, Anderson buscava alcançar um público mais heterogêneo e com outras possibilidades de resposta a seu trabalho. Até a escolha dos patins de gelo e da música country teria sido calculado “para dar um toque popular e obter reconhecimento nas mentes dos curiosos espectadores” (SMAGULA, 1989:244). A relação com o público tornou-se um elemento importante para Anderson, pois ela considerava que sua arte não devia ser auto-referente, e sim algo a ser compartilhado. A tentativa de criar uma ambiência especial com a mistura de vários recursos – visuais, sonoros, musicais, falados etc. – se pautava por essa idéia de favorecer a comunicação com o público. Howell afirma que Anderson procurava com essa ambiência permitir ao público ter acesso a suas idéias como a uma “mensagem flutuante”, sem necessariamente definir um objetivo específico. Como explica a própria Anderson: “Como artista, queria criar uma atmosfera com muitas imagens e sons, na qual o público

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pudesse entrar (...) Eu deixava o significado para aqueles que iam ver o trabalho para interpretá-lo... Eu criava figuras a partir de imagens e sons e eles podiam decidir o que elas significavam” (apud HOWELL, 1992:17). Nessa época, Anderson ainda se via mais como “uma escultora que fazia trabalhos ao vivo” ou como uma “artista autobiográfica” do que propriamente uma “artista de performance”, o que em parte explica sua afirmação de que tinha medo de se apresentar em público. Segundo ela, foi esse medo que a teria levado a utilizar os objetos de cena, os slides, as histórias e o violino como uma espécie de defesa, de máscara. Ao usar o vestido branco em As:If, por exemplo, pensava: “estou em meu pijama e esse é o meu pior pesadelo”. Ao mesmo tempo, Anderson dizia sentir-se uma idiota com aquela roupa e calçando o par de patins diante de seus amigos, mas ao final percebeu a resposta do público e assumiu: “Não é tão mal assim ser uma idiota. O que quero ser? Sofisticada? Intelectual? Preferiria ser uma idiota” (apud HOWELL, 1992:45). No entanto, a passagem de Anderson por locais alternativos do Soho – que ela lembra como sendo apresentações para “as mesmas 300 pessoas no mesmo espaço todos os anos” – indicou inicialmente um momento de insulamento típico dos artistas da época. Partilhando do hermetismo formal do milieu, Anderson também evitou, no começo, o reconhecimento e a aceitação do público a seus trabalhos e falava mais para si mesma do que para a platéia. Isso fica claro quando Anderson certa vez afirma que sua idéia de uma performance perfeita era semelhante a de um mau filme: “num mau filme você repara a pipoca debaixo do seu pé, a altura dos braços da cadeira, a localização das placas de saída etc., por todo o filme” (apud GOLDBERG, 2000). Essa postura, porém, se modifica com o tempo e Anderson logo começaria a caminhar na contra-mão dos princípios estabelecidos pela “vanguarda”, que estranhamente se cristalizavam. O próprio As: If apresentava elementos que mobilizavam emocionalmente o público, inclusive fazendo-o rir, fato inconcebível num “trabalho sério de vanguarda”, na época.

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Ao longo dos anos 70, Anderson apresentou-se também em galerias, museus, festivais e locais improvisados na Europa. Essa preocupação “incomum” de se comunicar com o público, não importando inclusive o idioma, fez com que Anderson escrevesse músicas e preparasse diversos trabalhos na língua dos locais onde se apresentava. Anderson conta que ocasionalmente a barreira do idioma transformava-se em elemento para as próprias performances: Em Berlim, o Muro tornou-se uma metáfora visual para a barreira linguística. Em That’s not the Way I heard It [Akademie der Kunst, Berlim], eu contava histórias em inglês com legendas em alemão, que apareciam na tela. No começo da performance, a tradução estava mais ou menos correta. Então, aos poucos, mudava até ter muito pouco ou quase nada a ver com a história que estava sendo contada. Obviamente, essa era uma peça para um público bilíngue, mas também um comentário sobre o fato da língua ser em si um código… (ANDERSON apud GOLDBERG, 2000:58).

Depois de As:If e Duets on Ice, Anderson passou a exibir uma maior mistura de narrativas autobiográficas com recursos técnicos um pouco mais sofisticados e fica claro que seu senso escultural de espaço se tornava cada vez mais apurado, como repara Goldberg. Nesse período, a artista investiu menos na escultura e nas obras gráficas para dedicar-se mais às instalações e performances e ao desenvolvimento de trabalhos que incorporavam filmes, slides e sonorizações. As histórias e o violino passaram a ser instrumentos inseparáveis e duas das características mais marcantes de seu trabalho. As histórias, particularmente, tornaram-se seu principal meio para uma comunicação direta com o público, pela imediatez da palavra articulada. Anderson, aliás, explica que deixava a escultura em um segundo plano – embora não a abandonasse –, porque dela somente podia extrair uma linguagem simbólica ou no máximo escrita – textos que acompanhavam as peças, funcionando como “co-narradores”.

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Elementos visuais, textos, músicas e instalações começaram, assim, a ser sistematicamente introduzidos em suas performances e marcaram uma nova fase, cuja característica principal foi a realização de instalações com a participação do público. Vale lembrar, porém, que essas instalações (sonoras e visuais) podiam ser consideradas uma forma de evocar a escultura,32 um dos elementos presentes nas instalações, como explica Diana Domingues (1998:181): “a instalação remete à escultura ou à arte objetual pelo uso do espaço tridimensional, mas dele se distingue porque o espaço é incorporado ao trabalho e porque é necessária a presença do espectador para estabelecer múltiplas relações com o espaço e com os objetos propostos”. “A instalação”, afirma Domingues, “expande as questões da escultura”. Desse ponto de vista, Jukebox, de 1977, pode ser considerado efetivamente uma instalação. Nela, percebe-se nitidamente que Anderson usa sua formação como escultora, suas experiências no campo da performance e seu interesse por tecnologia e cultura de massa para compor uma peça escultural à qual são acrescentados som e imagem. O resultado era um conjunto modelável, que dependia da intervenção do público, tanto do ponto de vista da operação e realização do trabalho, quanto de sua efetivação estética. Certamente, o interesse de Anderson não era apenas técnico. Como em todos os seus trabalhos, a peça fazia uma série de questionamentos e reflexões, embora de forma leve e relativamente acessível ao público. A inclusão da música e do espectador em suas instalações davam a estas um aspecto de “evento ao vivo”, de caráter performático, evocando os princípios de diluição da fronteira entre arte e vida, difundidos por artistas como Allan Kaprow e Joseph­ Beuys nos anos 60. Essa inclusão reflete exatamente esses princípios e as tendências da primeira fase da performance nos Estados Unidos, fortemente influenciada pelo pensamento dos anos 60. A participação do público marcava a experiência de realização do trabalho, idealizado para permitir uma comuni32. É possível ver diversos trabalhos de Anderson como uma forma simbólica de “escultura”. Suas técnicas parecem literalmente modelar imagens, músicas, histórias e outras formas expressivas, dotando-lhes de peso, textura e modos inusitados de ocupação do espaço. 122

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cação direta e o compartilhamento coletivo de informações e reflexões. Essa participação era considerada, segundo Viki Wylder (1987:60), um fim em si mesmo e uma experiência “autoconsciente”, onde o artista e o público se viam como “meio” decisivo para se alcançar uma condição de comunicação ao longo da experiência do trabalho. No caso de Anderson, Wylder afirma que as informações/ experiências a serem compartilhadas – por meio de instalações e performances – consistiam em suas próprias observações e reações à cultura da qual fazia parte. Por essa razão, em seus trabalhos, essa “interatividade” não parece ter como objetivo propiciar uma mera “participação ativa” no processo da obra. Antes, parecem funcionar como um modo de contagiar o público criativamente, trazendo-o para dentro de um trabalho que se apoiava nos sentidos e que buscava um estado de “autoconsciência” em relação à experiência da performance ou da instalação – objetivo final do trabalho. Ou seja, a efetividade estética do trabalho dependia desse procedimento de inclusão. Em suas instalações, portanto, Anderson buscava arquitetar uma ambiência – e não apenas explorar um ambiente – que favorecesse essa experiência de comunicação e de “auto-consciência”, como ela mesma explicou numa entrevista à revista Artforum, em 1980: “Nas performances eu tentava enfatizar o efeito físico do local – enviando ondas de sinais através do ambiente, de modo que as pessoas pudessem sentir fisicamente o espaço em que se deslocavam (...) que o espaço existisse (como para os cegos) tanto por trás como pela frente dos olhos; também usava imagens de arquitetura que comentavam o volume e a escala do ambiente, ao invés de competir com ele”. Embora em sua classificação Janet Kardon chame essa fase de “performance multifacetada” (1976-1979), é possível perceber que esses trabalhos mantinham características das fases anteriores (“objetos linguísticos” e “materiais autobiográficos”). Essa acumulação faria com que a própria Anderson afirmasse que os anos entre 1975 e 79 tenham sido marcados por uma experimentação no sentido de “repensar toda a idéia de performance”, o que foi possível graças à distância que guardava desse meio expressivo. Em função disso, nesse período, seus trabalhos iriam

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variar muito de formato e de dimensão e incorporar cada vez mais dispositivos técnicos, embora ainda não tão sofisticados. Outro aspecto dos trabalhos desse período, com relação ao modo de apresentação das performances, foi a preocupação em “nunca fazer a mesma coisa duas vezes”, atitude artística tipicamente conceitual e de performance do início dos anos 70, que também tinha a ver com seu desejo de apresentar e não de representar. Uma vez apresentado, um trabalho seria único, não podendo ser repetido. Anderson, porém, percebeu com o tempo que precisava de algumas das histórias e dos objetos para outros trabalhos e passou a reaproveitá-los. O componente da repetição em suas apresentações passou assim a ser um elemento-chave para a criação de um novo estilo performático, onde o que se repetia não eram gestos ou palavras – como na dança minimalista ou nos happenings – mas elementos de trabalhos anteriores, que ela recolava. Apesar disso, afirmava que não se tratava de uma mera repetição e que os trabalhos apresentavam características distintas, o que, aliás, é bastante curioso. “Não fazer duas vezes a mesma coisa”, para Anderson, significou estabelecer um sistema de combinação dos elementos nas performances que criavam pequenas variações de uma mesma idéia, como afirma Samuel McBride: “Até as menores peças podiam ser recicladas de uma performance para a outra ou colocadas em um contexto diferente, ou arrumadas numa ordem diferente, sem se modificar na essência. As quase ‘trinta... performances todas diferentes’, por isso, eram, em alguma medida, variações umas das outras” (MCBRIDE, 1997:141). Um exemplo disso foi For Instants (1976-77), trabalho dividido em três partes, que Anderson apresentou num festival promovido pelo Whitney Museum e pelo MOMA de Nova Iorque. McBride afirma que o trabalho foi apresentado pelo menos 20 vezes em pelo menos 12 versões num período de quatro anos. Essas e outras experiências desdobravam-se em diversas situações que Anderson iria reciclar e utilizar em trabalhos futuros, onde objetos, imagens, palavras e músicas funcionariam como “fragmentos-idéia” que seriam recombinados para criar e recriar performances, como numa colagem gerada a partir de

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um processo de “auto-apropriação”, sem, contudo, constituir mero pastiche. Assim, é possível ver, desde o início de sua carreira, por exemplo, a projeção de imagens de aviões e desenhos de silhuetas de pessoas, relógios e casas – cada qual fazendo referência a situações, estados de espírito e questões que busca discutir – aparecerem diversas vezes em várias performances. Da mesma forma, músicas e histórias são freqüentemente recontadas e cantadas – eventualmente com pequenas variações –, tanto em eventos ao vivo, quanto em álbuns e vídeos, formando materiais com características distintas, apesar de se apoiarem em elementos que são invocados e recombinados constantemente. O que chama a atenção, porém, é a natureza dessas repetições, que parece estar imbuída de uma força secreta capaz de ressoar singularmente em nossas mentes. A repetição parece trabalhar aí no nível dos sentidos de forma criativa, favorecendo associações mentais que incitam um processo que Janice Caiafa (2000:68) chamou de “repercussão” ou “pós-vida” da obra, que permite recriar “por contágio”, ou seja, engajando igualmente o espectador num ato criativo. A combinação dos “fragmentos-idéia” produz de fato no trabalho de Anderson uma recorrência de imagens, sonoridades, músicas e histórias ao longo de toda sua carreira, o que passa a ser outra marca de seu trabalho. Contudo, essa recorrência não é simples repetição do mesmo, e sim, uma constância, uma regularidade de idéias e intensidades. Trata-se de um procedimento aparentemente bastante próximo daquilo que Deleuze (1988:22) chamou de repetição, que diz respeito ao que não pode ser substituído. Para Deleuze, a repetição seria uma conduta diante da singularidade, através da qual o que se repete não é o mesmo, e sim, a potência de algo que é único, que não tem equivalente nem semelhante. Para Anderson, o que importa é o uso daqueles elementos como leitmotifs que se relacionam semioticamente com questões que pretende discutir e com sensações que deseja provocar. Com esse procedimento, Anderson vai formar um verdadeiro “banco de dados”, onde fatos e objetos do cotidiano, de sua vida pessoal, da cultura americana podem ser recortados

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e acionados a qualquer instante como blocos de sensação e imaginação. Através da reiteração e do entrecruzamento desses fragmentos, Anderson parece querer produzir um determinado estado de coisas para criar literalmente uma ambiência discursiva feita de imagens sensoriais, visuais, verbais e auditivas. O uso desses procedimentos indica um estilo e um projeto estético processuais, que se definem a partir de encontros e conjugações, que vão, por sua vez, produzir outros cruzamentos criadores. Difícil de ser descrito naquele momento por críticos, seu estilo foi, no entanto, facilmente encaixado por estes nos gêneros artísticos comuns da época. Gêneros que, entretanto, pareciam incapazes de dar conta de um trabalho que, ao mesmo tempo, cabia e vazava dessas classificações. Nesse sentido, é importante registrar o grau de consciência que Anderson sempre teve de suas produções e das formas como elas eram vistas, quando afirma que, no final dos anos 70, seu trabalho foi descrito como “fotonarrativa”, “autobiografia”, body art e finalmente performance art, sendo que body art lhe parecia “o mais estranho de todos” (ANDERSON, 1994:109). Mais tarde, no campo da teoria, seu trabalho seria considerado por vários autores como de inspiração “pós-estruturalista” ou “pós-moderna”, categorias tão amplas quanto à da “performance” no campo das artes e que nunca serviram como referência para a artista. Perguntada, certa vez, se seu trabalho tinha recebido influências de Baudrillard ou Derrida, responde: “absolutamente não. Eu realmente não entendo quando artistas visuais começam a falar de Derrida... Eu não sou uma escritora e acho que escritores é que estão mais interessados nesse tipo de coisa” (apud DERY, 1991:800). O lastro acadêmico de Anderson, no entanto, desacredita essa resposta como ingênua ou fruto de simples desconhecimento. O mesmo se dá – e de forma mais clara – com o termo “pós-moderno”. Segundo McBride, Anderson não costuma usar o termo em conexão com seu trabalho e só o teria pronunciado numa mensagem on-line escrita em 1995, durante a turnê da performance “Stories of the Nerve Bible”. Após descrever uma instalação colaborativa que fizera com Brian Eno (compositor e produtor musical americano) como “um grande armazém auto-

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estocador dividido em labirintos com várias salas espaçosas”, percebeu que Eno havia descrito o mesmo espaço como um “edifício pós-moderno”. Isso levou Anderson a considerar: “Eis uma palavra que eu nunca entendi”. Esse foi um comentário também nada ingênuo, pois em seguida, asseverou: “mas nesse caso faz sentido”. Anderson parece revelar conhecimento sobre a problemática que envolve o termo ao dizer que ele “descreve alguma coisa que está num limite – uma situação ainda não descrita ou compreendida o suficiente para entrar para a língua” (apud MCBRIDE, 1997:263). A distância que mantinha dos rótulos, inclusive o da performance, lhe deu liberdade para explorar distintos campos da arte e da cultura, contrariando muitos dos princípios então esposados pela vanguarda. Curiosamente, pelo menos três fatores parecem distanciar Anderson do que no início dos anos 70 era considerado “performance”. O primeiro era sua intenção de se relacionar com o público e de “tocá-lo emocionalmente” (HOWELL, 192:19). O segundo era o uso intenso de tecnologia e o terceiro era o de não integrar a luta feminista, como faziam diversas artistas de performance, como Carole Schneeman, Joan Jones e, mais tarde, Karen Finley, que usavam o corpo e sua nudez como arma na luta pelos direitos das mulheres. Por essa razão, sua postura foi considerada por muitos artistas como “destoante” e “anti-heróica”, como afirma McBride (1997:166). Na verdade, Anderson se aproximava das tendências artísticas e culturais da época para recolher elementos para seu trabalho, ao mesmo tempo em que se afastava delas para criar um caminho próprio. De certa forma, esse movimento permitiu-lhe fazer experiências que anteciparam práticas comuns nos anos 80, como a apropriação de imagens da mídia e o uso da tecnologia em performances. Esse tipo de trabalho surgia de um grupo de novos artistas – “da geração midiática” – e incluía, no caso de Anderson, o uso intenso de tecnologia e apresentações para um público cada vez mais amplo, eclético e distante de hermetismos e ideo­ logias. Segundo Goldberg, a geração de Anderson partiu aos poucos da arte conceitual para a body art, para a performance, a arte sonora e diversas outras formas artísticas. Essa geração

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“rejeitava a estetização da obra-de-arte e tentava levar as discussões sobre interpretação e significado dos trabalhos de arte para longe das galerias e museus”. Todos realizavam uma arte “ao vivo” (live art) – o que era uma premissa para seus trabalhos –, mas buscavam caminhos próprios. No caso de Anderson, como ela própria afirma, uma de suas tarefas enquanto artista era a “de fazer contato com o público”, o que tinha que ser feito de forma imediata. Como Meredith Monk e Robert Wilson, Anderson faz parte de um grupo de artistas que buscou e encontrou alternativas para seu trabalho, gravando sua própria música, forjando estilos e usando recursos especialmente criados para expressar suas concepções de arte. Segundo Goldberg, esses artistas simplesmente não conseguiam pensar em termos de uma só forma expressiva de uma vez. Antes, seus impulsos criativos tomam formas visuais, aurais, espaciais e seu pensamento multidimensional resultou em trabalhos notáveis que se dirigiam a todos os sentidos. Eles tiveram disciplina, controle e ímpeto para manter todos os canais funcionando simultaneamente como uma fileira de pratos girando no ar (GOLDBERG, 2000:13).

Foi assim que, a partir da segunda metade dos anos 70, Anderson foi tornando-se conhecida no meio de artistas de “vanguarda” e ganhou notoriedade, sendo inclusive convidada para expor e apresentar-se em galerias e museus americanos e europeus. Foi também a partir desse momento que Anderson começou a explorar sons e imagens em trabalhos de escala cada vez maior, ora ao ar livre, ora em ambientes fechados. Um notável trabalho ao ar livre que antecedeu suas megaperformances foi Stereo-Deco – a Canadian-American duet (1977). O trabalho consistiu numa composição musical a ser executada com som pré-gravado e ao vivo, que recocheteava entre as margens do Rio Niagara, fronteira natural entre Estados Unidos e Canadá. O desfiladeiro funcionava como um altofalante gigante que reproduzia e amplificava os sons gerados dos dois lados do rio através de um dueto com piano e violino. Do lado canadense, o dueto era pré-gravado e, do lado america128

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no, ao vivo. A idéia, explica Anderson, era a de que os dois países pudessem realizar uma espécie de “dueto retroalimentado”, composto a partir de uma comunicação bilateral (ANDERSON apud GOLDBERG, 2001:67). Stereo-Deco demonstra como, pouco a pouco, os trabalhos de Anderson foram tomando grandes proporções e indica, de certa forma, a ambição da artista em realizar trabalhos em larga escala. A partir de experimentos como esse, seu trabalho não demoraria a alcançar o aspecto das grandes performances hightech que a tornaram conhecida além dos limites de downtown.

Cruzando as margens: as primeiras megaproduções high-tech Em 1979, Anderson começou a escrever o trabalho que mais tarde se tornaria a primeira parte de United States, com o qual sairia do circuito alternativo e conheceria a mainstream, o circuito dominante da arte. A idéia para Americans on the Move surgiu em uma longa turnê pela Europa, mais especificamente a partir de conversas com amigos europeus que freqüentemente perguntavam “como ela podia morar num lugar como aquele”, referindo-se aos Estados Unidos como uma “terra de alta tecnologia culturalmente decadente”. Tendo voltado ao país, apresenta Americans como resposta. A performance, a mais longa e complexa até então, teve estréia no The Kitchen – um dos templos da vanguarda na época – e, em seguida, no Carnegie Recital Hall – um templo da mainstream –, ambos em Nova Iorque. Para Janet Kardon, com Americans on the Move, Anderson iniciaria uma nova fase, chamada de “cabaré eletrônico”.33 Essa fase foi caracterizada por um envolvimento cada vez maior com tecnologia, como manipulação eletrônica da voz, sons e imagens produzidos ou processados por computador. Ao longo 33. O termo vem da combinação da tecnologia com o antigo modelo popular de performance, caracterizado pelo ecletismo e sarcasmo, usado sobretudo pelos dadaístas de Zurique, no histórico Cabaré Voltaire, e que mais tarde foi apropriado por artistas de performance nos anos 80, conforme explicam, respectivamente, Laurence Selenick (apud CARLSON, 1996:87) e RoseLee Goldberg (1996:191). FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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desse percurso, antigos objetos e temas seriam reciclados e reutilizados, construindo uma obra cujo tempo era formado simultaneamente por presente e passado, a se revolverem continuamente. A recorrência é, aliás, como vimos, uma das marcas do trabalho de Anderson. Uma vez apresentado, o trabalho seria único e o que se repetiria seria a potência dessa singularidade. Americans on the Move, de 1979, com uma hora de duração, mais tarde seria ampliado e se tornaria United States – Parte I, cujo tema central é “transporte”. “Transporte”, para Craig Owens, seria uma metáfora da “circulação” – o movimento do sentido de um lugar para outro” (OWENS, 1983:53). De fato, a primeira cena abre com a projeção de um enorme mapa dos Estados Unidos, num fundo negro. O mapa mostra o país dividido em suas quatro diferentes zonas horárias, cada qual com um relógio, como se quisesse talvez indicar que o espaço não seria a única dimensão da viagem. Com Americans, a artista teria percebido que músicas, textos e imagens que vinha criando ao longo de vários anos eram todos sobre os Estados Unidos. O conjunto desses elementos foi arrumado de forma a produzir um trabalho que, na verdade, era uma complexa versão de trabalhos anteriores, com temas conectados uns aos outros. Segundo Goldberg, seria logo depois de Americans on the Move que Anderson teria se decidido a combinar todas as partes desses trabalhos na mega performance United States, seu maior e mais conhecido trabalho até hoje. O início dos anos 80 fora marcado pelas críticas de diferentes segmentos da sociedade americana aos acontecimentos políticos no país, a partir da chegada do republicano Ronald Reagan ao poder. Na metade da década, com o crescimento da economia, segundo Goldberg (2000:84), percebe-se o fortalecimento do “mercado de arte” e a “cooptação das vanguardas pelo circuito comercial”. Juntamente com a nova onda de consumismo que se consolidava, crescia também o conservadorismo na política. Essa situação fez com que Anderson se perguntasse ainda mais “qual o motor que levava o país cada vez mais para a direita”. Conseqüentemente, seu trabalho durante essa década tornou-se, segundo suas próprias palavras, “mais e mais politizado e engajado” (GOLDBERG, 2000:85).

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Foi com esse espírito que Anderson chegou, em 1983, à versão final de United States (US). Americans on the Move dera lugar a um épico monumental com quase oito horas de duração, estreado integralmente pela primeira vez no Brooklyn Academy of Music, local destinado a espetáculos de Ópera, com aproximadamente dois mil e quinhentos lugares. A performance foi organizada em quatro sessões temáticas – Transporte, Política, Dinheiro e Amor34. Nela, estradas, estações de rádio, histórias bíblicas, imagens de Nova Iorque, sonhos, a vida de políticos e o ritmo da língua falada foram ingredientes que percorreram todas as quatro partes do novo trabalho, cujo fio condutor é a idéia “da América como utopia... uma visão muito ligada à tecnologia” (ANDERSON apud GOLDBERG, 2000:90). United States representou, assim, uma discussão sobre os valores da cultura americana e sobre as mudanças por que o país vinha passando naquele momento. A versão final da performance foi influenciada diretamente pelos trabalhos de Robert Wilson e Philip Glass, que na segunda metade dos anos 70, produziram seus conhecidos trabalhos de ópera-teatro, alguns dos quais com até 14 horas de duração. Em 1976, Anderson assistira a Einstein on the Beach, um dos principais trabalhos de larga-escala de Wilson nos anos 70. A música experimental de Glass, os cenários oníricos, a narrativa non-sense e a proliferação de imagens inspiraram fortemente Anderson a realizar um trabalho nesses moldes. O modelo operístico tornara-se então comum entre artistas de vanguarda da época, e US, ao adotar esse formato, iria igualmente apoiar-se em imagens e sons e teria um apelo mais sensorial que intelectivo, apesar das diversas metáforas e questões que discutia. Esse aspecto sensorial, aliás, é para Anderson “a essência da arte”, a ponto de ela reivindicar para seu trabalho uma aceitação ou rejeição em termos de sensações, mais do que de lógica. Por isso, afirma que seu trabalho “faz sentido, mas através de um arranjo de coisas que atingem primeiramente seus sentidos e não através do cérebro” (apud ARTNER, 34. Anderson, na verdade, utiliza essas sessões como simples referências. Na prática, os temas se entrecruzam a todo instante. Não é raro, portanto, ver imagens e questões das quatro partes refluindo no conjunto do trabalho. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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1982:11). Anderson afirma que em US tentara precisamente fazer uma distinção entre “arte” e “idéias”: “idéias têm a ver com uma linha direta que dá no cérebro; mas a arte passa sorrateiramente entre os sentidos. Ela entra lentamente. Assim, não há tempo para analisá-la” (apud GOLDBERG, 2000:89). United States surge como um olhar perquiridor sobre as (autoritárias) práticas discursivas e não-discursivas da cultura americana, sobre seus pressupostos. O que torna o trabalho singular é a maneira como se dá esse olhar. Para Anderson, US não é uma obra estática, ela se move como seu próprio objeto: “como no trabalho de muitos americanos – Melville, Hemingway e Mark Twain –, muito dele acontece em alto mar. Em perspectiva. Ou na estrada: os diagramas móveis de progresso, utopia e a passagem do tempo”, explica Anderson (apud GOLDBERG, 2000:89). A artista afirma que US foi criado para ser uma “ópera falante” que traçasse uma imagem da América. Contudo, afirma também que esse retrato ia se tornando cada vez mais abstrato, à medida que ia sendo trabalhado: “quando comecei a escrever United States, o concebi como um retrato de um país. Aos poucos percebi que na verdade era a descrição de qualquer sociedade tecnológica e da tentativa das pessoas em viver num mundo eletrônico” (ibid). Outro aspecto interessante do trabalho é exatamente a forma como Anderson constrói as “imagens” que usa para esboçar o “retrato” da América, ou seja, como invoca as questões que quer discutir. Também aí parece existir uma intenção em produzir intensidades, como indica Goldberg: Não importa a gravidade dos temas, ela sempre começa do ordinário, do familiar; daí, suas idéias se espalham como uma rede que se torna mais intrincada, diáfana e onírica em seus limites. Ela usa tiradas espirituosas ao final de suas histórias para esconder a erudição que nutre seus pensamentos. Qualquer que seja o nível de ansiedade existencial que uma música ou história possa implicar, Anderson apresenta idéias de uma forma tão direta que as palavras retêm sua poesia muito tempo após tê-las proferido (GOLDBERG, 2000:87).

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United States I-IV tinha nas culturas oral e de massa sua maior inspiração. As metáforas da estrada, do sonho americano e das qualidades do american way of life e os impactos da mídia e da tecnologia na experiência cotidiana forneciam elementos com grande apelo emocional, que eram processados e devolvidos a um público perplexo – não se sabe ao certo se pelos sofisticados efeitos visuais e sonoros ou se pelo tom sombrio das histórias. Em termos de projeto artístico, US marca, para Goldberg, a passagem da estética (e da performance) dos anos 70 para a dos anos 80 – apoiada nas imagens referentes aos meios de comunicação de massa e à tecnologia. Ao mesmo tempo, a megaprodução escapa rapidamente “dos confins da performance de vanguarda” para ser vista como “a vanguarda da performance contemporânea. Ponto.”, como define John Howell (1992:25). O percurso da construção de United States I-IV foi marcado por uma série de mudanças formais e de propostas artísticas, que se fizeram sentir desde a adoção, por Anderson, de um novo estilo narrativo até a apresentação de um novo visual.­ Essas mudanças marcaram precisamente seu cruzamento da fronteira entre a vanguarda e o pop, a partir de 1983, e já se anunciavam desde 1980, na estréia da segunda parte de Americans on the Move, apresentado no Orpheum Theater, um local convertido em “casa de vaudeville”, no Lower East Side de Manhattan e que seria reforçado com o lançamento da música O Superman, em 1981. A segunda parte de Americans on the Move, que passara a se chamar United States Parte II, contou com uma maior cobertura da mídia e percorreu o país em turnê. A performance consolidou a transformação no estilo de Anderson, que abandona o “jeito tímido de menina country” para assumir a confiança de uma artista experiente. O visual muda: o cabelo comprido e liso dos anos 70 cede definitivamente ao penteado em estilo punk, arrepiado – já usado em 1979, na primeira parte de Americans on the Move –, e as largas roupas brancas são substituídas por um traje negro, mais justo e prático. O estilo narrativo é outro item que sofreu significativa alteração. Enquanto nos trabalhos anteriores os textos têm função

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de comentar as imagens em sua opacidade e em sua resistência à interpretação, agora as imagens é que parecem desenhadas para amplificar os elementos verbais e musicais. Essas mudanças representaram o começo de uma nova fase na carreira de Anderson, onde a artista assumiu um estilo próprio, embora não tenha rompido com as influências que até então incidiam sobre seu trabalho. Foi manejando essas influências que Anderson forjou para si uma nova imagem, como comenta Craig Owens: As vinhetas inocentes de antes foram substituídas por uma teatralidade complexa e uma consciência de estilo new wave. Estilos musicais implicam estilos pessoais específicos. Apesar disso, Anderson não se identifica com nenhum. Antes, ela os invoca, e, assim, mantém uma distância entre ela mesma e seus materiais. A Laurie Anderson que vemos é claramente uma assumida persona (OWENS, 1981:122).

Usando a projeção de filmes e slides mais sofisticados, algumas vezes simultaneamente, United States – Parte II, em 1980, apresenta uma montagem caleidoscópica da vida metropolitana: fotos aéreas de Nova Iorque, algumas em negativo, arranhacéus, a Estátua da Liberdade, trens de metrô indo e vindo em sua regularidade. Imagens de veículos e pessoas em movimento enchem a grande tela de fundo35, à frente da qual Anderson toca seu violino e conta suas histórias. Apresentado na mesma época em que Ronald Reagan foi eleito presidente, em 1980, United States – II corresponde ao tema “política” e esboça mesmo “a imagem de um país à beira do desastre” (OWENS, 1981:122). Na segunda metade da Era Reagan (1980-1989) – com suas ações militares no Golfo Pérsico – houve, segundo Goldberg, um nítido aumento da pobreza, do número de sem-tetos e da violência nas grandes cidades americanas. Foi também um período de grande degradação para a 35. Muitas projeções, segundo Anderson, tinham a função de estender o espaço do palco e transformá-lo num espaço fílmico, no qual ela mesma pudesse tornar-se parte da imagem (GOLDBERG, 2000:143). 134

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cidade de Nova Iorque. Os problemas, contudo, eram amortecidos com campanhas de cunho fortemente nacionalista e pelo estilo insinuante do presidente-ator, alvo de críticas rasgadas de Anderson nessa e em outras performances como Empty Places, de 1989, que retratou o legado desse período. Um dos pontos altos da parte II foi a música-história O Superman, lançada em 1981, na forma de um disco single, e posteriormente incorporada à performance. Dedicada ao compositor clássico Massenet, a música, como todo trabalho de Anderson, tem sua história. Anderson conta que tinha ido em 1978 a um concerto em Berkeley, Califórnia. O tenor Charles Holland estava extremamente nervoso e cantou O Souverain, peça de Le Cid (Massenet), que era uma espécie de pedido de socorro. Anderson diz que ficou tão impressionada com a intensidade da música e com a interpretação do tenor que decidiu fazer uma espécie de versão cover, O Superman. A música só poderia ter sido criada no contexto dos anos 80, pois representou uma reação a um estado de coisas que emergia e tomava de assalto, a um só tempo, a sociedade, os indivíduos e a arte nos Estados Unidos. Seu tom, de uma ironia melancólica, pareceu ser indício da consciência de Anderson do momento político que o país atravessava e teria sido uma forma que ela encontrou para traduzir os temores desse período, marcado por abandono, alienação, crise dos poderes constituídos e das alternativas por eles propostas. Esses temores eram personificados, na música, por figuras de poder e de autoridade – o Super-homem, a Mãe, o Pai, o Lar, os sistemas de justiça e militar. Além de ser uma forma de discutir, portanto, a desolação deixada pelo fim das ilusões do poder, a música evoca, segundo Goldberg, os pilares do sonho americano e algumas de suas figuras icônicas e descreve “um mundo onde a conversa entre familiares se dá mediante mensagens deixadas em secretárias eletrônicas e onde tentativas de resistir à entrada da tecnologia na vida cotidiana resultam apenas em alienação” (GOLDBERG, 2000:90). As palavras finais soam como um profundo lamento: Quando o amor acaba, sempre há a justiça, e quando a justiça acaba, sempre há a força, e quando a força acaba, sempre há a Mãe. Oi, FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Mãe! Então me abrace Mãe, em seus longos braços. Me abrace, em seus longos braços. Em seus braços automáticos, seus braços eletrônicos, em seus braços. Então me abrace Mãe, em seus longos braços, seus braços petroquímicos, Seus braços militares, seus braços eletrônicos.

A “Mãe” – representando a segurança dos valores nacionais, tão apreciados na América – finalmente, mostra suas outras faces, menos acolhedoras – tecnológica, militar, autoritária –, com as quais se procura sustentar o sonho americano. O tom da música é triste e o ritmo, cadenciado do início ao fim por um metronômico “ah, ah, ah”. Enquanto Anderson canta a música, vê-se projetada na tela de fundo uma grande silhueta de um braço estendido num ângulo de 90 graus, com os punhos cerrados. O gesto – símbolo do poder e da força impositiva – é repetido pela própria Anderson durante a performance, que move o braço verticalmente para cima e para baixo. O braço e o punho fechado se tornam a marca da música e a capa do disco single, bem como do vídeo de oito minutos que a artista produziria e dirigiria mais tarde. Anderson lança O Superman em 1981, pelo selo independente 110 Records, de Nova Iorque. Sua idéia era fazer apenas 1000 cópias de um disco single, com custos financiados pela bolsa de 500 dólares que recebera do National Endowment for the Arts36 (NEA) e as cópias seriam vendidas através de pedidos pelo correio. Um dia, Anderson diz ter recebido uma ligação de Londres pedindo mais 20 mil cópias e, na semana seguinte, mais 20 mil. Em pouco tempo, a música alcançaria o segundo lugar nas paradas de sucesso inglesas, não tendo alcançado o mesmo reconhecimento imediato nos Estados Unidos.

36. Controvertido órgão de fomento às artes do governo americano que era criticado pelos artistas por suas práticas de censura e por rejeitar artistas cujo trabalho se apoiasse em “pornografia” ou sexo explícito, como era o caso de inúmeras artistas feministas de performance que usavam a nudez e o corpo como forma de protesto, dentre as quais se destaca Karen Finlay. 136

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Nessa época, a Warner Brothers Records já vinha freqüentando seus concertos e perguntando se Anderson não desejaria gravar com eles. Anderson afirmou não estar tão interessada e que achava a música pop voltada para um público que nada tinha a ver com ela. Por outro lado, ficou impressionada com o interesse repentino de tantas pessoas na Inglaterra em ouvir sua música. Foi então que ligou para alguém na Warner e perguntou se eles não poderiam produzir e distribuir algumas cópias do disco. Eles então teriam dito a Anderson que normalmente não faziam esse tipo de coisa ad hoc e que seria melhor assinar um contrato. Foi assim que Anderson conta ter se visto às voltas, em 1982, com um contrato37 dando a Warner Brothers Records o direito de distribuir sua música “para sempre e por toda parte do universo” (ANDERSON, 1994:155). O benefício imediato de Anderson com o contrato com a Warner foi, segundo Goldberg, o acesso a suporte financeiro para a montagem de equipe e para a aquisição de equipamentos que pudessem “traduzir suas idéias em músicas” (2000:13). O lançamento de O Superman merece comentário à parte, pois teve um grande impacto no trabalho de Anderson. Foi com ele que Anderson cruzou definitivamente a fronteira entre a vanguarda e o pop e alcançou visibilidade e reconhecimento fora de downtown, embora isso não signifique que Anderson tenha se alojado na outra “margem”. Esse movimento inspirou e favoreceu, porém, que outros artistas – que também utilizavam referências da mídia e elementos da cultura de massa em seus trabalhos –, como Eric Bogosian e Spalding Gray, mais tarde migrassem para o circuito comercial via teatro ou TV. O “sucesso” da manobra de Anderson, contudo, viria acompanhado de uma censura severa do mundo artístico, que a acusaria de cruzar as margens da vanguarda para o pop, no fenômeno conhecido como crossover:

37. O contrato previa a produção de seis álbuns, dos quais o primeiro foi Big Science (1982), com músicas presentes nas versões iniciais de United States. A capa do álbum traz Anderson com um óculos de grandes lentes brancas, braços levemente estendidos, caminhando como se estivesse cega e quisesse tatear o espaço. O contrato, que terminou por gerar mais álbuns do que o previsto, terminou em 2000. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Eu descobri rapidamente que, no meu mundo (a vanguarda de Nova Iorque), isso era considerado como ‘ter se vendido’. Demorou um pouco para eu entender, mas finalmente percebi que o julgamento era perfeitamente compreensível. A vanguarda do final dos anos 70 era extremamente protetora de suas próprias idéias, territórios e privilégios. Eu mesma havia me beneficiado dessa atitude. Eu havia sido amparada e protegida por esta rede. Sempre tinha sido um lugar seguro para se trabalhar até eu assinar um contrato com uma companhia ‘comercial’. Alguns anos depois, esse processo ficou conhecido como crossover e passou a ser mais bem aceito pela vanguarda. Em meados dos anos 80, passou a ser considerado um ‘movimento comercial esperto’, já que não havia mesmo sobrado muita vanguarda para comentar. O resultado disso para mim é que eu tinha um público inteiramente novo, um público eletrônico. E eu não tinha a menor idéia do que eles esperavam ou queriam (ANDERSON, 1994:155).

A posição de Anderson em relação à “vanguarda” nova-iorquina naquele momento é bastante interessante. Acusada de “ter se vendido”, a artista vai afirmar que, mesmo tendo “cruzado a margem”, nunca deixou de “pensar como uma artista”. Embora alguns artistas, ao terem igualmente feito o crossover, tenham decidido trocar a vanguarda pelo pop, esse não parece ter sido seu caso. Mesmo após haver “cruzado as margens”, a artista continuou imbuída dos ideais da “vanguarda”, os quais utiliza para manipular elementos do pop segundo seus próprios princípios criadores. Na verdade, cruzar as fronteiras entre a vanguarda e o pop permitiu a Anderson atuar nas duas esferas simultaneamente, acionando e imbricando seus elementos, constituindo um estilo entre a vanguarda e o pop, que chamei de “híbrido”, ou seja, que já não é nem uma coisa nem outra. Logicamente, essa posição ambígua traria riscos para Anderson, como os de ter que, em certos momentos, fazer concessões ao pop. Anderson, porém, ao que tudo indica, preferiu afirmar essa condição solitária e correr o risco.

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Ao trabalhar com elementos dessas duas esferas, Anderson não poderia mais ser considerada estritamente “vanguarda” pelos artistas de vanguarda – para quem Anderson era considerada uma ameaça ao futuro “do artista do Soho”, pois era na falta de reconhecimento comercial que residia o valor do trabalho do artista. Tampouco seria considerada tipicamente pop pelo circuito comercial, em função da natureza de sua proposta artística, que guardava características conceituais e reflexivas. Na verdade, esse hibridismo já estava obliquamente presente em suas fases anteriores, em trabalhos como Jukebox e Duets on Ice, só que agora seu caráter fora ampliado, ao catalisar e refletir de forma mais clara a imbricação dos elementos da vanguarda e do pop no corpo de seu trabalho. Mas o hibridismo desse estilo também era marcado, em parte, pelo desejo da própria Anderson de manter uma exterioridade em relação àquelas duas esferas, desejo que se refletia na distância que voluntariamente tomou de ambas, no intuito talvez de não se permitir limitar ou rotular. Assim, ainda na primeira metade dos anos 80, a partir da contenda com o mundo artístico de downtown, Anderson começaria a questionar o sentido do que então era considerado “vanguarda”, afirmando já não mais saber o significado dessa palavra. Na verdade, Anderson acreditava que o espírito de experimentação da vanguarda não iria realmente desaparecer. Ela própria naquele momento ainda se considerava uma “artista de vanguarda”, pois ainda queria “mexer com a expectativa das pessoas” e percebia que ainda havia “muitas regras esperando para serem quebradas” e que ela faria a sua parte (ANDERSON apud HOWELL, 1992:26). O fato é que, a partir dos anos 90, Anderson preferiria não mais ver seu trabalho classificado como “vanguarda” e passaria a reivindicar para si tão somente o título de “artista” ou de “contadora de histórias”. Uma vez que a vanguarda representada pelos artistas do Soho se tornara apenas um rótulo, uma espécie de gênero artístico – como acontecera à performance – e sinônimo de uma sofisticação que lentamente se inclinava para o consumo, Anderson já não desejaria acompanhá-la, preferindo aparentemente reter a inspiração de seus princípios e ser fiel às suas próprias possibilidades criadoras.

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Assim como se afasta da “vanguarda”, Anderson também guarda uma distância do pop, o que se dá curiosamente tanto por um movimento seu quanto do próprio “mundo pop”, que, em parte, a rejeitaria. A partir de United States I–IV, Anderson passa a ser considerada uma “estrela menor”, do ponto de vista do pop. Segundo McBride, os críticos de música não consideravam Anderson, na verdade, uma “estrela”, o que seria atestado por uma venda relativamente baixa, em comparação a outros artistas “mais bem-sucedidos”. Anderson ficava assim de fora da “comunidade pop” e “particularmente distante do panteão das estrelas”. Apesar disso, do ponto de vista da comunidade artística do Soho, ela era considerada uma “estrela midiática de vanguarda”, por sua visibilidade fora de downtown. Contudo, por pertencer de alguma forma à “comunidade pop”, Anderson sente que mais cedo ou mais tarde teria que fazer concessões. Apesar disso, afirmou na época que definitivamente não se considerava uma artista comercial. Anderson teria inclusive comentado ironicamente – após ter entregado o Grammy de melhor revelação a Cindy Lauper em 1985 – que “até aquele momento não sabia que fazia parte daquela profissão” (apud MCBRIDE, 1997:224). O contato com o pop vai então levá-la a argumentar que o envolvimento comercial não significava controle comercial, posição que nem sempre seria fácil de sustentar. Desse modo, Anderson não vai se considerar nem vanguarda nem pop, o que lhe custaria um preço alto: o de estar constantemente numa corda-bamba. E, decididamente, esse lugar ambivalente não seria suficiente para uma completa isenção – se é que tal coisa seria possível – apesar de existirem alguns exemplos de tentativas de manter “total controle” sobre sua produção, como sua desautorização (à Warner) do lançamento de um disco single da música Language is a Virus como estratégia de promoção de United States I-IV e a recusa em produzir clipes musicais convencionais. O fato é que Anderson efetivamente se viu a partir daí envolvida em uma onda de reconhecimento e convites para trabalhos que redundariam algumas vezes em situações embaraçosas, com as quais teria que lidar. Catapultada pelo sucesso

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de O Superman, em 1981, e da versão integral de United States, em 1983, Anderson, no começo se recusou a participar de produções em que não tivesse controle da forma de como seria apresentada, nas quais ela se sentisse sendo “cooptada pelo sistema” e “vendida como sabão”. Mas a nova situação com a Warner e o “estrelato pop” não demorariam a ser incorporados em seus espetáculos, na tentativa talvez de serem neutralizados. Já na Parte 3 de United States, em Yankee See, Anderson conta ter estado certa vez em Los Angeles, numa “viagem de negócios”. Enquanto conta a história, um gigantesco logotipo da Warner enche a tela. Na história, ela comentava sobre seus objetivos na reunião, onde num determinado momento teria dito: “Escutem, eu tenho uma visão. Eu me vejo como parte de uma longa tradição da comédia americana. Vocês sabem – Perna Longa, Patolino, Gaguinho, Hortelino Troca-Letra, Papa Léguas, Eufrazino”.38 E eles disseram: “bem, na verdade, nós tínhamos algo mais adulto em mente”. E eu disse: “OK, OK! Escutem, eu posso adaptar.” A apropriação da logomarca e a performatização da tensão que a nova situação trazia poderiam ser vistas como uma tentativa de redimir-se do comercialismo. Mas, como sugere McBride, talvez Anderson não tenha sido realmente apenas irônica ao dizer à Warner que “podia adaptar”. Fato é que essas e diversas outras situações embaraçosas são atraídas para o campo de força de seu trabalho, onde então essa tensão parece ser incessantemente trabalhada, trazida à tona para ser discutida. Como afirma Jon McKenzie, ao incorporar seu trabalho nos jogos do “big money” e vice-versa, “Anderson aprendeu a vender e a contar histórias sobre ‘ser vendida” (1997:48), da qual Yankee See é apenas um exemplo. Transformar as tensões vividas em histórias e torná-las públicas em performances ou em livros poderia também ser uma forma de produzir o que Jon McKenzie chamou de “adap38. O formato “cartoon” de desenhos animados inspira Anderson em muitos trabalhos de performance e músicas, demonstrando sua referência recorrente a elementos da cultura de massa. Imagens e ritmos nela presentes são apropriados para conferir um tom lúdico a esses trabalhos, ao mesmo tempo em que servem como ponto de partida para críticas ao consumo e aos meios de comunicação. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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tadores”, mecanismos com os quais ela iria “contra o fluxo ao mesmo tempo em que iria com ele” (1997:48). Os “adaptadores” funcionariam como uma espécie de mecanismo de resistência “de dentro”, para usar o termo empregado por Philip Auslander. Com eles, Anderson se plugaria e desplugaria dessas correntes, adaptando seus mecanismos de resistência aos jogos de poder. O risco do uso desses mecanismos, como já vimos, é grande – o risco de ser contra-apropriado. Contudo, em relação a Anderson, esse risco não define, para McKenzie, “tanto o limite de sua atuação, mas o de sua condição pós-moderna” (1997:48). O uso desses “adaptadores” parece representar, por isso, menos uma impotência ou fraqueza e mais uma esperteza, uma resposta em uma dada situação, uma forma de continuar lutando no contexto de uma cultura que privilegia o mercado. Ao invés de confinar-se em guetos, Anderson parece preferir, em alguns momentos, “seguir com o fluxo”, negando-o, porém, secretamente. O uso de “adaptadores” não teria, por isso, um caráter puramente responsivo, e sim, um caráter criativo que permitiria produzir interessantes subversões. Observando o conjunto de seu trabalho, é possível verificar que dele brotam sempre novas linhas, que tentam descosturar os modelos dominantes. Em muitos momentos, é o próprio trabalho que parece se constituir por meio dessas linhas que fogem e que se aproveita das brechas que cria. Foi assim que, ainda na primeira metade dos anos 80, Anderson torna-se uma referência na cena artística americana e européia, o que despertou a atenção de pesquisadores da performance, críticos de arte e teóricos de distintas áreas.

Blitz multimídia De 1979 a 1984, o foco de Anderson esteve mais voltado para as megaperformances e para a gravação de álbuns musicais com a Warner. O termo “intermídia” – amplamente empregado pelos críticos e artistas americanos para designar o uso de combinação de “mídias” (combined media) ou meios artísticos de expressão (artes visuais, música, teatro, dança, vídeo, performance) – já não parecia suficiente para descrever os trabalhos de Anderson. 142

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Suas produções não associavam apenas alguns meios, mas vários deles, e freqüentemente num mesmo trabalho, num mesmo suporte, simultaneamente. É então que, sobretudo a partir de United States, é possível observar autores e críticos de arte utilizarem o termo “multimídia” para se referir principalmente aos trabalhos de larga escala da artista (KARDON, 1983; REEVE, 1989; BUDNEY, 1997). Esse aspecto “multimídia” começa a ser ensaiado na fase do “cabaré eletrônico”, que, a rigor, não deixa de existir, na medida em que performances de larga escala também foram apresentadas nos anos 90, como Empty Places (1990), Stories from the Nerve Bible (1992) e Moby Dick (1999). À fase do “cabaré eletrônico” vai se sobrepor uma outra, que toma de assalto fatos e situações através não só da combinação de diferentes meios expressivos na interface única da performance high-tech, mas também do ataque-relâmpago feito com o uso combinado dos recursos anteriores com outros não necessariamente integrados à performance. Na verdade, o que Anderson vai fazer, a partir da segunda metade dos anos 80, é acionar estrategicamente os tipos de trabalho de fases anteriores, colá-los e combiná-los entre si e com novas formas de intervenção, de modo a ampliar suas possibilidades expressivas e de crítica. Esse procedimento inaugura a fase que chamei de “blitz multimídia”,39 que parece mais adequado ao tipo de trabalho desenvolvido por Anderson a partir de 1985, ao longo da década de 1990 e no início dos anos de 2000. Nessa nova fase, Anderson começa então a diversificar seus meios de expressão e de intervenção na cena artística, bem como os tipos de trabalho e de dispositivos técnicos. Nesse momento, é nítida a retomada dos elementos das fases anteriores, que se acumulam e sobrepõem uns aos outros em determinados trabalhos. Observa-se então a reutilização de meios como as instalações – que passam a contar também com o uso de dispositivos mais sofisticados –, o investimento em novas tecno39. “Blitz” designava os assaltos-relâmpago das tropas alemães na segunda grande guerra, que pegavam de surpresa os inimigos. O termo “blitz multimídia” aqui empregado foi tomado emprestado de David Sterlitt (1983), embora ele o utilize para descrever a megaperformance United States. Ao usá-lo aqui, portanto, o termo perdeu seu sentido original. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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logias como o vídeo, o CD-Rom e a internet, a participação em palestras e conferências internacionais, a relação de parcerias com outros artistas, a publicação de artigos em revistas especializadas e a realização de performances de pequena escala com pouca tecnologia. Nessa fase, fica claro também que, na realidade, as histórias – e não os dispositivos técnicos – são sua principal tecnologia, como veremos no próximo capítulo. Ainda no estilo do “cabaré eletrônico”, Anderson apresenta, em 1984, a performance Mister Heartbreak (MH) em todo o país e também no Canadá e Japão, o que, na verdade, foi a turnê do álbum lançado pela Warner. A turnê envolveu 35 pessoas e no final deu prejuízo. Totalmente diferente de US no aspecto gerencial e financeiro – US fora em parte subvencionado pelo Brooklyn Academy of Music –, Mister Heartbreak significou para Anderson sua entrada na “economia dos espetáculos”. Decidida a deixar a dependência de bolsas e subvenções do governo, a performance dependeu basicamente da venda dos ingressos. A absorção dos custos da produção a deixou endividada, o que a obrigou a fazer apresentações praticamente todos os dias. Imediatamente após a turnê, Anderson investe no álbum homônimo, o segundo lançado pela Warner. Algumas das músicas pertenciam à US, somadas a outras que ela havia escrito no percurso. Anderson conta que, comparado a US, gravar Mister Heartbreak foi um alívio. MH trazia músicas sobre amor e histórias “sobre um homem, uma mulher e uma serpente”. O ritmo é mais descontraído, divertido e dançante, o que de alguma forma já se fazia sentir em algumas passagens da parte IV de United States, cujo tema era “Amor”. É esse novo conjunto de músicas que em 1985 se tornaria a trilha sonora do “filme-concerto” Home of the Brave. Tempos depois, lançou seu terceiro álbum com a Warner – também Home of the Brave –, com parte das músicas do filme. Aparentemente, tratam-se de diferentes títulos para um mesmo trabalho. O mesmo se daria com álbuns e performances, que poderiam compartilhar o mesmo material, mas teriam estrutura e conceito diferentes, o que justificaria não apenas terem títulos distintos, mas serem também considerados outro trabalho. A esse respeito, a crítica Debra Cohen comenta sobre a dife-

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rença entre a música Big Science cantada em performance (US) e no álbum que leva o mesmo nome (baseado na performance), afirmando que a música cantada no álbum não seria uma simples reinterpretação daquela cantada na performance. Nesse caso, o que parece ocorrer é uma espécie de adaptação de meio expressivo. Enquanto na performance, a música é formatada para uma apresentação ao vivo no palco, onde se destaca mais seu aspecto de história, no álbum ela seria mais “música em si”.40 O fato de o trabalho de Anderson pedir “reestruturações e retraduções constantes”, como afirma Cohen (1982:61), aponta, na verdade, para uma estratégia utilizada pela artista para produzir um trabalho que combinava distintos meios expressivos, sem deixar, porém, de respeitar as características e a linguagem de cada um. Esse seria também o caso do álbum Strange Angels (1989) e da performance Empty Places (1990). Ambas incluíam as mesmas canções, mas levaram nomes diferentes devido ao tipo de meio: o nome Empty Places seria mais adequado para um trabalho espacial de palco e Strange Angels funcionaria melhor para um álbum. Efetivamente, mudando-se o meio, não seria possível considerar dois trabalhos iguais, apesar de compartilharem o mesmo material. Por exemplo: ouvindo o CD e assistindo ao vídeo da performance é notória a diferença de “conceito” a que se refere Goldberg. Enquanto Strange Angels tem um apelo pop com músicas em ritmo quase dançante, Empty Places – apresentado um ano depois – carrega a mesma ambiência sombria de United States, e as músicas, um tom melancólico, totalmente diferente do entoado no álbum. O resultado: dois trabalhos realmente diferentes, embora compartilhando o mesmo material. Com essas “variações sobre o mesmo tema”, Anderson parece simplesmente atualizar uma prática que se tornou uma de suas marcas registradas: a (auto)collage ou (auto)apropriação, a mesma empregada em fases anteriores do seu trabalho para propiciar-lhe uma constante reinvenção. Exemplos disso foram 40. As músicas de Anderson em geral são mais “faladas” que “cantadas”, daí poderem ser consideradas “músicas-histórias”. Ela as chama de “histórias visuais”, o que deixa claro que ela nunca se viu como uma cantora, apesar de seus trabalhos, nos anos 90, tornarem-se cada vez mais musicados. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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O-Range (1973) – que foi performance, foto-instalação e filme – e For Instants (1976), que teve 12 versões e foi apresentado pelo menos 20 vezes durante quatro anos. A produção da performance Mister Heartbreak e do filme Home of the Brave (HB) é outro exemplo dessa estratégia de recombinação. Home of the Brave foi baseado na gravação de uma versão de Mister Heartbreak, que contou com sete músicos em cena e mais 11 pessoas que entravam e saíam ao longo dos noventa minutos de sua duração. Sua realização indica mais uma vez o processo de adaptação de meio, de mudança de proposta entre as peças e, ainda, a auto-reciclagem de seus trabalhos. Ainda que contem com o mesmo material-base, pode-se dizer que são trabalhos distintos entre si, pois o filme não é um mero registro da performance. No caso em questão, as diferenças se fazem sentir em diferentes níveis, desde os sofisticados efeitos visuais produzidos por computador aos acordes e instrumentos usados no filme para tornar músicas e histórias mais adequadas para serem vistas do que ouvidas. Com isso, esses elementos ganham no filme um tom mais irônico e um forte apelo visual. É a própria proposta do trabalho que se modifica, pois no filme as imagens não servem apenas como mensagens de fundo para a performance, mas praticamente passam a equivaler à presença cênica de Anderson e em determinados momentos parecem até superá-la. Talvez seja por isso que Home of the Brave (1985) tenha sido considerado por Anderson um “filme-concerto” ou “filme-performance”, diferente, portanto, dos filmes realizados nos anos 70, como Dearreader e For Instants, nos quais o filme era parte de uma performance ao vivo. A título de recorte estilístico – e não de classificação –, considero Home of the Brave o início da fase que chamei de “blitz multimídia” (de 1985 até pelo menos o início dos anos 2000), por ser um investimento em uma nova proposta de trabalho e em uma “nova mídia” (“filme-concerto”), usada de modo combinado com outras mídias – a performance de larga-escala, músicas, histórias, dança – para expandir suas formas de expressão para além da performance propriamente dita. Segundo Goldberg, a produção do filme foi motivada pelo desejo de Anderson em ter pelo menos uma vez o registro com-

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pleto de uma performance. De fato, trabalhos como United States só existem em fotografias e registros de áudio. Esse interesse surgiu logo após a turnê de Mister Heartbreak, quando Anderson se deu conta de que nunca filmara nenhum de seus trabalhos por mais de 30 segundos.41 Uma vez que tratavam basicamente da duração e da memória, esses trabalhos eram feitos para serem gravados exatamente dessa forma: na mente das pessoas que os tinham assistido. “Então percebi que as pessoas não se lembravam tão bem assim. Elas diziam: ‘lembra daquela performance que você fez com aquele cachorro laranja, há quatro anos?’ E eu responderia: ‘Não havia nenhum cachorro laranja” (apud GOLDBERG, 2000:111). Anderson já fizera incursões pelo meio filme, mas com propósitos diferentes. Geralmente, as imagens eram utilizadas como parte de um trabalho maior, normalmente como cenário ou ambiente de uma performance ao vivo. Um “filme-concerto”, como Anderson o chamou, Home of the Brave foi, contudo, uma experiência considerada por ela mesma como “mal-sucedida”, em que tentou fazer do próprio meio o elemento performático e aboliu o “potencial para o desastre em tempo-real” da performance ao vivo. As críticas negativas recebidas pelo filme a fariam pensar se, no fim das contas, seu trabalho poderia continuar sem esses elementos e se gostaria de continuar subordinada a roteiros e outros tipos de pré-determinações mais rígidas. De toda forma, com Home of the Brave, vemos um retorno ao investimento maciço em projeções de imagens, em sofisticados efeitos high-tech e, sobretudo, às discussões sobre os Estados Unidos e a linguagem. Em 1986, após a produção de Home of the Brave, Anderson sai com a turnê Natural History – coletânea de algumas músicas e histórias de HB e US – para promover o filme, considerado um fracasso de crítica nos Estados Unidos. O filme foi apresentado em vários festivais de cinema, dentre os quais o Rio Cine Festival naquele mesmo ano, sendo esta a primeira das duas vezes que Anderson veio ao Brasil. 41. Mesmo sendo o registro da performance Mister Heartbreak, Home of the Brave como filme serviu para ressaltar e brincar com as imagens de uma forma impossível de ser feita como performance. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Entre 1986 e 1990, a artista lançou seu quarto álbum com a Warner – Strange Angels (1989) – e estreou sua nova megaperformance, Empty Places (1990). Nesse período percebe-se nitidamente que Anderson diversifica os tipos de trabalho e realiza uma série de produções de menor escala. Esses tipos de atividade passariam a integrar seu trabalho ao longo de toda a década de 1990, aumentando seu poder de intervenção e melhor caracterizando o que chamei de fase “blitz multimídia”. Nesse período, seu âmbito de atuação já não mais se restringiria à produção de performances high-tech de grande escala e nem necessariamente à esfera artística, embora estivesse sempre relacionado à arte. Anderson passa então a produzir vídeos, dentre os quais se destacam What you mean we (1986) – no qual contracena com um clone eletrônico de si mesma –, e Personal Service Announcements (1990), uma crítica bem-humorada à TV e ao governo; escreve partituras para espetáculos de artistas como Spalding Gray e Robert Wilson; inicia parceria para futuros trabalhos com Wim Wenders; entrevista artistas e é entrevistada no canal público de TV PBS; participa da produção de documentários para televisão e de concertos beneficentes para arrecadar fundos para a luta contra a Aids e projetos de saúde infantil em Nova Iorque; participa e faz conferências sobre arte, ciência e tecnologia em eventos especializados; é convidada para falar em seminários dentro e fora dos Estados Unidos; planeja criar um parque temático juntamente com Peter Gabriel e Brian Eno, que, no entanto, não sai do papel. Digno de nota também nesse período é o reconhecimento alcançado por Anderson na academia. Em 1987, recebe três títulos honorários de doutora em artes, primeiramente pelo Philadelphia College of the Arts e depois, em 1990, pelo Chicago Art Institute e pelo San Francisco Art Institute. Curiosamente, nenhuma das instituições é da cidade de Nova Iorque, da qual só receberia o prêmio de “aluna distinta” na Escola de Artes da Universidade de Columbia em 1994. Em 1989, Anderson volta ao Rio de Janeiro para apresentar uma versão preliminar de Empty Places (EP), performance de larga-escala estreada oficialmente em 1990, no Spoleto Festi-

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val, em Charleston, Estados Unidos. EP foi a versão de palco do álbum Strange Angels e foi outro pesado investimento em tecnologia. Empty Places tratava basicamente da crise econômica e social em que se encontravam os Estados Unidos no final dos anos 80: Como muita gente, eu dormi politicamente na era Reagan. Quando acordei, tudo parecia bem diferente. Homens e mulheres sem-teto viviam nas ruas de Nova Iorque, centenas de milhares de americanos morreram ou estavam morrendo de Aids e o clima no país era caracterizado por medo, intolerância e ganância. De repente tudo parecia tão pouco familiar. Era esse o meu país? Então decidi escrever sobre esse novo lugar, não porque tivesse as soluções, mas porque precisava entender como e por que as coisas tinham mudado (...) Empty Places é uma pirâmide invertida. Começa com muitas idéias sobre política e música, se encaminha com algumas canções cinemáticas sobre os Estados Unidos e aí se estreita para um final bem simples, uma história sobre quando caí num bueiro destapado e terminei na emergência de um hospital ao lado de uma agoniada sem-teto (ANDERSON apud GOLDBERG, 2000:150).

A história e a mensagem a que se refere Anderson é expressa na música Ramon, uma forma de falar sobre a impotência, segundo ela. Não é à toa que no livro que documenta sua carreira entre 1972 a 1992 – Stories from the Nerve Bible – (1994), Anderson chama Empty Places de “O Lado B do Hino Nacional”, um contra-ponto à ode do “somos o número um! Esse é o melhor lugar!”. Raramente Anderson apontou tão diretamente para certas questões como em EP. Segundo ela, tudo o que faz é “desenhar um quadro”, “fazer uma observação” e “deixar o público tirar suas próprias conclusões”. Empty Places foi uma das poucas vezes em que se sentiu “dando conselhos”, uma vez que sempre afirmava evitar dizer aos outros o que fazer. A última vez que se lembra de ter feito isso foi em 1973, no que considera seu “último ato político em sentido estrito”,

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quando participou com um grupo de feministas de uma manifestação contra a exploração das mulheres em frente a um clube noturno de Nova Iorque. Foi quando uma das bunnies (coelhinas) chegou para trabalhar, viu a entrada bloqueada e perguntou o que estava acontecendo. Anderson estava panfletando e explicou tratar-se de um protesto contra “o tratamento da mulher como objeto e como animal”. Ao que a moça respondeu: “Escute, meu bem. Eu faço 800 dólares por semana aqui. Eu tenho três filhos para criar. Esse é o melhor emprego que eu já tive. Então, se você quiser falar sobre mulher e dinheiro, por que não vai ao Garment District, onde as mulheres ganham 10 cents por hora? Por que não vai marchar por lá?.” “Hummmm”, murmurou Anderson, sem resposta. Após esse “incidente” – que logicamente se transformaria em uma das histórias de Empty Places (Listen, Honey) –, Anderson mudou sua postura em relação ao grupo do qual fazia parte e às suas “lutas”. Então decidiu não dotar seus trabalhos de uma função “política” e nem assumir uma postura de “aconselhamento”. Contudo, em Empty Places, é exatamente isso o que vai fazer. Na música Ramon, por exemplo, encoraja as pessoas à solidariedade (“Quando vir uma mulher machucada, levante-a e carregue-a. Porque não sabemos de onde viemos, não sabemos o que somos”); em Beautiful Red Dress faz um comentário direto sobre a desigualdade dos salários entre homens e mulheres: “Ei, esperem, esperem. Eu quero dizer uma coisa. Para cada dólar que um homem faz, uma mulher ganha 63 cents. Há cinquenta anos atrás eram 62 cents. Com toda essa sorte, será só no ano 3888 que as mulheres irão ganhar uma prata.” Sua metralhadora giratória não pára por aí. Diversos são os seus alvos: a política, os polílticos e as artes – comparação do estilo de discurso de Reagan, Hitler e Mussolini a instrumentos e gêneros musicais; o aumento da dívida interna americana – gerada, dentre outras coisas, pelos gastos militares; a política externa imperialista – em “Pobre México”, “tão longe de Deus e tão próximo dos Estados Unidos”; a censura à “pornografia” nas artes, em particular aos trabalhos de nus masculinos do fotógrafo Robert Mapplethorpe, em “Large Black Dick”; e

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finalmente, a crítica à televisão. Músicas como Shadow Box e Strange Angels são bastante diretas. Nessa última, por exemplo, Anderson entona com voz melancólica: “Eles dizem que o céu é como a TV. Um mundo perfeito... que não precisa de você (...) Anjos estranhos, cantando só pra mim velhas histórias que me atormentam (...)”. Não por acaso, o material produzido por Anderson nos anos 90 focalizou temas relacionados à arte e à política sob a forma de performances e palestras que deu em teatros e universidades, que até hoje são realizadas pela artista. Anderson diz que nessa época via-se como uma “porta-voz” e no dever de proclamar essas questões, daí afirmar sentir-se mais como uma “comentadora social do que como uma artista” (GOLDBERG, 2000:148). Curiosamente, os anos 90 refletem também o interesse de Anderson em produzir trabalhos de performance com um cunho mais intimista. A espetacularidade dos efeitos hightech passam a dividir espaço com intervenções mais simples, cuja força está nas palavras. Em 1991, Anderson participa de uma espécie de exibiçãodebate organizada por RoseLee Goldberg no Moma de Nova Iorque – High and Low: Modern Art and Popular Culture –, onde apresenta Voices from the Beyond, um misto de performance e palestra. O espaço do auditório do Moma era pequeno e suas limitações levaram Anderson a se apresentar sozinha em cena, apenas acompanhada do violino, do teclado e da projeção de um só slide de fundo (uma estrada). Condições mais do que suficientes para discutir temas ligados à política e às condições sociais dos Estados Unidos e que incluíam a invasão ao Kuwait, censura, arte, a condição da mulher, comunismo e Aids. Voices form the Beyond foi um novo marco na trajetória de Anderson, que não se apresentava sozinha e em locais pequenos há mais de uma década. Esta situação agradou bastante a Anderson, que retornava ao estilo de apresentações do começo de sua carreira, apoiada em seu meio preferido, as histórias. Para valorizá-las, Goldberg conta que Anderson usou um “leque de vozes”.42 Os comentários eram feitos com sua própria voz, mas com seus 42. Anderson chama de “audio masks” (máscaras auditivas) esse conjunto de vozes, distorcidas ou dela própria. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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tons e cadências que lhes davam um significado particular e uma sutil teatralidade. A voz macia e as pausas antes dos fechamentos de efeito de suas histórias criavam um leve suspense que ajudava a prender a atenção do público. Quando contava histórias que tratavam de política e queria emprestar às frases um tom de pronunciamento ou ordem, recorria ao vocoder (distorcedor eletrônico de voz). Para comentários e análises ou histórias que tratavam da mulher, usava um tom de “soprano suave” ou uma “voz artística neutra” (GOLDBERG, 2000:155). Anderson lia muitos de seus comentários anotados em folhas de papel e os pontuava com histórias sobre seu próprio trabalho e eventuais acordes de violino ou com músicas e sons alterados com ajuda de um sintetizador. Esse novo formato era uma experiência nova para Anderson, mas que tinha um fundamento, como ela própria explica: Eu não estava certa se Voices from the Beyond era realmente arte e tampouco o público estava certo disso. Contudo, dada às circunstâncias, eu senti que pensar alto sobre essas coisas era a opção mais interessante. Também achei que sem recursos visuais seria capaz de fazer muitas elipses lógicas e verbais.43 Voices from the Beyond foi uma espécie de filme mental (ANDERSON, 1994:268).

Em 1992, Anderson estréia na Expo-92, em Sevilha, Espanha, uma nova performance de grande escala, Stories of the Nerve Bible44 (SNB), a quarta do gênero desde United States. SNB trouxe de volta a tecnologia à cena de Anderson, com curiosos instrumentos e alguns de seus mais elaborados efeitos visuais produzidos por computador, com os quais transformou o palco numa verdadeira paisagem tridimensional. Segundo Goldberg, 43. “(...) I found that with no visuals I was able to make a lot of verbal and logical jump cuts”. “Jump cut” é um termo do cinema que implica a idéia de cortar uma ação em uma cena e, na seqüência, mostrar a ação terminada. 44. Em SNB, Anderson começa a trabalhar com o músico percussionista brasileiro Cyro Batista, que a acompanha durante alguns de seus trabalhos. Mas essa não é a única vez que Anderson se associa com músicos brasileiros. Em 1994 faz uma participação na canção “Enquanto isso”, de Marisa Monte, no álbum Rose and Charcoal. 152

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a performance foi “uma compilação de novos e velhos textos, uma seleção de histórias de seu passado e de perguntas sobre o futuro (...), unindo política, religião, arte e guerra, combinação que ganhou ainda mais força quando Stories of the Nerve Bible foi apresentado em Israel” (GOLDBERG, 2000:156). O humor e a ironia de suas histórias fizeram de SNB um de seus trabalhos mais contundentes, especialmente pelo frescor que muitos dos temas tinham em relação aos locais onde foram apresentados: “a coisa mais estranha sobre Stories of the Nerve Bible em Israel foi o show em Tel Aviv. Na tela havia imagens de prédios que tinham sido destruídos durante a Guerra do Golfo (1991). Esses prédios ficam a apenas alguns quarteirões do teatro” (apud GOLDBERG, 2000:156). Em determinado momento, no palco, foi projetada numa tela cilíndrica uma polêmica frase do futurista Marinetti: “A guerra é a maior forma de arte moderna”.45 O trabalho também tratava do futuro, mas, segundo Anderson, não tinha “nenhuma resposta, apenas perguntas”. Em 1994, lança o livro que levou o mesmo título da performance e que foi uma retrospectiva de 20 anos de trabalho, produzido por ela própria e editado pela Harper Perennial. No mesmo ano, lança o sétimo e penúltimo álbum pela Warner,46 Bright Red, co-produzido por Brian Eno. Bright Red traz músicas como Speak my language e Tightrope, originalmente escritas para o filme Tão perto, tão longe, de Wim Wenders; Night in Bagdad, da performance Stories of the Nerve Bible; Love among the Sailors, uma referência à Aids; e Same Time Tomorrow, onde aparece a pergunta que fez certa vez ao entrevistar John Cage, 45. Na música Night in Bagdad, Anderson satiriza a banalização das imagens dos bombardeios na Guerra do Golfo. Há um trecho que diz: “And oh, it’s so beautiful. It’s like the fourth of July. It’s like a Christmas tree. It’s like fireflies on a summer night. And I wish to describe it to you a little better. But I can’t talk very well right now ‘cause I’ve got this damned gas mask on. So I’m just going to stick this microphone out of the window and see if we can hear a little better. Hello California? What’s the weather like out there now? And I only have one question: Did you ever really love me? Only when we danced and it was so beautiful. It was like the fourth of July. It was like fireflies on a summer night.” 46. O último foi a antologia Talk Normal, lançada em 2000. Em 1995, foi lançado também um CD somente com histórias, em sua maioria da performance Stories from the Nerve Bible. Com isso, Anderson produziu um total de 9 trabalhos com a Warner. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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quando ele tinha 87 anos: “as coisas estão melhorando ou piorando? Podemos começar tudo de novo?”.47 O ano de 1995 marca a incursão de Anderson por um novo meio expressivo: a internet. O site Green Room foi produzido com recursos da Voyager, na época, a principal empresa americana de produtos multimídia, que também patrocinou a tournê da performance SNB na Europa. No ar durante os seis meses de apresentação da performance nos Estados Unidos, Green Room foi, para Anderson, uma forma a mais de “estabelecer contato com seu público” e de efetivamente trocar informações com ele sobre seu trabalho. Através dele, os fans puderam escrever emails para Anderson e obter respostas dela enquanto a artista estava literalmente “na estrada”. Atualmente, Anderson dispõe de um site oficial (www.laurieanderson.com), por onde são divulgados novos projetos, datas de apresentações, imagens de performances recentes e e-mails para contato, de acordo com a finalidade (“assessoria de imprensa e publicidade” e “agendamento e gerenciamento de turnês e shows” na Europa e América do Norte). Levandose em conta que Anderson, apesar de não ter a visibilidade de uma artista pop, é relativamente conhecida nos Estados Unidos fora do mundo artístico “de vanguarda”, essa institicionalização é compreensível.48 Em 1995, Anderson afirmava ter ainda uma visão esperançosa da internet, acreditando que esta poderia ser uma espécie de underground, mas rapidamente percebeu que os rumos tomados por ela – dado pelo mercado – fizeram-na tornar-se “um verdadeiro shopping-center”. Porém, embalada pelo fascínio com os novos meios, lançou ainda em 1995, também pela Voyager, um CD-Rom interativo que abriga 30 quartos ou salas com recursos de áudio e vídeo, que ela afirmou ser “uma espécie de canção de amor para seu computador” (GILLEN, 1995:64). Com 47. Na entrevista ele responde: “Melhorando. Lenta, gradual e talvez imperceptivelmente, mas estão melhorando”. Na música, contudo, Anderson lança apenas a pergunta. 48. Nos Estados Unidos, seu nome ainda hoje é mais conhecido no meio artístico e da crítica especializada e por aqueles interessados em trabalhos de arte menos convencionais. Curiosamente, Anderson parece ser mais conhecida e respeitada na Europa. 154

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Puppet Motel, Anderson investe mais uma vez em seus jogos de linguagem – e com a linguagem –, a exemplo do que fizera anteriormente com os meios expressivos “escultura, instalação, performance” e “história”. Depois das incursões com (e por) novos dispositivos técnicos e da extravagância tecnológica de Stories from the Nerve Bible, Anderson retorna, em 1996, ao modelo de intervenção low-tech, nos mesmos moldes de Voices from the Beyond, de 1991, modelo esse que passaria a usar quase alternadamente com suas megaproduções high-tech. Curiosamente, livrandose do aparato técnico, o trabalho parece mostrar sua força real, que nunca dependeu desses dispositivos, e sim das histórias, como afirma Scott Stroot (1998:28). Speed of Darkness (SP) foi uma performance solo que percorreu os Estados Unidos e a Europa por dois anos e que foi uma coleção de histórias “sobre o futuro da arte e da tecnologia”. “Estou me despindo”, afirmou Anderson em entrevista a David Holthouse (1996), da revista Tweak. “Vou ser a vanguarda do retrô tecnológico (...) Eu simplifiquei. Mas é claro que simples para mim é ainda alguma coisa.” A exemplo de Voices from the Beyond (1991), em SP Anderson está só em cena, apenas acompanhada de dois teclados, dois microfones – ligados a sintetizadores para distorcer a voz – e o violino digital. Com esses recursos, Anderson consegue obter interessantes efeitos sonoros. No palco, ela toca, fala, canta e mixa sozinha todos os sons e consegue criar e manter uma “relação pessoal, quase íntima com o público” (STROOT, 1998:28), fazendo lembrar suas performances dos anos 70. Como já havia indicado, nessa nova fase, Anderson lançaria mão de vários recursos e canais para amplificar sua crítica. Em 1997, ainda no período da turnê de Speed of Darkness, Anderson escreve um artigo que foi publicado na revista suiça Parkett, que dá o tom de suas mais recentes críticas ao uso corrente da tecnologia na arte. Em Control Rooms and other stories – confessions of a content provider, Anderson conta que uma das principais coisas que aprendeu indo a conferências sobre tecnologia é que já não existe mais uma coisa chamada “artista”:

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nós agora somos oficialmente conhecidos como provedores de conteúdo. Por que isso soa como algo da revolução cultural chinesa? (pequenas vozes amplificadas pelos sistemas de som: ‘provedores de conteúdo, por favor, agrupem-se no pátio para receber informações sobre alojamento’). No começo achei “provedor de conteúdo’”um dos piores termos que já tinha ouvido. Aí pensei por um tempo e me acostumei e depois de um ano ouvindo isso, estou completamente ajustada. Parece prático e inevitável (ANDERSON, 1997:127).

Ironias à parte, uma vez que a tecnologia está em toda parte, é compreensível que muitos artistas tenham desejado lidar com os dispositivos técnicos. O que Anderson observa, porém, é que a forma como isso tem acontecido merece atenção e cuidado. Muito da arte que vem sendo chamada de tecnológica – que se apóia basicamente em tecnologia ou na manipulação da tecnologia – tem feito Anderson pensar que os artistas nem sempre estariam usando as ferramentas certas: “agora que quase todo mundo está desenhando alegremente com Photoshop, fazendo milhões de sites coloridos e criando imagens escaneadas de alta definição de borboletas interativas programadas para fazer música ambiente e se encontrarem em espaços virtuais, talvez seja uma boa hora para os artistas começarem a pensar em outras perspectivas” (1997:128). Fazendo a sua parte, Anderson propõe no artigo uma série de terapias para curar “artistas que têm usado tecnologia demais”. A proposta teria surgido a partir da idéia de um amigo que ia abrir um clube em Londres, onde aconteceriam workshops multimídia e os artistas poderiam usar os mais sofisticados equipamentos. Contando ao amigo sua teoria de que os artistas estavam usando as ferramentas erradas, ela teria então sugerido oferecer tais terapias lá. Assim, uma das terapias seria a “terapia da escala”, que ajudaria a perceber “como, por um lado, seríamos uma partícula infinitamente pequena no cosmos e, por outro, seríamos capazes de encher uma sala inteira com apenas uma idéia”. Já a “terapia da música” envolveria a elaboração de uma lista com

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palavras que nunca aparecem em canções – “como vapor, advogado, cálcio, imbricação” – e escrever músicas com o maior número possível delas. A “terapia da peruca ou da identidade” usa o princípio de que “se você deixa de saber quem é, isso o liberta”. A terapia surgiu, segundo Anderson, inspirada por amigos estressados que trabalhavam em um escritório. Ao reparar que depois de voltar da parada para o café voltavam ainda mais estressados, resolveram tentar usar perucas. Então, todos os dias, às 11 da manhã, eles paravam e iam para uma pequena sala onde vestiam perucas por 15 minutos. “Depois de algum tempo eles não estavam bem certos de quem realmente eram, mas se sentiam bastante relaxados.” Outro exemplo, finalmente, seria a “terapia do ego”, que questionaria se arte seria uma forma de auto-expressão. Ironicamente, Anderson se coloca como a primeira cobaia, ao contar que construiria em seu próprio loft uma “sala do ego”, com uma parede bem alta com fotos de seus shows, dela mesma, de prêmios e boas críticas. No meio haveria um trampolim e ela ficaria saltando para poder olhar as imagens fixadas nas alturas. Anderson termina o artigo com um comentário sobre a internet e como ela deixou de ser uma grande biblioteca para se tornar um lugar de controle, a partir da privatização do acesso às informações para fins de comércio. O que, porém, se destaca nesse comentário de Anderson, ao final de seu artigo, é a figura do controle que ela evoca. Dos comentários de Anderson depreende-se que a fascinação pela técnica parece provocar nas pessoas uma forte expectativa e um desejo voluntário de encaixe nos modelos de discursos e práticas que prometem realização e felicidade através da tecnologia. Seria possível afirmar, a partir disso, que, tal desejo concorre para a produção de uma subjetividade empobrecida que vai, por sua vez, retroalimentar esse desejo de encaixe. Essa produção de um desejo encaixado se insere na discussão feita por Félix Guattari sobre as “modelizações da subjetividade”. Com o termo “subjetividade”, Guattari (1999:33) pretende trazer para o âmbito do coletivo uma experiência “assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares”, gera-

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da a partir da circulação de informações em diferentes esferas (social, econômica, política, cultural, sexual, familiar, artística etc.). Nesse sentido, como afirma Caiafa (2000:65), o pessoal seria “uma passagem, um lugar de cruzamento de componentes que Guattari chama extra e infrapessoais”. Segundo Caiafa, o capitalismo se apóia em uma função subjetiva para se perpetuar. A figura da fascinação com a tecnologia, invocada por Anderson, pode ser considerada um exemplo de exercício dessa função subjetiva empobrecedora, que vai formar o que Guattari chamou de “subjetividade capitalística”. Através dessa figura da fascinação, o que se modeliza é o próprio desejo, ao determinar-se sutilmente o que é dado desejar. Nesse caso, as terapias ironicamente sugeridas por Anderson indicam a necessidade de se lutar contra a idéia aceita por alguns artistas de que a performance do dispositivo técnico por si só seria arte. Usando os termos de Guattari, seria possível também ver nessa preocupação de Anderson a constatação de uma forma de produção da subjetividade capitalística no meio artístico – através do uso acrítico dos dispositivos técnicos –, que, em vez de obras-de-arte, faria surgir objetos para o consumo. Ao fazer uma crítica ao modo como artistas vêm se relacionando com a tecnologia, Anderson parece, de alguma forma, abordar a relação que se insere no processo que Caiafa identificou como sendo o da “espacialização do tempo” no capitalismo (2000:62). Segundo Caiafa, o capitalismo trabalha contra a duração e o tempo das intensidades, da criação, da diferença. Se arte deve ser vista em sua relação com um tempo intensivo e não espacializado, a constatação de que “os artistas não estão usando as ferramentas certas” é bastante oportuna. O problema, para Anderson, não é o uso em si de tais ferramentas, mas a “perspectiva” dos artistas, que não estariam trabalhando necessariamente com a temporalidade de criação, e sim, com a velocidade que banaliza e favorece o consumo. As “terapias” referem-se, afinal, à sugestão de se fazer uma arte que explore as potencialidades dos dispositivos técnicos, mas que não se resuma à manipulação desses dispositivos. Portanto, a fascinação do homem com a tecnologia e também seu uso acrítico por alguns artistas estariam concorrendo, segundo

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Anderson, para a construção voluntária de formas de controle ou da sujeição a formas de controle cada vez mais sutis. Ao concluir o artigo, Anderson afirma: o que estou tentando dizer, é que aqui estamos no final do século XX construindo nossas próprias salas de controle, em nossas casas, escritórios e estúdios. E as histórias que contamos a nós mesmos são sobre como cada vez ser mais perfeitos, cada vez estar mais em controle. E, embora eu esteja fascinada por esse processo, me pergunto que tipo de arte poderia ser feita sem anarquia (ANDERSON, 1997:135).

Curiosamente, em 1998, Anderson produz uma grande instalação multimídia no Museu da Fundação Prada, em Milão, Dal Vivo, que não foi a única grande instalação realizada por Anderson na década, comprovando sua disposição para atuar em distintas frentes e demonstrando que jamais abandonara totalmente a escultura. Entre 1994 e 1998, a artista organizou cinco instalações, todas com grande investimento em tecnologia, dos quais se destacam Dal Vivo e a exibição que preparou para concorrer ao Prêmio Hugo Boss, na filial do Guggenheim, no Soho, em 1996, apresentada por um papagaio eletrônico, Uncle Bob. Em 1999, realizou aquela que seria sua última grande performance high-tech do século. Songs and Stories from Moby Dick foi o primeiro trabalho da artista baseado em uma obra autoral (Herman Melville) e também o primeiro a utilizar atores que contracenavam com ela, em performances de estilo “ópera eletrônica”. Para Auslander (2000:33), o grande desafio de Anderson nesse trabalho reside na própria tentativa de usar um texto que não era o seu – do qual Anderson, porém, afirma usar apenas 10% – e discutir suas próprias questões e dúvidas evitando banalizar a obra sem, contudo, ser engolida por ela. A performance – a primeira em quatro anos, desde Stories from the Nerve Bible, de 1995 – recebeu um grande número de críticas em colunas de artes dos jornais americanos e gerou entrevistas e artigos publicados em revistas especializadas.

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A escolha de um texto de Melville não é uma surpresa. Anderson já havia feito referências ao autor em vários trabalhos ao longo de sua carreira. Além de ser um de seus escritores preferidos, foi Melville quem inspirou seu estilo narrativo, seu jeito direto de se dirigir ao público. Em entrevista a Nicholas Drake, publicada na revista Art Papers, em 2000, Anderson afirma que o que mais chama sua atenção em Melville é seu estilo. Com ele, Melville parece descentrar-se e tornar-se “muitas pessoas, uma multidão”, escrever “com muitas vozes diferentes” e de uma forma imprevisível (ANDERSON, 2000). A linha narrativa de sua obra mais conhecida, Moby Dick, por exemplo, assemelha-se, de fato, a uma longa espiral, em que histórias e personagens – suas muitas vozes – aparecem, são inesperadamente cortados e voltam a aparecer centenas de páginas depois. Não por acaso, Moby Dick desenvolve temáticas presentes em muitos dos trabalhos de Anderson, conforme explica a própria artista: “É sobre americanos. Tem mapas, água, escuridão e autoridade.” Nesse trabalho, as questões levantadas não são tão políticas, afirma Goldberg, mas existenciais, e fazem ressoar a preocupação de Melville com a busca do significado da vida. Para Anderson, apesar de Moby Dick ter sido escrito em 1851, teria muito a dizer aos americanos do final do século XX, com os quais se assemelharia, ao afirmar que ambos são: “obsessivos, tecnológicos, prolixos e em busca do transcendente” (apud GOLDBERG, 2000:185). Toda força narrativa do trabalho parece se desenrolar em torno de uma célebre frase que Anderson toma do sermão de um padre e que se torna uma pergunta-chave: “For what is man that he should live out the lifetime of his God’ e que ela adaptou para “what is a man if he outlives the life of his God” (o que é um homem se ele vive além do tempo de seu Deus?). A interpretação de Anderson para a pergunta foi uma outra pergunta: “o que você faz quando deixa de acreditar em tudo aquilo que moveu sua vida?”. Pergunta que, para Goldberg, seria, sem dúvida, “uma pergunta que Anderson faz a si mesma” e para a qual Songs and Stories from Moby Dick seria “sua musical e visualmente inebriante resposta” (GOLDBERG, 2000:185).

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A sensação de que Anderson estaria buscando respostas para si mesma fez com que alguns críticos afirmassem que ela estaria, metaforicamente, buscando “sua própria baleia”, embora as especulações seguissem em distintas direções. Nicholas Drake, por exemplo, vai vincular essa busca ao desafio de “adaptar” a obra autoral de Melville à estética de suas performances e à discussão de questões existenciais. Já em entrevista à revista Sonoma County Independent, Anderson afirmou à Greg Cahill que Moby Dick é basicamente sobre a “busca”, e, sobretudo, sobre “alguém que procura por algo tão grande e desconhecido, algo por que sempre procurou durante toda sua vida e que se sabe que quando encontrá-lo irá matá-lo”. Ao ser perguntada por Cahill sobre qual seria “a sua baleia”, Anderson responde que seria o “olho dos sentidos” e a música, por ser o que a levariam a lugares que ela não espera. Ao destacar a experiência da busca, Anderson se compara à própria baleia, que não tem objetivo fixo, que apenas se move, em direção a coisas, olhando e procurando por elas, “ziguezageando intuitivamente e tentando manter seus olhos abertos”. Ao final, afirma: “o que você pode encontrar pode não ser aquilo que estava procurando”. Para Eric Weisbard, do jornal novaiorquino Village Voice, teria sido exatamente isso o que aconteceu a Anderson. Em um artigo de outubro de 1999, Weisbard afirma que Anderson teria “arpoado” a si mesma, ao procurar empreender sua própria busca, a caçar sua própria baleia, insinuando que ela teria sido “morta” pelo que ela mesma procurava, no caso, seu próprio sentido de busca e seu próprio trabalho, que teria perdido o frescor e o vigor de 20 anos atrás. Ironicamente, termina o artigo satirizando a frase-chave usada por Anderson na performance: “what is an artist if she outlives the lifetime of her buzz?” (“o que é uma artista se ela sobrevive ao tempo de seu próprio murmúrio?”). Auslander também vai relacionar à Anderson a idéia de Melville de que “aquilo que você procura a vida inteira pode eventualmente comê-lo vivo”. Mas, em sua interpretação, o risco estaria agora ligado à tecnologia. Ao apoiar-se nela para

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“modificar sua identidade e permitir-se desaparecer”, Anderson correria o risco de “perder o controle e ser comida viva pela tecnologia” (AUSLANDER, 2000:32). Contudo, afirma que Anderson parece trabalhar esse risco e utilizá-lo a seu favor. Ao afirmar o risco da busca em seus trabalhos, Anderson pode efetivamente perder-se e “encontrar aquilo que não estava procurando”. Mas, afinal, o que seria uma artista se ela não tentasse sobreviver ao tempo de sua própria obsessão? Após Moby Dick, Anderson apresenta um novo trabalho low-tech, Live from New York, que ganhou um significado especial, ao ser apresentado de 18 a 21 de setembro de 2001. A apresentação – com músicas do último álbum produzido pela Warner em 2000, a antologia Talk Normal, e do mais recente, Life on a String, gravado pelo novo selo Nonesuch, em agosto de 2001 – não poderia ter acontecido num lugar e num momento mais significativos: ao vivo numa Nova Iorque que ainda se recobrava do atentado ao World Trade Center. O show concebido antes do dia 11 de setembro para promover o novo álbum acabara tornando-se uma performance e, ao mesmo tempo, um lamento apresentado apenas oito dias após os ataques às torres gêmeas. Suas músicas e histórias, que segundo o crítico Jon Pareles, por mais de duas décadas tratavam de “situações em risco de desastre”, nunca foram tão atuais, deixando de ser “oblíquas” para serem “proféticas” (PARELES, 2001:A22). A seleção musical parecia ter sido minuciosamente preparada para a ocasião. Além de algumas músicas do novo álbum, que contém canções da performance Moby Dick, Anderson também cantou O Super Man, de 1981, e Let X=X, do álbum Big Science, de 1982, que inclui uma passagem que diz “I feel – feel like – I am – in a burning building – and I gotta go”.49 De Life on a String, Anderson cantou canções como One Beautiful Evening, que termina com uma frase de efeito que deixou a platéia em um pesado silêncio: “funny how hatred can also be a beautiful thing. When it’s sharp as a knife. As hard as a diamond. Perfect”.50 49. “Eu sinto – sinto como – se estivesse – num prédio em chamas”. 50. “Engraçado como a raiva pode também ser algo magnífico. Quando é afiada como uma faca. Dura como um diamante. Perfeita.” 162

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Em Statue of Liberty, enquanto se ouvia a simulação de sinos tocando, Anderson cantava “freedom is a scary thing. So precious, so easy to lose51” (“A liberdade é uma coisa assustadora. Tão preciosa, tão fácil de se perder”). O título Life on a String – nome do álbum que estava sendo divulgado naquela noite – não poderia ser mais sugestivo para o momento vivido pelos americanos e nova-iorquinos, em particular. A apresentação termina com a música que Anderson escrevera para falar da Aids, nos anos 90, Love Among the Sailors. Só que a praga que “chegara a todos os portos” parece ter ganhado uma outra conotação, a da onda de terrorismo e violência que se desencadeara. Retornando ao palco a pedidos, canta Coolsville, do álbum Strange Angels, de 1991. Coolsville era a visão de uma cidade perfeita que ficava “apenas a mais uma estação de trem”, mas que nunca parecera tanto uma utopia quanto agora. Havia, assim, no show um tom de grande pesar, mas não de desespero, como afirma Jon Pareles, para quem as músicas “reconheciam o pior e ponderavam aonde ir a partir dali”. As ponderações de Anderson não tardariam. No início de 2002, a artista saiu em turnê por todo o país com um novo trabalho, Happiness. Como em suas performances low-tech anteriores, Anderson aparece sozinha no palco apenas com sintetizadores, um teclado, um par de microfones e, claro, um violino. Sem imagens visuais. Uma nova coletânea de antigas histórias e referências ao ataque às torres gêmeas, entremeadas com o uso de alguns de seus velhos artifícios – os óculos auditivos (audioglass) que transformam seu crânio em percussão e a bateria luminosa instalada na boca, ambos utilizados em Home of the Brave, em 1985. No programa do espetáculo, Anderson afirma que tem tentado encontrar meios de fugir de sua própria perspectiva colocando-se em situações inusitadas. O choque do terrorismo, porém, a levou a um outro lugar, de medo e incertezas. A questão que se coloca agora para ela é “em que realmente acreditamos depois de tudo isso?” 51. Anderson alterou a letra. No original canta: “Freedom is a scary thing. Not many people really want it” (não são muitas as pessoas que realmente a querem). FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Goldberg observa que, com Happiness, a artista se distancia um pouco daquilo que ouve ou observa e retorna às histórias autobiográficas. Anderson considera, de fato, o trabalho como uma espécie de auto-retrato e uma forma de “olhar o mundo”, como afirma no texto do programa do espetáculo: “Happiness é meu jeito de olhar para as coisas que me interessam e que me intrigam: a evolução do comportamento, como aprendemos e o que lembramos, expectativas, o significado da justiça e os efeitos da crescente velocidade tecnológica, coloridos pelos elementos sombrios da dúvida e do medo”. De pé no palco, atrás do teclado conectado a sintetizadores, Anderson inicia Happiness com um melancólico solo de violino. Em seguida, passa para o teclado, do qual tira sons com que comporia a ambiência das histórias a serem contadas naquela noite. Sua voz é calma e aveludada e os movimentos, suaves. Apesar das distintas operações com os instrumentos e dos ajustes cortantes nos filtros eletrônicos ligados ao teclado e aos microfones, surpreende a espontaneidade com que ela aciona e domina toda aquela parafernália, imprimindo-lhe o ritmo harmônico característico de suas performances. Ao apresentar o novo trabalho, Anderson revela a maneira como sua mente funciona: reconhece que toda história deve ter um começo, um meio e um fim, mas, citando Godard, diz que isso não precisa acontecer “necessariamente nessa ordem”. Daí para ela as histórias de Happiness “flutuarem e as imagens se repetirem de formas diferentes”. A música funciona como uma marcação para o ritmo do trabalho e as sonoridades do violino e do teclado são elementos que ela maneja como um DJ e que permitem a improvisação em cena. A “vida por um fio” – nome de seu último álbum lançado antes dos atentados – define bem o sentimento de medo e insegurança que tomava conta do país naquele momento, sentimento que contrastava com o título da performance. De fato, Happiness tinha um tom melancólico. Pelo menos, foi assim na apresentação a que assisti em março de 2002, em Princeton, New Jersey. Segundo os comentários de fans que pude acompanhar, pelo grupo de discussão sobre Anderson na internet à época, parece ter havido algumas variações ao longo da turnê,

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o que é uma característica de seus trabalhos. Mas, aparentemente o tom melancólico de Anderson parece ter permanecido inalterado, o que em princípio indicaria que este faz parte da proposta do trabalho, que é a de propor uma reflexão sobre valores, sobre a vida e seu sentido após o 11 de setembro. Talvez fosse esse mesmo seu objetivo. A atmosfera do trabalho parece ser explicada, pelo menos em parte, por uma entrevista dada por Anderson em 1996, à revista Tweak. A última pergunta evocava uma passagem do álbum Bright Red (1995) que reproduz a questão que Anderson fizera, certa vez, a John Cage: “O que eu realmente quero saber é isso: as coisas estão melhorando ou piorando?”. Ao ser indagada se ela já havia chegado à sua própria conclusão sobre o assunto, responde: Vejo que no geral as coisas estão melhorando. Mas eu sou uma otimista desiludida. Procuro ver as coisas que melhoram mais do as que pioram, porque, você sabe, nós temos que viver aqui. E acredito que todos podem escolher entre ser otimista e pessimista, não importa o que aconteça com você. Você pode tirar idéias horríveis de coisas boas e também o contrário, é claro. Assim, por conveniência e felicidade, escolhi ser uma otimista (ANDERSON, 1996).

“Felicidade” e “otimismo”, para Anderson, não parecem, afinal, representar um sentimento efusivo ou um estado de realização ou plenitude. Antes, constituem uma interrogação ou uma suspeita. Através da construção de um estilo e de uma obra que por mais de 30 anos busca “interromper os fluxos do poder coercitivo em favor do fluxo da criação” (CELANT, 1998:23), Anderson parece fazer do otimismo um modo de resistência. Um otimismo que é insistência e atitude crítica, que faz lembrar o modo como o crítico Serge Daney se coloca diante dos impasses do cinema do pós-guerra, e que Deleuze descreve em Conversações. Nesse texto, Deleuze (1992) comenta sobre quando o pessimismo de Daney, frente aos riscos de empobrecimento do cinema pelo contágio da linguagem da TV, cede a um “otimismo crítico”, que vinha da percepção de que muitas FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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dessas experiências do cinema eram simplesmente seu “devir TV” e não seu destino irremediável. Tal parece ser a disposição de Anderson com relação à tecnologia e à arte. Talvez o otimismo de Anderson não venha apenas de uma simples esperança, mas da percepção de que seu trabalho pode produzir fluxos capazes de tocar as pessoas, o que permite que elas vejam o mundo por outros ângulos. É o que faz de Anderson uma espécie de “anjo estranho”, como a chamou David Holtouse (1996). Um anjo que usa poderes artificiais para criar outras realidades. Pelo menos, foi essa a impressão que tive ao ouvir, por acaso, o trecho de um comentário feito por um casal que também havia assistido Happiness naquela noite. Cortando caminho por entre os prédios do campus da Universidade de Princeton, para tomar o ônibus de volta à Nova Iorque, seguia logo atrás do casal, quando ouvi a mulher dizer: “É incrível como ela consegue nos transportar para um outro mundo.” “Um outro mundo”. Utopia. No sentido que virou lugar-comum, utopia remete um lugar ideal, perfeito. No sentido positivo, porém, proposto por René Scherer52 – certamente inspirado por Deleuze –, utopia pode referir-se à idéia de um lugar hospitaleiro, real, contudo, que acolhe a diferença e outros possíveis da realidade. Um lugar que permite sempre pensar, sobretudo diante da falta de perspectivas, “aonde se pode ir daí”.

52. Em conferência intitulada “Hospitalidade”, realizada no Instituto de Psicologia da UFRJ e organizada por Virgínia Kastrup e Janice Caiafa, em 27 de novembro de 2002. Scherer associa o termo hospitalidade a um “acolhimento incondicional do diferente” e usa a figura da utopia como uma ilha que franquearia livre passagem a todo e qualquer estrangeiro. 166

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4. Narrar, estranhar: histórias sobre linguagem, identidade, tempo, poder e tecnologia

Como ventriloquista, tenho lançado para longe minha voz. Longa distância é a história da minha vida. E nas palavras do artista Joseph Beuys, “se você se corta, é melhor enfaixar a faca”. Laurie Anderson

O projeto artístico de Laurie Anderson pode ser caracterizado pela articulação de uma série de elementos. A acumulação e mistura de distintas formas expressivas; as experimentações com as formas narrativas e com a tecnologia; e o deslocamento de sua presença e identidade para dar corpo e voz aos no bodies, anônimos que povoam seu cotidiano e sua carreira. Em seu trabalho, Anderson fragmenta, cola e se apropria de palavras, objetos, imagens, sons e discursos – por vezes já fragmentados – para com eles elaborar alegorias com diversas camadas de significação, que ela justapõe formando verdadeiros palimpsestos de sentido. O modo de organização dos elementos de sua obra – “fragmentos-idéia” ou “unidades de significação” – podem aparecer sozinhos sob a forma de pequenos trabalhos ou combinados entre si em trabalhos maiores e concorrem para a criação de uma complexa rede de narrativas, que é, ao mesmo tempo, a base de seu processo criativo e uma ferramenta para questionar as palavras de ordem do presente. Esses questionamentos podem ser vistos como uma forma de resistência que Anderson produz com o uso de dispositivos FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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de deslocamento, próprios para produzir fraturas em discursos e práticas sociais dominantes. São dois esses dispositivos: as “histórias”, por meio das quais Anderson problematiza fatos cotidianos, dilui a função autoral de sua presença e faz ressoar outras vozes, individuais e coletivas (humanas, culturais, políticas, de gênero); e a “tecnologia”, pela qual descorporifica sua presença, manipula sua identidade através da mediação, cria seus disfarces e duplos, se conecta e desconecta dos fluxos do poder e cria ambiências para suas histórias. Esses dispositivos funcionam de forma intricada, por constituírem quase sempre um a base do outro, na medida em que sua combinação é necessária para produzir o efeito estético desejado pela artista. É a ação conjunta desses dispositivos que lhe garante a possibilidade de destacar fatos e discursos do cotidiano para serem desnaturalizados e discutidos. Neste capítulo, começaremos a tratar do primeiro dispositivo, as histórias. As histórias de Anderson desempenham três importantes tarefas de “deslocamento”. A primeira é exatamente destacar fatos da cultura e do cotidiano e tirá-los de sua familiaridade, questionando sua naturalidade; a segunda é diluir a autoridade de sua presença, em favor, basicamente, da presença de seus duplos ou “alter egos” e da voz dos no bodies que invoca em seus contos; e a terceira, a de deslocar sua própria identidade por meio da criação de uma persona, máscara que lhe permite adiar sua identidade e despistar certas relações de força que procuram aprisioná-la em rótulos e interpretações. Comecemos por esta última tarefa de deslocamento.

Persona Anderson: narração e performance de si A criação de uma persona parece ser o mecanismo que dá sustentação às demais tarefas de deslocamento, uma espécie de núcleo em torno do qual se articulam as outras estratégias narrativas baseadas na desconstrução. A persona Anderson é o efeito primeiro do deslocamento de sua figura, ou seja, a criação de uma imagem narrativa de si, uma máscara que ela manipula e que lhe permite criar outras imagens dela mesma e posicionar-se como “moderadora de coisas e discursos”, como ela mesma diz. 168

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O resultado imediato desse tipo de deslocamento é “a formação de não apenas uma imagem de Anderson, mas de várias delas”, como afirma Samuel McBride (1997:2), que se originariam, em parte, dos modos como Anderson se apresenta e é apresentada (ou representada) em críticas, artigos e teses e que variam conforme a instância discursiva. Segundo McBride, para estudiosos da linguagem, da cultura e da performance, por exemplo, Anderson seria considerada tanto uma típica representante do pós-modernismo, quanto do feminismo; já para críticos e fans, pertenceria tanto à “vanguarda”, quanto à “cultura pop”. Curiosamente, mais do que um efeito produzido por outrem, a persona Anderson tem na artista sua principal origem enunciativa, ao constituir-se enquanto signo, matéria discursiva e fonte de ambiguidades. Discutindo uma mudança no perfil do trabalho dos anos 80 (no formato de banda – Home of the Brave) para os anos 90 (trabalhos solo), Anderson afirma que estava “cansada de ser ‘Laurie Anderson’ e que seu próximo trabalho (Voices from the Beyond, 1991) seria “realmente simples”, só uma pessoa – ela – e um microfone (HOWELL, 1992:12). Dessa afirmativa depreende-se existirem duas Andersons: uma que a artista identifica como sendo “ela mesma” e outra que seria relativa à sua imagem ou imagens. Sendo que mesmo em seus trabalhos solo, a presença de Anderson como “ela mesma” continua adiada por outras máscaras discursivas: as histórias autobiográficas, os relatos de viagem e fatos ligados à sua carreira. O reconhecimento da existência de mais de uma “Anderson” levou a uma série de considerações por parte de pesquisadores e críticos. Craig Owens (1984:122), por exemplo, afirma que, mais do que uma “pessoa”, Laurie Anderson é uma “assumida persona”; Bart Testa (1986:52) a descreve como um “ambiente identitário... uma acumulação”, que seria o “foco de diversas atividades – música, arte (textos etc.), reconhecidas como o trabalho de Anderson”; Jacqueline Burkhardt (1997:154) a vê “sempre oscilando entre ela mesma e uma persona artística/artificial”, “uma auto-imagem que a dispõe em arranjos de diferentes formas”. Finalmente, para McBride (1997:3), Anderson é “um projeto coletivo centrado em torno do que parece ser um indivíduo

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(...), uma “figura polivalente, multifacetada, multigênero (apesar de mulher), multidisciplinar (apesar de artista), uma figura continuamente em construção”. Foi o que concluiu, ao tomar a artista como objeto de análise em sua pesquisa sobre a construção das categorias de sujeito e de artista. McBride viu primeiramente em Anderson “a interseção de uma visão anti-essencialista de sujeito e de uma visão antigenial do artista”, exatamente por ela ser uma construção discursiva e também por produzir uma série de (aparentes) confusões: ser admirada por fans do pop e da vanguarda, ser reivindicada como representante de distintas categorias (“pós-modernista” e “feminista”). É precisamente esse estar em vários “entres” que faria de Anderson não uma pessoa – quando se trata de seu trabalho –, mas uma persona que seria o foco de diversas atividades. McBride também acredita que Anderson assume intencionalmente essa posição, o que permitiria pensar que ela trabalha para tornar-se um efeito de discurso e uma figura que se deixa apropriar, sem, porém, se entregar totalmente. Isso nos permitiria dizer que Anderson constrói uma presença não apenas por meio da mediação tecnológica, mas, também, de um jogo narrativo. “Estar cansada de ser Laurie Anderson” expressa uma atitude da artista frente a todo um conjunto de situações que a envolvem, especialmente a expectativa do público e dos críticos em relação a seu trabalho, e também a curiosidade que existe em torno de sua vida pessoal. A performance de si cumpriria assim uma dupla função: seria, primeiramente, um meio pelo qual Anderson produz uma indecidibilidade em relação à sua identidade para tentar escapar de estereótipos. Em segundo lugar, é também importante para conseguir despistar certas relações de força, que, no âmbito da arte, buscam aprisionar a artista em sistemas de classificação e fixá-la no desempenho de papéis predeterminados. É o que parece ocorrer quando Anderson afirma não querer nos ensinar nada com suas histórias e que elas seriam apenas “um outro modo de ver as coisas”. “Apenas um outro modo de ver as coisas” talvez seja tudo menos uma afirmação ingênua. Ver as coisas de um modo diferente é toda a distância que ela precisa para desnaturalizar e questionar concepções e discur-

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sos, pontos de vistas e modos de vida presentes na cultura americana, por exemplo. Isso pode ser percebido em vários trabalhos, especialmente nas histórias de sua primeira megaperformance, United States. Na abertura, após um solo de violino e de uma história insólita sobre uma seita religiosa que acreditava ter localizado a civilização pré-diluviana onde hoje seria a região de Nova Iorque, Anderson pede licença para passar a narrar o que, segundo ela, seria uma “ocorrência familiar”: Você está dirigindo à noite. E está escuro e chovendo. E você faz um retorno e agora não está certo se virou no lugar certo, mas virou assim mesmo e continua a dirigir nessa direção. Uma vez ou outra você vê uma luz e se dá conta de que não sabe absolutamente onde está. Aí você sai da estrada e entra no próximo posto de gasolina e pergunta: “Olá. Com licença. Pode me dizer onde estou?” Você pode ler os sinais. Você já esteve nessa estrada antes. Quer ir para casa? “Olá. Com licença. Pode me dizer onde estou?”

[Nesse momento, é projetada a imagem de um braço estendido com a palma da mão aberta e voltada para frente, que se move lateralmente] Você pode ler esta linguagem de sinais. Em nosso país, este é o jeito de dizer “olá”. Diga Olá. “Olá. Com licença. Pode me dizer onde estou?” Em nosso país, este é o jeito de dizer “olá”. É um diagrama de um movimento entre dois pontos. É uma mudança de dial. Em nosso país, essa é também a forma de dizer “adeus”.

[Aparecem na tela imagens da silhueta de um homem e uma mulher nus lado a lado. O homem com o braço estendido e a mão espalmada para frente] “Olá. Com licença. Pode me dizer onde estou?” Em nosso país, nós mandamos figuras de pessoas

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falando nossa linguagem de sinais para o espaço. Nós estamos falando nossa linguagem de sinais nessas figuras. Você acha que Eles vão pensar que os braços deles irão ficar permanentemente levantados nessa posição? Ou você acha que Eles vão ler nossos sinais? Em nosso país, “adeus” parece exatamente com “olá”. DIGA OLÁ. DIGA OLÁ. DIGA OLÁ.

A afirmação final – que é o nome da história, Say Hello – representaria um “gesto por meio do qual os corpos se tornam signos”, afirma Herman Rapaport (1986:339). Crer que os extraterrestres poderão ler os sinais enviados da Terra e que interpretarão corretamente seu significado seria pressupor que há uma universalidade nas formas de ler os sinais, que formariam “estados unidos” do sentido (“Você pode ler os sinais. Você já esteve nessa estrada antes”). Essa universalização é capaz de produzir pressupostos que deixam de ser questionados, como a suposição da unicidade da leitura dos sinais indicada na história contada por Anderson, que sugere uma mão única de sentido. No caso, esse “modo de leitura” parece querer se impor como norma ou regra para se locomover nesse espaço de produção de sentido, para transferir um único significado de um lado para outro, numa falsa viagem. Isso fica claro em uma outra história, So happy birthday, em que Anderson faz uma crítica ao sonho americano: Em nosso país, você é livre e assim você nasceu e assim eles dizem “Você é livre”, então feliz aniversário. E mesmo que você tenha nascido para perder, mesmo que você seja um completo fracasso ao nascer, você ainda pode crescer e se tornar presidente... porque você é livre.

Esse tipo de narrativa funciona a um só tempo como um modo de questionamento e um disfarce. Afirmar que suas histórias seriam apenas “uma outra forma de ver as coisas” são fatos que aparentemente servem para Anderson justificar por que prefere ser vista não como “artista de vanguarda”, e sim,

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como uma “contadora de histórias” ou então uma “vendedora de bobagens” – (bullshit salesman) (HOWELL, 1992:94). Assim procedendo, Anderson procura talvez garantir para si um espaço de proteção e liberdade que não é, contudo, produzido às custas de omissão ou da falta de tomada de uma posição, mas a partir da manutenção de uma ambigüidade que a ajuda a se disfarçar, a fugir de definições fáceis e a recusar rótulos. Porém, essas ambigüidades podem também ter efeitos inesperados para a própria artista. A partir da experiência de celebridade de Anderson, Auslander (1992:78) vê na perda de percepção clara de sua identidade o surgimento de um efeito “desorientador” que parece atingir também a ela própria. Anderson diz estranhar a surpresa das pessoas quando a encontram na rua e percebem que ela é uma pessoa “comum”, “uma figura tridimensional, que coloca cartas no correio e faz compras no mercado”. Ao mesmo tempo, Anderson refere-se a esse “efeito” como algo que a afeta. Em uma divertida passagem de Home of the Brave (1985), ela diz: “Eu virei a esquina hoje no Soho e alguém olhou bem pra mim e disse ‘oh, não! outro clone de Laurie Anderson’. E eu disse: Olhe pra mim! Olhe pra mim! Olhe pra mim!.” O tom com que as últimas frases são pronunciadas parece indicar que Anderson (ou sua persona) acredita que um olhar mais atento teria sido suficiente para mostrar que ela era a verdadeira Anderson e não “mais um de seus clones”.53 Nesse jogo de máscaras, segundo Auslander, o senso de autenticidade se tornaria impraticável, uma vez que aparentemente “não seria mais possível distinguir entre a artista e seus clones”. Chama também a atenção nessa passagem a (aparente?) surpresa de Anderson com um fato que, afinal, evidencia o sucesso da construção de uma máscara. Mas, essa passagem parece deixar entrever algo mais. É importante lembrar que Anderson contou o fato em performance e isso significa que mesmo tendo ocorrido, o fato provavelmente passou por algum filtro. Se há realmente algum estranhamento por parte de Anderson ou de sua persona, este talvez 53. Alguns fans de Anderson costumavam copiar seu visual, especialmente o tipo de cabelo, sobretudo quando iam a seus shows nos anos 80. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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venha da constatação de que a falta de referência em relação à sua identidade pode fazer de sua imagem algo intercambiável e fora de controle. Para Auslander (1992:78), a imagem de Anderson e seus clones seriam, nesse caso, “produtos de uma persona negociável que ela inventou”. Ao que poderíamos acrescentar: “produtos” que se constituem como uma série na qual o original e a cópia se confundem e sobre os quais nem a própria artista teria controle absoluto. De toda forma, a questão da autenticidade em Anderson é secundária. Anderson usa distintos expedientes para adiar ou deslocar sua identidade – de gênero e de artista – e a autoridade de sua própria presença. O uso, em suas performances, do distorcedor de voz que lhe confere uma voz grave e masculina – “voz da autoridade” – é, sem dúvida, como veremos, uma máscara que a desloca – que ela chamou de “máscara auditiva” – uma voz narrativa que já não é a dela e que Anderson usa para mimetizar e desconstruir o falocentrismo da cultura ocidental e, em particular, na sociedade americana. Curiosamente, nem mesmo quando fala com sua “própria” voz, Anderson deixa de adiar sua identidade e de, portanto, usar sua persona: “quando eu uso minha voz, eu falo como eu mesma (...), ou seja, primeiro como artista; em segundo lugar como novaiorquina e em terceiro lugar como mulher” (In: DERY, 1991:797). Algum tempo depois essa ordem se alteraria e Anderson afirmaria ser uma “mulher” em segundo lugar e apenas depois uma “novaiorquina”, o que modificaria em muito a perspectiva de seus trabalhos, nos quais o ponto de vista feminino algumas vezes imperaria. Foi o caso da performance Empty Places, em que questiona abertamente a exploração da mulher, dentre outros temas. Anderson, contudo, afirma sempre tentar fugir a categorizações do tipo “masculino” e “feminino”, em termos de ponto de vista e que tenta ver o mundo de diferentes formas, princípio que resume na seguinte proposição: “mudar de voz tantas vezes (de formas) quanto for possível e não me identificar fortemente com quem eu sou. Narrar, narrar” (ANDERSON, in: HOWELL, 1992:80). Anderson parece estar ciente de que noções como identidade e autenticidade são uma construção narrativa. Portanto,

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seu interesse não está relacionado às imagens que ambas são capazes de produzir, e sim, aos modos como elas poderiam ser reescritas ou recusadas em nome de uma multiplicidade. Por isso mesmo, a identidade para Anderson é algo que pode e deve ser revisitado e recontado como suas histórias. Essa é a função, por exemplo, de suas histórias autobiograficas, como veremos a seguir.

Autobiografia e diluição da autoridade identitária Não por acaso, um dos elementos que Anderson usa para a construção de sua persona é o material autobiográfico, uma das principais marcas de seu trabalho. Porém, o que ela faz quando apresenta elementos de sua vida pessoal, de seu cotidiano e de suas viagens não é autobiografia, mas a performance de uma identidade, a construção da persona Anderson, que é quem na verdade está “encarregada do show”. É por isso que Anderson “pessoa” nunca está “imediatamente presente”, a não ser, como ela mesma afirma, como “moderadora” entre objetos e discursos. A infância de Anderson, por exemplo, Segundo McBride, é uma “coleção de memórias que servem para minar a noção de um eu autêntico (...). Como tal, as narrativas não fornecem uma imagem unificada de Anderson: elas são autobiográficas, mas não autobiografia” (MCBRIDE, 1997:26). Isso também acontece com os relatos de viagens e de suas experiências cotidianas, que são fontes de discursos dos quais ela se apropria e reprocessa para criar suas narrativas. Praticamente todas as histórias de Anderson funcionam desse modo.54 Se o estilo narrativo de Anderson segue o do “monólogo autobiográfico”, ele terá, conforme define Auslander, características bem particulares e precisas que o tornam “menos pessoais”: os monólogos de Anderson são “observacionais e com destaque nas entonações, mais do que confessionais”; “curtos, 54. Como vimos no Capítulo 4, o autobiográfico teve papel importante no desenvolvimento da performance nos Estados Unidos, sendo inclusive considerado por muitos como seu elemento mais típico, como afirma Marvin Carlson. Daí o emprego do termo “performance autobiográfica”, surgido nos anos 70 e que passou a ser comumente utilizado sob a forma de monólogo. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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mas detalhados e descritivos como num romance”; marcados pela descontinuidade, pela perda da intimidade em função da forma como ela “edita” as próprias histórias. Finalmente, são caracterizados pela recorrência de temas, que sugere a existência de conexões entre distintos momentos das performances, mas cujas articulações nem sempre são claramente determináveis. O resultado é um todo cujo efeito é “uma narrativa autobiográfica fragmentada, talvez acronológica, que, contudo, toma coerência com a presença do narrador em primeira pessoa e com a estrutura de recorrência de temas” (AUSLANDER, 1992:74). No contexto da construção da sua persona, o componente autobiográfico e seu estilo narrativo vão constituir um modo de produção de uma identidade performática, e, portanto, como afirma McBride, “uma estratégia de autocontrução narrativa, mais do que de autodesvelamento”. Contar como costumava se comportar na infância, em sua família, pode ser usado, por exemplo, como fonte discursiva para discutir a questão da liberdade e da criatividade, bem como para explicar alguns aspectos de sua trajetória artística, mas nunca para falar de si mesma: Quando eu andava de bicicleta, subindo e descendo pelas ruas de Glen Ellyn (Illinois), eu parava de vez em quando e tirava uma meleca. Então, eu voltava a pedalar e ficava circulando. Eu sempre fui muito consciente de que havia uma impostora vivendo na casa de minha família e que parecia exatamente como eu e que fazia coisas civilizadas como ir à escola e estudar, ser uma boa filha etc., mas eu, na verdade, estava livre para rodar por aí e viver a vida de verdade (...) [Como artista] Eu tenho de ser a pessoa na bicicleta para criar e também a pessoa responsável para organizar os equipamentos, a agenda, todas essas coisas (ANDERSON, in: HOWELL, 1992:80).

Ao ouvir esse tipo de relato, percebe-se que o autobiográfico é uma possibilidade de indicar questões. Suas histórias se constituem exatamente de elementos que a artista coleciona e agrupa para em seguida espalhar sobre outras constelações de sentido. 176

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Anderson cria por associações comparativas, em que algo sempre evoca outra coisa. Por isso mesmo, como está “menos interessada em estabelecer os fatos do que alcançar um efeito” – afirma McBride – não se pode esperar conhecer a vida de Anderson mediante seus relatos autobiográficos. Até porque ela costuma produzir diferentes versões dos fatos que narra, hábito que adquiriu em casa, onde aprendeu que “nem todas as narrativas são igualmente interessantes e que a factualidade da história não assegura o interesse do público” (ANDERSON apud MCBRIDE, 1997:27). Anderson usa também outras instâncias para construir sua persona e diluir, assim, sua autoridade identitária. Como artista, ela performatiza também a própria carreira. McBride afirma, por exemplo, que desde o início, a carreira de Anderson foi um ato de autoconstrução. Quando Anderson certa vez afirmou que sua vida estava “irremediavelmente ligada à sua arte”, a afirmação deve ser entendida, portanto, menos como justificativa para o uso do autobiográfico e mais como a autoconstrução por meio do autobiográfico. O autobiográfico servirá nesse caso para a construção da imagem artística de Anderson, que ela também vai performatizar. Como afirma McBride (1997:18), “para Anderson, as estruturas autobiográficas fornecem uma aparência de autenticidade à autoconstrução. As narrativas de si são uma aventura performática que apagam as distinções entre persona e pessoa”. Ao trabalhar contra a distinção entre arte e a “sua vida”, Anderson está garantindo para si não necessariamente a consecução das propostas de Kaprow ou dos Happenings ou mesmo de futuristas e dadaístas, como assevera McBride, mas uma situação em que não se possa distinguir com clareza onde começa e onde termina sua performance. Assim, Anderson estaria em uma performance contínua, mesmo quando se apresenta como “ela mesma”. O autobiográfico, não é, portanto, um ponto de chegada, e sim, de partida. Seu trabalho não seria sobre “fazer amigos, sobre ela mesma ou sobre ser uma estrela ou uma personalidade”, como certa vez afirmou. Da mesma forma, o ato de contar experiências pessoais, comum a muitos artistas de performance, não tem, pelo

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menos em Anderson, o objetivo de ser um meio para a autoexpressão, como explica a própria artista: “se eu estivesse realmente apenas expressando a mim mesma não acho que as pessoas ficariam tão interessadas” (In: HOWELL, 1992:75). Antes, reconhece McBride, Anderson está interessada “nas estilizações de sua própria vida e nas das outras pessoas”, sendo que nessa estilização, o “si” torna-se “fluido e manipulável”, um “texto”: “Quando Anderson usa a autobiografia, ela manipula o “eu” do passado e do presente como um ato de autoconstrução: em vez de revelar seu passado, a autobiografia faz seu presente (…) Ao mesmo tempo, a autobiografia sempre parece se referir a outra coisa” (MCBRIDE, 1997:23). É esse procedimento que lhe permite, por exemplo, “examinar a América enquanto fala de si mesma”, como observou John Howell (1992:14). Como veremos mais adiante, é a partir dos fatos de seu passado e presente que Anderson se conecta com os fatos que realmente deseja discutir. Um dos momentos em que isso acontece, em suas histórias autobiográficas, é quando Anderson utiliza referências a sonhos. Embora, como afirme Margot Mifflin, Anderson “se recuse a especificar se alguns ou todos seriam reais”, eles frequentemente aparecem em performances e músicas. Para Mifflin (1987:51), sua função, porém, é mais importante que sua autenticidade. Esses sonhos “são mais conceituais que pessoais e nunca são desenvolvidos” e, como as histórias, “combinam humor inocente e situações inusitadas”, ganhando algumas vezes a dimensão de cartoons de desenhos animados. Um exemplo é quando Anderson afirma ter sonhado que “era um cachorro num show de cachorros” (“Dog show”, United States, Parte IV): “Então meu pai vinha ao show e dizia: ‘esse é realmente um cãozinho muito bom. Eu gosto desse cão. Aí todos os meus amigos vinham e eu pensava: ‘ninguém nunca olhou pra mim desse jeito por tanto tempo... por tanto tempo.” Curiosamente, a frase “ningúem nunca olhou pra mim desse jeito por tanto tempo” é a mesma que Anderson disse após a estréia de United States I-IV, indicando a supresa da aceitação do público em relação ao trabalho. O sonho de estar num “show de cães” parece ter assim um paralelo com o acontecimento de

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1983. Anderson parece aqui efetivamente mesclar a situação “real” do sonho com a produção em si de sua narrativa, ou seja, parece recontar o sonho e alterá-lo, de forma que não é possível se certificar de sua autenticidade. Os sonhos tornados histórias, embora não tenham o mesmo componente simbólico de seus contos, expressam “o mesmo sentido de ansiedade, deslocamento e perplexidade diante das formas de poder” (MIFFLIN, ibid). Em Democratic Way (United States, Parte II), por exemplo, Anderson diz ter sonhado que era uma das amantes do ex-presidente Jimmy Carter. No sonho, Anderson afirma que, apesar de ser uma de suas amantes, nunca o via. Ao ser recontado como história, Anderson associa o sonho a uma discussão que estava ocorrendo sobre certas declarações que Carter fizera sobre o direito de qualquer um – “inclusive os mortos” – de se candidatar a presidente, para se poder ampliar as escolhas. Anderson cria uma associação disso com o sonho, no caso com o fato de Carter ter várias amantes e poder escolher, apesar de essas amantes, inclusive Anderson, nunca o terem o visto. Essa associação na narrativa vai servir para levantar a questão da escolha no processo democrático. Um uso bastante interessante dos sonhos em histórias autobiográficas também ocorre numa instalação audiovisual realizada em 1980, Dark Dogs, American Dreams. Na instalação, Anderson constrói uma espécie de console com várias pequenas fotos de pessoas dispostas em sua superfície. O visitante chegava e podia escolher um retrato e ouvir a uma gravação daquela pessoa contando um sonho de Anderson. Mesmo sendo seus, o fato dos sonhos serem contados por outras pessoas lhes conferiam um certo distanciamento, efeito desejado por Anderson no trabalho.55 Seja por meio de sonhos ou de relatos de experiências pessoais ou mesmo de outras pessoas – todos transformados em histórias – chama a atenção o modo como Anderson conduz as 55. Anderson afirma que embora fossem seus sonhos, gostava dos sons daquelas vozes diferentes – que não eram a sua – e com isso, enfatizava o ato em si da narração e não o sujeito-autor-narrador. Ao mesmo tempo, afirma que cada sonho “parecia uma música curta”, o que indica a recorrência da associação das formas expressivas em seu trabalho com a narrativa. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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narrativas. Ao contar suas histórias, Anderson sempre tenta fazer com que outros fatos surjam a partir do que está sendo narrado. Para isso, Anderson faz uso daquilo que McBride chamou de “eu narrativo”, um mecanismo que lhe permite remeter-se a outras questões ligadas às histórias que conta, a partir da perspectiva de sua própria experiência, sem, contudo, prender-se a ela. Anderson pode manter o “eu” inclusive para contar relatos sobre situações que não viveu pessoalmente ou fatos que aconteceram com outras pessoas e que afirma ter recolhido de amigos, de livros ou simplesmente de seu cotidiano, experiências que ela chamou de “histórias autobiográficas sobre outras pessoas”. Mesmo nesse caso, o “eu” não servirá para conferir autenticidade à narrativa nem tão pouco funcionará como um suposto testemunho dos fatos. Antes, desloca Anderson e a coloca como uma moderadora entre os distintos discursos que apresenta. Curiosamente, Anderson afirma, em entrevista a John Howell, que nos anos 80 descobrira outras formas de conduzir suas narrativas, especialmente mediante a eventual substituição do “eu” pelo “você”, “ele” ou “ela”, fato que, segundo a artista teria mudado todo o processo de contar suas histórias (In: HOWELL, 1992:36). Foi essa descoberta que permitiu um certo distanciamento, naquele período, das narrativas autobiográficas para permitir a introdução de histórias sobre situações que envolviam experiências de outras pessoas ou entre outras pessoas (os no bodies), não raro sob a forma de diálogos. Tanto nas narrativas autobiográficas quanto nas não-autobiográficas, o tratamento que Anderson procura dar às formas narrativas parece demonstrar sua preocupação não com o individual, mas com o coletivo. Laurie busca descolar a noção de sujeito/autor do processo narrativo, estabelecendo freqüentemente um discurso em terceira pessoa que remete à apresentação de outros discursos, de outras narrativas. Contudo, mesmo apontando para outros fatos, Anderson não abre mão do “eu narrativo”, cuja manutenção serviria, segundo McBride, para produzir um senso de unidade discursiva. Nesse caso, o “eu narrativo” funcionaria como um dispositivo estruturador, com o qual Anderson mantém sua posição

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de moderadora, mesmo que as histórias não sejam sobre ela. É esse “eu narrativo”, afirma McBride, que liga sua coleção de narrativas e que “constrói Anderson como um elemento-na-cultura mais do que um ser individual”, um ponto de convergência, mas que um sujeito-autor-narrador. Esta é a base para o argumento de McBride de que a persona Anderson é construída por meio da combinação de distintos elementos como tecnologia, performance, cotidiano, cultura de massa, linguagem oral etc. e unificados por meio da narração de suas histórias. Muito importantes também para a autoconstrução narrativa de Anderson, são os relatos de viagem, sobretudo as que realizou no Canadá, no México e Europa, nos anos 70 e 80 e a Israel, nos anos 90, através do quais a artista freqüentemente se apresenta como uma “exploradora”, sempre às voltas com locais e situações inusitadas. Segundo McBride, contos desse tipo são igualmente usados para construir uma persona. Com essa máscara, Anderson, ao mesmo tempo, se disfarça e busca neutralizar a autoridade de sua própria identidade, desengajando-as das amarras da autoridade artística. Ao posicionar-se como persona, Anderson tenta sair do lugar que sua condição de “artista de vanguarda” lhe outorga, para experimentar o contato e a mistura com outras figuras e outras vozes. Mas, se a construção de sua persona é um exemplo de produção identitária, isso não a isenta necessariamente de uma perspectiva autoral. Sem dúvida, a função autoral em Anderson existe, mas servirá não para exaltá-la, e sim, como afirma Birringer (1991:222), para propiciar, com auxílio da tecnologia, um “manejo narrativo, acústico e visual da imagem de Anderson”, cujo resultado é “uma simulação que suspende a idéia de uma presença ou identidade literal, real”. Anderson dilui, assim, a função autoral de que está investida como artista e é precisamente essa diluição que lhe permite criar espaços para uma intervenção micropolítica. Essa é a segunda tarefa de deslocamento desempenhada por suas histórias: elas funcionam como um mecanismo de diluição ou neutralização que permite a Anderson privilegiar seus jogos de imagens e sonoridades, as histórias e suas mensagens, em de-

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trimento de sua figura autoral. Com esses jogos, ela estranha os fatos que flagra e os valores estéticos dominantes dos quais, por vezes, se apropria para fazer outra coisa. É também esse uso das histórias que garante uma amplificação de sua mensagem. Paradoxalmente, quanto mais sua identidade é adiada e sua presença “descorporificada”, mais sua figura parece se multiplicar, dado o efeito de reverberação que tais deslocamentos são capazes de provocar. Ao criar seus clones, distorcer a voz eletronicamente e transformar-se numa máquina produtora de músicas, histórias, imagens e sonoridades, Anderson se torna um potente canal, um amplificador de muitas vozes. No caso do trabalho de Anderson, ao constituir-se simultaneamente como dispositivo catalisador e diluidor, seu trabalho parece concorrer para que cada vez menos seja Anderson quem fale e cada vez mais um conjunto de fluxos, ainda que ela os ordene ou modere. Isso ocorre exatamente porque ao tentar adiar sua própria identidade em performance, Anderson entra num processo que a conecta com outras vozes e com os fragmentos que ela capta, processa e redistribui e no qual ela assume o papel de canal. É quando as histórias desempenham com maior clareza sua primeira e principal função, a de deslocamento.

Ventriloquismo e estratégias narrativas Não é por acaso que a figura do ventríloquo tem especial importância no trabalho de Anderson. O ventríloquo é aquele que sabe falar sem abrir a boca e mudando a voz, dando a impressão de que a voz sai de outra fonte, geralmente, uma marionete. Tal é o procedimento de Anderson: ela atua como um ventríloquo que tem como marionete seus violinos, dummies, personagens e os no bodies, todos criados para falar por ela. São esses bonecos ou máscaras que Anderson chamou de alter egos, ou seja, duplos substitutos, marionetes de ventríloquo, outro modo de desaparecer. Para fazê-los falar, Anderson criou também toda uma ambiência discursiva formada por histórias, músicas e curiosas imagens e sonoridades que obtêm por meio da tecnologia. Essa é uma outra razão pela qual con182

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sidero as histórias como “dispositivos de deslocamento”, por serem capazes, nesse caso, de produzir um deslocamento da presença de Anderson para torná-la uma medium. É justamente essa capacidade de transmissão que lhe permite realizar a principal tarefa de suas histórias: a de tomar fatos do cotidiano e arrancá-los de sua familiaridade para serem estranhados e recontados. Anderson assume para si um caráter de “canal” ao resignificar a noção de corpo em seu livro Stories from the Nerve Bible (1994), que documenta sua carreira de 1972 a 1992. O termo nerve bible se refere precisamente ao corpo humano como uma forma de estratégia narrativa. Segundo Anderson, partes do corpo aparecem e desaparecem ao longo de todo o livro, formando uma espécie de auto-retrato, embora não muito naturalista (...) mas os corpos aos quais mais me refiro são os no bodies. Escrevi muitas canções e histórias para essas ‘pessoas’. Elas não têm nome ou histórias. Estão fora do tempo e do espaço e são verdadeiramente quem fala por mim (ANDERSON, 1994:6).

Jon McKenzie (1997:35) afirma que Anderson deixa agora que esses “corpos” falem com mais frequência em suas histórias e que eles emitem uma atmosfera estranha em suas histórias autobiográficas. São exemplos disso os relatos sobre pessoas comuns, desconhecidas, que vivem situações que remetem a questões ligadas à cultura americana, ao poder ou à vida numa sociedade apoiada em máquinas. Esses relatos são o modo de Anderson dar presença ao que ela chamou de no bodies, a outras vozes, por vezes dissonantes, com as quais documenta perplexidades, injustiças e interessantes nuances do cotidiano da sociedade contemporânea. Em The Night Flight to Houston (Stories from the Nerve Bible), por exemplo, Anderson conta que certa vez viajava de avião numa noite clara e que podia ver do alto as luzes de todas as pequenas cidades do Texas. Sentada a seu lado, uma mulher de 52 anos que nunca viajara de avião. Seu filho, conta Anderson, lhe mandara uma passagem e dissera: “mãe, a senhora criou

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10 filhos. É hora de entrar num avião”. Sentada junto à janela, olhava fixamente para o lado de fora e falava o tempo todo da Ursa Maior, apontando para baixo. De repente, Anderson se deu conta de que a mulher achava que estavam no espaço, olhando para estrelas lá embaixo. “Acho que aquelas luzes lá embaixo são luzes de cidadezinhas”, explicou delicadamente. Segundo Jen Budney, a história é “um tocante retrato da fragilidade humana numa sociedade tecnológica” (1997:160). Trata da situação de vulnerabilidade de uma mulher considerada forte, que se vê totalmente deslocada diante de uma realidade que não é a sua ou sobre a qual desconhece, no caso, a experiência de andar de avião. A figura do avião (máquina) – ícone recorrente em muitos de seus trabalhos – pode ser entendida como um símbolo para a tecnologia, algo que somos conclamados a dominar e a achar natural em nossas vidas. Desse tipo de concepção poder-se-ia depreender que negar a tecnologia significaria tornar-se vulnerável numa sociedade tecnológica, como a mulher que não “soube” reconhecer o que via. O inusitado da situação está exatamente no fato de como algo aparentemente tão banal pode ser tão estranho para alguém, o que nos permite, sem dúvida, pensar o que pode ser considerado “banal” e “por quem” e questionar, afinal, sobre o que se espera de nós numa “sociedade tecnológica”. Esse procedimento indica um desejo de questionar aquilo que Deleuze e Guattari (1980:100) chamaram de “palavras de ordem”, que não são enunciados imperativos, mas “uma relação que palavras e enunciados têm com determinados pressupostos implícitos em sua própria formulação”, ou seja, uma relação em que atos de linguagem implicam e ao mesmo tempo efetivam os enunciados e os pressupostos que figuram implicitamente nesses atos. São esses modos de arranjo de sentido que se organizam segundo determinados pressupostos – que nos atravessam e constituem sem que muitas vezes venhamos a nos dar conta disso – que Deleuze e Guattari chamaram de “agenciamentos coletivos de enunciação”. São eles que denotam o caráter essencialmente social da produção de discursos e das práticas vividas em escalas individual ou coletiva, produção essa que vai se tornar alvo dos questionamentos de Anderson.

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É assim que Anderson vai colecionando fatos presentes em seu cotidiano e na sociedade americana para repensar o “óbvio”, o “comum”, o “natural” contido em certos modos de discurso, estilos de vida e visões de mundo, que ela vai flagrar e discutir. Um exemplo disso são os fatos que ela tomará para estranhar a própria cultura americana. Em um de seus relatos de viagens, The Cultural Ambassador (Stories from the Nerve Bible) – conjunto de histórias sobre experiências que teve em Israel –, Anderson conta sobre quando esteve no país como convidada oficial do governo israelense e participou de conversas com artistas e políticos e de entrevistas com a imprensa. Anderson percebera a curiosidade dos israelenses sobre a Guerra do Golfo, especialmente sobre o que os americanos achavam dela. Anderson conta que tentava responder às perguntas, mas não conseguia tirar da cabeça a situação por que passara na semana anterior, quando testara pequenos explosivos num estacionamento. Os explosivos seriam usados para criar efeitos especiais na performance Nerve Bible. Uma das pessoas responsáveis pela turnê ficou muito interessada nos explosivos, mas Anderson dissera que não eram grande coisa, apenas “fumacinhas”. O homem então disse que poderia arranjar coisa melhor para ela. Anderson tentou declinar, mas o homem insistiu, dizendo que o show tinha de ser grande, teatral e que iria lhe arranjar as bombas certas. Diante desse “favor especial”, que Anderson não pôde recusar, pensou: “aqui estou, uma cidadã do maior produtor de armas do mundo me divertindo arrumando bombas com o segundo maior comprador de armas do mundo”. Mesmo que a “parte diplomática” da viagem – como ela chamou – não estivesse indo tão bem, pelo menos a experiência estava servindo para aprender alguma coisa sobre terrorismo. Então lembrou de ter lido em algum livro que os terroristas agora seriam os verdadeiros artistas de vanguarda, pois eram os únicos capazes de surpreender as pessoas. Lembrou-se especialmente também de uma lista com “dicas” que a embaixada americana em Madri tinha feito para os cidadãos que estivessem em aeroportos de países em tempo de guerra. A idéia era “como fazer para não chamar a atenção dos

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numerosos terroristas estrangeiros que se escondiam pelos terminais”. Era basicamente uma lista de “nãos”, conta Anderson: “Não use um boné de baseball; não use camisas com o nome de uma universidade americana estampado nela; não use Timberlands sem meias; não masque chicletes; não grite coisas como ‘Ethyl!!! Nosso avião está saindo!!!’” – com aquela entonação tipicamente americana. “E por aí vai. Quer dizer, é estranho quando toda sua cultura pode ser resumida em apenas oito características tão simplistas”, conclui. Os dados de sua vida e de seu cotidiano, como vemos, não se referem à sua pessoa. Antes, são modos de levantar as questões que ela deseja discutir. É o caso também das recorrentes referências bíblicas que usa em suas performances, que têm como fonte sua avó protestante e suas histórias sobre o fim do mundo. A performance Stories from the Nerve Bible tem esse título exatamente pelo fato da Bíblia ter sido o primeiro tipo de história com o qual teve contato, embora afirme nunca ter entendido “o que nelas era verdade ou apenas uma outra forma de arte”. Contudo, o que sempre chamou sua atenção era que adultos acreditassem naquelas histórias fantásticas, histórias que teriam sido, segundo a artista, “sua primeira exposição às técnicas associativas do surrealismo”. Mas, se no chamado bible belt56 Anderson ouviu histórias sobre fatos “sobrenaturais”, também seria nele que aprenderia a combiná-los com outros fatos e a contar histórias sobre seu povo, histórias que tratavam de memória, linguagem, tecnologia, utopia e poder, e que formaram a performance e o livro Stories from the Nerve Bible. Por Nerve Bible Anderson queria dizer “corpo”. Foi justamente lendo e recombinando pedaços do corpo de seu próprio trabalho e conectando-o à cultura americana e a situações vividas por pessoas que conheceu ou não, que Anderson tornou56. O termo Belt (“Cinturão”) é utilizado para referir-se a uma área geográfica caracterizada por uma função econômica específica, como a da produção de milho, por exemplo, a Corn Belt. Bible Belt é uma designação simbólica para a região do meio-oeste americano, marcado pela “cultura bíblica”. Anderson afirma ter crescido ouvindo histórias bíblicas em sua família, na escola, nos acampamentos de férias, histórias que ela considerava incríveis, “sobre mares que se abrem e serpentes que falam”. 186

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se capaz de olhar “por sobre as ruínas da história americana enquanto iluminava territórios desconhecidos” (MCKENZIE, 1997:33). Por meio desse olhar, Anderson criou uma série de paisagens descritivas do país que, ao mesmo tempo, funcionam como cenário para seus questionamentos. Em The Salesman,57 por exemplo, Anderson conta que sempre esteve interessada “em tentar definir as questões que caracterizavam o americano do final do século XX” e afirmou que, “como artista, sempre pensou em seu trabalho como o de uma espiã”, que, “usando seus olhos e ouvidos, tentava encontrar algumas das respostas”. Nessa história, Anderson conta como gostava de ficar parada nos orelhões de aeroportos ouvindo as conversas dos outros. Por viajar geralmente no mesmo horário dos representantes de vendas, observou que esses homens sempre ligavam para seus escritórios depois do almoço. Ela ficava então no telefone, “ouvindo e tomando nota das conversas para traçar um perfil do vendedor americano”. Nesse momento da narrativa, Anderson começa a falar com a voz alterada eletronicamente, a voz masculina – a “voz da autoridade” – e reproduz um dos diálogos que ouviu em uma dessas ocasiões: Oi, Frank! Escute, Frank, você sabe, eu detesto falar isso sobre Brad, quero dizer, nós dois sabemos que ele vai atrapalhar o trabalho… sei…sei… você está certíssimo… Mas, nós dois sabemos que Brad simplesmente não está fazendo a parte dele… entende o que eu quero dizer? E eu não estou falando isso só porque nós dois estamos do mesmo lado (…).

Mudando novamente a voz, conclui dizendo que o livro (Stories from the Nerve Bible) é na verdade “uma coleção de vozes e histórias, bem como de retratos de pessoas que conhecera pelo caminho”. Nessa, como em outras histórias, chama a atenção o tipo de entonação empregado no “diálogo” e a associação da “voz da autoridade” à figura, no caso, do “vendedor”. Esses procedimentos, longe de serem gratuitos, são uma forma de apresentar não apenas um perfil, mas também um tipo de dis57. Umas das 18 histórias do CD The Ugly one with the Jewels, 1995. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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curso que para ela é tipicamente americano: um discurso que envolve sedução e convencimento, mas por trás do qual parece sempre haver um tom de autoritarismo e uma ambigüidade carregada de segundas intenções.

Tempo e circularidade As referências feitas às situações que a artista observa são, portanto, um ponto de partida para outra coisa. É também o caso da curiosa história Grandmother’s Hat (“Chapéu da Vovó”), com a qual abre a performance Stories from the Nerve Bible e fecha o livro que leva o mesmo nome. A história propicia uma discussão sobre a questão da crença e das formas de percepção da realidade e, ao mesmo tempo, das concepções de tempo, futuro e progresso que embasam essas formas de percepção. Na abertura da performance – considerada por Anderson uma “retrospectiva do futuro” –, a artista começa dizendo que naquela noite iria contar histórias tiradas de um livro que acabara de escrever e que, uma vez que a maioria das histórias falava do futuro, decidira começar “mais ou menos pela última página”. Anderson conta que andara pensando sobre o futuro. Talvez porque o fim do milênio estivesse chegando e o ano 2000 fosse considerado apocalíptico. E sempre que pensava no futuro lembrava de sua avó, uma missionária batista que tinha “uma idéia muito clara sobre o futuro e como o mundo acabaria em fogo, como nas revelações da Bíblia”. Quando tinha 10 anos, conta, sua avó lhe dissera que o mundo terminaria em um ano e ela lembra de ter passado o resto do tempo rezando e lendo a Bíblia, afastando-se de parentes e amigos. Finalmente, quando o grande dia chegou nada aconteceu, apenas um outro dia. Tendo ouvido que o budismo era a maior religião do mundo e sendo uma missionária, sua avó foi ao Japão tentar converter os budistas e avisá-los sobre o fim do mundo. Como ela não falava japonês, tentou convencê-los com uma mistura de linguagem de sinais e hinos em inglês, que os japoneses obviamente não entendiam. Quando voltou aos Estados Unidos, Anderson lembra que ela continuou pregando sobre o fim do mundo até o final de seus dias. 188

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Anderson lembra-se especialmente do dia de sua morte. Ela estava bastante agitada, sentada em seu quarto de hospital, esperando sua hora, muito agitada, acentua. Ela parecia um pequeno pássaro pousado na beira da cama, de roupão cor de rosa, penteando o cabelo “para estar bem bonita para o grande momento em que Cristo viria buscá-la”. Ela não estava com medo, mas no último minuto algo aconteceu que mudou tudo, diz Anderson acelerando o ritmo da narrativa e imprimindo um tom de suspense às últimas palavras. Depois de anos de pregações e de previsões do futuro (continua) de repente ela entrou em pânico, acentuou num tom dramático. Entrou em pânico (continua) por não conseguir decidir se usaria ou não... um chapéu. A frase foi decrescendo de ritmo até fazer um breve suspense antes de pronunciar a palavra “chapéu”.58 E Anderson conclui dizendo que a avó foi a para o futuro de forma brusca, em pânico, sem ter a idéia do que aconteceria depois. Como vemos, é por meio de histórias autobiográficas, de pessoas anônimas ou figuras que expressam poder que a artista vai procurar estranhar discursos e práticas que são naturalizadas no cotidiano. A história sobre a avó poderia, por exemplo, ser uma forma de discutir como nos relacionamos com o medo e as incertezas que o futuro pode propiciar. Mas, em Anderson, falar sobre o futuro é também uma forma de abordar a questão do tempo e da crença – muitas vezes cega – que ela vai usar freqüentemente para tratar da reificação dos discursos sobre a tecnologia e sobre o progresso na sociedade americana. Mas, nessa discussão, é a própria noção de futuro a que talvez mais intrigue a artista. Para criar sua “retrospectiva do futuro”, Anderson se apóia nas teses de um de seus pensadores preferidos, Walter Benjamin, sobre tempo e história. Segundo Benjamin, há duas concepções de tempo: uma, do tempo como progressivo e homo58. Chama a atenção a forma como Anderson conta a história, documentada no CD The Ugly one with the Jewels, lançado pela Warner em 1995, um conjunto de 18 histórias, em sua maioria apresentadas na performance Stories from the Nerve Bible, de 1992. Entonações de voz e efeitos sonoros especiais tirados do teclado e do microfone – como ecos, reverberações e distorções – conferem à narrativa um efeito e um ritmo singulares e prendem a atenção tanto quanto o conteúdo, que demora em nossas mentes muito tempo após ter sido narrado. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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gêneo e a outra, de um tempo “revolucionário”, feito de “agoras”, de presentes. A história, para Benjamin, tem a espessura dessa segunda temporalidade e é essa concepção que parece inspirar Anderson em seus questionamentos sobre o futuro. Começar a contar sua história “pela última página” é um “embrulho temporal” que Anderson adotará para discutir como nossas definições de tempo e história condicionam nossos modos de perceber a realidade e de viver em sociedade. Daí sua preocupação com a memória e com a duração, temas recorrentes em seu trabalho desde os anos 70. Memória e duração são formas de Anderson trabalhar a questão do tempo, que, para ela, não é vazio, mas uma construção, imagem que Benjamin evoca através da figura de um anjo, o “anjo da história”. Para Benjamin, o anjo da história se assemelha ao do quadro Angelus Novus, de Paul Klee, um anjo que “parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente”: Seu rosto está voltado para o passado e onde vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa sobre nossos pés (…) Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende suas asas com tanta força que ele não pode mais fechálas. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira de costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso (BENJAMIN, 1993:226).

Na parábola, passado e futuro não são uma seqüência, são simultaneidades, lugares, pontos de vista, partes de um tempo que não é vazio ou cumulativo. É essa noção de história que confere à narrativa um tempo circular, em que muitas vezes passado e futuro coincidem, se confundem ou brincam de mudar de lugar. Inspirado em Benjamin, o ato de narrar em Anderson parece se inserir nesse tempo “de agoras”, que faz com que suas histórias participem de uma temporalidade necessariamente incompleta, onde o ato de narrar existe para ser reencetado. A experiência de contar histórias em Anderson insere-se, assim, 190

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num tempo que não é homogêneo e aditivo, mas cíclico, fundado na repetição como celebração da intensidade. Parece ser dessa mesma celebração que falava Deleuze ao afirmar que o que se comemora no 14 de julho francês não é a data histórica, mas sua potência revolucionária. Ou seja, o que se comemoria aí não é um passado glorioso, mas uma força que continua presente, mas que é lida como pertencente a um passado. É que, como diz Benjamin, “a verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido” (BENJAMIN, 1993:224). E, se como afirma Benjamin, “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele foi’, mas apropriar-se de uma reminiscência” (ibid), o passado não importa então pelo que foi, mas pelo que ainda é no presente. Por essa razão, as narrativas da infância de Anderson ou relatos de eventos passados não são passado, bem como suas histórias sobre o futuro não pertencem a um tempo ainda não vivido. Todas remetem a experiências que fazem parte de um mesmo “agora”, que ela vai articular como um continuum para evocar e discutir questões do “presente”. Em sua arte de contar e recontar histórias, Goldberg destaca exatamente esse aspecto. Para Goldberg (2000:21), Anderson não está interessada na história enquanto “narrações estabelecidas de momentos significativos”. O que é importante para ela são os meios pelos quais a leitura do processo histórico pode ser alterada mediante a narrativa. A noção de que a história não é, afinal, um conjunto de fatos que se desenrolam de forma linear, mas uma construção discursiva, explica, em parte, a relação de Anderson com a narrativa e seu desejo de narrar. Se contar histórias é “a arte de contá-las de novo”, como afirmou Benjamin, então Anderson vai fazer do ato de narrar um modo de questionar o que está estabelecido. Em Anderson, “História” e “histórias” convergem através do ato da narração e essa convergência serve para revisitar fatos, discursos e práticas sociais que foram naturalizados e que não raro constituem formas de dominação e controle. Charles Amirkhanian (1986:229) observa que, por meio de suas músicas e histórias, Anderson torna “o familiar estranho e

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o ordinário extraordinário”, como uma forma de desconstruir certos tipos de discurso. Um exemplo disso seria exatamente seu questionamento de uma noção de “História” que remete a de “Progresso”. Para Amirkhanian, Anderson enfatiza a importância de se olhar e de se aprender a partir da História para se evitar a cristalização em um discurso exclusivamente sincrônico e estruturalista. Não por acaso, os temas da História e do Progresso aparecem na música The Dream Before (Strange Angels, 1989) –, que Anderson dedicou a Benjamin. Na música há um diálogo entre dois personagens, Hansel e Gretel, respectivamente, um ator e uma garçonete berlinenses. O trecho final remete quase integralmente ao “anjo da história”: “(...) Ela [Gretel] diz: o que é a história? E ele [Hansel] diz: A história é um anjo que é lançado de costas para o futuro. Ele diz: A história é um monte de ruínas e o anjo quer voltar e consertar o que foi destruído. Mas há uma tempestade que sopra do paraíso. E a tempestade continua lançando o anjo para o futuro. E essa tempestade é chamada Progresso”.

A comunicação como artesania O gosto de Anderson por histórias evoca outro tema benjaminiano: o ato de contar histórias. No texto “O narrador”, Benjamin diz que contar histórias sempre foi “a arte de contá-las de novo” e por isso a considera uma forma artesanal de comunicação, que se tece como uma rede ou que se produz como uma forma antiga de trabalho manual. Uma característica desse processo é a gratuidade com que as histórias são contadas. É graças a essa gratuidade que as histórias vêm sendo propagadas de pessoa a pessoa sem outro interesse que não o da comunicação da experiência. Mas o que importa nessa comunicação não é tanto o fato narrado, mas a própria experiência da narrativa, como afirma Benjamin: “ela [história] não está interessada em transmitir ‘o puro em si’ da coisa narrada como informação ou relatório. Ela [história] mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele” (BENJAMIN, 1993:205). 192

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Mas, se o ato de contar histórias depende de um movimento e de uma disposição de tecedura – que leva sempre a marca de seu narrador –, também depende de certas condições para ser conservado. Benjamin observa que o desenvolvimento das forças produtivas vem, ao longo da história, “expulsando gradualmente a narrativa da esfera do discurso”. A tradição oral e do épico tornaram-se arcaicas na modernidade, que agravou também o enfraquecimento da gratuidade em que se apóia a narrativa. Daí Benjamin afirmar que a arte de narrar teria entrado em extinção, sobretudo com o aparecimento do romance e de modos expressivos que favorecem o consumo da informação, como o jornal. Na verdade, foi a própria experiência que de certo modo é desqualificada ao tornar-se objeto de consumo. Benjamin reconhece essa tendência de empobrecimento e vai afirmar que a extinção da narrativa viria da tendência “de baixa na cotação das ações da experiência”, que tende a ser esvaziada em seu sentido pela profusão e pela rapidez da circulação dos fatos. Com a modernidade, acentua-se a relação de consumo na comunicação, que vai desvalorizar a qualidade propriamente comunicativa da experiência para privilegiar seu efeito de circulação. Assim como Benjamin, Anderson vela sobre a narrativa e tenta conservá-la através da exaltação da experiência num tempo em que a circulação rápida da informação se reifica como “a” forma de comunicação e na qual as versões da experiência parecem valer mais que sua vivência. Na relação com o público, Anderson tenta em suas performances restaurar uma comunidade de ouvintes – mesmo que de forma passageira e descontínua59 – e recriar o prazer de tornar as experiências comunicáveis, de transmiti-las face a face, em uma sociedade na qual cada vez mais só há desejo de uma fruição instantânea e mediada de fatos. 59. A multiplicação de si e de suas narrativas através dos meios de reprodução como o CD e o vídeo certamente não substituem suas performances ao vivo, mas colaboram para o aumento do alcance e da transmissão de suas narrativas. É assim que Anderson, usando meios técnicos, os embui de uma capacidade inusitada de gerar uma duração que vai contra o consumo da experiência e à “aspiração à verificação imediata” da informação, como diz Benjamin. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Para isso, Anderson vai acrescentar ao processo narrativo outros elementos para tentar restabelecer entre ouvinte e narrador o interesse de conservar o que foi narrado. Daí suas experimentações com diversos meios expressivos e com os dispositivos técnicos, por meios dos quais fará esculturas, violinos, bonecos, ambientes e até máquinas falarem. É através dessas experimentações que ela consegue recontar nossa própria história de desqualificação da experiência, de exaltação à informação, de ode ao produto e do fim da sabedoria em favor do conhecimento. Contra a fragmentação e a rapidez que banaliza, Anderson vai imprimir em seus relatos a marca de sua própria experiência, mas vai fazê-lo secundada pela mediação tecnológica, como um recurso para retrabalhar esses fluxos que atordoam, alterando-lhes a natureza e o ritmo. Se a velocidade e o consumo da informação e a impessoalidade da máquina parecem suplantar a criação, Anderson vai tentar utilizar a tecnologia e a fragmentação dos discursos informacionais para reavivar o processo narrativo e revalorizar a experiência, reafirmando-a como lugar de produção do desejo. Anderson obtém esse efeito graças a uma curiosa conexão que faz entre a tecnologia e o ato de contar histórias. Ela diz: Para mim, a tecnologia sempre esteve ligada a contar histórias. Talvez porque contar histórias tenha começado com pessoas que costumavam sentar ao redor do fogo. Para mim, fogo é mágico, envolvente e perigoso. Ficamos presos à sua luz e a seu poder destrutivo. A tecnologia é o fogo moderno (ANDERSON apud GOLDBERG, 2000:105).

Anderson se aproveita do fascínio que a tecnologia exerce sobre as pessoas (e sobre ela própria) para reuni-las ao redor de um novo fogo e trazê-las de volta para a mágica da comunicação face à face. A esse respeito, é muito oportuna a análise que Jen Budney faz da relação entre tecnologia e histórias no trabalho de Anderson. Budney traça um paralelo entre a afirmativa de Anderson citada acima e uma célebre frase do ex-vice-presidente ameri-

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cano Al Gore, para quem as histórias seriam “a forma mais simples de tecnologia”. Se tecnologia pode ser definida como “um sistema pela qual a sociedade provê seus membros das coisas de que necessitam e desejam” (BUDNEY, 1997:161), Budney vai então afirmar que as histórias podem ser entendidas como uma forma de tecnologia. As histórias seriam “um sistema de estocar e transmitir conhecimento”, afirmou Al Gore (apud BUDNEY, 1997:161), um sistema que, no entanto, não funcionaria sozinho e que necessitaria de mecanismos de transmissão. Se, originalmente, esse mecanismo teria sido a voz, a dança, a pintura, considera Budney, o que Anderson vai fazer é usar outros mecanismos (a tecnologia), mas tendo o mesmo propósito e perseguindo o mesmo resultado: “ela toma as experiências do mundo e as faz deslizar magicamente por nossa pele, à qual pertencem. Ela nos leva “para outro lugar” e nos convida a considerar o que estamos vendo, ouvindo ou sentindo de um modo que uma observação superficial por meio de uma tela nunca permitiria” (ibid). Ao invocar situações e discursos presentes no cotidiano e em sua infância, a artista produz narrativas aparentemente simples, mas cujo tratamento realizado com ajuda da tecnologia criam elementos de representação que serão usados para discutir a própria representação. Esses discursos são dotados de um efeito de fragmentação que transforma esses elementos em blocos de sensações e pensamentos que ela vai então manipular. O que chama a atenção nesse tratamento da narrativa através da tecnologia (filtros eletrônicos, distorções de voz e de imagens, ventriloquismo digital etc.) é que as narrativas encontram no fragmento uma unidade própria, constituindo uma espécie de fabulação eletrônica, que só pode ser contada pela conjunção de suas distintas frações ou pedaços. Essa forma narrativa parece remeter, de alguma forma, ao tipo de linguagem fragmentada facilmente reconhecida pelas pessoas, presente, sobretudo, em meios de comunicação como a televisão, o vídeo e a Internet. O mesmo ocorre com suas músicas, outro elemento usado para narrar e estranhar. Temas como a cultura americana, a arte

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e o artista, meios de comunicação de massa, tecnologia, linguagem, crença e utopia, solidariedade, direitos da mulher e poder são levantados por Anderson através da música. Letras em estilo conceitual, freqüentemente poéticas, carregadas de metáforas, se aliam a ritmos e sonoridades – que também apresentam componentes de significação –, resultando em interessantes combinações que tentam tornar reflexões e questionamentos acessíveis ao público, se não intelectivamente, ao menos pelos sentidos. Assim como com as histórias, a relação de Anderson com a música é também bastante complexa. Desde os anos 70, Anderson compõe canções inspiradas em fatos do cotidiano e em suas experiências de vida, que são trazidos para dentro de seus trabalhos. Anderson, porém, jamais se considerou uma cantora, apesar de ter tomado aulas de canto nos final dos anos 80. Seu estilo, aliás, tem como característica principal a ênfase na palavra falada, que faz com suas canções – que também têm o caráter de história – estejam mais próximas da fala do que do que normalmente se consideraria “música”. McBride observa que a música de Anderson dos anos 80 é influenciada essencialmente por dois estilos: o minimalista – sob influência direta de Philip Glass – e o do rock experimental dos anos 60, com o qual tivera contato nas diversas parcerias com músicos da cena alternativa do Soho, no começo dos anos 70. Influenciados por John Cage, esses artistas tinham um gosto especial pela exploração das sonoridades e por guitarras elétricas e concebiam a música como uma “organização de ruídos”, para usar uma expressão de Jacques Attali (1977:9) que expressa exatamente essa perspectiva. Dessas parcerias, Anderson guardara o interesse pela percussão, a experimentação com os sons e o uso de equipamentos eletrônicos. Daí sua ênfase em ritmos dançantes, que derivam do estilo rock e que se prestam mais a acompanhar um estilo “falado” do que “cantado”. Por isso mesmo, Anderson não usa a música e os efeitos sonoros como simples acompanhamento, mas como um “texto” que pode conectar e articular outros elementos de suas performances.

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Em termos musicais, Susan McClary também observa que as canções de Anderson até os anos 80 se caracterizam por um aspecto minimalista. Analisando especificamente O Superman, vai afirmar, por exemplo, que, como muitas de suas músicas, a canção é cuidadosamente organizada em termos de “uma austera oposição binária”, que representaria as fundações do pensamento ocidental. Segundo McClary, ao utilizar esse binarismo, Anderson não o estaria fazendo inocentemente, mas com o propósito de “desconstruir as premissas do discurso musical ocidental” (MCCLARY, 1990:116). Ao enfatizar os ritmos e entonações do que é cantado60 ou falado, Anderson usa normalmente sua voz calma e agradável de forma irônica e espirituosa, conforme o efeito que deseje imprimir à narrativa. O resultado é a criação de uma ambiência sonora, em que se ouve sua voz soar cadenciada sobre um fundo musical quase sempre minimalista. Um dos primeiros trabalhos em que usou sua própria música foi a instalação Jukebox (1977). Como vimos, nesse trabalho, os espectadores podiam escolher entre 24 músicas escritas e gravadas pela própria artista na máquina de música instalada na galeria Holly Solomon, em Nova Iorque. Folhas de papel com ilustrações e trechos de canções penduradas na parede acompanhavam o trabalho. Títulos e letras cuidadosamentente elaboradas remetiam a discussões sobre arte e a experiências pessoais da artista. Unlike Van Gogh, por exemplo, era uma resposta ao editor de revista ArtForum, que lhe chamara a atenção por sempre começar seus comentários com referências ao pintor; Fast Food Blues era um “conselho a artistas sobre como vender seu trabalho”; If you can’t talk about it, Point to It discutia aspectos ligados à teoria da linguagem apresentada por Wittgenstein; It’s not the Bullet that kills you, it’s the hole (For Chris Burden) fazia referência ao conhecido trabalho desse body artist, no qual ele atirara com uma arma em seu próprio braço, e discutia os percalços dos métodos empregados pela artista em seu próprio trabalho. 60. O estilo musical de Anderson teria sofrido grande influência do artista de happenings dos anos 60, Robert Ashley, que combinava música pop com a palavra falada, produzindo um estilo algo próximo ao rap. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Smagula (1989:245) chama a atenção para o tratamento dado por Anderson à música em Jukebox. Além do trabalho com o texto, a artista também tivera, segundo ele, uma preocupação especial com o ritmo, que era animado e contagiante, no estilo “top-ten”, próprio das rádios comerciais. Em sua maioria, “bem humoradas e decididamente inteligentes”, as músicas usavam palavras simples, eram de tom agradável e tinham curiosas tiradas que produziam “um corpo de trabalho que misturava facilmente arte conceitual com divertimento pop”. Segundo o autor, as “estranhas canções” de Anderson serviam como “avisos sutis sobre os perigos da vida contemporânea numa sociedade corporativa”. Se o ritmo a aproximava da cultura de massa, o conteúdo a ligava à vanguarda. Goldberg (2000:125) destaca esse aspecto de suas músicas, afirmando que elas são “voltadas para o conteúdo, para o material escrito que expressa potentes idéias, seja sobre os valores americanos, a mídia ou o mundo da arte”. Segundo Goldberg, a própria Anderson teria afirmado que para ela as melodias são escritas “de forma criptografada, como sentenças”. A música era, assim, uma espécie de dispositivo dentro do conjunto do trabalho. Smagula vai definir esse tratamento musical com uma curiosa comparação: “Ela usa as propriedades intrinsecamente atraentes da música comercial como uma faca – para ir fundo direto no cerne das questões e expor os meios pelos quais somos todos condicionados pelas formas onipresentes da comunicação eletrônica.” Assim, a adoção do estilo comercial serviria, por exemplo, para chamar a atenção sobre as vozes anônimas do rádio e da televisão e “nos fazer pensar no que realmente está sendo dito por elas” (SMAGULA, 1989:245).61 Nesse período, porém, ainda é comum em suas performances o uso de fitas com músicas pré-gravadas de outras pessoas, que toca com seu violino preparado (tape bowl violin), especialmente em Duets on ice e As:If (1974). Chama a atenção o fato de que, no início de sua carreira, as músicas são mais faladas, devido à sua tradição oral de contar histórias, como é o caso do 61. Curiosamente, aqui Anderson parece considerar que a mídia faz passar valores e idéias que são naturalizados, em função do fascínio que exercem. 198

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álbum Big Science, de 1981. As músicas aí, na verdade, funcionam mais como histórias musicadas. Essa tendência começa a ser revertida no final dos anos 80, quando a artista toma aulas de canto e, com a parceria com músicos fora de downtown, suas músicas, embora guardando as características de conteúdo, passam a apresentar um ritmo mais próximo do pop. Interessante perceber que, em Anderson, as músicas – tanto quanto imagens e histórias – são elementos maleáveis, que ela fragmenta, associa e manipula em suas performances, de forma a fazê-los interferir e ressoar uns sobre os outros. O objetivo é torná-los dispositivos que ela possa acionar para apresentar idéias e discutir questões. Merece destaque o uso feito dos arranjos e introduções de certas músicas, que funcionam como unidades de significação ou fragmentos-idéia. Assim como os elementos visuais, os sonoros são usados nas performances como uma espécie de marcadores. Introduções ou ritmos de músicas como O Superman ou Strange Angels, por exemplo – que tratam de questões como controle e poder –, podem ser ouvidas em momentos distintos das performances das quais fazem parte, respectivamente United States (1983) e Empty Places (1989). Nesse caso, esses elementos funcionariam como pequenas vinhetas sonoras – também fragmentos-idéia – que conferem uma regularidade de sentido ao trabalho, indicando uma determinada intenção expressiva, no caso, a de conferir um aspecto sombrio ou irônico a uma história ou a um comentário, colorindo não só a narrativa, mas o próprio conjunto da performance de cores fortes e tons políticos. É, portanto, também por meio das músicas que esse trabalho com a narrativa se torna mais facilmente observável. Assim, como suas imagens visuais e sonoras, também fatos e situações são transformadas em fragmentos-idéia, com os quais a artista vai formar histórias e conteúdos para suas músicas. Manejando esses fragmentos, ela consegue interconectar trabalhos, transformando toda sua obra numa verdadeira num jogo performático com o sentido e com a linguagem.

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Jogos de linguagem e a rede de signos O filme-performance Home of the Brave (1985) é um dos exemplos mais eloqüentes de trabalho de Anderson com os fragmentos de idéias, ao mesmo tempo que explora as questões da própria linguagem. O filme começa com Anderson vestindo uma roupa branca e o rosto coberto por uma máscara branca, num solo de seu violino digital, que emite sons distorcidos.62 Outros performers surgem e se espalham pelo palco, também mascarados, enquanto imagens animadas por computador (figuras de casas, telefones, aviões, relógios) aparecem projetadas no fundo de uma enorme tela – semelhante a do cinema –, como se estivessem caindo do céu.63 Anderson se move no palco, dançando animadamente e tocando seu violino digital, os movimentos coincidindo com os sons e os ritmos das músicas e das projeções. Gestos e movimentos corporais são, na verdade, marcações que dão colas para os outros performers, músicos e operadores de áudio e de iluminação. A um sinal feito com o arco do violino, a música pára, os performers saem de cena, a iluminação se modifica e Anderson começa com a primeira de suas histórias, Lower Mathematics. Nela, Anderson aparece, ou melhor, desaparece através de uma figura mascarada, que diz com voz grave e distorcida, a masculina “voz da autoridade”: Boa noite. Bem, eu não sou nenhum matemático, mas gostaria de falar sobre alguns números que têm realmente me incomodado ultimamente. São eles zero e um. Primeiramente, vamos dar uma olhada no zero. Ser um zero significa não ser nada, um ninguém, um esquecido, um nada. Por outro lado, quase todo mundo quer ser o número um (...). E parece haver uma estranha obsessão nacional com esse número em particular. Agora, em 62. Conectado a um computador especial chamado synclavier, com o qual armazena sons e forma um banco de dados que fornecem diferentes tipos de sonoridades para serem tocadas no violino. 63. Muitas dessas figuras funcionam como imagens de fundo para o filme-performance. Em algumas cenas, chegam a 30 ou 40 projetadas por minuto; algumas, porém, chegam a permanecer durante toda uma história ou canção. 200

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minha opinião, o problema com esses números é que eles são próximos demais – não deixam muito espaço para todos. Então, primeiramente, acho que deveríamos nos livrar do julgamento de valor atribuído a esses números e reconhecer que ser zero não é melhor nem pior que ser número um. Porque, na verdade, estamos olhando aqui para os pilares da Era Moderna dos Computadores (ANDERSON apud GOLDBERG, 2000:112).64

Como em United States I-IV, imagens, músicas e histórias têm um papel de conectores e são usadas de forma intercalada. Entre uma música e outra, comentários e histórias, que, por sua vez, introduzem as próximas músicas e assim por diante. Chama a atenção, contudo, a forma como Anderson “canta” as músicas. As palavras são mais faladas e os tons, quase sempre, monocórdios. E Anderson não “canta” simplesmente, performatiza. Em cena, nenhum gesto é gratuito. Tudo parece te sido estudado e planejado em detalhe: a iluminação, as imagens, a forma como encadeia músicas e histórias, os movimentos do corpo formam um conjunto complexo. Em outro momento do filme, Anderson entra em cena com seu violino digital. Dirige-se a um teclado e a dois microfones montados no centro do palco. Com eles, produz efeitos de eco com a voz, à medida que fala e toca o violino. Em seguida, começa Smoke Rings, uma espécie de sketch satirizando um programa de auditório inspirado no Saturday Night Live – programa televisivo ao qual Anderson fora convidada a apresentar algumas de suas músicas-histórias. Em sua versão, Anderson aparece como uma apresentadora e duas performers são as participantes de um concurso de perguntas: Atenção. No ar. [em inglês] Boa noite, senhoras e senhores. Bem-vindos. [em espanhol] A primeira pergunta é: quem é mais macho, abacaxi ou faca? 64. Para facilitar a compreensão do que está sendo descrito, as histórias serão traduzidas e contadas na íntegra. Já os trechos das músicas serão transcritos como no original em inglês, para manter a fidelidade a seus efeitos poéticos. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Bem, deixe-me ver. Acho que abacaxi é mais macho. Sim! Correto! A segunda pergunta é: quem é mais macho, lâmpada ou ônibus escolar? Hum, lâmpada? Não, sinto muito, ônibus escolar é mais macho que lâmpada. Obrigado [em espanhol]. Estaremos de volta em [em inglês] um momento [em espanhol]65.

No final da história, o número 911 – do serviço de emergência nos Estados Unidos – aparece piscando na enorme tela de fundo, acompanhada pelo som de uma irritante sirene. A sátira ao modelo de programa é clara. O que não é tão óbvia é a comparação entre os objetos, o critério para a escolha da resposta “certa” e o término da cena com o número 911. Para Gregory Sandow, “macho” não estaria apenas ligado à figura do masculino, e sim, ao poderio militar (SANDOW, 1986:83). Nesse contexto, apesar de “faca” ser um objeto com conotação fálica, como aponta Samuel McBride, a resposta “certa” é “abacaxi”, que na gíria dos soldados americanos no Vietnam significava “granada” (MCBRIDE, 1997:275). Ao abordar a banalidade do programa e associá-las com as referências bélicas – possivelmente numa crítica à política militar americana que banaliza a guerra e seus efeitos – o 911 é acionado como forma de pedir ajuda. A articulação de várias referências que se cruzam por meio de um discurso irônico e bem-humorado – marcas de Anderson, que dão uma certa impressão de distanciamento –, serve como uma forma de levantar questões. Anderson, contudo, não está preocupada em dar respostas, o que segundo ela não é seu trabalho. Nisso não há necessariamente uma omissão ou fuga à tomada de posições. Certamente Anderson têm as suas. Simplesmente, não parece querer impô-las. 65. Segundo Brian Raiter, no programa original, as perguntas comparavam celebridades e os competidores eram imigrantes ilegais, daí o uso do espanhol. A esse respeito, procurar o material disponível no site de fans de Anderson organizado por Jimmy Davis, na internet: . 202

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Curiosamente, o modo como Anderson sai do lugar daquele “que sabe” é através de afirmações que deslocam essas certezas, como as que faz em Lower Mathematics, no início do trabalho. Ao sugerir que “zero” e “um” se equivalem na linguagem numérica dos computadores, sem dúvida está sendo sinalizado que a diferença é cultural e discursiva. É assim que de referência em referência, Anderson vai construindo uma verdadeira constelação de códigos ao longo do filme, com a qual faz seus questionamentos. A tela se apaga e reacende com a projeção da silhueta de um homem semelhante a um boneco de videogame, que corre ao som de uma música incidental. O homem que corre incessantemente é uma figura que para Anderson representa o tempo, a duração. Fade out. Em outra cena, How to write, desenhos de objetos e animais – inspirados em Oskar Schlemmer, da Bauhaus – vão lentamente se transformando em seus respectivos ideogramas japoneses. Anderson chama essas imagens “palavras-lugares”, espécie de imagens-still fotográficas que mapeiam temas e discussões ao longo de todo o filme. No primeiro plano, um oriental aparece e conta uma história sobre insetos. Conta como eles são abundantes no outono, sobre os ruídos que fazem e como se torna difícil se concentrar para escrever com eles incomodando. A história (How to write) é apenas outro pretexto para falar sobre a linguagem. No fundo escuro, a imagem de um ideograma que seria equivalente à palavra “casa” em japonês aparece projetada, juntamente com a silhueta de dois homens sentados, um de frente para o outro no fundo do palco. Ao terminar a história, apaga-se a luz sobre o oriental e o foco se volta para os dois homens. Eles fazem sons com diversos objetos, talheres, panelas, instrumentos orientais antigos. Na tela aparecem diversas figuras de objetos que vão se transformando em seus equivalentes ideogramas japoneses. Começa então Kokoku, que em japonês significaria “Cidade-lar dos Homens Bravos” ou “Terra de Bravos”, título do filme. Desenhos de aviões semelhantes aos dos videogames aparecem sobrevoando repetidas vezes sobre montanhas nevadas. O oriental volta à cena sentado junto a um antigo instrumento

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de cordas. Anderson canta a música Kokoku, com trechos em japonês, juntamente com duas back-in-vocals, as mesmas que contracenaram com ela no programa de auditório, em Smoke Rings. Um trecho da música diz: Eu venho muito rapidamente a este lugar. Eu o vejo se mover. Eu o vejo se mexer. Nuvens sobre montanhas. Um grito. Minha voz. Terra de Bravos. Estou aqui agora. E perdida. O tempo parou. Terra de Bravos. E de uma estrela muito distante criaturas gosmentas. Eles têm mãos em forma de prato e olhos de telescópio. E dizem: “Olhem! Um planeta esquisito girando lá embaixo”. Eles dizem: “vejam como se move, vejam como se mexe”. E nós dizemos: “Vejam-nos mover. Vejam-nos mexer. Somo tão lindos” (…) ‘Vejam como nos movemos agora, vejam-nos mexer. Somos tão lindos. Nos dê um aperto de mão. Façam que não com a cabeça. Nós balançamos os pés. Somos tão legais. O modo como nos movemos. O modo como nos mexemos. Somos tão legais.

Ao final, apaga-se a luz do palco e apenas o rosto de Anderson fica visível. De repente, uma luz se acende dentro de sua boca, que brilha na escuridão da cena, agora total. Num gradual apagamento, só aparecem agora seus dentes, depois apenas os lábios, até que tudo desaparece por completo. Fade out. O palco vazio. Uma música instrumental melancólica. Radar. Uma luz avermelhada envolve o ambiente, criando uma sensação de desolação. A imagem de um enorme radar girando é projetada sobre o telão. Anderson surge de braços abertos sobre um estrado que gira no mesmo sentido da imagem do radar. De quando em quando, ouve-se uma espécie de gemido metálico, emitido por Anderson, que, após alguns segundos, sai de cena. O radar continua girando por mais algum tempo. O lamento continua. Na tela, a imagem do radar desaparece e surge de repente o desenho de uma cadeira vazia, girando como o radar, girando, girando por longo tempo. É assim que entre imagens de objetos, ideogramas e histórias explora-se novamente a questão dos signos e da linguagem

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– falada, escrita, icônica, gestual, estrangeira. Afinal, não é apenas a forma que interessa Anderson. O conteúdo se espalha por entre as músicas, as histórias e a própria iconografia, formando um vasto sistema de códigos. Segundo Smith, a linguagem seria, em Anderson, uma metáfora, uma espécie de “mapa do mundo”, com o qual ela, ao mesmo tempo, “descreve as coisas e nos impede de compreendê-las totalmente” (SMITH, 1984:55). Outro exemplo da articulação e cruzamento de distintas referências para discutir a linguagem é a penúltima música, Language is a Virus – inspirada na célebre frase do escritor americano William Burroughs, language is a virus from outer space (“a língua é um virus que vem do espaço”). Para Geraint Jennings,66 ao afirmar que a língua é um vírus “que vem do espaço” e que se comunica “por contágio”, Anderson estaria possivelmente discutindo o processo de construção do sentido e considerando a língua uma espécie de ente vivo. Na introdução do livro Stories from the Nerve Bible (1994), Anderson diz que para se afirmar que a língua é transmitida por contágio é preciso antes acreditar que ela esteja viva. Em seguida, assevera que cada livro é uma criação alquimista e recorda quando Herman Melville foi à Grécia, em 1857, e viu pela primeira vez o Partenon, parado como uma “grande baleia acostada, seus grandes ossos brancos expostos ao vento”. Pergunta-se então como pode uma baleia se tornar um edifício ou um livro e de que forma poderiam as palavras estar vivas. Anderson responde a Melville falando sua língua e dá como exemplo a construção do livro Stories from the Nerve Bible. Anderson vai afirmar que, como artista, “usou seu corpo em seu trabalho”, daí considerar que o livro trata basicamente do corpo. Como poderia então um corpo virar uma obra ou um livro senão através da linguagem? Sem dúvida, para isso a língua precisa estar viva e bem viva, e pode se mover, se espalhar, se rarefazer, se transformar, tomar forma e encarnar imagens e sensações, palavras, atos, códigos, percorrer canais.

66. Em análise na seção de letras de músicas do site de fans de Anderson, organizado por Jimmy Davis, disponível na internet: www.cc.gatech.edu/~laurieanderson/interpretation/lyrics/hotb.html. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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É nesse trânsito que, para Jennings, as pessoas podem usar palavras cujo significado às vezes até desconhecem ou aos quais podem dar outro uso. Uma mesma palavra, um gesto ou uma entonação, dependendo do contexto, da forma de transmissão e de quem as recebe, podem adquirir diferentes sentidos, como é o caso das situações apresentadas na música-história Language is a virus, na qual, em um trecho, Anderson diz: Eu vi aquele cara no trem e ele parecia preso num desses transes abstratos. Ele fazia: “ugh...ugh... ugh...” E Fred disse: acho que ele está com algum tipo de dor. Acho que é um grito de dor. Eu disse: grito de dor? Então, a língua é um vírus (...) Bem, eu estava conversando com um amigo e estava dizendo: Eu queria você. E eu estava procurando por você. Mas não conseguia te encontrar. Não conseguia te encontrar. Ele disse: Hey! Você está falando comigo? Ou só praticando uma daquelas suas performances? A língua é um vírus! A língua é um vírus! (...) O paraíso é exatamente igual a onde você está agora mesmo. Só que muito melhor. Quer saber? Eu não acredito que exista uma coisa como a TV. Quero dizer, eles só ficam mostrando a você sempre as mesmas imagens. E quando eles falam, estão apenas fazendo sons, que mais ou menos sincronizam com seus lábios. É o que eu penso! A língua é um vírus! (...)

Mais uma vez, a exemplo do que fizera em United States (Say Hello), Anderson questiona a unicidade do sentido e do significado das coisas. Até para seus próprios trabalhos. A artista afirma que os deixa para quem quiser interpretá-los. Ela considera que eles podem ter vários significados. Ela constrói 206

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seus trabalhos para serem polissêmicos. Inclusive, o fato de se afirmar que neles estaria embutida uma crítica aos meios de comunicação e à sua produção de discursos hegemônicos – que produzem realidade ou um determinado sentido de realidade – pode ser apenas um de seus significados possíveis. Como afirma Jennings, “Laurie nos faz pensar sobre a linguagem, nos fazendo refletir sobre o que dizemos. O que ela diz é entretenimento ou mensagem? Ambos? Ou nenhum dos dois? Eu não sei o que é, mas eu gosto” (JENNINGS apud DAVIES, 1994). Gostando ou não do que Anderson faz ou diz, seu trabalho atiça o pensamento, seja pelo efeito e pela força de suas histórias (a entonação, o ritmo da narrativa, o acompanhamento de fundo, as situações inusitadas que são contadas) ou pelos jogos de linguagem, onde o que importa não é a interpretação, mas o próprio jogo e as formas como ele se dá. A cena final do filme-performance – em que se ouve novamente a melancólica música Radar – é, nesse sentido, bastante sugestiva. Dessa vez, apenas a imagem da cadeira aparece girando. Para alguns críticos, Radar representaria o isolamento do indivíduo diante da sociedade ou do oceano de signos e códigos em que estamos imersos. Mas poderia também ser visto como uma figura do controle e uma referência ao poder. A cadeira vazia poderia indicar que o poder não é um lugar ou então que é um lugar que pode ser ocupado. Contudo, mais uma vez, o que importa não parece ser a interpretação ou mesmo se existe uma interpretação, e sim, as possibilidades abertas para se brincar com o sentido. E com isso, fazer estranhar o que está dado. The End. Observando trabalhos como United States e Home of the Brave, é possível perceber que suas fabulações surgem com um mergulho dos fatos do cotidiano na vida da artista, fatos que ela faz emergir para serem recontados. Por essa razão, suas histórias vão estar a todo instante relacionadas com um outro elemento importante em seu trabalho: a memória. A esse respeito, Anderson afirmou que, ao contar suas histórias, desejava simplesmente relatar os fatos exatamente como eles tinham acontecido, mas que uma vez contados, eles se modificavam completamente: “eu nunca disse nada que sentisse como re-

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presentando verdadeiramente o que na verdade tinha acontecido. Nunca. Eu me lembrava apenas de um aspecto. Dez coisas tinham acontecido, mas a mente filtra as coisas e as arranja, de modo que a única coisa que você vê é uma espécie de linha” (ANDERSON, in: HOWELL, 1992:44). Anderson também afirma que sempre se interessou em saber como funcionava a memória e aquilo do que “se lembra e do que se esquece”. Esse aspecto de esquecimento e lembrança é que parece confirir um necessário distanciamento entre os fatos vividos e sua representação por meio das histórias, distanciamento que é importante para poder transformar esses fatos em fragmentos-idéia e poder colá-los, recolá-los e conectá-los com outros signos. É assim que Anderson faz das histórias um potente dispositivo técnico, através do qual busca articular sua crítica. É interessante observar como essa estratégia discursiva continua presente mesmo em trabalhos mais recentes. Em Happiness (2002-2003), por exemplo, mediante suas histórias e comentários, discute diversos assuntos, dentre os quais a tecnologia, o terrorismo e o consumo. Sobre tecnologia, afirma que os discursos que desejam nos tornar dependentes dela são “a maior jogada de marketing do século”, uma estratégia para não permitir que estejamos “desplugados”. Para Anderson, esses discursos não permitiriam silêncios, posições em OFF em relação ao sistema – uma quebra de ritmo necessária a questionamentos. A esse respeito, aliás, Anderson já havia afirmado que sua preocupação com a duração vem daí, ou seja, de criar em seus trabalhos pausas, lacunas, quebras no ritmo vertiginoso da “velocidade da escuridão”. A artesania produzida a partir de suas imagens e de suas formas narrativas cumpriria esse papel de desacelerador, de resistência, constituindo assim uma espécie de sabotagem contra as engrenagens da velocidade muitas vezes banalizadora propiciada pela tecnologia. Com algum humor e muita ironia, Anderson muda de assunto e afirma na performance achar curioso o fato de ser tão difícil de se encontrar Bin Laden (ao passo que é tão fácil fazer guerras). Conta também sobre quando deu aulas de história da arte e de poesia na prisão, no início dos anos 70; quando traba-

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lhou, em julho de 2001, como caixa no McDonalds de Chinatown, para verificar “como funcionava a produção em massa” (“Foi a primeira vez que me senti capaz de dar às pessoas exatamente o que elas pediam”). Afirma que a memória é uma forma de olvido e que suas histórias não são um mero registro, mas um modo de se desfazer do passado (“contamos coisas, mas quanto mais contamos, mais esquecemos”), como projetos que no início não passam de idéias e que depois, ao serem elaborados e concretizados, abrem espaço para outros novos.67 Chama atenção que Anderson tenha articulado, através da linha da narrativa, assuntos aparentemente tão distintos (terrorismo, tecnologia e consumo), mas que parecem indicar uma intenção comunicativa, tal como fizera em tantos outros trabalhos. Ouvindo-a em Princeton, tive a nítida impressão de que ela realmente desejava dizer algo e que, portanto, a escolha das histórias e a maneira de contá-las não era gratuita. Apenas mais tarde me ocorreu que talvez, em sua lógica, tecnologia, terrorismo e consumo tivessem mesmo algo em comum. Cada uma produz, a seu modo, imperativos e palavras de ordem (pressupostos) e todas são capazes de gerar alguma forma de alienação. É, portanto, pela sua arte de contar histórias que emergem discursos comuns na cultura americana, como a retórica sedutora dos políticos e dos vendedores, as referências ao poderio militar e tecnológico, que ela procura questionar. O tema da tecnologia é discutido pela artista a partir da perspectiva lançada por Benjamin acerca do progresso. Anderson vai tentar indicar, com músicas e histórias, os modos como, na cultura americana, a tecnologia parece ser absorvida pelas pessoas em seu cotidiano, passando a realmente fazer parte de suas vidas e de sua linguagem. Por isso mesmo é 67. Anderson parece ter duas formas de se relacionar com a memória. Um delas seria a de verificar o que e como se lembra das coisas – onde vemos suas explorações de sonhos e suas histórias autobiográficas. A outra seria exatamente a de dar lugar ao esquecimento, como uma espécie de estratégia de produção por desaparecimento, uma necessidade de “ex-pressar”, de literalmente “colocar para fora”. Em uma entrevista de 1998 dada a Greg Cahill, da revista Sonoma County Independent, Anderson, referindo-se à performance Speed of Darkness, afirma que se tratava de algo que já havia escrito há dois anos (antes de 1996) e que parecia simplesmente ainda “não ter saído de dentro dela”. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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posta sob suspeita, como indica o trecho da história Language is a Virus (na versão de United States, Parte II): Bem, eu estava andando em Uptown quando vi um cartaz dizendo: “Palestra de hoje: Grande Ciência e Pequenos Homens”. Então resolvi entrar e lá havia um monte de vendedores e pilhas de eletrônicos. Eles cantavam: “Entrando em fase com o sistema. Ligações neurológicas. Video Disc. Nós vamos conectar você. Vamos colocar você em fase”. Eles disseram: “Veja a coisa desse jeito: imagine uma árvore de Natal com muitas luzeszinhas piscando, cada uma totalmente separada da outra, mas de certa forma todas ligadas umas às outras numa mesma fiação. Pegou a idéia?” E eu disse: “Me deixem fora disso!” E eles disseram: “Nós temos seu número”. E eu disse: “Me deixem fora disso. Vocês têm de me deixar fora disso!”

Daí também uma recorrência, nesse e em outros trabalhos, de situações em que o contato entre as pessoas aparece mediado por máquinas e em que a mediação da técnica no cotidiano cria situações que nos convidam a repensar as noções de tempo e espaço, de real e irreal, natural e artificial. Em uma passagem de United States – performance que afirma ser basicamente sobre “aprender a viver num mundo de equipamentos eletrônicos” – Anderson (1994:62) conta que tinha uma amiga com um filho pequeno e que a coisa mais difícil de ensinar à criança, dizia a amiga, era “a diferença entre o que era vivo e o que não era”. Então toca o telefone, a mãe atende e diz para a criança: ‘É a vovó. Fale com a vovó!’ Mas a criança vê apenas um objeto de plástico. Então, Anderson pergunta: “o telefone é vivo? O que é vivo e o que não tem vida?” É importante, contudo, perceber que essa forma de exploração da figura da tecnologia em suas histórias expressa a visão da artista sobre sua sociedade e seu sentimento com relação à experiência de viver nela. Mesmo procurando manter uma distância dos fatos que narra, Anderson parece, às vezes, se deixar envolver por eles. Por um lado, será preciso guardar distância de suas posições 210

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para não naturalizar essa visão da experiência com a tecnologia. Por outro lado, a discussão que ela propõe acerca desse tipo de experiência social com a técnica é bastante oportuna, pois a idéia de tecnologia quando usada para retratar a cultura americana ou, genericamente, as sociedades eletrônicas, parece sempre querer denunciar a concepção moderna de progresso, que seria um dos elementos usados para forjar o sonho americano, ou seja, para forjar as palavras de ordem de toda uma sociedade. Em histórias como Say Hello (United States) e músicas como Kokoku (Home of the Brave), Anderson satirizava os avanços do programa espacial americano, mas parecia querer indicar uma outra questão: a de como, nos Estados Unidos, as perspectivas iluminista e moderna se consagraram através da tecnologia, tornada como um modo de supostamente se atingir a realização pessoal e social. Atenta às mudanças e aos avanços da técnica em sua própria sociedade, Anderson faria em 1995 experimentações com a Internet e com o CD-Rom. Respectivamente, Green Room e Puppet Motel foram incursões da artista por meios que a dotavam de capacidades narrativas através da conexão a distância e de uma colagem multimídia de trabalhos e recursos já utilizados em outros momentos de sua carreira. O curioso é que, em ambos os casos, esses novos meios são incorporados em seus jogos narrativos, ampliando suas modalidades discursivas. Portanto, ao contar histórias a partir de suas experiências pessoais e das de outras pessoas e conectá-las com outras questões, Anderson cria assim um importante mecanismo de intervenção em sua arte, mecanismo que a dota de condições singulares para revisitar o que está dado e tentar apreender os fatos e contá-los de outro modo. Anderson está ciente dessas possibilidades e de seus riscos, o que de alguma forma parece deixar transparecer em mais uma de suas curiosas narrativas, desta vez, a que deu o título ao CD lançado em 1995, que é uma leitura de alguns dos contos que apresentou na performance Nerve Bible. Em The Ugly One with the Jewels, Anderson conta que em 1974 foi a Chiapas, no México, visitar um irmão antropólogo

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que estudava uma tribo de índios que seria o último vestígio da civilização Maia. Ela passava a maior parte do tempo com as mulheres, já que seu irmão não tinha autorização para fazê-lo. Conta que acordava todos os dias às três da manhã para preparar tortilhas de milho. As tortilhas das mulheres da tribo saíam perfeitamente redondas e bem cozidas, mas as dela, mesmo depois de muita prática, saíam sempre tortas e queimadas. Quando as mulheres achavam que Anderson não estava olhando, davam todas para os cachorros. O resto do dia passavam na beira do rio “olhando para as cabras e trançando e destrançando os cabelos umas das outras”. Até que um dia resolveram trançar os cabelos de Anderson à moda local. Anderson diz que ficou ridícula, parecida com um poodle, mas que as mulheres afirmaram que antes ela era feia, e que depois daquilo talvez arranjasse um marido. O fato a fez pensar no nome indígena que havia recebido (“Loscha”), que poderia ser traduzido mais ou menos como “Afeia-com-as-jóias”. “Feia, ok”, pensou Anderson. “Eu era alta demais para os padrões locais. Mas o que eles queriam dizer com as jóias?” Anderson só descobriu quando, uma noite, tirando as lentes de contato para dormir, viu que as mulheres ficavam olhando para ela atentamente. Foi então que percebeu que elas nunca haviam visto óculos antes, muito menos lentes de contato, e que estas eram as jóias, “as jóias transparentes e perfeitamente redondas que guardava com muito cuidado todas as noites e que de dia colocava nos olhos por segurança”. E termina a história dizendo: “Bem, eu posso ser feia, mas e daí? Eu tenho as jóias.” “Contadora de histórias” ao invés de “artista de vanguarda”, ok. Mas, “vendedora de bobagens”? O que Anderson queria dizer com isso? Talvez se trate de mais um de seus sortilégios, usados para despistar e poder jogar outros jogos. Pois, mesmo que afirme não desejar nos dizer nada com suas histórias, Anderson aparentemente já o está fazendo. Suas “bobagens”, afinal, são preciosas e ela sabe disso. Seu valor está em que suas histórias funcionam como jogos de linguagem que propõe uma releitura da sociedade americana, em particular, e, de um modo geral, das sociedades fortemente apoiadas em tecnologia, as quais ela chama “sociedades eletrônicas”.

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Como afirma Jon McKenzie (1996:42), as histórias de Anderson operam como “alegorias num sentido benjaminiano e kafkaniao: elas emitem sinais de significação guiados não por uma realidade transcendente ou referencial, mas por imanentes forças sociais que afetam a todos e a ninguém (...)”. Com isso, através da performance, instalação, vídeo, filme, música, internet e CD-Rom, o que Anderson faz, na verdade, é habilitar novas formas de narrar e estranhar, através do que McKenzie chamou de “um jogo multimídia de linguagem”, que “não apenas documenta injustiças do passado, mas que também lê as regras emergentes das sociedades eletrônicas” (1996:37). Desse modo, ao lançar mão de histórias associadas a outros recursos para construir uma rede de signos e viabilizar jogos com a linguagem, Anderson faz com que esse jogo ative e seja ao mesmo tempo ativado por aquele que considerei como sendo o segundo dispositivo de deslocamento presente em suas estratégias narrativas: a tecnologia.

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5. Gagueiras e intensidades: usos singulares da tecnologia

Esculpindo a linguagem com idéias e bits Os questionamentos e as formas de resistência às “palavras de ordem” produzidas por Laurie Anderson operam, como vimos, por deslocamentos e desconstruções, em que as histórias são um elemento fundamental. Mas igualmente importante para a artista é o uso da tecnologia como recurso que não apenas secunda a produção das narrativas, mas que também funciona como modo de criar outros tipos de desconstrução. A tecnologia em Anderson constitui o segundo mecanismo de deslocamento em suas estratégias estéticas e micropolíticas. Com ela, a artista descorporifica sua presença, manipula sua identidade por meio da mediação, cria seus disfarces e duplos, ambiências para suas músicas e histórias e conecta-se e desconecta-se dos fluxos do poder, desafiando-o. Com isso, provoca a tecnologia e busca fazer dela um uso intensivo, imprimindo-lhe um funcionamento diferenciado, tornando-a de algum modo “estrangeira” numa sociedade marcada pelo entretenimento e pelo consumo. Embora Anderson tenha ficado mais conhecida pelo uso de tecnologias eletrônicas e digitais em suas megaperformances dos anos 80 e 90, o uso de dispositivos técnicos em seus trabalhos começou de forma bem mais simples, nos anos 70. Mas, para entendermos os usos e as apropriações da tecnologia em seus processos criativos, primeiramente será preciso ampliar a noção de tecnologia. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Nos trabalhos da artista, a tecnologia não remeterá apenas aos dispositivos técnicos em si (distorcedor de voz, projetores, sintetizadores, computadores etc.), mas a todo um conjunto de procedimentos que articulam a produção desses dispositivos e seus modos de uso a determinadas finalidades estéticas. O que caracterizaria a tecnologia nesse contexto seria não a materialidade dos dispositivos – que diz respeito à concretização de um objeto técnico –, mas uma relação na qual a tecnologia constitui ela própria uma engrenagem ou parte de uma engrenagem. Essa perspectiva nos permite pensar os dispositivos técnicos não simplesmente como objetos funcionais, mas enquanto uma prática definida segundo determinadas condições facultativas, o que evoca a noção deleuziana de “máquina técnica” ou “agenciamento maquínico” (DELEUZE, 1977:57). Em Deleuze, o termo implica a idéia de encadeamento de um conjunto de engrenagens e conexões que implicam, por sua vez, um modo de funcionamento do qual fazem parte objetos, pessoas, práticas e discursos. Deleuze afirma que uma “máquina” nunca é simplesmente “técnica”, mas também “social”. Mais precisamente, ela seria técnica “apenas como máquina social” (1977:118). Para ilustrar, cita como exemplo a máquina de escrever, que só existiria em um escritório, que, por sua vez, só existiria com secretária, subchefes e patrões, todos regidos por uma lógica administrativa, política e social. Tal se daria também em outros âmbitos, como os da justiça (máquina de justiça), da literatura (máquina de escritura ou de expressão) e da arte (máquina estética). O que caracteriza essas “máquinas” seria exatamente seu modo de constituição por engrenagens de natureza conectiva, que permitem a formalização de lógicas sociais e discursivas em torno das quais se organizam coisas, pessoas e ações. O importante para Deleuze é perceber que são essas conexões que formam a “máquina” ou “agenciamentos maquínicos” e que elas conduzem à “desmontagem” de um agenciamento social, ou seja, do conjunto de conexões ou de “arranjos concretos” de elementos heterogêneos como a linguagem, o poder e as formas sociais (CAIAFA, 2001:62). Esse raciocínio é útil para pensar a relação que Anderson estebelece com a tecnologia e com os demais elementos de seu

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trabalho, que podemos conceber como uma “máquina estética”. O conjunto de sua obra forma uma espécie de solidariedade orgânica de natureza discursiva, onde os dispositivos técnicos parecem se manifestar não isoladamente, mas fazendo engrenagem com outros tipos de dispositivos, como a narrativa e a performance, por exemplo, que, por sua vez, constituem, cada qual a seu modo, uma máquina, um conjunto de engrenagens. Por esta razão, seria possível afirmar que a tecnologia é uma das peças ou conexões que formam máquina em sua máquina estética. Nos trabalhos de Anderson, o elemento “técnico” se presta a uma experiência estética e sempre se associa à linguagem. Ao mesmo tempo, o “estético” geralmente está impregnado de tecnicidade. Isso faz com que objetos, instalações e performances usem ou se constituam a partir de uma relação com dispositivos técnicos que são importantes para produzir um efeito estético, mas, sobretudo, para efetivar certas condições de discurso. Em todo caso, a tecnologia será sempre um meio e não um fim em si mesma. Com isso, embora se veja ou se sinta muito ligada à tecnologia, a artista mantém com ela certa distância. Em uma música do álbum Life on a string (2001), chamada Dark Angel, há uma passagem que expressa essa distância: Um anjo negro caiu de pára-quedas numa cidade abandonada e disse: “oh! estive procurando por um certo palhaço branco. Não se parece com você, mas você é o único por aqui, então acho que você serve. Enfim... o que você anda fazendo?” Eu disse: “na verdade, não agüento mais essas novas máquinas. Eu achava que elas seriam todas novas mas parecem todas iguais”. Ele disse: “você parece entediada. Soa como se você estivesse entediada. Tente o seguinte” – disse ele para mim: “por que não pega uma boina, procura um velho café, senta numa mesa e escreve algo novo, que nunca foi escrito antes? Ou escreva seu próprio manifesto. Iria funcionar. Só se certifique de usar um lápis... só pra ter certeza de que... você sabe... a coisa vai sair certa (...)”

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A tecnologia não seria, portanto, a essência de seu trabalho, e sim, uma forma de estabelecer uma relação com a narrativa e de problematizá-la, o mesmo acontecendo com as referências à linguagem, à cultura americana, aos fatos do cotidiano etc. O mais importante para a artista não seria a mágica dos efeitos que a máquina pode fazer. Para ela, não há nisso nenhum mistério ou novidade. O que importa é o modo de usá-la. Daí, Anderson encarar a tecnologia como um teste à criatividade, à invenção, como uma fonte de experimentação. Jen Budney define a arte de Anderson como “a arte do nãovisto”, na qual a tecnologia seria o modo que a artista teria encontrado “para dar forma a pensamentos, sonhos, memórias e alucinações” e contar histórias que encarnam esses elementos. É também a “arte da dupla vista”, com “suas múltiplas interpretações, significados ambíguos e falsas pistas” (BUDNEY, 1997:160). Apesar de usar a tecnologia, em parte, por seus efeitos, Anderson já seria, para Budney, uma artista multimídia “antes mesmo das luzes acenderem”, ao lançar mão de distintas mídias ou formas expressivas (música, poesia, escultura, vídeo). O que caracteriza, então, a produção e o uso de objetos técnicos-estéticos em Anderson não é apenas seu modo de formalização, mas, sobretudo, sua constituição enquanto peças de uma engrenagem maior que seria o conjunto de sua obra, ele próprio uma engrenagem. Nesse conjunto, tanto o técnico quanto o estético estão fortemente imbuídos da capacidade de produzir sentido e, ao mesmo tempo, de resignificar fatos e discursos de que a artista se apropria para produzir seu trabalho. É o caso não apenas de suas esculturas conceituais da década de 1970, mas também de todos os demais tipos de produções, das instalações ao vídeo, passando por sites e CD-Roms, todos podendo ser considerados como o que Janet Kardon denominou “objetos linguísticos”. Porém, apesar de imbricados, os elementos técnico e estético não necessariamente se confundem em seu trabalho, antes se associam e interconectam de uma forma muito própria. Apesar de Anderson empregar sistematicamente dispositivos técnicos, sua arte não consiste ou se efetiva no uso dos aparatos tecnológicos: o que se observa é que, em Anderson, a tecnolo-

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gia vai dinamizar seus jogos narrativos e sua produção artística, produção que será quase sempre atravessada pela técnica e terá com ela uma espécie de solidariedade orgânica. Em outras palavras, em Anderson a técnica está a serviço da criação e com a criação, mas sem sobredeterminá-la. Porque sua arte é acima de tudo uma arte de idéias, o uso da tecnologia entra como um componente de um funcionamento, uma ferramenta que tem a capacidade de gerar efeitos próprios sem, contudo, se sobrepor ao projeto artístico, ele próprio um funcionamento, uma engrenagem. Nesse sentido, é curioso observar como Anderson jamais abandona sua formação em história da arte e em escultura, domínios que estão presentes ao longo de toda sua carreira, mesmo quando atua nos campos da performance, da música e do vídeo. Assim como a escultura, é igualmente importante a influência da arte conceitual em seu trabalho. Como artista de idéias, à Anderson interessará mais o processo que o objeto pronto, que jamais será definitivo. Por mais que com o tempo tenha se aventurado pelo universo pop e produzido objetos, tenha registrado seus trabalhos e até disponibilizasse como “mercadoria”, há algo neles que escapa ou parece querer conjurar sua própria materialidade. Observando atentamente suas produções, é possível afirmar que é no aspecto processual e não necessariamente no da formalização que reside sua força criativa. Esse gosto pela processualidade se evidencia em suas experimentações com a linguagem e com as formas expressivas, para as quais a escultura, a performance e a tecnologia funcionam como suporte e ambiência. Mas desses elementos é a escultura que de alguma forma parece sobressair, enquanto método de trabalho com as formas expressivas. Ao articular distintas mídias (música, performance, instalação, vídeo), ao se apropriar, fragmentar e colar objetos, situações e discursos, a artista literalmente modela esses elementos. Notadamente, o que Anderson faz é trabalhar a expressão como se fosse um material escultórico. Isso permitiria afirmar que seu verdadeiro trabalho seria o de “esculpir” a linguagem por meio de sua experimentação com a tecnologia e com os meios expressivos.

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De fato, o que Anderson faz é acumular, quebrar, modelar, confrontar e rearranjar as formas expressivas e os fatos do cotidiano, fazendo com que, de certo modo, estes se afetem entre si. A articulação entre, de um lado, diferentes “mídias”, tecnologia e narrativa e, de outro, os fatos cotidianos, pessoais e da cultura, se torna possível precisamente porque a produção de objetos técnicos-estéticos se dá em torno das experimentações com a linguagem, o discurso e as formas expressivas. É a partir dessa articulação primária que ela consegue conjugar em seu projeto as experiências da criação e da crítica, da técnica e da estética sem que, contudo, um tipo de experiência comprometa ou enfraqueça o outro. É, portanto, a linguagem o objeto principal da artista e de sua arte, na qual os dispositivos técnicos parecem desempenhar o papel de cinzel.

Táticas e ambivalências Para John Howell, Anderson é a representante de uma geração de artistas que “se graduou durante o ativismo dos anos 60, que estudou a si mesma nos anos 70 e que olhou perplexa para o começo dos anos 80, se perguntando o que fazer”. Para Viki Wylder, Anderson vem oferecendo boas respostas para essa pergunta, “ao fazer poesia, música, fotografia, filme, vídeo, instalações, performances, pedaços e fragmentos de cada um desses elementos e ao fazer tudo isso ao mesmo tempo” (1987:59). A tecnologia tem sido importante para formular essa resposta e formar o estilo da artista. Suas experimentações têm sido feitas, acima de tudo, com o intuito de entender e descrever fenômenos culturais contemporâneos como os modos de vida e de discurso, geralmente ligados à cultura americana, mas também à tecnologia, ao consumo, à política e às artes. A justaposição de diferentes meios expressivos e o uso maciço da tecnologia representam uma estratégia para ler e descrever tais fenômenos, embora a própria Anderson afirme não ter respostas, apenas perguntas. A relação que a artista estabelece com a tecnologia é, acima de tudo, tática, porém, está longe de ser meramente utilitária. Anderson considera a máquina um instrumento e afirma que é 220

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preciso compreendê-la completamente antes de usá-la, pensar antes todo o processo e só então passar para o equipamento afim de executá-lo: “qualquer um que usa qualquer tipo de material – palavras, pedras, acordes – sabe que é preciso trabalhar com ele. Ele lhe ensinará coisas” (ANDERSON, in: AMIRKHANIAN, 1986:221). E ela parece ter realmente aprendido a lição. Anos de experimentação com a tecnologia deu-lhe tempo para aprender bastante com ela e sobre ela. Pelo menos o suficiente para aprender a amá-la e odiá-la. Em seu trabalho, o uso da tecnologia se inscreve em uma relação conscientemente ambivalente, o que a artista indica em vários momentos e de distintas formas. Por um lado, suas imagens, por exemplo – veiculadas primeiramente por fotografia, depois por filme e vídeo e, mais tarde, processadas por computador –, dependem de tecnologia. Por outro, indicam também uma recorrência que jamais é gratuita, mesmo que freqüentemente remetam a outros objetos técnicos como aparelhos de televisão, aviões, relógios elétricos, tomadas de parede etc. Em seus trabalhos, esses objetos se tornam signos que ela vai manipular para fazer seus questionamentos e críticas. Nesse procedimento é que Auslander (1997:111) viu uma relação ambígua de Anderson com a tecnologia, que seria então usada para desmitificar a própria tecnologia: com ela, Anderson mimetizaria os processos de mediação tecnológica, lhes exporia os mecanismos, abrindo espaço para discutir as suas implicações em nossa sociedade. Há uma passagem na Parte III de United States (1983), na qual Anderson faz um irônico comentário sobre o complexo sistema que lhe permite realizar suas performances e que ela chamou de “O Sistema”. Projetando numa grande tela um croqui do palco – verdadeiro diagrama com marcações de todo tipo – ela diz: “vamos dar uma olhada no que eu chamo de ‘O Sistema’ – a altamente sofisticada (e cara) parafernália com a qual eu lanço meus feitiços. Agora, deixem eu lhes dizer uma coisa: essa coisa não dá em árvores” (1984:143). A tecnologia, nas palavras de Viki Wylder, “símbolo do mecânico, do material, da precisão, do conhecimento, do racional, do científico, do analisável e, por isso mesmo, do controlável,

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símbolo do orgulho da América” (1987:59), seria assim transformada por Anderson ao ser primeiramente descrita como clichê (“O Sistema”), depois, apesar de sua complexidade, ser chamada de “parafernália”, sendo, em seguida, retirada do domínio de suas associações comuns para ser identificada como “feitiçaria”. Wylder viu nessas alusões de Anderson uma intenção de desmitificar a tecnologia e questioná-la. Apesar disso, Anderson parece, ao mesmo tempo, demonstrar que não prescinde daquilo que ela mesma critica: Eu tenho uma relação realmente pessoal com as máquinas. É verdade que mesmo sendo muito crítica com a tecnologia em termos do que eu digo, eu faço essas críticas através de 15.000 watts de potência e de muitos equipamentos. Isso significa, afinal, algumas coisas, como o fato de que eu a odeio e a amo [a tecnologia] (In: AMIRKHANIAN, 1986:220).

Portanto, ao usar o próprio trabalho simultaneamente como arma e alvo, a artista confirma ter com a tecnologia uma relação confessa de “amor e ódio”, onde o “amor” estaria exatamente na possibilidade de com ela viabilizar a apresentação de suas idéias e de ampliar seu alcance, “de conectar as pessoas” (GOLDBERG, 2000:90) e de “problematizar sua narrativa e expandir sua comunicação com o público” (BUDNEY, 1997:160). O “ódio” estaria nos discursos que vendem a tecnologia como verdade (e solução) e nas práticas de dominação e controle construídas a partir desses discursos, contra os quais Anderson vai investir incessantemente. Mas Wylder não vê essa tensão como referente à personalidade da artista, e sim, como fazendo parte de uma relação mais ampla – embora igualmente “consciente e atormentada” –, que, no caso, seria a do casamento entre arte e tecnologia. Para Wylder, Anderson seria depositária de uma longa história de artistas que se envolveram com tecnologia nos anos 60 e 70 e cujas raízes estaria na relação de “atração-repulsão” presente desde os primeiros tempos das vanguardas modernistas do começo do século XX, especialmente nos movimentos dadaísta e surrea­ lista e na primeira fase do futurismo.

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Jane Livingston, curadora de uma grande mostra de arte e tecnologia realizada nos Estados Unidos em 1971, foi uma das primeiras a discutir os modos como os artistas vinham se relacionando com a tecnologia até então. No ensaio introdutório que acompanhava a mostra, Livingston falou da grande hesitação de muitos, por razões políticas e estéticas, em se envolverem com tecnologia e percebeu três posições bem distintas: uma, na qual artistas acreditavam que a tecnologia deveria ser absorvida e “acomodada” dentro do sistema artístico; a segunda, oposta à primeira, em que se acreditava que a tecnologia era desumana e que a arte deveria se opor a ela ou pelo menos manter-se longe dela; e finalmente a terceira, que diria respeito a uma experiência “transitória” caracterizada por uma “estética informacional sem interesse pela produção de objetos” (LIVINSGTON, 1971:43). Embora de certa forma as duas primeiras posições encontrem alguma ressonância em Anderson, seria a terceira a que mais se aplicaria a seu trabalho. Como artista, Anderson parte de produções de escultura de distintos tipos (objetos, livros) para megaapresentações ao vivo que justapõem texto, som e imagem através da tecnologia. A natureza dessas apresentações – cujo eixo principal é a articulação entre tempo, espaço e linguagem – é, segundo Wylder, própria da linguagem transitória e fragmentária da performance e da tecnologia, que servem de base para as produções da artista. O resultado dessas operações, em Anderson, seria, segundo Wylder, um trabalho com uma “qualidade incorpórea”, “lembrada e descrita em miríades de detalhes, em que raramente se experiência o todo, realmente não traduzível ou compreendido senão em si mesmo, de forma imediata” (WYLDER, 1987:59). De fato, seus trabalhos de performance se caracterizam pela projeção de imagens, silhuetas, luzes e cores, manipuladas eletronicamente e a esse cenário imagético são acrescentadas música, sonoridades e ações, de forma a gerar algo que não é um objeto final que o espectador possa pegar ou sobre o qual possa se deter e examinar, e sim, uma ambiência. Outra característica importante de seus trabalhos é que esses elementos geralmente são organizados e agrupados por algum tempo para em seguida serem dispersos.

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Daí a importância da tecnologia para Anderson: ela ajuda a produzir uma processualidade e a viabilizar essas operações de junção e disjunção, de justaposição, bem como de permitir a invenção de imagens e sonoridades, de possibilitar-lhe, assim, narrar de outro modo acontecimentos, discursos e práticas que flagra no cotidiano da cultura norte-americana e de outras sociedades “tecnológicas”. Em Anderson, a tecnologia será usada para encarnar temporariamente idéias, daí o caráter transitório e a qualidade “incorpórea” de seu trabalho, como indicou Wylder. Ao lado dessa “qualidade incorpórea” – processual e imediata –, Wylder reconhece uma outra não menos importante: a qualidade “midiática” (WYLDER, 1987:60), formada pela associação da tecnologia com distintas “mídias” (música, vídeo, texto, instalação). Mas o que vai caracterizar o trabalho de Anderson não é apenas o acúmulo de meios expressivos, mas o tratamento que lhes é dado para obter um determinado efeito estético. Através da manipulação eletrônica de som e imagem e de sua própria presença, Anderson passa a operar com esses elementos de forma a fazê-los funcionar como elementos lingüísticos. A tecnologia vai, assim, ser colocada a serviço de sua máquina estética e de expressão e conferir a esses elementos uma função de meio, com a qual ela vai articular e produzir questionamentos das relações entre arte e sociedade, arte e vida, arte e política, arte e tecnologia, tecnologia e cultura, cultura e linguagem etc. A rigor, sua arte é tecnologia. É importante agora verificar mais de perto como essa mediação vem sendo feita, ou seja, como Anderson vem conduzindo de forma intensiva a tecnologia nesse processo de experimentação com as formas expressivas e na busca de compreender e descrever os fenômenos da cultura contemporânea, sobretudo no contexto da sociedade americana. Como vimos, seus trabalhos surgem desde o início envolvidos com algum grau de tecnicidade, no que diz respeito ao conjunto de procedimentos de criação e à relação que ela estabelece entre os suportes, seus usos e fins.

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Do low ao high-tech: apropriações da tecnologia e experimentações linguageiras O uso da tecnologia nos trabalhos de Anderson começou de forma simples. No início dos anos 70, já chamava a atenção o processo de manipulação de materiais e a justaposição de linguagens, que poderiam ser considerados seus primeiros procedimentos tecnológicos. Naquele momento, como vimos, sua ferramenta mais simples foi a collage de materiais reciclados, usados em suas primeiras peças escultóricas. Papel-jornal e resina – materiais pouco comuns para a escultura conceitual da época – eram usados para produzir esculturas que discutiam questões como duração, memória e política, como o trabalho New York Times, Horizontal/China Times, Vertical (1971), sobre a Guerra Fria. Esses e outros primeiros objetos (“linguísticos”) evidenciavam o interesse da artista pela linguagem e indicavam que sua força estava no poder enunciativo da escultura não como objeto, mas como um cruzamento de referências. Outro tipo de peça já impreganada de tecnicidade era o livro, não apenas por sua combinação com dispositivos técnicos simples, mas, sobretudo, por funcionarem eles próprios como uma engrenagem que propiciava associações mentais entre forma e conteúdo e uma experiência na qual o sentir estava ligado a essa modalidade de associação. Um exemplo disso foi Windbook (1974), um livro de 200 páginas também feito artesanalmente com histórias escritas à mão e com fotografias e impresso em papel de casca de cebola. O livro ficava numa caixa transparente com ventarolas instaladas em suas extremidades. À medida que o dispositivo soprava alternadamente de cada extremidade, suas páginas iam para frente e para trás, exibindo as fotografias. Desse modo, à medida que as páginas iam sendo sopradas, as cenas das fotos se desenrolavam espontaneamente e numa ordem imprevisível, retratando Anderson andando em seu loft. A artista aparecia e depois desaparecia, luzes mudavam de intensidade e criavam um interessante efeito visual.

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Mas foi em trabalhos que a aproximavam da performance que Anderson definitivamente incorpora a tecnologia. As séries fotográficas que flagravam situações de seu cotidiano e exploravam sonhos e formas de percepção da realidade (Institutional Dream Series e Object/Objection/Objectivity) indicam já o início do uso de tecnologias de reprodução (fotografia) como meio de efetivar suas estratégias narrativas, sempre sob a perspectiva conceitual. No caso, a fotografia funcionava como forma expressiva (suporte de um processo narrativo) e dispositivo técnico (tecnologia de reprodução) e possibilitava a integração de outros elementos (autobiografia e texto manuscrito que evocava imagens gráficas). Por sua vez, ao serem acionados, esses elementos passam a funcionar eles próprios como dispositivos técnicos que se combinavam com a fotografia, formando uma nova engrenagem. O conjunto desses dispositivos tornava possível a Anderson criar verdadeiras narrativas visuais. Não por acaso, esses trabalhos fotográficos eram conhecidos como “fotonarrativa” e classificados, de uma forma mais genérica, como “arte narrativa”. O uso das apresentações ao vivo, a partir da segunda metade dos anos 70, com a intensificação e a diversificação da tecnologia era uma nova forma de fazer arte e que caracterizou, como vimos, a experiência de novos artistas da chamada “geração midiática”. Nessas apresentações, Anderson também começou a combinar uma gama maior de formas expressivas (música, histórias, texto, instalações) com novos dispositivos (projeções de slides e textos, uso de gravadores com fitas de músicas e histórias pré-gravadas e violinos modificados). Isso pode ser observado principalmente em trabalhos como As:If e Duets on Ice, no qual histórias eram contadas ora por ela mesma, ora por meio das fitas de áudio, enquanto tocava o violino ao mesmo tempo. Todos esses elementos funcionavam como ferramentas que Anderson manipulava para produzir um trabalho que só se efetivava esteticamente por meio dessa combinação. Nesses primeiros trabalhos de performance destacam-se os usos da imagem e do violino, instrumento ao

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qual Anderson “ensinaria a falar” e que a partir de então passaria a acompanhá-la em todas suas apresentações.68 As imagens – slides e filmes com figuras de lugares, desenhos de objetos e imagens de palavras – geralmente eram usadas ao mesmo tempo como cenário e legenda para complementar ou suplementar comentários ou histórias e normalmente projetadas enquanto Anderson falava. Curiosamente, as imagens fílmica ou de slides se relacionavam não apenas com as histórias e com as músicas, mas também com o próprio corpo de Anderson, que funcionava aí como um outro dispositivo usado na performance. Numa das versões de For Instants (1976), por exemplo, três imagens são projetadas simultaneamente contra uma parede branca e por sobre a figura de Anderson. Posicionando-se intencionalmente na frente de um dos projetores, Anderson bloqueava uma das imagens e criava uma sombra na parede, sobre a qual agora se revelavam as outras imagens simultaneamente projetadas, porém antes imperceptíveis. Ou seja, ela modulava as imagens com seu corpo. Esse modo de apresentação das imagens implicava uma interessante operação: tanto corpo quanto imagem brincavam de trocar de lugar e ambos se transformavam em objetos de cena, presenças, dispositivos arranjados intencionalmente para compor o trabalho. Outro exemplo do uso do corpo como instrumento ocorreu também numa versão de For Instants, de 1975, em que se utilizou uma versão filmica ao lado da apresentação ao vivo. O filme começava com cenas gravadas da janela de loft de Anderson projetadas numa parede branca. Depois de alguns instantes, Anderson aparece em cena com um vestido branco, tocando um violino. O concerto e o filme terminam simultaneamente. Depois disso, senta-se no chão com uma vela, numa área circular apenas iluminada por um foco de luz, no qual lê um texto sobre as dificuldades de se fazer um filme, de compreender sua temporalidade e de escrever canções. A vela estava ligada a um sensor instalado 68. O violino e as imagens textuais e icônicas passariam a funcionar como “bonecos de ventríloquo”, elementos criados para falar por ela, importante estratégia narrativa que ela efetuaria por meio do uso da tecnologia.

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no chão que, por sua vez, se conectava ao refletor. Enquanto ela falava, sua respiração fazia com que a chama tremulasse e com isso o spot se movia alterando levemente a área iluminada no palco, fazendo, assim, com que a iluminação do espaço de leitura do texto estivesse associada à sua respiração. Já o violino, como dispositivo técnico, será para Anderson uma espécie de voz incorporal, que funciona tanto como uma forma de extensão de seu corpo quanto como seu substituto, sendo considerado por isso mesmo um de seus primeiros “alter egos”. O violino atua como uma espécie de “máscara”, com a qual Anderson desloca e minimiza sua presença no palco para permitir que outros elementos – músicas, histórias e imagens – se destaquem. Anderson afirma que as máquinas são para ela como instrumentos ou que tenta fazê-las tornarem-se instrumentos, da mesma forma que tenta transformar os instrumentos em máquinas. Por isso, embora apreciasse a “atmosfera” de século XIX que o violino invocava, não hesitaria em mesclá-la com elementos de seu tempo para produzir uma série de violinos modificados, para a qual contou com a colaboração do engenheiro eletrônico especializado em áudio e design, Bob Bielecki. Ao todo, Anderson criou cinco tipos diferentes desses violinos, instrumentos que poderiam ser considerados como um verdadeiro laboratório de sonoridades: self-playing violin (1974), viophonograph (1976), tape bow violin (1977), neon violin (1982), digital violin (1985). Cada um deles teve sua estrutura alterada para permitir efeitos sonoros específicos e reflete, por isso mesmo, as experimentações de Anderson com a tecnologia, com as sonoridades e com a linguagem ao longo de sua carreira. Anderson os aciona como ferramentas narrativas, que ela emprega conforme o tipo de proposta do trabalho que vai apresentar. O primeiro tipo de violino modificado foi o self-playing violin, usado em As:If e Duets on Ice. O instrumento tinha um pequeno gravador embutido sob o corpo do violino com uma fita pré-gravada, permitindo que ele tocasse “sozinho”, enquanto ela o tocava ao mesmo tempo. O efeito era o de um duo consigo mesma e o de a justaposição das distintas fontes sonoras, que,

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contudo, não se fundiam, antes se combinavam e compunham uma ambiência perfeita para as histórias que contava. Essa combinação fazia da performance ao vivo um conjunto singular, modelo que Anderson utilizaria mais tarde em apresentações mais complexas e com dispositivos mais sofisticados. Outro detalhe interessante é que Anderson criou uma versão desse instrumento “vestido” com uma capa de camuflagem (como as do exército) especialmente para dois trabalhos – How to Yodel (“Como cantar em falsete”) e Soup and Tart (“Sopa e torta”), ambos de 1974. O uso da camuflagem se deu provavelmente porque com ele Anderson conseguia fazer um duo no qual uma das “vozes” – a do violino ou a da gravação – era considerada um “falsete”. Ora, o falsete é já uma “outra voz”, um recurso oculto da própria voz, daí talvez a roupa camuflada do instrumento. Isso deixa claro como para Anderson o violino constituía um outro corpo, uma outra presença, que ela fazia falar por ela, como num processo de ventriloquismo. O segundo tipo de violino foi o viophonograph, de 1976, que continha um toca-disco movido à bateria embutido sobre o corpo do violino, no lugar das cordas. No arco, em vez da corda, Anderson colocou uma agulha para tocar um pequeno disco de 45-rpm com uma nota musical gravada de cada lado. Os movimentos do arco faziam a ponta da agulha atritar o disco. De acordo com a velocidade do movimento, provocava sons diferentes, que ela então modulava. O instrumento foi usado na performance For Instants (1976) muito mais com a intenção de brincar com os sons do que propriamente fazer música. Curiosamente, o viophonograph é criado num momento em que Anderson diversifica suas formas de apresentação ao vivo, quando essas passam a ter também slides e filmes. Ou seja, as invenções com o violino testemunham seus processos de experimentação, ao mesmo tempo em que os integra, pois passam a incorporar outros tipos de dispositivos técnicos simples, mas que lhe conferem um efeito inusitado. Nessas experimentações, Anderson chegou a encher o violino de areia ou água para produzir diferentes sonoridades, lembrando particularmente os procedimentos de John Cage com seu “piano preparado” ou as apresentações performáticas de Nam June Paik, nos anos 50 e 60.

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Em 1977, Anderson criou o tape bow violin, um violino que tinha um cabeçote de gravador no lugar das cordas (embutido no corpo do instrumento) e no lugar da corda do arco, uma faixa de fita pré-gravada. Seguindo o mesmo procedimento do viophonograph, ela atritava a fita embutida no arco contra o cabeçote e reproduzia o som gravado na fita, que trazia sons de saxofones, baterias e latidos de cachorro e também sons de conversas e provérbios em outros idiomas. Além de produzir curiosos duetos consigo mesma, Anderson criava outros sons conforme a velocidade do movimento que imprimia no instrumento. Sons e palavras surgiam estranhamente distorcidos e serviam como fonte de investigação sobre a linguagem e o acaso. Nesse caso, o violino funcionava como “espécie de ferramenta de tradução”, como explica a artista: Meu método era gravar um certo número de dizeres e provérbios em outras línguas. Então eu as picava e remontava em tiras e as ouvia ao contrário para ver se podia ouvir algo em inglês. Isso acontecia uma vez em cada 20 vezes. E uma vez em 20 de uma vez em 20 eu conseguia perceber alguma relação entre os significados de ambas as versões (ANDERSON apud GOLDBERG, 2000:81).

O neon violin, de 1982, foi desenhado especialmente para a megaperformance United States, momento em que Anderson ganha visibilidade fora dos limites de downtown. Foi em United States que, pela primeira vez, a artista fez uso sistemático da tecnologia para alcançar efeitos high-tech e para produzir suas “máscaras eletrônicas”, com as quais criava seus alter egos ou duplos, como veremos em detalhe mais adiante. O neon violin era feito de material plástico com uma lâmpada néon embutida no arco e outra no corpo do instrumento. Segundo RoseLee Goldberg, o uso desses materiais tinha o poder de afetar o som do instrumento, que produzia uma estranha sonoridade quando tocado. Com ele, em determinado momento da performance, Anderson interceptava a projeção de um slide com o arco de néon, através de movimentos rápidos que fazia com o braço, para cima e para baixo. Nesse movimen-

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to, a imagem projetada era interceptada e retida no lastro luminoso branco criado pelo deslocamento do arco do violino. O efeito, surpreendente, era o de um “falso holograma”, a imagem “virtual” de seu quarto tremulando no palco. O instrumento foi também utilizado no filme Home of the Brave, em 1985, época em que criou o último modelo de violino modificado, o digital violin. O violino digital tinha um formato diferente dos demais modelos. Mais fino e em metal, o instrumento era conectado a um synclavier, uma espécie de sintetizador que estocava eletronicamente diversos sons, permitindo que Anderson reproduzisse – como e quando quisesse – estranhas sonoridades, como na música Smoke Rings, de Home of the Brave, onde o violino toca o som de uma violenta tempestade, feito e registrado, na verdade, no computador e guardado no synclavier. Para modificar os sons, bastavam rápidos ajustes no sintetizador e localizar o tipo de sonoridade desejado, que era então reproduzido pelo violino no momento previsto na performance. Notáveis esses movimentos, rápidos e precisos, que executava com delicadeza e espontaneidade impressionantes. Percebe-se assim que, mais que um instrumento musical, o violino para Anderson era um “objeto de cena”, como ela diz, uma presença que atuava na performance. Mas, Anderson também afirma que se os instrumentos musicais eram objetos, também o corpo humano o seria (ANDERSON, 1994:35). Com isso, a artista parece sugerir que, em suas experimentações com a linguagem e a tecnologia, recursos como som, imagem, texto, corpo, instrumentos como o violino ou equipamentos como gravadores e projetores têm o mesmo status de “meio expressivo”, que ela tensiona para obter o nunca visto. É interessante lembrar que mesmo com o uso de recursos cada vez mais sofisticados aplicados ao violino, Anderson não abandona o violino comum, que ela utilizará ora sozinho ora apenas ligado a um sintetizador, para criar alguns poucos efeitos sonoros necessários a histórias e a comentários que fazia, sobretudo em suas “performances low-tech”. Essa modalidade de apresentação refletia um momento de reflexão de Anderson acerca da própria tecnologia e viria, a partir dos anos 90, quase sempre intercalada com as “performances high-tech”, na qual

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a artista continuaria lançando mão de novos tipos de dispositivos técnicos, sempre como ferramentas estéticas e narrativas. Em Stories from Moby Dick (1999), sua mais recente megaperformance até o momento, Anderson, além do violino, usa um curioso instrumento sonoro desenhado especialmente para esse trabalho. O talking stick era uma espécie de vara, no formato de um arpão, que era, na verdade, um instrumento musical com recursos para estocar sons eletronicamente sem necessidade de estar conectado a uma fonte externa, como um sintetizador. O instrumento, que ela descreve como um “invocador de vozes incorpóreas e fantasmáticas” (apud AUSLANDER, 1999:33), dispunha de áreas próprias para serem tocadas com a ponta dos dedos – de forma a reproduzir sons e músicas – e outras para ajustes do tipo de som desejado. O talking stick servia, a um só tempo, como aparelho sonoro e objeto de cena (arpão), quando Anderson atuava ou contava trechos da obra de Melville. O talking stick, na verdade, seria uma versão sofisticada de um antigo instrumento, mais simples, que Anderson criara para a performance Closed Circuits (1979), o tubular drum. A bateria tubular nada mais era que a modificação do suporte do microfone, que ela adaptara para fazer ressoar sons também processados digitalmente, como sons de “s” muito sibilantes ou sons com tons que variavam de acordo com a parte do suporte tocada por ela. Os efeitos, tanto de um quanto do outro, eram surpreendentes e ajudavam Anderson a criar ambiências sonoras para suas histórias e músicas, resultados talvez dificilmente alcançáveis por instrumentos convencionais. Isso parece confirmar o argumento de que o uso desses e outros recursos – esculturas, palavras e frases em forma de slides, filmes, instalações – indicam não apenas um estilo, mas, sobretudo, que esse uso se dá de um modo muito particular, formando uma espécie de engrenagem, que se move em função de uma determinada intenção estética e narrativa. Ou seja, esses recursos constituem peças de uma engrenagem e, ao mesmo tempo, formam eles próprios uma engrenagem. Isso permitiria vê-los não apenas como objetos, mas como um conjunto estruturado e concatenado de procedimentos que se apóiam na técnica mas que não se resumem a ela.

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Como fez com o violino, Anderson criaria mais tarde para si outros “alter egos” e outros dispositivos que lhe permitissem continuar a narrar, cada vez mais e de forma mais abrangente, como suas instalações interativas, seus dummies (bonecos) e clones eletrônicos. Um dos trabalhos mais antigos e curiosos realizados nesses moldes foi At the Shrink’s. Exibido originalmente na Holly Solomon Gallery, em 1975, e reexibido no Guggenheim de Nova Iorque, na exposição Moving Pictures, de junho de 2002 a janeiro 2003, At the Shrink’s é um exemplo de instalação audiovisual de inspiração conceitual com um toque lúdico, que combina sua formação como escultora e seu interesse pela tecnologia. A peça consistia num “falso holograma” feito a partir da projeção de sua própria imagem sentada numa poltrona sobre uma pequena imagem em gesso de aproximadamente 15 cm de altura, usando um filme super-8. O resultado era um clone fílmico que contava uma história sobre “visitas que costumava fazer a uma psiquiatra”. Ao se aproximar do holograma, era possível ver a imagem dos lábios de Anderson se mexerem e ouvir a narração da história.69 A figura – um de seus “alter egos”, era, como conta Anderson, “uma forma de fazer a performance sem estar presente”. Com equipamentos simples, a artista gerava as interessantes combinações de som, texto e imagem. Essas combinações se devem, contudo, mais “à sua resposta engenhosa ao ambiente que a rodeava do que a seu sofisticado conhecimento técnico”, afirma Goldberg (2001:65). De toda forma, suas apresentações alcançavam notáveis efeitos audiovisuais através de equipamentos low-tech, baseando-se em idéias que tirava do Edmund 69. Anderson conta que a psiquiatra sentava sempre num canto da sala, no qual de um lado havia uma janela e do outro, um espelho. Anderson se sentava numa poltrona e como olhava muito para o espelho, um dia reparou que às segundas-feiras o espelho estava sempre limpo, mas às sextas tinha marcas de batom. Um dia comentou sobre as marcas, que a psiquiatra desconhecia. Anderson então percebeu que do lugar em que ela se sentava não podia vê-las e convidou-a para sentar-se em sua poltrona. Intrigada, a psiquiatra descobriu mais tarde que sua filha de 12 anos vinha durante a semana e beijava o espelho e que nos fins de semana a faxineira limpava a sala. Depois disso, Anderson deixou de visitar a psiquiatra, ao perceber que ambas viam “as coisas de pontos de vista muito diferentes e que, portanto, já não teria de vê-la novamente” (apud GOLDBERG, 2000:54). FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Scientific, segundo ela, “uma espécie de catálogo para cientistas amadores e funileiros” (ANDERSON, 1994:223). Um exemplo de trabalho que usou esse tipo de equipamento Handphone Table, exibido em 1978 no MOMA de Nova Iorque. A instalação consistia numa mesa com alto-falantes embutidos sob a base de madeira e sensores na parte de cima da mesa. Sempre que alguém se sentava e colocava os cotovelos nos sensores o gravador era acionado e era possível ouvir música pela simples transmissão do som partindo do cotovelo até a cabeça: “quando você tapa seus ouvidos com as mãos, é como se as colocasse num potente fone de ouvido estéreo. Toda a cabeça se torna um alto-falante; na verdade, é mais como lembrar os sons do que propriamente ouvi-los” (ANDERSON apud GOLDBERG, 2001:74). A instalação era acompanhada por uma fotografia com a figura de alguém na posição necessária para a instalação funcionar e de uma frase que dizia “o modo como você se moveu através de mim”. A frase era também o título de uma das músicas que se podia ouvir em uma das extremidades da mesa. Na outra, ouvia-se a música “E eu me lembro de você em meus ossos”. Nesse trabalho vemos também um esforço estético em que o ato de “ouvir uma obra” e de participar de seu volume espaço-escultural são enfatizados no sentido de retrabalhar a percepção e o grau de consciência sobre objetos e experiências cotidianas. Do mesmo período e igualmente representantes desse tipo de proposta foi Night Driver, também de 1978. Nightdriver consistia no uso de fitas pré-gravadas juntamente com slides e fones de ouvido. O espectador/ouvinte sentava-se numa cadeira e olhava para uma tela onde via sua própria sombra projetada juntamente com imagens de carros70 que passavam literalmente através do corpo do participante, enquanto se ouvia histórias sobre a relação entre os sentidos físicos e o tempo. Esse é, aliás, um dos aspectos mais importantes do uso que Anderson faz da tecnologia e que permitiria considerá-la como 70. “Carro”, em seu “dicionário”, significa “consciência de si”. Vem daí uma de suas célebres frases, “estou em meu corpo como a maioria das pessoas dirigem em seus carros” (ANDERSON, 1994:116). 234

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um “mecanismo de deslocamento”: ciente de que o ideal da tecnologia como lugar do progresso e como utopia redentora habita sua própria cultura, Anderson irá exacerbar a presença da técnica como forma de crítica, fazendo a tecnologia “gaguejar” e ser “estrangeira em sua própria língua”.71 O método é típico da performance dos anos 70 e é empregado por Anderson para realizar questionamentos e desconstruções. Só que ao invés da presença imediata, usará uma presença mediada tecnologicamente: assim como os artistas conceituais e de performance usavam a nudez (Carole Schneeman, Karen Finlay), a dor (Chris Burden, Gina Pain) e o corpo como código (Vito Acconci) para romper condicionamentos estéticos e sociais, Anderson usa o corpo mediado para questionar a própria representação e evidenciar seus enunciados. Isso confere a esse modo de emprego da tecnologia um caráter político e de resistência. Em sua arte, juntamente com as histórias, será a tecnologia que permitirá a Anderson a constituição de suas estratégias micropolíticas, como o entende Guattari, ou seja, de modos de “formações do desejo no campo social” (GUATTARI, 1999:127). Da mesma forma como, em seu início, a performance enquanto forma expressiva trabalhava desnaturalizando o corpo e seus condicionamentos, as regras sociais e seus discursos via apresentação (e não pela representação), Anderson vai tentar discutir essas questões por meio da descostura das noções de presença, de corpo e de representação, só que num momento em que estes se manifestam já mediados. Anderson vai tentar mostrar que a presença mediada, embora não imediata, é ainda uma presença e, como tal, tem grande poder de intervenção. Esse procedimento permitiria dizer que Anderson usa a tecnologia também como uma espécie de scanner. A tecnologia funcionaria como um mecanismo para ler a sociedade contemporânea, em especial a americana. Incorporando a tecnologia 71. A inspiração para a frase vem de Deleuze e Guattari, quando tratam da produção de uma “literatura menor”, a respeito do uso da língua em Kafka, sempre intensivo e considerado pelos autores como “menor” não por se tratar de uma língua falada por um número menor de pessoas, mas por ser antes “o que uma minoria faz em uma língua maior” (como, no caso de Kafka, o alemão falado em Praga), um uso com “forte coeficiente de desterritorialização” que modifica a língua (DELEUZE e GUATTARI, 1977:25), fazendo-a “falar” de outro modo. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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em suas performances, Anderson joga e desconstrói os discursos dominantes oriundos dos meios de comunicação e implícitos também em usos e concepções da tecnologia. Por meio da tecnologia, ela vai investigar o desenvolvimento desses discursos “de dentro deles”, desnudando-os e desnaturalizandoos. É essa operação que Auslander chamou de “resistência de dentro”, ou seja, uma estratégia que consiste basicamente em “usar contra o edifício os instrumentos ou as pedras disponíveis nele”. Esse procedimento é, porém, motivo de interessantes críticas feitas à Anderson, como a de que ela subordinaria seu trabalho ao uso dos dispositivos técnicos e passaria assim a depender deles e, ao mesmo tempo em que passaria a ter com eles e com o sistema uma “cumplicidade” (THÉBERGE, 1993). Outra crítica é a de que o uso desses dispositivos, ao invés de obstar a representação, teria o efeito de reforçá-la (BIRRINGER, 1993). Finalmente, ao articular sua crítica através do uso da tecnologia, Anderson não estaria talvez fazendo mais do que “meramente reproduzir os detalhes da superfície da vida pós-moderna”, fato pelo qual ela teria ficado conhecida como “uma das mais importantes e estranhas comentadoras da cultura americana”, tendo, porém, dificuldades para transcender essa reprodução (FONTENOY, 1996). Contudo, como vimos, sua relação com a tecnologia não parece ser de dependência, e sim, de esperteza: ela a utiliza e dela se afasta quando necessário, segundo objetivos específicos, como atestam trabalhos como Voices from the Beyond (1991) e Speed of Darkness (1996), produções que questionaram, respectivamente, questões políticas e os usos da tecnologia na sociedade e que se caracterizaram pelo pouco uso de dispositivos técnicos em cena. Em Anderson, esse uso é, portanto, instrumental, sem ser puramente utilitário, e se em algum momento de fato reforçar a representação, será tão-somente para diluí-la logo em seguida, procedimento que já poderia ser considerado uma forma de crítica. Seguindo com suas experimentações, a partir do final dos anos 70, Anderson vai intensificar os usos de dispositivos técnicos, que vão se tornando também cada vez mais complexos. Esse uso mais sofisticado da tecnologia serviria para produzir suas

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grandes performances ao vivo, que inaugurariam a fase hightech que Janet Kardon chamou de “cabaré eletrônico” (de 1979 a 1983) e que marcariam sua trajetória nos anos 80. Nesse período, Anderson utilizaria a tecnologia para expandir o alcance e as modalidades de suas formas narrativas por meio de dois procedimentos: a produção de ambiências sonoras e imagéticas para suas músicas e histórias e a constituição de um corpo eletrônico, com o qual assume um status ciborgue, que dilui e, ao mesmo tempo, amplifica sua presença. Comecemos pela formação de suas paisagens narrativas, que é o primeiro desses dois usos estratégicos da tecnologia em seus trabalhos a partir dos anos 80.

Dream world: ambiências sonoras e visuais como formas narrativas Essencial para o funcionamento das performances de Anderson como meio expressivo é o uso das imagens e das sonoridades criadas com auxílio da tecnologia. Com elas, a artista produz uma ambiência especial para suas músicas e histórias. Essa ambiência desempenha, aliás, uma importante estratégia comunicativa: ela cria verdadeiras paisagens narrativas por meio das quais Anderson descreve o cotidiano das sociedades tecnológicas, ao mesmo tempo, em que faz ressoar poeticamente seu estranhamento. Quando Anderson criou sua primeira megaperformance high-tech, em 1979, Americans on the move, lançava mão da projeção maciça de slides, imagens em vídeo e de um conjunto de sonoridades, que ora tirava do violino, ora de fitas pré-gravadas ou de estranhas reverberações de sons e distorções de voz através de sintetizadores ligados ao microfone. À medida que Anderson vai ampliando e complexificando o uso desses sons e imagens, empregando-os no contexto de suas performances, ainda nos anos 70, percebe-se que sua intenção não é outra senão aumentar sua capacidade expressiva e problematizar suas narrativas, no sentido de trazer para dentro delas os diferentes aspectos que compõem os fatos e discursos a que remetem para discuti-los. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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Um aspecto importante de suas narrativas – e que justificará o uso da tecnologia – é que muitas de suas músicas e histórias são criadas a partir de sonhos ou de incidentes comuns de seu cotidiano ou de tipos de pensamentos fragmentados, porém, carregados de significação. Esses pensamentos, ao serem traduzidos sob a forma de músicas e histórias passam a pairar como devaneios em suas performances e a ganhar, por isso mesmo um “significado transcendente”72 (HOWELL, 1992:10). Mas para adquirirem esse aspecto onírico, histórias e músicas recebem um tratamento estético que consiste em envolvê-las em diversas camadas de sons e imagens manipuladas eletronicamente. A própria Anderson explica que como artista sempre tentou conectar dois mundos, “o chamado mundo real e o outro mundo, mundo paralelo do possível e do acaso: um mundo de sonho” (apud HOWELL, 1992:10). O resultado desses usos de sons e imagens é a produção de um cenário sígnico, uma paisagem narrativa que encarna as formas-sonho-pensamento de Anderson. Janet Kardon (1983:3) observa que a constituição dessas paisagens é uma extensão das habilidades de Anderson como escultora, que lhe permite moldar o espaço com sua presença e com a mistura de luzes, sons e efeitos especiais. Tratando cada um desses elementos como um fragmento-idéia, Anderson cria uma grande rede sígnica que toma corpo através da constituição dessa ambiência narrativa. É nessa ambiência e por meio dela que a artista destaca, descreve e desconstrói fatos e discursos que flagra no cotidiano, na mídia, no mundo das artes, em outras culturas e em sua própria, desenvolvendo seus questionamentos. O primeiro grande trabalho nesses moldes foi United States. Construído para ser “ópera falante” que traçasse um “retrato” ou “grande mosaico da América”, o trabalho traça a imagem evanescente de uma América em constante movimento e redefinição – impulsionada, na opinião de Anderson, em grande parte pela tecnologia – e remete à idéia de uma realidade fragmentada, que é rearranjada velozmente. 72. O que Howell chama de “transcendente” eu chamaria de “associativo” ou “intertextual”, pois como vimos, Anderson costuma organizar suas narrativas através da linguagem-collage própria da performance. 238

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Falar dos Estados Unidos, afinal, era, sobretudo, retratar um assunto e um quadro espaço-temporal móvel. Essa dinâmica foi captada e processada pela artista e acabou tornando-se parte integral do trabalho, o que pode ser observado na forma de organização de seu conjunto. Exemplo disso é a divisão em 4 partes temáticas – cada uma composta em média por 18 pequenas histórias –, os solos de violino para introduzir as histórias e a forma de encadeá-las com outros solos e o uso recorrente de fotos e ícones de relógios, mapas, carros, arranha-céus, desenhos de silhuetas de pessoas, aviões, aparelhos de telefone, gestos com a mão e com o braço. Esses elementos funcionariam como signos, fragmentos-idéia que Anderson acionaria para compor suas narrativas. Contextualizando o desenvolvimento de United States, RoseLee Goldberg afirmou que o formato de United States I-IV teria produzido condições para a discussão dessa fragmentação, presente no ethos das sociedades tecnológicas. Não por acaso, sua forma de prender a atenção do público com um contínuo fluxo de imagens parecia em alguns momentos simular os fluxos da mídia, até porque eram retiradas do cinema, de revistas e da própria televisão, imagens que Anderson rearranjava e com os quais buscava retratar uma sociedade em trânsito. Por isso mesmo, United States foi considerado por muitos como “uma alegoria precisa do que se tornava a América contemporânea” (GOLDBERG, 2000:13). Ao mesmo tempo, com suas histórias insólitas, a performance representava um olhar perquiridor sobre as práticas discursivas e não-discursivas da cultura americana. Num flash, Goldberg descreve a performance como uma paisagem aplainada que a evolução dos meios de comunicação haviam deixado para trás: projeções de ilustrações desenhadas à mão, fotografias ampliadas – tiradas da tela da televisão – e filmes formavam um cenário de fundo com dimensões operísticas para canções sobre a vida como um circuito fechado (GOLDBERG, 1996:190).

Porém, mesmo alcançando grande reconhecimento na época, a realização de trabalhos high-tech de performance não

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fizeram exatamente de Anderson uma unanimidade. Em 1980, United States Parte II, por exemplo, recebeu críticas em jornais como New York Times, Village Voice e o Chicago Tribune, dentre outros, comentando desde problemas técnicos – falhas no som, queda no ritmo do espetáculo entre as sessões, grande expectativa gerada pela publicidade, que redunda em “desapontamento” (ROCKWELL, 1980:C21) até a visão pessimista com que Anderson estaria apresentando os Estados Unidos (SANDOW, 1980:78). Munk vai além das especulações sobre a linguagem e da análise formal do espetáculo para tocar em estruturas mais sutis do trabalho de Anderson. Fazendo uma comparação, a crítica de Munk era uma forma de detectar essas sutilezas, mesmo apontando o que seria considerado como pontos fracos de sua proposta. Recusando as primeiras impressões fáceis deixadas pelo espetáculo em críticos e outros membros da platéia, ouvidas no intervalo – adjetivos como “fino”, “fraco”, “epidérmico” –, Munk vai preferir se ater à “impressão perturbadora” deixada pela artista. Reconhece que o trabalho repousa sobre um “charme especial, um sugestionamento e uma leve ironia”, mas ainda uma vez se nega a assumir esses elementos como os responsáveis por sua “qualidade efêmera”. Munk vai então localizar o motivo de seu assombro na atitude assumida por Anderson “diante das formas da arte, seus temas, do diálogo com a platéia – que abarca todos esses elementos e, após algumas horas, os diminui” (1983:93). Segundo Munk, Anderson se apresentaria como uma espécie de mágica que faz truques com luz e som, mas que paradoxalmente não está interessada em impressionar com o histrionismo dos ilusionistas clássicos. “O que é perturbador em relação à sua atitude”, diz, “é a forma tranqüila e aparentemente fácil com que domina todas as forças que invoca”. A questão para Munk é que Anderson – “tocando seu violino de costas para a platéia e de frente para uma imensa tela com projeções de imagens estranhas sobre a mecanização da vida moderna” – parece estar tentando dizer que sendo ela “pequena, humana, mulher e artista consegue não se deixar vencer pelo monstro que está mostrando”. Antes, tiraria desse monstro sua

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vitalidade e a partir disso faria sua arte. A mensagem seria clara: Anderson pretenderia dizer que se ela consegue controlar a tecnologia, todos poderíamos igualmente fazê-lo. Munk vê nessa atitude uma manobra para reduzir grandes conflitos a dimensões mais reduzidas, individualmente manejáveis, que transformaria os “monstros” que invoca em “fracos demônios”. Uma vez que Anderson estaria simplesmente “canalizando sua emoção pessoal”, estaria produzindo uma “vitória de pequena escala”. A análise de Munk, longe talvez de tirar o mérito do trabalho de Anderson, chama a atenção para o que nele parece haver de singular: a conjuração da técnica através da técnica, sem desejar reificá-la. Dentro de sua “relação de amor e ódio”, a tecnologia funcionará como ela mesma diz, como um “meio para amplificar ou mudar as coisas” (ANDERSON apud GOLDBERG, 2000:14). Só que, como veremos mais adiante, por meio dessa mediação tecnológica, não apenas a escala das imagens e dos sons e o alcance de sua crítica seriam ampliados. Essas operações também afetariam os modos de apresentação de sua própria presença, que curiosamente desapareceria, ao mesmo tempo em que se multiplicaria em meio aos fragmentos de um corpo mediado e à ambiência narrativa que cria. A partir de United States, Anderson passou a investir cada vez mais no uso de imagens e sonoridades para elaborar suas paisagens oníricas. Home of the Brave, de 1985, como vimos, foi outro exemplo de trabalho marcado por um conjunto complexo de imagens e sonoridades. Experimentações auditivas feitas com o próprio corpo, com antigos instrumentos orientais e também com instrumentos eletrônicos, objetos simples (garfos, facas, luvas de madeira que se ajustam à palma da mão); cenas como a de uma enorme tela em formato de TV, em que surge uma sucessão de desenhos e figuras animadas, fazem lembrar as imagens que proliferam na TV; caracteres manuscritos e gestos corporais também são usados como signos escriturais – a exemplo de suas antigas esculturas mudras, do início dos anos 70. Com a profusão das imagens, o palco transforma-se numa verdadeira paisagem imaginativa povoada por espécies de trechos desconexos de um sonho, uma ambiência construída para

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apresentar e discutir questões e também para fazer delirar. Em um dado momento, Anderson aparece e transforma-se inteiramente em uma percussão. Usando uma roupa especial com sensores de áudio embutidos – o drum suit –, cada movimento soa altíssimo, metálico. Drum Dance: sons feitos com o próprio corpo, movimentos que exploravam o ruído produzido com as batidas dos pés no chão, ou do braço no joelho ou ainda dos punhos fechados no peito, estranhamente ampliados, e que serviam também de “colas” para os músicos e os outros performers. Desta vez, em meio à projeção de imagens de objetos e palavras, o corpo é que surge espacializado, como um texto sonoro, aberto em sua contingência. O palco escurece novamente. Em meio às explorações sobre a linguagem e ao uso de sons e imagens – com as quais Anderson se relaciona de forma inusitada – a tecnologia funciona também como modo de fazer poesia. Há uma bela cena (White Lily) em que Anderson pergunta em que filme de Fassbinder um homem indagava a uma florista “que flor expressa os dias que passam e continuam a passar eternamente, impulsionando você para o futuro, eternamente, eternamente para o futuro?”. Nesse ínterim, Anderson se posicionara em frente à tela de fundo negro, de perfil, e ficara estática por alguns segundos. À resposta da florista – lírio branco –, Anderson sai rapidamente da posição e, em seu lugar, aparece na tela negra a projeção de um slide com uma imagem branca exatamente igual a de seu perfil, só que segurando uma flor. A cena se modifica mais uma vez e começa a “música” Sharkey’s Day. Terno branco, gravata no formato de um teclado musical e uma máscara branca que recobre toda a cabeça. Voz grave, metálica, distorcida eletronicamente pelo sintetizador. Quando caracterizada dessa forma, Anderson traz à cena a primeira personagem de suas performances: Sharkey. Em músicas como Sharkey’s Day e Sharkey’s Night, performers e músicos também aparecem mascarados, segundo Anderson, para tentar “torná-los mais abstratos e parecidos com figuras de desenho animado” e assim misturá-los com as animações do mesmo gênero projetadas na tela de fundo, que acompanham a música. A idéia de tornar os performers “abstratos”, incluindo ela mesma, representa o exercício de mascarar-se, de desaparecer

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para que a presença das imagens, dos sons e das histórias prevaleça. Essa minimização da própria presença enquanto conteúdo, como vimos, já vinha sendo exercitado desde seus trabalhos mais antigos, só que de maneira low-tech, como foi o caso de As: If e For Instants, por exemplo. Perguntada sobre quem afinal era Sharkey, Anderson afirma que simplesmente o ignorava, mas que estava feliz por não ser ela mesma. O contexto das aparições da personagem e de suas músicas-histórias permitiria, porém, relacioná-lo com a figura do masculino, do pai, do comediante, do conquistador sedutor: Mister Heartbreak. Com Sharkey’s Day, Anderson adiciona novos ingredientes à discussão sobre a linguagem. Em determinado trecho da música, Sharkey diz com sua voz grave: “Deep in the heart of darkest America. Home of the Brave. Ha! Ha! Ha! You’ve already paid for this. Listen to my heart beat.” Em quanto isso, se lê na tela a legenda: “Você conecta as partes. Você monta as peças”. Como vemos, os efeitos visuais em seus trabalhos não são gratuitos, embora cumpram essencialmente um objetivo estético. Eles comparecem como um dos elementos constitutivos do trabalho, como um modo de narrativa. Juntamente com as músicas, os movimentos e as histórias, eles são peças com as quais Anderson compõe um quadro. Outros trabalhos também caracterizados pelo uso intenso de tecnologia, imagens e sons foram as megaperformances Empty Places (1990), Stories from the Nerve Bible (1992-95) e Moby Dick (1999). Em Empty Places, quatro torres de projeção de seis metros de altura, 10 telas para projeção, 2.000 slides, 17 pessoas na equipe e dois caminhões para carregar tudo: esses foram os recursos necessários para apresentar o show solo da turnê que durou seis meses e contou com 150 apresentações nos Estados Unidos e em 30 países da Europa. Empty Places tratava basicamente da crise econômica e social em que se encontravam os Estados Unidos no final da Era Reagan. Figuras de presidentes, sem-tetos, ruas abandonadas, pobreza e Aids marcavam a imageria visual da performance. E Anderson aponta essa crise também como o fim da ilusão e da esperança nos poderes constituídos e em sua retórica, que ela tenta retratar como um “pôster”. Em um determinado momento no início da performance,

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todas as telas se animam “com imagens de passarinhos de desenho animado e flores desabrochando”, ela diz, “para, simplesmente, logo após, se transformarem de repente numa desolada rua urbana empilhada com lixo”. As imagens aparecem, assim, de forma intencional, compondo uma narrativa e compondo algo a mais com a narrativa. Mas essa intencionalidade, segundo Anderson, é mais sensória do que intelectiva: o que importa não seria tanto o significado, mas “o som do significado”, como ela diz. Talvez por isso John Howell tenha lembrado que Anderson tem sido muitas vezes criticada por ser pouco explícita em seu trabalho, ao que ela responde que “explicar que o que quis dizer parece bizarro e que se pudesse fazê-lo, escreveria tudo num pedaço de papel e distribuiria às pessoas na rua, ao invés de se incomodar em criar canções e imagens” (In: HOWELL, 1992:19). Portanto, mais do que um show high-tech sobre alguma coisa, afirma que suas performances são algo que apela aos sentidos: são mais sobre o que se vê e o que se ouve do que necessariamente sobre idéias a serem transmitidas. É que, para ela, a arte deve ser mais flexível que um modo de expressão onde algo “tem sempre que significar alguma coisa”. É assim que a artista parece tentar conjugar em seu trabalho a relação forma-conteúdo, de modo a tornar sua arte uma arte de idéias, mas onde a idéia não é necessariamente texto, mas, sobretudo, sensação. Anderson fala a esse respeito em uma entrevista dada a Mark Dery, em 1991. Dery comenta sobre uma das músicas de Empty Places, que falava sobre um sonho (The dream before, inspirada em o Anjo da História, de Walter Benjamin). A canção era acompanhada de um subtexto formado por imagens de lençóis desfeitos e de uma seqüência mostrando a figura de um guarda-chuva. Perguntada sobre o significado do guarda-chuva, Anderson afirma que pensara numa seqüência de guardachuvas abrindo e fechando para uma outra música, mas que ficara óbvia demais, e que tentara obter algumas poucas imagens brancas que apenas indicassem o que ela estava discutindo, no caso, “as imagens de um sonho, que apenas é entrecortada por

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ele mesmo e que, portanto, se torna fortemente irracional”: “mais do que qualquer coisa, eu estava organizando as imagens do mesmo modo que as coisas são organizadas nos sonhos. Eu queria indicar um pouco de movimento, tipo, você sabe, um guarda-chuva abrindo e fechando” (In: DERY, 1991:789-91). Stories from the Nerve Bible é um outro exemplo de trabalho baseado em paisagens narrativas. Segundo Goldberg, esse foi o trabalho em que Anderson teria utilizado os recursos técnicos mais sofisticados, considerando as produções realizadas até então. O palco foi organizado em três níveis de profundidade, marcados com telas de diferentes tamanhos e formatos. A maior delas (com dimensões cinematográficas) ficava ao fundo. No espaço imediatamente posterior a essa grande tela, duas grandes telas retangulares foram dispostas nas laterais do palco, na posição horizontal. Acima delas, pairavam dois enormes blocos tridimensionais, um no formato de um quadrado e o outro no de uma circunferência, que também funcionavam como telas de projeção – segundo Anderson, para quebrar um pouco o formato de TV. À frente desse conjunto de telas localizava-se o espaço do palco onde ficava a artista, que, por sua vez, era uma espécie de tablado formado por 14 grandes monitores, dispostos um ao lado do outro, em seqüência. Com esse conjunto de espaços para projeção de imagens, Anderson podia brincar com elas e fazê-las dialogar com suas músicas e histórias, além de complementá-las com textos escritos. Dependendo da intenção estética e narrativa, uma mesma imagem podia se repetir simultaneamente em todas as telas – num efeito multiplicador de distintas dimensões – ou diferentes imagens eram apresentadas em apenas algumas das telas, de forma sempre programada, secundando histórias e músicas, como uma espécie de legenda audiovisual. Foi em Stories from the Nerve Bible que Anderson usou pela primeira e única vez instrumentos corporais como o video-glass, óculos escuros com uma pequena câmera de vídeo embutida nas hastes que registrava e ampliava a imagem do público na grande tela de fundo. Foi também no final dela que Anderson apresentou um tornado feito com raios laser e uma

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espécie de túnel do tempo73 feito de luz e fumaça, que criava uma ambiência própria para discutir a questão do tempo e do futuro. Duas das questões que Anderson se coloca no final da performance é se o tempo seria “longo ou largo” e se as coisas estariam piorando ou melhorando, se seria possível começar tudo de novo. “As respostas?”, diz, “às vezes, as respostas vêm simplesmente pelo correio, quando você recebe uma carta que diz tudo aquilo que você queria ouvir, coisas que você suspeitava, coisas de que você tinha certeza. Aí, na última linha, a carta diz: queime isso” (apud GOLDBERG, 2000:164). Como uma das questões principais de Nerve Bible era a relação com o futuro e o passado, Anderson explica que a performance está povoada de histórias e imagens sobre a passagem do tempo: “começa com um espaço cheio de quadros e diagramas mostrando como tudo se relaciona entre si. Aí tentei montar a idéia de tempo na estrutura da performance (...) deve haver talvez umas 20 imagens de tempo, desde pequenos relógios-alarme a códigos temporais (...)” (ibid). Anderson continuaria a descrição do funcionamento de sua lógica visual, afirmando, em entrevista dada, em 1992, a John Howell, que o que faz é “simplesmente coletar coisas”. A partir de idéias vagas, como o desejo de falar sobre a linguagem ou sobre a autoridade, recolhe imagens de sua própria casa, da rua, de viagens que faz, da televisão, e vê o que acontece. Ao falar sobre o “tornado” da cena final de Nerve Bible, por exemplo, declara que costuma ter “uma vaga idéia de como a coisa vai ser”. Pensa, então, por exemplo, que gostaria de começar com uma “tempestade no deserto” e, ao mesmo tempo se pergunta sobre o que isso significaria num país como Israel, se existiria algum tipo de “deserto” naquele país: “acredito que sim, então pensei, ‘hummm, um tornado seria uma ótima imagem’ (...). Da mesma forma, as imagens de Empty Places são todas retiradas, segundo ela, de sua casa ou de letras de músicas, o que faz com 73. Anderson aqui se inspirou nas teorias sobre buracos negros do físico Stefen Hawkins, que descreve o tempo como um longo túnel e para quem nada se perderia no universo, antes, tudo poderia ser reconstruído a partir dos destroços da informação no buraco negro (GOLDBERG, 2000:164). Anderson inclui uma história sobre as idéias de Hawkins na performance. 246

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elas lhe pareçam um ‘gigantesco desenho animado de sua vida’” (apud HOWELL, 1992:10). A mesma lógica foi usada em Moby Dick (1999), onde as imagens projetadas na grande tela de fundo parecem fluir, se mover no ritmo das águas, ora calmas, quase hipnóticas, ora turbulentas. Cenas em que Anderson aparece sentada numa poltrona branca gigante – representando o papel de Melville –, lendo um exemplar da obra, se alternam com imagens projetadas de páginas de livros voando ininterruptamente, imagens recorrentes do mar, de ondas, ruídos de baleias, num ambiente quase sempre em tom azul. Histórias sobre Noé, golfinhos, conhecimento e o sentido da vida se intercalam com as atuações dos atores narrando trechos do livro e com músicas sobre anjos, a obsessão do capitão Ahab – cenas em tom vermelho –, além de algumas citações literais de trechos da obra do autor, projetadas na grande tela de fundo. Curiosamente, Anderson não parece se preocupar com a questão do significado e da interpretação dessas paisagens narrativas. Como artista, afirma que tenta criar uma atmosfera com muito som e imagem na qual o público pudesse entrar. Parte dessa atmosfera funcionaria propositalmente como uma “mensagem que flutuaria livremente” (HOWELL, 1992:17) e que ela deixa então para quem quiser interpretar. Afirma também que sua arte estaria precisamente em juntar todos esses elementos de um certo modo, mas de um modo flexível, que não diga às pessoas o que e como elas devam olhar o que ela apresenta. À medida que se olha para esses elementos, eles poderiam ser reinventados, como explica em entrevista a Charles Amirkhanian: Bem, é verdade que bem pouco das idéias que eu lanço são apresentadas de uma forma fechada. Eu realmente tento deixar espaço para as pessoas tirarem suas próprias conclusões. Não é que eu não tenha as minhas próprias, mas é o processo que me interessa (...) Meu maior medo é ser didática, mesmo tendo as “respostas”. Eu jamais tentaria impingi-las às pessoas. Acho que aos poucos fui aprendendo a respeitá-las um pouco mais e a dei-

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xá-las, de certo modo, fazer suas próprias conexões­ (In: AMIRKHANIAN, 1986:220).

Tal é o papel das ambiências formadas tecnologicamente por imagens e sonoridades: funcionar como conectoras e dispersoras de idéias, como produtora de ligações precárias e não-lineares entre palavras e imagens, formando uma narrativa audiovisual cuja lógica se aproxima do sonho e do delírio. Mas se para viabilizar a apresentação de suas idéias Anderson usa sons e imagens, para dar-lhes corpo e voz, a artista lançaria mão de outros recursos. Criaria alter-egos e duplos eletrônicos que se corporificariam por meio do deslocamento de sua própria presença.

Corpo mediado e status ciborgue: instrumentos corporais, máscaras eletrônicas, bonecos digitais e outros truques para desafiar o poder Se somos feitos da mesma matéria de nossos sonhos, como afirmou Shakespeare, então Anderson usaria, sobretudo nos anos 80 e 90, dispositivos para forjar um corpo capaz de viabilizar seus processos criativos. Esse conjunto de dispositivos forma o que ela chamou de “corpo eletrônico”, que, a um só tempo, funcionaria como “máscara” e como “conector-dispersor” de imagens, corpos, objetos e discursos. Como “máscara” porque é com esse corpo eletrônico – corpo mediado – que Anderson elabora sua persona, permitindolhe deslocar ou adiar sua presença e diluir sua identidade em cena para tornar-se “muitos”. Como conector-dispersor porque, como vimos, é mediante a tecnologia que Anderson viabiliza a processualidade e as operações de junção, disjunção e justaposição, com as quais imprime de forma consciente em seu trabalho um sentido de estranhamento e desorientação, como afirmou Henry Sayre (1989:9). Graças a esse estranhamento é que Anderson consegue descrever, desfamiliarizar e questionar acontecimentos, discursos e práticas que flagra no cotidiano da cultura americana e das sociedades tecnológicas.

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Analisemos primeiramente esse aspecto de adiamento e de diluição da presença de Anderson, importante estratégia que foi observada por diversos autores. Para Craig Owens (1981:123), Anderson “não mais se apresenta diretamente para o público, mas somente através de uma mediação eletrônica. Ao mesmo tempo que a mediação literalmente aumenta sua presença, ela também a destitui dela”. Isso aconteceria pois se os efeitos dos dispositivos eletrônicos lhe permitem literalmente preencher o espaço da performance com sua voz, sonoridades e projeções de imagens que criam uma ambiência na qual sua presença se espalha, esses efeitos se tornam também “camadas de mediação através das quais o espectador tem de percebê-la”, o que faz com que “ela nunca esteja imediatamente presente” (AUSLANDER, 1992:110). Usar a tecnologia para diluir e ao mesmo tempo ampliar sua presença seria, para Auslander, uma tentativa de Anderson de “recusar a autoridade de sua presença” e esse uso refletiria seu desejo de “mudar sua identidade e desaparecer”, de usar sofisticadas tecnologias para “se disfarçar e criar substitutos para ela mesma” (AUSLANDER, 2000:30). Essa perspectiva é compartilhada por Birringer, para quem a identidade de Anderson está sempre “deslocada” e “adiada” pelas distorções eletrônicas de sua voz e também das imagens de seu próprio corpo e gênero, que “flutuam numa múltipla coreografia audiovisual” (BIRRINGER, 1991:222). Essa idéia de deslocamento de identidade e de gênero foi, aliás, um dos aspectos mais analisados por críticos e estudiosos dos trabalhos da artista. Deslocamento de identidade, porque através de seu corpo eletrônico, Anderson se posicionaria em “entres”: entre “homem e mulher, entre emissão e recepção” (OWENS, 1984:55) e “entre homem e máquina” (AUSLANDER, 1992:116). Essa hibridização justificaria a associação feita por Auslander entre Anderson e a noção de “identidades ciborgues”,74 de Donna Haraway (1985:96), para quem “a cultura tecnológica tem desafiado dualismos de forma intrigante”. A noção de “identidade ciborgue” – identidades nas quais as fron74. A noção de “ciborgue” em Haraway implica a idéia de um ser parte homem, parte máquina. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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teiras entre dualismos como eu-outro, homem-máquina, natureza-tecnologia não seriam mais claras – permitiria, segundo Auslander, a concepção de uma política que simultaneamente transgrediria fronteiras e tornaria possível arranjos inesperados e improváveis. A própria Anderson demonstra consciência da possibilidade desse processo de mesclagem, ao afirmar, em entrevista a Charles Amirkhanian, que considera a existência de duas formas de vida – humana e maquínica – e que ambas começam a convergir: “estamos falando da tecnologia realmente como uma espécie de nova natureza, algo que nos mede, algo a partir do qual novas regras são construídas e que deve ser investigado” (1986:227). Com isso, seria possível dizer que, ao constituir seu corpo eletrônico, Anderson assumiria para si um “status ciborgue” que lhe permite se posicionar entre diversas categorias e não assumir nenhuma. Anderson exercitaria, assim, em si mesma e em seus trabalhos, essa política de transgressão de fronteiras, política “inspirada na mistura e não na totalização”, como observou Tucherman (1999:163). Por meio dessa política, Anderson alcançaria uma posição privilegiada para articular uma resistência cultural capaz de questionar discursos e práticas que se naturalizaram em nossa sociedade. Para Meiling Cheng, seria graças a essa sua hibridização com as máquinas que Anderson ampliaria seu poder de crítica, pois o corpo eletrônico estenderia o poder de alcance de sua presença: Na medida em que ela se descorporifica e mistura com suas ferramentas tecnológicas, a totalidade da área da performance se torna a extensão de seu corpo, artificial, mutante, incorpóreo, mas infinitamente mais poderoso que o corpo humano. É um corpo capaz de transformar e reorganizar suas estruturas instantaneamente (CHENG, 1995:410).

Apesar disso, é preciso lembrar que a articulação desse poder em Anderson não é viabilizada apenas pelo uso da tecnologia, nem depende totalmente dela. Antes mesmo de adotar um

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status ciborgue, Anderson já vinha, através de sua arte de idéias, desafiando limites e dualidades como arte-vida, realidade-ilusão, cultura de massa-vanguarda, performance-música-pop em diversos trabalhos de escultura, instalações e performances low-tech e, sobretudo, pelo poder de suas narrativas, desde os anos 70. De toda forma, a tecnologia desempenha importante papel em suas estratégias de produzir estranhamento e deslocamento. É também com seu corpo eletrônico que Anderson tenta garantir para si espaços de escape e a capacidade de criar brechas nas relações de poder, do que McKenzie (1996:48) chamou de “adaptadores” e “resistores”, que a ajudam a desafiar os discursos dominantes e a não se deixar classificar ou cristalizar em categorias rígidas. Para tanto, Anderson conta mecanismos especiais que funcionam como ferramentas de mediação de sua presença: as “máscaras eletrônicas” e os “instrumentos corporais”, que são, respectivamente, espécies de disfarces e próteses eletrônicas com os quais ela consegue conectar-se e desconectar-se dos fluxos e jogos do poder e, assim, manipulá-los. Por “máscaras eletrônicas” deve-se entender as ferramentas usadas por Anderson para se disfarçar e diluir sua presença em cena, ferramentas que fazem parte de sua estratégia ventriloquista. São elas: a voz alterada para soar grave e masculina (“voz da autoridade”), os violinos modificados; e, finalmente, os duplos ou alter-egos, formados por seus clones, bonecos e falsos hologramas. Já os “instrumentos corporais” (body instruments, como ela chamou) são próteses eletrônicas que Anderson acopla ao seu corpo, alterando e manipulando os modos de apresentação de sua presença. Assim como as máscaras, esses instrumentos têm como função minimizar a figura de Anderson enquanto conteúdo e maximizá-la como meio. São eles: os “óculos auditivos” (audio glasses), os “óculos luminosos” (headlight glasses), os óculos-vídeo (video glasses), as “baterias luminosas de boca” (battery-powered light in mouth) e “de mãos” (battery-powered hand-lights), o “macacão de percussão eletrônica” (electronic drum suit), o “microfone de boca” (pillow speaker in mouth) e a “lente-máscara” (lens head).

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Apesar de alguns desses dispositivos terem sido criados no final dos anos 70, foi nos anos 80 e 90 que seu uso se tornou mais freqüente, momento em que Anderson afirmou “ter repensado toda a idéia de performance” e se voltou para produções complexas e de larga-escala com uso maciço de tecnologia. Nos anos 80, máscaras e instrumentos corporais são encontrados em performances como United States (1983) e Empty Places (1989) e no filme-performance Home of the Brave (1985). Nos anos 90, aparecem em grandes performances como Stories from the Nerve Bible (1992) e Moby Dick (1999), em vídeos e instalações e também em performances low-tech como Voices from the Beyond (1991), Speed of Darkness (1996) e Happiness (2002-3), embora nesses últimos seu uso seja bastante restrito pelos motivos já indicados no Capítulo 4. Foi em United States que Anderson fez pela primeira vez uso sistemático de suas máscaras eletrônicas. Com o vocoder – filtro eletrônico que distorce sua voz – Anderson criou o que chamou de “voz da autoridade”, a voz grave e masculina com a qual questiona os discursos de poder. Com essa voz, Anderson consegue ocupar um território ambíguo, como afirma Auslander. Ao falar em primeira pessoa, ao mesmo tempo ela se identifica e se distancia do que é dito: “quem fala é e não é Anderson” e a voz que se ouve “fala por ela e, ao mesmo tempo, não fala por ela” (AUSLANDER, 2000:30). Seu uso, portanto, pode ser considerado uma “esperteza”, na medida em que funciona ao mesmo tempo como uma espécie de disfarce e escudo, com os quais se defende contra os jogos do poder e os desafia. Por isso mesmo, é um dos principais elementos que lhe permite articular uma resistência a partir de seu status ciborgue. Embora alguns autores afirmem que a presença ambígua que resulta do uso da voz alterada sirva também para discutir e romper a fronteira entre gêneros, esse uso parece estar mais voltado para explicitar e questionar certas formas de discurso e de práticas de “poder” presentes na cultura americana, as quais, de fato, Anderson costuma associar ao “masculino”. Segundo a artista, a voz da autoridade é a tentativa de criar uma “voz corporativa”, que poderia ser entendida como uma voz que enunciaria palavras de ordem e com a qual ela tentaria expor os

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jogos de discurso e os modos como eles encarnam práticas sociais cotidianas. Com ela, Anderson cria em cena uma figura ambígua, estranhamente travestida, mas que não tem como fim tentar fazer Anderson “tornar-se homem”. Na verdade, como afirma Auslander, Anderson parece querer mais se apresentar “claramente como uma mulher que finge ser um homem estereotipado” (AUSLANDER, 1992:114). É por meio dessa mimetização irônica que Anderson procura exacerbar e evidenciar a ação de discursos e práticas de poder, que ela costuma usar quando conta ou canta sobre situações de controle ou exclusão. Com a “voz da autoridade” ou “voz masculina”, Anderson faz não apenas uma crítica a uma “autoridade fálica”, mas também às suas conexões em nossa sociedade, às suas formas de encarnar modos de vida. É interessante notar que nessas operações, nem a máscara nem o mecanismo de mediação são disfarçados: para falar com sua voz masculina, Anderson usa um microfone especial, ligado a um sintetizador, uma espécie de filtro eletrônico que altera sua voz. Normalmente, Anderson está em cena diante de um teclado e de dois ou mais microfones: um para amplificar sua própria voz e outro para a “voz da autoridade”. Eventualmente, Anderson usa ainda um terceiro microfone para gerar distintos efeitos, como reverberações ou um outro tipo de voz muito aguda, que soa entre o infantil e o feminino, a “voz de garotinha” (girl’s voice). Em algumas histórias, Anderson costuma fazer duetos consigo mesma por meio dessas diferentes vozes e dos efeitos sonoros, compondo curiosos diálogos dela com um “outro”, que já não é ela, do mesmo modo que fazia com os violinos modificados dos anos 70. De fato, quando, por exemplo, a “voz da autoridade” ressoa, já não parece ser apenas Anderson que se ouve, mas alguém não identificável ou então um discurso sem corpo, mas com presença. Outro aspecto do uso da voz alterada é seu tom, quase sempre irônico e estudado. Em uma das histórias contadas na performance Stories from the Nerve Bible, de 1992, “War is the Highest Form of Modern Art” (“A Guerra é a maior forma de Arte Moderna”), Anderson conta que estava fazendo uma tur-

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nê na Europa durante a Guerra do Golfo. Por causa da guerra, todos os aeroportos estavam cheios de policiais. Então conta que, certa vez, um deles apontou para uma bolsa e gritou: “de quem é esta bolsa? Eu quero saber agora de quem é esta bolsa!”. As pessoas imediatamente se afastaram da bolsa, abrindo um espaço em seu redor, “como se um míssel scud tivesse sido disparado naquela direção”. Na história não fica claro se a bolsa era ou não de Anderson, mas em seguida ela diz que carregava muitos equipamentos e que, passando por uma revista, começou a abrir todas as caixas e a ligar todas as máquinas para demonstrar como funcionavam. Ao serem ligados, alguns dos equipamentos faziam pequenos ruídos e mostravam pequenas mensagens automáticas no visor, como, por exemplo, “destruidor atômico”. Por isso, conta que teve que convencê-los de que não carregava nenhum sistema de espionagem ou de terrorismo. Então fez espécies de “pequenos concertos” com todos aqueles esses sons para um grupo de detetives e funcionários da alfândega. Aí um deles disse: “o que é isso?”, apontando para um dos equipamentos [nesse momento da narrativa, Anderson usa um microfone ligado ao vocoder e diz com a voz alterada]: “Isso é o que eu costumo chamar de ‘voz da autoridade’. E levou algum tempo para explicar como usava o filtro nas músicas que tratavam de várias formas de controle. Então eles perguntaram: “mas por que você quer falar desse jeito?”. Ela olhou para os policiais, para os cães e para o rádio que dava notícias da guerra do Golfo e disse, ainda com a estranha voz: “tente adivinhar!” (take a wild guess!). Mas a “voz da autoridade” também pode ser pungente e melancólica, como na canção O Superman, quando traduz o sentimento de desolação e suspeita de Anderson em relação à política americana dos anos 80. Ou mesmo animada e divertida, como nas músicas Sharkey’s Day e Sharkey’s Night (Home of the Brave), onde Anderson não só usa o filtro eletrônico de voz, mas aparece mascarada e vestida com terno branco e gravata, tocando o violino digital, produzindo o personagem Sharkey, que tampouco é alguém, e sim, a encarnação de um discurso ou modo de discurso que ela deseja discutir, no caso a sedução, a persuasão e o convencimento. Como observa Auslander,

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não há melhor representação desse efeito social e dessa relação com a mediação que o uso de tecnologia em Anderson para distorcer sua voz e sua própria presença através de seus personagens. Essas vozes já não são suas, na verdade, elas não pertencem a um outro identificável, elas não pertencem a ninguém. A voz de Anderson se torna vertiginosa até para ela mesma (...) Ela própria, como uma ‘moderadora’ não tem voz real, não assume nenhuma posição privilegiada (AUSLANDER, 1992:80)

Além da distorção da voz, Anderson usa também outros dispositivos sonoros em suas performances, que funcionam como espécies de próteses ou instrumentos corporais. Um dos acessórios mais simples e antigos foi o “microfone de boca” (1978), ligado a um toca-fita com solos de violino pré-gravados. Colocando o dispositivo dentro da boca, Anderson modulava com lábios os sons que saíam da fita e o resultado eram solos de violino “tocados com a boca”. Com sua série de óculos especiais, ampliava o alcance de sua presença física, ao mesmo tempo que a distorcia e diluía. É o caso dos “óculos auditivos”, utilizados em United States, com o qual transformou pela primeira vez o próprio corpo em um inusitado instrumento sonoro. Através de óculos escuros especiais com sensores de áudio embutidos que amplificavam sons, Anderson faz de seu crânio um verdadeiro instrumento de percussão. Um estranho som reverberava a cada batida que dava com o punho fechado na cabeça e cada vez que trincava os dentes. Os óculos eram escuros, segundo Anderson, “para representar uma espécie de escuridão mental” (ANDERSON apud GOLDBERG, 2000:139). Outro instrumento que também alterava o modo de apresentação da presença por meio dos sons foi o “eletronic drum suit”, espécie de macacão que também tinha sensores de áudio ligados a uma bateria. A roupa especial usada em Home of the Brave ampliava enormemente os sons e fazia com que todo o corpo de Anderson se transformasse numa poderosa percussão. Com eles, Anderson batia com os punhos fechados no peito e nas pernas, produzindo uma estranha dança sonora.

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Anderson criou ainda outras próteses ou instrumentos corporais, dessa vez enfatizando a visão. A cena final de United States, com a história Lighting out for the Territories, começa com Anderson usando os “headlight glasses”, óculos cujas lentes emitiam luzes como lanternas e que tiravam sua visão. Com isso, Anderson caminha lentamente com os braços estendidos como os de uma sonâmbula, tateando com os pés as bordas da estreita passarela colocada na direção da platéia. Cenas como essa ou como as que se repetiam ao longo de toda a performance, em que Anderson aparece tocando seu violino – de costas para a platéia – em frente a uma enorme tela de onde fluíam suas imagens, criavam uma sensação perturbadora que seria uma das marcas de suas performances. Provavelmente, não por acaso, a imagem de Anderson “cega” na parte final da performance faz lembrar a capa de seu primeiro álbum, Big Science, de 1982, que tinha músicas de United States. Também na capa Anderson aparece com óculos, só que de grandes lentes brancas, braços levemente estendidos, caminhando como se estivesse cega e tateasse o espaço com cuidado. Big Science era uma metáfora para discutir a infalibilidade da ciência e a crença cega que muitos depositam em suas (supostas) verdades absolutas. A figura da cegueira remeteria à idéia de que, apesar de tanta informação, continuamos sem saber onde estamos e como nos mover no espaço das sociedades tecnologizadas, uma das principais questões, aliás, discutidas em United States. Curiosamente, Big Science se assemelha, por sua vez, à proposta de um de seus primeiros trabalhos, O-Range (1973), um ensaio sobre a crença cega. Novamente, vemos a intertextualidade, recorrência e cruzamento de referências de temas e imagens, em seus trabalhos. Outro exemplo de próteses de visão são os video-glasses, usados em Stories from the Nerve Bible (1992), uma das performances que mais utilizou recursos com alta tecnologia. Os vídeo-óculos, também escuros, carregavam uma pequena câmera embutida em uma das hastes. A câmera lançava luzes sobre a platéia e gravava as imagens na direção em que Anderson olhava. Por meio de uma conexão especial, as imagens eram projetadas na grande tela de fundo e nos diversos monitores

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cuidadosamente montados no espaço da performance, de forma a fazer com que, dessa vez, as imagens reverberassem ou se multiplicassem. Com isso, imagens e flashes rápidos da platéia, por exemplo, – enormemente ampliadas – apareciam no telão e nos monitores, para a surpresa do público. Era talvez uma forma de Anderson contactar diretamente a audiência e efetuar a estratégia de trazê-la para dentro do trabalho, mesmo numa performance ao vivo. Acessórios mais simples, embora com grande efeito visual, foram as “baterias luminosas de boca” (battery-powered light in mouth) e “de mãos” (battery-powered hand-lights) e a “lentemáscara” (lens head). Todos apareceram em Home of the Brave. Os dois primeiros emitiam luzes que produziam um especial efeito visual quando o palco se apagava totalmente e ficava apenas iluminado pelos focos luminosos. A “bateria de mãos” era ajustada nas palmas das mãos de Anderson e ligada a uma bateria. Quando ligada, ajudava a criar uma ambiência adequada à narração de suas histórias. Da platéia, apenas o rosto de Anderson aparecia iluminado dentro do grande espaço do palco, ao lado de um microfone, enquanto falava em tom intimista. A “bateria de boca”, também usada em Happiness (2002), ao ser colocada dentro da boca e ligada, dava a Anderson um aspecto sinistro, o rosto ensombrado e um forte foco de luz laranja-avermelhado irradiava de sua boca, clareando apenas os dentes trincados. Na penumbra, a imagem do rosto ia aos poucos se evanecendo até ficar apenas uma boca iluminada, sem corpo, num largo sorriso fantasmagórico. A “lente-máscara” (lens head) era uma lente óptica circular gigante, que funcionava como uma máscara visual. Quando colocada sobre a face, aumentava e desfigurava seu o rosto. O efeito era Anderson aparecendo em cena cantando ao lado de duas outras artistas, com uma “cabeça desproporcional”, talvez como uma figura de desenho animado, que ela tanto evocava em alguns de seus trabalhos. Porém, mais que produzir simples máscaras eletrônicas e instrumentos corporais, esses usos da tecnologia funcionam como verdadeiras chaves de conexão e dispersão, de produção e controle de fluxos de fragmentos-idéia. Como conectores,

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esses dispositivos integram e articulam diferentes elementos, mas, curiosamente, desempenham também o papel de dispersores: é que, ao mesmo tempo que integram, esses dispositivos também desmontam e fragmentam os elementos agrupados por Anderson, conferindo-lhes sempre um caráter transitório. Com isso, Anderson agrupa e desagrupa imagens, sons e narrativas à vontade, os rearranja, apoiando-se em vários suportes: performance, instalação, vídeo, multimídia e internet. Esses processos de fragmentação e manipulação se tornam cada vez mais evidentes, em especial nos anos 90, quando Anderson criou outros recursos para produzir estranhamento e deslocamento de sua presença, notadamente seus alter egos eletrônicos, sob a forma de clones, bonecos e hologramas hightech. Essas figuras funcionavam como substitutos ou duplos falantes de Anderson e cumpriam duas funções: falar por ela e diluir sua presença, fazendo-a, a um só tempo, desaparecer e multiplicar sua presença. Um dos meios mais usados com esses dois propósitos foi o vídeo – já na fase que chamei de “Blitz multimídia” –, dos quais destaco dois trabalhos: What you mean We; e uma série de pequenas histórias entitulada Personal Service Announcements (1990). What you mean We? É um vídeo de 30 minutos, que integra a série para a TV Alive from the Off Center e no qual Anderson aparece contracenando com um clone75 dela mesma, produzido digitalmente. Trata-se de um duplo transfigurado, com grande cabeça, bigode e corpo pequeno. Na história (na verdade, uma performance), Anderson afirma ter criado o clone para dividir com ela algumas de suas responsabilidades, uma vez que não sobrava mais muito tempo para ela fazer seu “trabalho de verdade”. Sua intenção, porém, era usá-lo para substituí-la em situações que considerava embaraçosas, como dar entrevistas e participar de sessões de fotografia. A cena começa com Anderson sendo entrevistada num programa de televisão. Ela conta sobre a criação do clone e o chama em cena. Depois de algum tempo, diz estar atrasada para um compromisso e o deixa sozinho para representá-la, en75. Cf. Anderson, Collected Videos, lançado em 1991 pela Warner. 258

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quanto ela vai fazer “seu trabalho”. Só que, a partir do momento em que Anderson deixa o clone sozinho na sala, ele começa a ocupar seu próprio espaço, de forma autônoma. Ele começa também a compor músicas, exige reconhecimento para seu trabalho, passa a ter sua própria opinião sobre Anderson e inclusive a questiona quando ela insiste em querer usá-lo. Num certo momento, o clone escreve a letra de uma música (The Dream Before, em homenagem a Benjamin) e pede a opinião de Anderson, que apenas reclama que ele, clone, fumava demais, não lhe dando muita importância. Anderson, então, volta a ler seu jornal e diz que “eles” tinham que terminar logo aquela música para um concerto beneficente naquela noite. Ao que o clone responde ironicamente: “Como assim nós?”. A pergunta cria um desfecho inusitado: sentindo-se explorado e sobrecarregado, o clone cria seu próprio clone – um subclone –, reproduzindo o gesto de Anderson. O resultado é outro duplo grotesco, que lembra agora vagamente a imagem de Anderson, apenas seu simulacro. Ao se apresentar com um clone, Anderson brinca com a noção de representação e seus efeitos numa sociedade fortemente apoiada na mediação, ao mesmo tempo em que questiona o destino da representação quando é posta para circular no “mundo real”. Esse é apenas um exemplo de como sua presença é descorporificada pela tecnologia e como a autoridade de sua presença é diluída, permitindo que outros discursos possam ter lugar. Ao mesmo tempo em que ocorre esse apagamento, Anderson se amplifica e multiplica nesses fragmentos de discursos, passando a ser sua moderadora, seu canal. Graças a esse procedimento, suas aparições em vídeo funcionam como um jogo de linguagem que dá margem a uma série de discussões, como nossa relação com a tecnologia, conosco mesmo, sobre como é viver numa “sociedade eletrônica” como a americana etc. Goldberg (2000:127) afirma que a relação de Anderson com o meio vídeo sempre foi “ambígua”, uma vez que neste faltavam os dois elementos essenciais a seu trabalho: a performance ao vivo e a escala (dimensão das imagens). Uma vez que ambos dependem de sua presença e são difíceis de serem traduzidos no vídeo, Anderson tratou de adaptá-lo às suas necessidades.

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Esse foi o papel desempenhado pelo clone, que Anderson usa para discutir as questões da reprodução e da perda do controle sobre a representação. Nesse caso, Anderson apóia-se num mecanismo de reprodução – o vídeo – para questionar exatamente essas questões. É assim que torna possível na performance mediada uma representação que não é mera reprodução, e sim apresentação. Já em Personal Service Announcements, Anderson faz uma crítica bem-humorada à TV e ao governo. A ironia vinha simpaticamente estampada no lema gravado nos copos de café vendidos em Nova Iorque, It’s our pleasure to serve you (“É um prazer servi-lo”), cuja imagem aparecia no intervalo das histórias, sob a forma de anúncios publicitários. Anderson faz do lema uma referência sarcástica aos “serviços prestados” pela mídia e pelo governo americano a seus cidadãos e uma forma de crítica, que então veicula pelo “serviço de utilidade pessoal” que ela presta através de seus próprios “anúncios”. Algumas situações apresentadas também figuravam na performance Empty Places, de 1990. Na metade dos anos 90, Anderson começou a explorar dois novos meios: a internet e o CD-Rom. Em 1995, Anderson via a internet como uma “zona livre para a troca de idéias e informações” e uma tentativa de procurar um underground, lugar que pudesse constituir um contra-ponto à estética e aos valores da cultura empresarial americana. Mas não demorou muito para ter resposta para uma das perguntas que se fizera na época (quanto tempo demoraria para os empresários se apossarem do meio). Mas a experiência de Anderson com novas mídias não pararia na internet. Ainda embalada pelo fascínio com os novos meios – nos quais se diz “viciada” –, lançou ainda em 1995, também pela Voyager, um CD-Rom interativo que abriga 30 quartos ou salas com recursos de áudio e vídeo, que ela afirmou ser “uma espécie de canção de amor para seu computador” (GILLEN, 1995:64). Com Puppet Motel, Anderson investe mais uma vez em jogos de linguagem, a exemplo do que fizera anteriormente com os meios expressivos performance, história, escultura e instalação.

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Puppet Motel é interessante tanto do ponto de vista dos usos da linguagem e como meio expressivo quanto como forma de deslocamento de sua presença e da criação de duplos ou substitutos falantes. Logo no início do CD, um boneco de ventriloquista com cabelo arrepiado e jaqueta preta e um microfone estilo headset recebe os visitantes e convida a todos – com a “voz da autoridade” – para explorarem o “hotel virtual”. O dummy é um sósia deformado em miniatura de Anderson, que já aparecera “ao vivo” na performance Nerve Bible tocando um minúsculo violino e que agora aparecia em uma versão digital. Apesar de sua semelhança com a artista, o boneco se refere a ela sempre em terceira pessoa e fala diretamente aos usuários do sistema, apresentando as salas por onde se pode navegar ou tentando vender “cosméticos virtuais” com sua voz masculina. Ao analisar o material, Auslander chama a atenção para uma de suas intervenções, onde o boneco convida o visitante para sentar com ele e assistir a um vídeo, que, na verdade, é uma vídeo-performance em que Anderson debate com seu clone eletrônico as relações entre dança, geografia e arquitetura. Auslander observa que nesse momento há três versões de Anderson presentes na tela: “ela própria”, o vídeo-clone e o boneco digital. Desses, o boneco fica como espectador do diálogo, a mesma postura observadora e distanciada que Anderson costuma manter com relação a suas histórias e sua vida pessoal (AUSLANDER, 2000:31). É importante perceber também que, apesar de fisicamente ausente, Anderson se faz presente e se triplica por meio dessas três imagens, sendo que nenhuma delas tem mais peso que as outras, ou seja, todas se equivalem em termos de presença. Com isso, Anderson cria um verdadeiro show de marionetes, do qual ela própria, de certa forma, faz parte, mesmo sem estar presente. Esse é um exemplo eloqüente de sua estratégia ventriloquista, onde ela desaparece e, ao mesmo tempo, se multiplica através dos duplos que usa para falar por ela. Mas, como vimos, não são apenas bonecos e clones que falam por ela e que expandem sua capacidade expressiva. Na verdade, todo o conjunto de seu trabalho apresenta elementos que ela aciona com

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esse objetivo: performances, instalações, vídeos, músicas etc. Todos se encontram e se cruzam, produzindo uma complexa malha sígnica articulável. Como parte desse complexo narrativo, Puppet Motel funciona como uma rede intrincada de sentido, onde Anderson documenta e apresenta trechos de músicas e trabalhos passados, instrumentos usados em performances, histórias, vídeos e alguns de seus ícones preferidos – figuras de animais, de gelo, aviões, relógios, telefones, que funcionam como ativadores de sentido, como em seus trabalhos anteriores. Porém, mais do que simplesmente documentar o trabalho, Anderson explora as potencialidades desse meio para criar uma atmosfera com imagem e som, na qual o público possa entrar e performatizar. Nele, privilegiam-se as associações ou tipos de associações feitas pelos usuários, que implicam uma habilidade de fazer conexões entre idéias, a mesma requerida, segundo Jon McKenzie, para interpretar suas performances. Como afirma McKenzie, Puppet Motel é em si um jogo de linguagem, ao mesmo tempo em que produz jogos de linguagem, verdadeiras “séries disjuntivas de jogos que permitem aos usuários investigarem criativamente o estrato performático à medida que ele é operado através dos próprios usuários” (MCKENZIE, 1997:42). Todos os quartos ou salas funcionam como locais onde os usuários são performers e criam jogadas a partir dos arquivos de Anderson, que constituem o que McKenzie (ibid) chamou de um “guia para estratégias de produção recombinantes”, guia que mostra como “retrabalhar habilidades técnicas, bem como materiais culturais preexistentes”, base do trabalho de Anderson. Em algumas salas, como a Cutting Room, por exemplo, pode-se, através do clique do mouse, combinar recursos de áudio e vídeo para a criação de clipes musicais. Na Writing Room, é possível reescrever o primeiro capítulo de Crime e Castigo, de Dostoievski. Em Love Line, o usuário pode, caso tenha equipamento adequado, acionar o ícone de um microfone para gravar mensagens de áudio e enviá-las pela internet. Esse tipo de operação possivelmente representou na época algo inovador em termos de proposta artística, mas não pareciam escapar muito ao modismo da interatividade que então

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se estabelecia. Anderson aparentemente creditou a esse aspecto interativo das novas mídias uma virtude de antemão, ao propiciar a simulação de suas operações de colagem, embora de forma um tanto precária, porque dentro de limites específicos e com elementos já estipulados. Como observou Caiafa (2000:26), esse tipo de proposta não é necessariamente criadora e as decisões que são tomadas nesse contexto geralmente logo se esgotam e banalizam. Muitas das experiências com essas novas mídias implicariam uma experiência mais quantitativa que qualitativa, mais uma disponibilidade e uma profusão que sacia do que propriamente uma duração que faz criar. Seria preciso, por isso, verificar se as ações de Puppet Motel não estimulariam algum outro tipo de engajamento. A exemplo do filme Home of the Brave, de 1985, Anderson tentou uma vez mais com Puppet Motel, fazer do próprio meio o elemento performático, abolindo o “potencial para o desastre em tempo-real” da performance ao vivo. Analisando o material, tive a impressão de que, em sua essência, ele não propicia grandes novidades em relação a seus meios anteriores, no que diz respeito aos jogos com a linguagem e à reiteração de referências a elementos de trabalhos já realizados. O que muda são o meio e os processos. Puppet Motel cumpre bem o papel de documentação – como no filme – e propõe como “novidade” a participação virtual das pessoas na obra.76 Mas essa participação, como se indicou, não é necessariamente criadora, embora proclame o uso da criatividade. Para essa interação ser criadora, é preciso, segundo Caiafa (2000:27), que ela seja capaz de gerar um processo de duração em que a força criadora da obra ressoe para além dela, ou seja, que essa interação nos faça “participar das ressonâncias da obra para criar”, sem, no entanto, desejar esgotá-la ou consumi-la com essa participação. Em Puppet Motel, a intenção de Anderson não parece ter sido a de favorecer o consumo de seu próprio trabalho, embo76. Sem dúvida, uma reedição via máquina da preocupação de muitos de seus trabalhos de instalação dos anos 70, preocupação que espelhava o anseio dos artistas da época, de romper com as fronteiras entre arte e vida e de arrancar o espectador de uma suposta passividade e de engajá-lo no trabalho de arte. FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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ra ela própria não possa evitar que isso também aconteça. De todo modo, ao incentivar as pessoas a realizarem suas próprias combinações, o interesse de Anderson parece ser o de engajálas em seus próprios procedimentos criativos e, com isso, trazê-las para dentro do universo de sua obra, embora ela já tenha feito isso de outras formas, em suas performances ao vivo. A conexão de idéias que ela incentiva parece estar imbuída, portanto, mais de um desejo de fazer ressoar a duração de sua obra do que de disponibilizá-la para o consumo. A ação que mais chamou minha atenção, porém, é a que permite, a partir da navegação, remontar e acompanhar sua lógica criativa. Na sala Ear, aparece no canto esquerdo da tela o desenho de uma orelha com diversos pontos semelhantes aos da acumpuntura, que remete à peça Earshot – da performance Voices from the Beyond –, onde ela trata do ouvido no contexto do corpo humano. No centro da tela, aparece a frase I wanted you and I was looking for you, da música Walking and Falling, do álbum Big Science, de 1982. No lado direito, aparece o desenho de uma outra orelha com um pequeno círculo no lóbulo, semelhante a um pequeno olho. De acordo com o comando dado, ao clicar em alguns pontos da orelha esquerda, aparece um trecho de uma história ou música usada em uma de suas performances ou então um instrumento, geralmente o violino. Cada operação provoca um movimento na orelha direita, que se move e vai mudando de forma até se transformar num feto. De fato, em Earshot, Anderson (1994:46) afirma ter ouvido de um acumpunturista que todo o corpo é representado pela orelha. As orelhas, teria dito o especialista, seriam vestígios de fetos, pequenas versões de nós mesmos, um feminino e outro masculino. O lóbulo seria a cabeça do feto e as linhas internas, sua espinha dorsal. Daí Anderson usar essas figuras para representar o corpo de seu próprio trabalho e permitir a simulação de sua construção narrativa do mesmo modo como ele efetivamente se produz, ou seja, por conexões. Cada ponto da orelha esquerda representa, portanto, uma parte não apenas do corpo físico, mas do corpo de seu trabalho. Uma vez acionado, cada ponto mostra no centro da tela o trecho de uma história ou uma

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música específica e altera também o formato da outra orelha, que vai se transformando num feto. Nessas conexões, é possível perceber como esses elementos (palavras, trechos de músicas e histórias) convergem em sentido ou se interconectam, demonstrando a lógica das associações feitas por Anderson em suas performances. As conexões formam uma linha narrativa que só se produz no próprio processo da navegação. A figura do feto sugere o surgimento de um corpo que se forma à medida que as operações associativas são efetivadas, ou seja, funciona como um corpo narrativo que se forma a partir dessas operações associativas, como um protótipo do corpo do próprio trabalho de Anderson. Jaqueline Burckhardt atenta também para esse detalhe e afirma que o próprio livro Nerve Bible, publicado por Anderson em 1994, é organizado dessa forma: “em livre associação ao invés de ordem cronológica, 50 “capítulos” e 300 páginas revelam o que é esse complexo corpo de trabalho e o que ele deixa estampado na existência de seu criador” (1997:153). Em seu conjunto, Puppet Motel é cheio desses jogos de linguagem. Mas, as “estratégias de produção recombinantes” a que se referiu McKenzie – que Anderson apresenta no CDRom – nada mais são do que uma atualização dos jogos já criados por suas performances, músicas, histórias e instalações. As combinações propiciadas pelo CD-Rom seriam apenas um novo meio para a artista expressar duas de suas antigas táticas criativas: a auto-apropriação e a colagem. Os questionamentos e as experimentações propostos por objetos, performances e histórias – formas sutis de convidar a engajamentos – ganham um outro canal de expressão, por meio do qual Anderson tenta, de alguma forma, convidar os interessados a compartilharem da experiência de também realizar suas combinações. É assim que as conexões e colagens mentais que Anderson realiza através de performances, esculturas e instalações encontraram em Puppet Motel uma continuidade. Aliás, esse é o aspecto mais interessante desse trabalho. Nele, os mecanismos do hipertexto e da interatividade compõem um “novo” conjunto de ações que reflete, porém, um mesmo projeto cria-

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tivo, que ela conseguiu imprimir num meio que em si nada tem de artístico. Sendo assim, se ocorrer, o contágio de criação que Anderson propõe através das estratégias recombinantes ensejadas aos usuários se deverá muito mais às conexões de idéias propiciadas pelo trabalho com as formas narrativas do que propriamente pelo jogo interativo do CD-Rom – que é só um meio de efetivar essas combinações. De toda forma, é nítido o fascínio que esse tipo de dispositivo exerceu em Anderson naquele momento – a exemplo da internet –, fascínio que, entretanto, logo se arrefeceria. Outro suporte utilizado por Anderson nos anos 90 foi a instalação, só que com dispositivos bem mais sofisticados do que os que usava nos anos 70. Dois grandes trabalhos desse gênero se destacaram: a instalação que montou para concorrer ao Prêmio Hugo Boss, em 1996, e Dal Vivo, exibida em Milão, em 1998. Em 1996, Anderson foi um dos seis artistas escolhidos para uma exibição-concurso, na galeria do Museu Guggenheim, no Soho, na qual participou com pequenas peças. Sua instalação podia ser considerada uma máquina de contar histórias: dois aparelhos de telefone (ao tirar o fone do ganho se ouvia uma história), um travesseiro (ao encostar a cabeça no travesseiro, a pressão acionava uma gravação), uma pequena estátua (um filme com som era projetado sobre a figura contando uma história) e um papagaio de plástico (um motor interno e textos pré-gravados por computador embutidos permitiam mover sua cabeça e sincronizar o movimento do bico com o texto que emitia).77 Uncle Bob era mais um surrogate speaker ou um duplo substituto. A peça foi inspirada no papagaio real – e homônimo – de um de seus irmãos. O que surpreendeu Anderson no Uncle Bob real era sua capacidade de, com um vocabulário de apenas 500 palavras, “comunicar emoção” – gritos e frases que expressavam solidão, medo, alegria. Isso a fez pensar como a língua humana é “uma combinação de simples frases e uma invenção 77. Peças que remontam trabalhos passados, respectivamente, Numbers Runners (1978), Talking Pillow (1977) e At the Shrink’s (1975). Uncle Bob,o papagaio alter-ego, era de fato a única criação nova. 266

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fortuita, uma complexa mistura daquilo que pode ser dito e do que é indizível” (ANDERSON, 1997:128). Para Anderson, escrever o discurso de Uncle Bob foi como “encontrar uma nova voz – uma voz que realmente não parecia com a minha e que tão pouco tinha a ver com meu jeito de pensar. É uma sensação de grande liberdade”. Anderson orgulha-se de que Bob falava sem filtros. Neste caso, filtro não se refere ao dispositivo usado para alterar eletronicamente a voz, e sim, ao filtro das convenções sociais e das condições do discurso (“sabe quando você está falando com alguém e fala apenas 10% das coisas que estão passando pela sua cabeça?”, ilustra Anderson). São os filtros “da polidez, da lógica, da tagarelice, que fazem você evitar dizer tudo o que passa pela sua mente”. Essa idéia de que todos usamos “filtros” é a base para sua afirmação de que todos nós teríamos várias vozes (a voz que usamos ao telefone, ao falar com um amigo, com o chefe etc), as quais usaríamos como formas de auto-apresentação, como explicou em entrevista a RoseLee Goldberg, em 2001. O uso dessas vozes em seus trabalhos seria para ela uma espécie de brincadeira com esses modos de auto-apresentação e também de investigação dos contextos em que esses usos acontecem. O que ela faz, de forma singular, é justamente usar essas vozes para fazer seus questionamentos. Trata-se de uma evidenciação desse processo, no qual, ao mesmo tempo, Anderson dá voz aos no bodies e faz também críticas ao poder, personificado na masculina e grave “voz da autoridade”. Falar, portanto, “sem filtros”, através de Uncle Bob, significava livre expressão para Anderson e uma esperteza: a produção de um disfarce que a esconde sem, contudo, torná-la invisível, como numa camuflagem. É assim que vai ironizar, por exemplo, o sistema de competição e de julgamento da arte. Uncle Bob diz: Bem-vindos ao Museu Guggenheim, Soho. Seu diretor é Tom Krens. Na verdade, eu não o encontrei ainda e nem posso dizer que o conheço pessoalmente. Quer dizer, eu não tenho o telefone da casa dele, mas sei que a idéia do ‘concurso de arte’ foi dele. Aliás, o vencedor desse concurso vai ganhar 50 mil dólares! Cortesia do pessoal da Hugo

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Boss. Aliás, eu adoro seus ternos. Vocês deveriam parar alguma vez em sua loja. São realmente ternos muito bons. Tecido excelente. São ternos para pessoas de ótimo gosto. De qualquer forma, o vencedor leva o dinheiro, mas o que ganham os perdedores? Competição! Eu adoro isso! É tão americano. Eu gosto de saber o que é o melhor e o que não é tão bom. Às vezes, a obra de arte é julgada com palavras. É assim que funciona: este quadro vale 1.500 palavras. Esse aqui vale três palavras. Aquele lá vale um parágrafo. Esse não tem preço, impossível dizer o suficiente sobre ele. Aquele outro lá não vale nada. Não vale nem mesmo uma letra (ANDERSON, 1997:130).

Milão, 1998. Utilizando a técnica de produção do “falso holograma” (At Shrink’s, 1975) – projeção de uma imagem sobre uma figura em gesso ou argila, animando-a –, Anderson promove a “fuga virtual” de um preso da penitenciária San Vittore para uma galeria de arte. A instalação Dal Vivo foi uma complexa operação, menos talvez por seus surpreendentes efeitos técnicos do que pelas profundas reflexões a que deu lugar. O endereço é a Galeria da Fondazione Prada, em Milão. A exibição foi dividida em duas partes e organizada em duas salas, cujo acesso era dado por corredores escuros. No piso era projetado o desenho das alas da prisão San Vittore. Na primeira sala, várias pequenas estátuas espalhadas pelo chão, coberto com areia negra. Filmes com a figura de Anderson eram projetados em cada uma das estátuas, que cumprimentavam os visitantes e contavam histórias sobre justiça e julgamento, exigindo que todos se abaixassem para ver e ouvir melhor. Na segunda sala, sobre uma estátua em tamanho natural, em gesso, de um homem sentado, era projetada a imagem de Santino Stefanini, um prisioneiro encarcerado a quilômetros de distância que, via cabo, falava “ao vivo” de dentro da prisão. Mais do que o espetáculo propiciado pela telepresença, Dal Vivo foi, para Anderson, uma forma de lançar uma série de questionamentos: o modo como a telepresença altera os modos de percepção do corpo e do tempo – “alguém que está temporalmente presente, mas espacialmente remoto”; as relações 268

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entre “prisão” e “tecnologia” – a submissão a modos distintos de confinamento; entre a “prisão” e a “galeria” – e “o que ambas escolhem para guardar”; como funciona a justiça e o julgamento; a questão da exclusão, da suspensão da vida e da expropriação de si – “um corpo transformado em coisa”, “uma presença tornada disponível à força”, “vivida pelo olhar dos outros”; e o papel da arte e sua possibilidade de propiciar experiências assombrosas, mas reais – de evidenciar o que está oculto, de fazer “o distante se tornar presente”, de revelar a força vital daquilo que está preso, daquilo que é “possuído, mas que não se dá”.78 Germano Celant, curador da exibição, acredita que o procedimento típico de Anderson de justapor distintas realidades – humano e inumano, material e espiritual, real e imaginação, vazio e repleção, masculino e feminino – é um jogo que “conduz seus modos de reconhecimento da realidade”. Na visão de Celant, essa seria uma forma de Anderson celebrar a plenitude da vida e, ao mesmo tempo, de “decifrar as contínuas dissociações que a condicionam”. Seria também uma tentativa de fazer com que a arte pudesse “tornar-se uma reflexão consciente sobre a vida, algo apresentado ao vivo para o mundo” (CELANT, 1998:23). Assim, hibridizando formas, linguagens e distintas realidades e mimetizando a mediação através de suas máscaras eletrônicas e instrumentos corporais, Anderson questiona os valores sociais dominantes, neutraliza sua identidade e sua presença para tornar-se um potente canal, o que lhe permite, como já dissemos, estender-se pelos fragmentos que espalha, amplificando e fazendo ressoar de forma singular sua voz e sua crítica. Contudo, é importante entender que o que Anderson recusa não é a presença em si, mas sua autoridade ou seu peso autoral.79 O que Anderson faz é diluir o que no corpo constitui sua falsa evidência. Se o corpo é uma construção simbólica, narrativa, ele nasce de mediações, de formas discursivas que o cons78. As aspas remetem a expressões de Germano Celant, no texto de apresentação da exposição. 79. Cf. Michel Foucault, em “A Ordem do discurso”. Para Foucault, a figura do “autor” tem a função de ordenar e dar significação aos discursos, de ser seu foco de coerência e de dotar-lhes de um caráter de verdade (1992:26). FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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tituem como teias de significação. É provavelmente por isso que Sidonie Smith acredita que “a naturalização do corpo pode ser um terreno enganoso, talvez o espaço do estranho e não do familiar, pois sendo uma construção cultural e, portanto, política, a evidência do corpo pode apenas oferecer um aparente continuum de identidade estabilizada” (SMITH,1994:267). É a partir da perspectiva de sua constituição enquanto discurso que o corpo foi trabalhado no happening e na body art e, mais tarde, na performance, onde então foi desconstruído particularmente através de presença física imediata. Já com os usos que faz da tecnologia em suas performances, Anderson esforça-se por tornar evidente a ilusão da idéia do “corpo” como mera evidência imediata, para substituí-la pela idéia de “presença”, através da apresentação de um corpo tecnologicamente mediado, quase sempre deslocado e nunca imediatamente presente. Seu corpo eletrônico, portanto, não é uma abstração. Ele existe, embora sua constituição só seja possível enquanto recoberta por diversas camadas de mediação (tecnológica, sonora, imagética, textual). Talvez por isso Susan McClary (1989-90:109) afirme que “o tratamento que Anderson dá ao corpo em performance é muito mais complexo que a transgressão evidente de algumas formas de performance”. Muitos artistas, afirma McClary, procuram disfarçar os mecanismos de representação e torná-los invisíveis ou inaudíveis para que as pessoas acreditem que o que está sendo apresentado é real. Já em Anderson, o que se tem é a evidenciação dos procedimentos de produção da ilusão para criar algo “real”, no caso, a mediação, que ela expõe e desconstrói por meio da própria mediação. Portanto, ao criar um corpo eletrônico ou mediado, Anderson opera primeiramente em si o procedimento que aplica para produzir sua arte, vinculando-a, de modo definitivo, à sua própria vida. O corpo mediado é apenas um exemplo de como sua presença física é descorporificada pela tecnologia e de como seu “eu artístico” é desabilitado pela construção de uma persona que é o ponto de convergência de distintas vozes que a atravessam: vozes de pessoas anônimas, vozes da cultura, da história, da arte, do poder e das lutas contra o poder.

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Graças a essa “desabilitação”, presença, tecnologia e narrativa se tornam elementos acionados para produzir formas de sensibilidade criadoras e novas referências nos processos significacionais dominantes. Criando jogos de linguagem com esses elementos, a artista se posiciona em diversos “entres”, conectando-se e desconectando-se de diferentes situações, para produzir possíveis, desafiar regras e criar brechas nas cristalizações e codificações que caracterizam a sociedade capitalista. A obra da artista é, assim, uma máquina estética atravessada por um desejo incessante de produzir descosturas e singularidades. Na verdade, é a própria arte que parece atravessar a artista para torná-la um filtro, um canal de materialização de um campo criador. É nesse sentido que vejo muitos de seus trabalhos como uma performance da resistência e como uma máquina de produção de desejo, com grande potência transformadora. Seus usos da tecnologia constituem estratégias que absolutamente não são inocentes. Ao contrário, são eminentemente políticas, embora não defendam abertamente nenhuma ideologia. Como arte e tecnologia se apóiam e se afetam mutuamente em seus trabalhos, a tecnologia encontra aí a possibilidade de tornar-se uma ferramenta para ousar e a arte, uma marca viva estampada nas dobras que Anderson produz em si mesma.

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6. Um sonho, um lugar

Se a arte traz a marca de seu tempo, como afirmou Jacques Attali, forja também a marca de seus possíveis. E se toda arte é, simultaneamente, mensagem e mensageira de algo que está por vir, o artista é o filtro escolhido pelas idéias para poderem se materializar. No artista, arte e comunicação se encontram para tramar contra a verdade do instituído e enunciar o nunca visto. A noção deleuziana da obra de arte como uma “máquina”, como um conjunto de conexões criadoras capazes de produzir diferença – que pode, por sua vez, engrenar-se a outros conjuntos e fazer criar novas engrenagens criativas – abole a idéia da inspiração e da criação geniais do artista. Essa idéia, ao invés de apequenar o processo criativo, o amplifica e faz ressoar, porque não mais preso a uma individualidade, e sim, a um coletivo de forças. O trabalho de Laurie Anderson é um exemplo de agenciamento concreto desses processos singularizantes, onde a figura da artista e seu trabalho formam uma abundância, um excesso criador que vaza e “engaja outras singularidades”. Seu trabalho, nesse sentido é uma voz coletiva que articula distintos elementos e que lhe permite ser sempre “muitos”. É por meio dessa articulação que Anderson realiza importantes experimentações com as formas estéticas e narrativas, alterando percepções e produzindo novas sensibilidades. Anderson articula diferentes discursos e práticas dentro de seu trabalho, que, ao mesmo tempo, organiza e dispersa esses elementos, como um potente vórtex. Usando a tecnologia e os processos de mediação, Anderson reafirma a presença e produz novos campos de referência com os deslocamentos de sua FABULAÇÕES ELETRÔNICAS

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identidade e da manipulação da representação. E o mecanismo usado para isso é a narrativa. Como ela, Anderson consegue entrar naquela que parece ser efetivamente a dimensão criadora da arte, em que a obra não mais seria vista como objeto resultante de uma individualidade privilegiada, mas como “máquina estética”. Os usos e as apropriações da tecnologia e dos discursos midiáticos feitos pela artista caracterizam exatamente um processo de subjetivação capaz de tornar possíveis novas escrituras, novas constituições de modo de vida não individuais, mas, coletivos. Assim é que Anderson parece tentar neutralizar a “função-autor” em seus trabalhos, apoiando-se na apresentação de fatos corriqueiros espalhados pelo quotidiano e que falam de uma certa forma de viver em sociedade e que são relatados aparentemente longe de um desejo de interpretação e verdade. Deslocar e adiar sua presença, tornar-se meio-máquina, meio-homem, meio-mulher é uma forma de manipulação de uma identidade construída como instável, uma forma de disfarçar-se e desaparecer para poder afirmar-se de forma singular. Com seu corpo eletrônico, com qual cruza gêneros, se desloca e multiplica, Anderson tenta fugir a classificações e desembaraçar-se das amarras da autoridade da presença e da identidade para ampliar seus questionamentos. É graças a esse conjunto de mecanismos que o trabalho de Anderson atua como uma espécie de “cavalo de tróia”: como um “presente” para a cultura de massa, questiona a mercantilização da obra-de-arte, através de seu estilo conceitual. Como “presente” para os artistas de “vanguarda”, questiona seu engessamento e a contradição de ser, muitas vezes, ao mesmo tempo, criadores e conservadores. Seu trabalho constitui, assim, uma armadilha que consiste numa articulação feita entre arte, tecnologia, meios de comunicação e cultura de massa, de modo a despistar as relações de poder que elas pressupõem e desengajar-se de suas evidências estabelecidas. Curiosamente, Anderson alcança esse deslocamento disfarçando-se precisamente com os elementos que evidencia, o que lhe permite ficar oculta sem, porém, estar invisível.

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Ao utilizar a cultura mediatizada como ambiente e a mídia como objeto, Anderson parece tornar possível um distanciamento necessário para trapacear com este cenário. Ao invés de negá-lo, vai realizar algo próximo daquilo que Deleuze chamou de produção de “senhas”, ou seja, de contra-palavras de ordem, sob as próprias palavras de ordem. Nisto consiste sua esperteza: Anderson se camufla nesse cenário, para tomar suas estruturas e gerar uma não-presença e uma não-identidade que a despista, mesmo que de forma efêmera, dos mecanismos modelizadores. É assim que seu trabalho se comporta freqüentemente como uma espécie de estratégia micropolítica de resistência, que cria rupturas nos padrões de percepção e sensibilidade dominantes e produz singularidades. Buscando desembaraçar-se das grandes mediações, seu trabalho tem o poder – talvez por isso mesmo – de comprometer a verdade, na medida em que evidenciam certas constituições de modos de existência que podem então ser repensados. Trata-se aí de produzir diferença e resistência a partir das próprias instâncias em que se articulam os mecanismos de controle. Mas, essa estratégia se dá num campo minado, onde existe a todo instante a possibilidade de reapropriação e neutralização. Anderson, como boa estrategista, teve que aprender a transformar essa tensão em arte para poder reafirmar as possibilidades que esses procedimentos apresentam de produzir brechas e de desafiar o poder, de fazer ressoar a alteridade no contexto da mercantilização da cultura e da subjetividade. Muito embora esse procedimento de apropriação caracterize uma “resistência de dentro” e, portanto, uma forma responsiva ao poder, é preciso ver o conjunto de seu trabalho como não meramente reativo. A apropriação é apenas parte de suas estratégias. Ao lançar-se numa aventura em que a arte e a experimentação com a tecnologia possibilitam distintas formas de percepção e de intervenção na realidade, Anderson forja, na verdade, elementos que propiciam o surgimento de elementos de “escape”, que constituem o que Deleuze chamou de “linhas de fuga”, linhas que desejam não escapar do mundo e seus embates, mas, ao contrário, produzir novos embates a todo custo e em novos lugares, onde antes nada se via. “Fazer fugir, fazer algo escapar, fazer um sistema vazar” (DELEUZE e PARNET, 1998:49).

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Apesar do uso da tecnologia, sua arte é feita de elementos bem mais simples: idéias e histórias. De fato, Anderson tem com a tecnologia uma relação ambígua e tática. O importante é narrar, criar, transformar, imprimir à mediação tecnológica outros funcionamentos, atravessá-los com um outro desejo que não o de representar ou fazer encaixar, mas de experimentar, inventar, torná-los ferramentas para a criação. Com isso, a artista demonstra como mídia e tecnologia podem constituir vetores de singularização, que ajudem a nos esquivar o quanto possível da lógica de padronização do capital e de suas instâncias de modelização. Em seus trabalhos, esses usos indicam precisamente como é possível negociar com os recursos presentes na própria cultura contemporânea e com eles comprometer as grandes verdades, revisitando o que está dado e fazendo emergir daí o diferente. Anderson demonstra uma grande curiosidade pela vida e por seu tempo. Esse estado de paixão é traduzido em uma de suas mais curiosas histórias, “Langue d’amour” (United States, 1984:178), que trata da lenda de Adão e Eva contada do ponto de vista feminino e que Anderson narra com seu estilo irônico e bem-humorado. Nessa história, Adão e Eva viviam numa ilha onde havia uma serpente com patas, que andava, falava e emitia estranhos silvos com a língua. Adão era um bobo, sempre contente, sorrindo sem motivo aparente. Eva, então, aos poucos, se aproxima da serpente, que começa a lhe contar coisas maravilhosas sobre o mundo e acaba mudando suas idéias sobre ele. Eva se apaixona pela serpente. Como está apaixonada, não quer deixar a ilha quando Adão a chama para ir embora. Mas ela vai assim mesmo. Porém, depois de terem saído, nunca mais ficariam em lugar algum por muito tempo, porque ela agora vivia inquieta e de “cabeça quente”, era uma mulher apaixonada. Ao terminar, Anderson diz: “essa é uma história que meu povo não conta. É uma história que sei por mim mesma. E quando faço meu trabalho é nessas coisas que estou pensando, pois quando faço meu trabalho é sobre isso que penso”. “A língua do amor” pode ser vista como um desejo de inconstância ou um amor pela mudança. Anderson sempre in-

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sistiu em não ser categorizada em nenhum estilo de arte, em nenhum rótulo, a não ser o de “contadora de histórias”. Longe de ser inocente, porém, esse desejo é uma luta pelo múltiplo, um grito pela heterogeneidade e uma tentativa de escapar e de fazer algo escapar. Porque se não insistirmos em “pensar sobre isso”, montar cavalos de tróia em nossa sociedade será uma história que nosso povo possivelmente não contará.

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