Fado e Tango - estórias de mestiçagens

Share Embed


Descrição do Produto

INSTITUTO PIAGET Instituto Superior de Estudos Interculturais e Transdisciplinares

FADO E TANGO estórias de mestiçagens

Carlos Clara Gomes

Trabalho no âmbito da cadeira de Metodologia das Ciências Musicais Curso de Música - 1º semestre

Professora Elsa Abrantes

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

INSTITUTO PIAGET Instituto Superior de Estudos Interculturais e Transdisciplinares

FADO E TANGO estórias de mestiçagens

Carlos Clara Gomes

Trabalho no âmbito da cadeira de Metodologia das Ciências Musicais Curso de Música - 1º semestre

Professora Elsa Abrantes

Página 2

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

À Sandra, nascida Tango no Uruguai crescida Fado em Portugal

Página 3

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

ÍNDICE

Nota prévia .......................................................................................................................................... 6 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 9 De como o fado da Humanidade é ser mestiça ................................................................................ 11 De como são operadas as transformações: de baixo para cima....................................................... 12 De apropriações vindas de cima ....................................................................................................... 14 Dos mistérios envolvendo os Géneros .............................................................................................. 18 GÉNESES DOS GÉNEROS........................................................................................................... 21 Dos veículos....................................................................................................................................... 23 Possíveis Géneses do Fado ........................................................................................................... 26 Do Lundum, avô negro ...................................................................................................................... 30 Das raízes prostibulárias ................................................................................................................... 35 De confusões linguísticas e etnocentrismos ..................................................................................... 36 Dos fados como locais onde se adivinhavam destinos ..................................................................... 40 Das modinhas e do fadinho............................................................................................................... 42 De mais sete origens do Fado ........................................................................................................... 44 Do que não tem ajudado à dignidade do Fado ................................................................................. 51 De volta a Lisboa ............................................................................................................................... 52 Possíveis Géneses do Tango ......................................................................................................... 55 A rua: meu lar, minha família ............................................................................................................ 57 De mais mistérios .............................................................................................................................. 58 De “un sentimiento triste que se baila” ............................................................................................ 60 Os “salteadores de uma origem perdida” ......................................................................................... 62 Da Milonga e novas confusões linguísticas ....................................................................................... 66 Os imigrantes .................................................................................................................................... 68

Página 4

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Do como nasce uma subcultura ........................................................................................................ 71 Do Candombe e do “branqueamento” das culturas negras ............................................................. 73 Dos escândalos .................................................................................................................................. 74 DOIS GÉNEROS IMORAIS E FATALISTAS .............................................................................. 77 Os redutos de nostalgias ................................................................................................................... 79 No topo da árvore genealógica está um negro: um Escravo ............................................................ 81 O cais e o prostíbulo como habitats lógicos...................................................................................... 84 Da “coexistência pacífica” de dois tipos de gente ............................................................................ 86 O Erotismo......................................................................................................................................... 88 De temas comuns de gente comum para gente comum .................................................................. 90 Um Neo-Renascimento de estirpe popular....................................................................................... 92 CONCLUSÃO..................................................................................................................................... 95 Fontes consultadas ......................................................................................................................... 99

Página 5

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Nota prévia Para a realização deste trabalho elegi como público-alvo todos aqueles que se interessam pelos diferentes géneros da canção popular mundial. Não presidiu ao meu desassossego uma preocupação academista pelo que não serão aqui encontrados hermetismos próprios de quem sabe ler pentagramas ou semifusas. Também não pretendi produzir trabalho para investigadores que poderão remeter tais esforços para o cómodo arquivo das bibliotecas inalcançáveis mas para todo aquele que, preocupado com o outro, seu próximo, seu semelhante (embora possa ser seu diferente), busca encontrar razões de conduta e costumes sem as cores dos exotismos turísticos propalados pelas agências de viagens.

Ilustração 1: Marcha de Alfama

Tampouco tropeçarão neste trabalho em considerações estéreis sobre ismos com que frequentemente se animam tertúlias mas que pouca ou nenhuma mais-valia trazem ao vulgo. Porque é de coisas do vulgo que se trata este trabalho. São coisas do Povo, massa anónima e amorfa em nome de quem tanta demagogia tem sido propalada.

Página 6

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Trata-se de multidões que frequentemente – quase sempre - operam transformações e que tão mal tratadas e, não raro, têm sido ignoradas pelos compêndios bolorentos e por algumas academias classistas e selectivas. Contudo, têm sido ao longo dos trilhos da História, estas mesmas massas amorfas, chusmas ou vulgos, quem tem lançado bóias e tábuas de salvação à Música – e às Artes em geral – sempre que se encontravam num processo de afogamento em bocejos resultantes do tédio a que os tais academismos balofos e assexuados insistem em confiná-la. Tive, confesso, uma preocupação mais antropológica do que artística pois entendo a Arte como uma das manifestações que engrandecem o Homem. É pois um detalhe do quadro, não é O Quadro. Pretendi, pois, discorrer sobre o Quadro lançando mão da focalização dos seus detalhes.

Ilustração 2: campino tocando guitarra

Tive, por isso, uma preocupação generalista (mas não demagógica), motivada pelo anseio de comunicar pontos de vista, inquietudes e, até – não tenhamos medo das palavras – alguma coscuvilhice decorrente da devassa de alheias vidas. Dois oportunos reparos, ainda, para a questão das fontes referidas: Quanto às fontes cujo original estava em outro idioma que não fosse o Português, concretamente as que estavam publicadas em Castelhano

Página 7

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Rioplatense, resolvi assumir a respectiva tradução porquanto tenho uma vivência quotidiana baseada também naquela língua. No que concerne às ilustrações, optei por não referir o seus autores (pintores ou fotógrafos) pois a maior parte delas foram conseguidas na Internet, não se encontrando, na maior parte dos casos, citado o respectivo autor. Comprometo-me, contudo, caso este trabalho venha a ter forma pública, a proceder com tempo (e correspondente respeito pelos seus autores) à identificação das mesmas. Carlos Clara Gomes

Página 8

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

INTRODUÇÃO

Página 9

CARLOS CLARA GOMES

A

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

vertigem – tantas vezes manifestada na minha vida – por tentar identificar procedências e pontos comuns entre os géneros em apreço, o Tango e o Fado, tem-me levado a constituir imenso acervo informativo que fui organizando numa base de dados alimentada

pela curiosidade ao longo da minha vida.

Ilustração 3: Pareja Tangueira

Volta e meia vou ao baú buscar mais uma sabedoria (pois é disso que, na verdade, se trata: de um caoticamente organizado conjunto de saberes) de gentes outras que, nos seus mais ou menos apaixonados afãs, produziram gnoses e fundamentos dedicados às temáticas em causa.

Página 10

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

De como o fado da Humanidade é ser mestiça Contudo o subtítulo do trabalho (estórias de mestiçagens) espelha o que tem sido a História do Homem: Efectivamente, as diferentes culturas do Mundo ao inventarem a Família redigiram também e por isso mesmo a lei da proibição do incesto. Assim, os casamentos – salvo algumas e historicamente circunstanciadas excepções justificadas por preservação da estirpe do poder – deverão ser fora da Família (exogâmicos) 1(BERNARDI, p.23). Tal decisão evolutiva configura – no meu ponto de vista – a irreversibilidade de miscigenação do Homem. As famílias dentro das mesmas culturas esgotam-se. Há então, entendo eu, que procurar outras famílias noutras culturas contíguas ou mais distantes. E, como tudo o que deve ser um matrimónio, com os seus consequentes compromissos, existe também a implicação da aceitação do outro: Ou seja, nascemos para ser Tolerantes. Essa é a nossa essência social e civilizacional, utópica ou pragmática. Ou, pelo menos, deveria ser. A Música, como as outras manifestações

Ilustração 4: Cartaz do filme Fado, História duma Cantadeira

socioculturais do Homem, não foge a esta regra

ditada pelos afãs de mesclas com outras culturas (representadas por modos, formas, géneros e plataformas semióticas e linguísticas). 1

BERNARDI, Bernardo – INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ETNOANTROPOLÓGICOS, ed. Edições 70, LISBOA, 2002

Página 11

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

De como são operadas as transformações: de baixo para cima Mas, mais do que explorar enredos antropológicos (embora não os subestimando mas tendo-os sempre na agenda de preocupações), importa perceber que nenhum género tem evoluído a partir das instâncias do Poder. Nenhum decreto promulgou a existência de um Género e, se o fez, foi pela negativa, prescrevendo o que não podia ser feito (censurando, portanto, a partir de produtos resultantes de actos criativos autênticos) e não o que deveria ser feito como são exemplos flagrantes e típicos os ditames da Santa Madre Igreja inquisitorial e castradora, como também alguns casos de Regulamentações Coloniais que visavam reprimir as identidades culturais autóctones e ainda, por oponência de sinal, os do Realismo Socialista codificados na era estalinista. Mas há muitos mais que não cabe aqui identificar por fastidioso. Com efeito, a Música Popular (“definição de per si unilateral, pois tratase dum ordenamento estético e ético estabelecido pelo Poder vigente, classificando – no caso da Cultura Europeia – a sua como Erudita e «as outras» como Populares)”2 (ACOSTA, p.7), tem sido ao longo da História o motor mais poderoso de enriquecimento das Culturas Musicais. Na realidade, a introdução do erro seja nas técnicas de execução (por comodidade dos intérpretes de turno, enfrentados com o grau de dificuldade contido nas metodologias em vigor), seja na mestiçagem dos géneros (fruto de sincretismos impostos ou de aculturações), tem sido ao longo da História da Música a essência transformadora das várias estéticas.

2

ACOSTA, Leonardo – MÚSICA Y DESCOLONIZACIÓN, Editorial Arte y Literatura, LA HABANA, 1982

Página 12

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Meditemos, a esse respeito, como exemplo flagrante, como nasceu o conceito europeu e ocidental de Harmonia: Aquando da democratização dos actos litúrgicos, o povo invadiu os templos e, incapaz de executar os cânticos na altura determinada, começou a interpretá-los em tessituras mais cómodas, primeiro à oitava e, mais tarde à quinta e assim sucessivamente até ao nascimento das terceiras e sextas. Bach, apesar da sua reconhecida (e ainda inultrapassada) genialidade inventiva e criadora, mais não fez do que gerar propostas de bom gosto ao redigir as suas obras. Com esse esplêndido e aturado trabalho, o compositor estaria, assim, involuntariamente, a fixar os padrões psicológicos da audição europeia de gerações vindouras – falamos de séculos e não de décadas –, sendo que esses mesmos padrões já vinham carregados de intenções dramáticas (tomemos as conotações psicológicas de alguns intervalos com determinados estados de espírito correspondentes) desde a clássica civilização grega. Tudo isso enforma e informa o nosso berço cultural auditivo. Isso somos nós (com nós refiro-me a todos os meus concidadãos que nasceram e cresceram nesse mesmo figurino cultural). Não devemos – sob pena de incorrermos em colonialismos culturais para os quais Leonardo Acosta nos alerta 3 – impor estes regulamentos a outras Culturas com quem convivamos. A História – mais uma vez chamada a toque de rebate – é pródiga em testemunhos desta índole, seja na Música, nas restantes artes ou, simplesmente em manifestações (aparentemente) tão díspares como a Religião ou a Gastronomia. Assim, os teóricos da Música (europeia) – por durante muitos séculos não terem compreendido o Homem como uma entidade que tem que ser vista de forma holística, no seu todo – classificaram os contributos de outras 3

ACOSTA, Leonardo – op.cit.

Página 13

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

culturas que tiveram contacto com a “Grande Música”como erros ou más práticas, duma forma simplista e redutora. Não podemos, porém, negar que a introdução do erro neste quadro nos transportou a um estádio evolutivo, antropologicamente comparável à domesticação do fogo, à descoberta da roda ou à própria sociabilização (não necessariamente nesta ordem nem incluindo todos estes estádios: Culturas riquíssimas, como a Inca, não conheciam a roda constituindo ainda hoje um denso mistério o processo como foi edificado Machu Pichu). Igualmente poderíamos prosseguir com outros figurinos significativos invocando, apenas como exemplo sumário, a técnica de portamento entre a terceira menor e a terceira maior usada por violinistas mal-preparados (do ponto de vista das escolas vigentes) nas melodias da Morna, operando desafinações. Expurgar tal efeito do Género seria condenar o mesmo Género à sua extinção a prazo (como aconteceu a vários níveis em outros Géneros – como, apenas para citar um exemplo, com o Son –, “tendo em conta os ouvidos mal preparados dos auditórios Europeus e dos Estados Unidos e os salões elegantes de desfrute das músicas por eles consideradas, segundo a terminologia em voga, bárbaras e selvagens“4) (ACOSTA, p.18).

De apropriações vindas de cima Com efeito, do exemplo citado, conhecemos o Son através daquilo que Acosta considera como “os ouvidos elegantes” “5) (ACOSTA, p.18) referindose, no caso concreto do Género, aos ouvintes de Miami que acolheram o Son cubano em rota de 4 5

ACOSTA, Leonardo – op.cit. idem.

Página 14

Ilustração 5: um farolito de Pompeya ou um candeeiro da Mouraria?

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

exílios nos anos de domínio de Fulgêncio Batista (quando Cuba não passava de um gigante casino e bordel para gáudio do turismo estado-unidense) e daí o transformaram em Salsa (Molho, em Castelhano). Evidentemente esta designação de Salsa foi promovida pelos editores da próspera quase recém-implantada indústria fonográfica, cuja essência mercantil lhes determinou (nos fundamentos doutrinários do marketing) que “um mau produto necessita de publicidade na razão inversa da sua qualidade, asseverando dessa forma as falsas virtudes do mesmo e gerando a indispensabilidade do seu consumo”6 (ARCADY, p.59). É oportuna, também, a remissão para O Capital, uma das obras que considerou pela primeira vez as Artes nos anais das doutrinas económicas: “A satisfação de uma necessidade gera imediatamente outra necessidade”7 (MARX, p. 285). Ainda quanto a matrimónios e lançando mão de algum simplismo no discurso, guindei-me a buscar saberes que me satisfizessem as seguintes inquietudes: Fado e Tango serão filhos de casamentos de conveniência? E, sendo-o, serão filhos bastardos? E de quem? E/Ou, ainda, sendo-o, serão irmãos entre si? Estas são, afinal, algumas das premissas que me motivaram (bem poderei afirmar que me encontrava menos confuso antes de empeçar a pesquisa…) Este (muito) modesto trabalho é, portanto, uma jornada por alguns caminhos (metafórica e fisicamente falando) de formas musicais pobres (entendendo-se que se relacionam com gente pobre, se preferirmos) que lograram instituir padrões musicais, poéticos e éticos relacionando-se com os Géneros propostos – o Fado e o Tango –, criando culturas mestiças e sincréticas em processos, como demonstraremos, “muito semelhantes às

6 7

ARCADY, Valério – AS ESQUINAS PERIGOSAS DA HISTÓRIA, ed. Xamã, S. PAULO, 2004 MARX, Karl – O CAPITAL, Edições Avante!, LISBOA, 1974

Página 15

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

iconografias das religiões dominantes impostas aos Escravos” 8 (MAESTRI, p.361).

Além do mais, como veremos na exposição adiante, há nos géneros enfocados diferentes períodos e épocas (épocas essas dominadas por estéticas imperantes) que operaram também profundas transformações em ambos os géneros em apreço. Indubitavelmente, quer o Tango quer o Fado procedem de culturas migrantes cujas motivações respectivas se entrelaçam e cruzam num movimento perpétuo de vez em quando actualizado pela Dialéctica.

Ilustração 6: Torre de Belém

Assim, desde migrações impostas (pelo negócio do Esclavagismo) até às Invasões militares, passando por transumâncias de gentes como se de gado se tratasse (negócios prostibulários que ainda hoje estão, aliás, na ordem do dia), cada um dos migrantes trouxe para os territórios de destino pelo menos um germe que operou exponencialmente transformações nos Géneros, numa dinâmica inalcançável e inquantificável, fosse como intérprete ou fosse simplesmente como ouvinte. Ocorre salientar uma não-ingenuidade minha: A palavra simplesmente foi aplicada, no final do parágrafo anterior, de forma perversa pois, ao invés de toda essa simplicidade que aparentemente 8

MAESTRI, Mário – O ESCRAVO GAÚCHO – Resistência e Trabalho, ed. Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PORTO ALEGRE, 1993

Página 16

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

contém na sua significação, pretende salientar de forma enganadoramente passiva um papel fundamental na fixação do gosto: pois não será o ouvinte quem de feição bastante poderosa define os figurinos formais daquilo que se gosta de ouvir?... Observamos, pois, que em muitos dos casos, as motivações estéticas dos artistas esbarram e tropeçam na ditadura formal dos auditórios, criando frequentemente compromissos de subjugação dessas tais razões estéticas às razões comerciais imperantes. Não é um assunto novo pois mesmo na época dourada dos Mecenas os Artistas em geral criavam dentro de determinados parâmetros. Ora, esses parâmetros, uma vez desmontados, puídas as suas cavalheirescas máscaras, revelam-se como sendo, afinal: “a força da grana que ergue / e destrói coisas belas9”(VELOSO) Não pretendo manifestar como irredutível este estado de coisas pois não aposto no miserabilismo da Vida aquilo de rico e digno que a mesma possa eventualmente conter. Acho, ao contrário, que a Vida vale porque está adornada de todas estas contradições e que a nós, como seres humanos, compete a titânica tarefa de a transformarmos por delas termos conhecimento por dentro. O que, isso sim, não poderei fazer é trair a verdade que se me afigura como sendo-o. Para tal, tive o cuidado de, desapaixonadamente, me basear em autores contraditórios entre si, daqueles que produzem polémica fundamentada. Nem sempre recorri a autores sancionados pela sacralização nos altares das Academias: pois então veja-se o que académicos fizeram a Cristóvão Colombo…

9

VELOSO, Caetano – SAMPA in LP MUITO AZULADA, ed. POLYGRAM Brasil, S.PAULO, 1967

Página 17

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

O certo é que, apesar de aquele navegador invocar fundamentos erróneos perante a Ciência de então (e de, até, por equívoco, ter descoberto outro território que não as Índias Orientais), hoje não recordamos com ligeireza o nome de nenhum dos muitos sábios seus inimigos de argumentação (e também de inveja, ao que as estórias da História nos contam) … Antes de prosseguir, importa clarificar que não pretendo ter a veleidade de descobrir ou teorizar algo de novo, mesmo tendo em conta que ao mexermos em algo acabamos por entregar mais-valias a esses algos. Essa é, afinal, a essência de Cultura.

Dos mistérios envolvendo os Géneros Também importa referir que as águas em que nos movimentamos no esquadrinhamento de afirmações que tragam luz às premissas colocadas são ambientes bastante glaucos, eivados de dogmas frequentemente defendidos com unhas e dentes. Dessa defesa encarregam-se guardiões dos respectivos templos que maioritariamente escoram argumentações em teses sediadas na paixão e não na razão. Com efeito, já que falamos à boca pequena em capelinhas para a Música, os Géneros em causa são dos mais apropriados para a metáfora pois, mais do que das formas musicais de per si, são alimentados por imaginários próprios e códigos intrínsecos bastante ritualizados. Por outro lado existe também proficiente obra produzida pelos detractores de cada um dos dois Géneros (também muita dessa obra estribada mais na sanha de denegrir do que na ânsia de clarificar).

Página 18

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Ainda, além disso, há sobre cada um dos temas tantas opiniões como opinantes, gerando um resultado exponencial de pareceres sobre os dois objectos em comum (enriquecida também pelo coro dos detractores comuns aos dois Géneros). Tentei focalizar muita da pesquisa em opiniões dos artífices dos dois Géneros, semeadas mais ou menos caoticamente por publicações dispersas. Em suma: não se trata de tarefa fácil tendo em conta o exíguo espaço físico disponível para a apresentação do trabalho como o tempo dispensável ao mesmo. Concomitantemente, a investigação para um trabalho como este deveria justamente ser financiada tendo em conta a tal mais-valia que o mesmo poderá gerar. Conhecendo, porém, o País em que vivemos, sabemos de ciência certa que há determinadas realidades que só poderão ser sedimentadas e erigidas tendo por base muito voluntariado e paixão. Este retrato já está, aliás, abarcado algumas linhas atrás. Assim, não dispondo dos meios necessários ao recorte de qualidade e rigor que gostaríamos que

caracterizassem

este

trabalho,

tentarei

sumariamente mas com a dignidade exequível elaborar o mesmo, tendo em conta as premissas invocadas e o seu possível compromisso face às Ilustração 7: Guitarra Portuguesa (pormenor)

vicissitudes já identificadas.

Atendendo à proximidade física e cultural do Fado e à mais longínqua localização do Tango (apesar da vivência algo tanguera de que a minha vida pessoal se reveste), resolvi abordar o primeiro desde as suas hipotéticas origens até aos dias de hoje.

Página 19

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Quanto ao Tango, utilizei outra estratégia pois agarrei o tema já a meio de percurso, por volta dos anos 20 e 30 do século

XX

e

daí

mergulhei

até

aos

seus

primórdios, fazendo depois uma navegação até aos nossos dias. Quando me propus apresentar este trabalho já imaginava que a faina não seria leve. Não

Ilustração 8: Bandoneon (pormenor)

cogitava,

porém,

qual

o

grau

de

dificuldade contido no mesmo.

Pretendo apenas consolidar algumas ideias – ainda que só para mim, enquanto Cidadão e artista atento e preocupado –. Se, para felicidade minha, tais considerações servirem a alguém, tanto melhor.

Ilustração 9: trio de Fado

Página 20

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

GÉNESES DOS GÉNEROS

Página 21

CARLOS CLARA GOMES

R

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

edundaremos num lugar-comum se afirmarmos que não se sabe ao certo as origens do Fado ou que não se sabe ao certo as origens do Tango. Já sabemos largamente que tal nos é ignoto.

Pois a História é isso mesmo: sendo a menos mentirosa das ciências do Conhecimento, é também o terreno mais escorregadio do mesmo. Já assistimos a não poucas derrocadas de verdades absolutas, que até então tínhamos bem alicerçadas. Sobre a matéria poderíamos muito justamente consultar as então nãoverdades de Giordanno Bruno ou Galileu Galilei que hoje todos temos por sólidos dados adquiridos. Assim, os estudos daqueles sábios – então considerados como blasfemos ou até satânicos – revelaram-nos o que hoje inscrevemos entre os factos mais inquestionáveis, intuitivos e naturais da nossa panóplia de conhecimentos: a Terra é redonda e move-se sobre o seu eixo, gravitando em torno do Sol. No que concerne à origem dos géneros musicais não é possível determinar quando exactamente se operou uma determinada transformação (exactidão essa agravada no âmbito das músicas populares pois a difusão

Página 22

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

assente na tradição oral não raro acrescentou pontos de aumentação onde havia figuras simples). Não será desadequado, portanto, adaptar o rifão Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto, parafraseando-o, da seguinte forma: Quem canta um canto acrescenta-lhe um ponto.

Dos veículos Abordarei os étimos primeiramente, apenas porque as palavras são o símbolo sonoro das coisas que pretendemos referir. Pois, como Ser simbólico que é o Homem, as palavras mais não são do que a materialização sonora (e, posteriormente, gráfica) do que queremos significar.

Ilustração 10: parte de Guitarra Portuguesa (com pentagrama e tablatura)

Por exemplo: todos sabemos que um cão é um mamífero quadrúpede que ladra. No entanto, quando falamos do nosso cão a alguém não pronunciamos toda a aquela extensa definição… Utilizamos apenas o símbolo (o que quer dizer…) aquela expressão.

Página 23

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Ora, esse símbolo é precisamente a palavra Cão, materializada por um som. E, se nos referirmos especificamente ao nosso cão, não raro citamos o nome que lhe pusemos. Por exemplo: em Castelhano, a palavra alejar10 tem o mesmo étimo da palavra portuguesa aleijar. Não detectaremos aqui alguma poética na metáfora? Será que afastar não provoca dor? Não perceberemos que aquilo a que chamamos Realidade está cheia de Poesia? Ou será que o Homem, Ser simbólico – já se viu –, necessita da Poesia para tornar a Realidade mais real? (ou menos real?). E será que alguma destas necessidades, a verificarem-se, condicionam a forma de pensar, agir, amar, dos Povos? O âmbito filológico transcende, complementa ou ratifica este trabalho?

Ilustração 11 - Cartaz anunciando espectáculo de Tango

10

Afastar, Distanciar(N.A)

Página 24

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

O que ressalta é que dois Povos diferentes (duas diferentes culturas) entendem diferentemente uma palavra com uma mesma raíz. Por tal, sabendo que viagens as palavras empreenderam, poderemos também perceber quais os veículos por elas utilizados para tais empresas, ou seja: QUEM as transportou. Tal abordagem revela-se-me fundamental pois atrás de todos as movimentações e atitudes artísticas existe o Homem. E existe o Homem conjugado com outro Homem. Sempre e inexoravelmente.

Página 25

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

POSSÍVEIS GÉNESES DO FADO

Página 26

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

“O Dom Sebastião Foi p’ra Alcácer-Quibir De Lança na mão A investir, a investir C’o cavalo atulhado De livros de História E guitarras de fado P’ra cantar vitória”11 (GODINHO)

R

emontam à “virada dos séculos XVIII-XIX” as “formas brasileiras de dança e canto chamadas «bailes de fado» – de onde viria a surgir meio século depois, em Lisboa, a moderna canção urbana

portuguesa do fado”12 (TINHORÃO, p.13). Convém frisar que esta obra de José Ramos Tinhorão foi fortemente agredida, tanto em Portugal como no Brasil. Trata-se, com efeito, duma obra bastante polémica, não obstante o rigor de investigação que a revestiu. Não foi, aliás, a primeira vez que Tinhorão viu trabalhos seus serem constestados com fogosidade pela inteligentzia dominante. Com efeito, já anteriores trabalhos seus tinham sido alvo de virulentas diatribes no Brasil conforme ilustra o fragmento de artigo seguinte: 11

GODINHO, Sérgio – OS DEMÓNIOS DE ALCÁCER QUIBIR, in Pano Crú, ed. Valentim de Carvalho, LISBOA, 1979 12 TINHORÃO, José Ramos – FADO, DANÇA DO BRASIL, CANTAR DE LISBOA - O FIM DE UM MITO, Editorial Caminho, LISBOA, 1994

Página 27

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

“[…] desde os anos 60, Tinhorão vem sendo identificado com postura xenófoba e método marxista. Suas primeiras obras saíram em 1966 e, desde essa época, resenhistas como Caetano Veloso (acólito de João Gilberto)

retrucavam

vingativamente,

tachando

suas

ideias

de

retrógadas. O crítico teve a capacidade de atacar as pessoas erradas na hora errada. Houvesse calado, como tantos o fazem por conveniência, hoje

seria

reconhecido

como

o

maior pesquisador da MPB deste século”

13

(GIRON, 1997, p. 33 – Sec.

Cultura).

Como seria de esperar, a referida obra de Tinhorão, sobre o Fado, foi semente de muita celeuma: para os fundamentalistas normalmente

do

associados

Fado, a

uma

postura conservadora (e, até nalguns casos, reaccionária), pois, para estes sectores, o facto de ser um brasileiro a opinar sobre as origens do Fado já de si é mau. Pior fica se o investigador – munido dos necessários alfarrábios explicativos – discorre e conclui que o Fado, ícone patrioteiro de Portugal, Ilustração 12: Azulejo de Lisboa com letra de Fado

nasce precisamente numa sua ex-

colónia... Tal afirmação foi tão atacada como se de repente algum muhezin islâmico asseverasse que Nossa Senhora de Fátima era uma reincarnação de Fatma, filha do Profeta Maomé. 13

GIRON, Luís Antônio, TINHORÃO DESVENDA ORIGEM DA MÚSICA URBANA, in GAZETA MERCANTIL, SÃO PAULO, 25 de Abril de 1997

Página 28

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

O facto, porém, de uma afirmação ser polémica e controversa não lhe confere o estatuto de verdadeira, apenas dificulta a sua fundamentação. Contudo, Tinhorão, que já em obras suas anteriores ( 14 e 15 ) tinha produzido material sobre o tema, buscando ilustrar miscigenações em Portugal e suas colónias, tropeça na figura de Domingos Caldas Barbosa, segundo ele, “o introdutor do fado no Brasil” 16 (ACCORSI) em meados do Século XVIII. Nessa mesma entrevista à revista Época/Globo, José Ramos Tinhorão afirma: “Os portugueses têm má consciência em relação aos negros. Admitem que se misturaram com os africanos nas colónias, mas não tocam no assunto quando se trata de Portugal. O fado chegou a Portugal no fim do século XVIII como dança negra do Brasil. Ele contava com um intermezzo cantado. Há documentos que mostram mulheres fadistas em São Paulo já em 1740, quando nem se falava disso em Lisboa. O fado só se popularizou em Portugal por causa de Caldas Barbosa. O português acha que o fado é só aquele que ele conhece, o da cantora com xale preto, simbolizado por Amália Rodrigues, mas existe uma evolução de géneros” (ACCORSI).

Ocorre salientar que a controversa posição do historiador brasileiro é firmada em profusa investigação que remontaria a um Portugal recém-saído duma revolução, nos idos de 1383-1385, na sequência do convívio resultante dos portugueses com a população negra. Com efeito: “A presença de negros africanos em Portugal a partir do Século XV revelou-se uma consequência social da política de expansão 17

inaugurada pelos primeiros reis da dinastia de Avis”

14

(TINHORÃO, 1988, p.15).

TINHORÃO, José Ramos, OS NEGROS EM PORTUGAL, Uma Presença Silenciosa, Editorial Caminho, LISBOA, 1988. 15 TINHORÃO, José Ramos, HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA, Editorial Caminho, LISBOA, 1990 16 ACCORSI, José Ramos Fabiano, entrevista a JOSÉ RAMOS TINHORÃO, Revista ÉPOCA, Secção Cultura, http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,,EPT761353-1661,00.html - 26-12-2007 17 TINHORÃO, José Ramos, op.cit, 1988

Página 29

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Do Lundum, avô negro Em toda a sua lógica argumentativa, Tinhorão defende o nascimento do Fado a partir dum berço negro que seria o Lundum

18

.

Ilustração 13 - Escravos africanos no Brasil dançando o Lundum num quilombo

Na já citada entrevista a Accorsi, Tinhorão é taxativo: “Eu estudava os negros em Portugal quando topei com esse mulato brasileiro que encantou a nobreza lisboeta com suas canções repletas de brasileirismos. Descobri que Caldas Barbosa - chamado racistamente de 'orangotango' pelo poeta Bocage - foi um dos iniciadores da música popular urbana no mundo. Antes de autores como ele, as melodias eram folclóricas ou clássicas. Os primeiros géneros musicais urbanos foram a modinha e o lundu, que fundamentaram a música popular brasileira”

19

(ACCORSI).

Outras fontes porém, consideram a génese do fado com outras procedências: “Segundo a lenda, o Fado remonta ao século XVI, à Batalha de Alcácer Quibir, onde teriam sido encontradas, nos despojos das hostes de D. 18 19

Opinião, aliás. Partilhada por vários autores. NA. ACCORSI, José Ramos Fabiano, op.cit.

Página 30

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Sebastião, dez mil guitarras. Há também quem defenda que o Fado provém dos Mouros, que habitaram a península e ainda outros que o situam numa origem mais remota, dizendo-o derivar dos Celtas”

20

(SANTOS, p.2).

No entanto, a ideia há muito enraizada na mitologia fadista, e que a maioria dos portugueses tem como verdade absoluta, é que o Fado terá sido um produto dos Descobrimentos. O poema de José Régio, Fado Português, popularizado por Amália Rodrigues, ilustra bem essa ideia: “O Fado nasceu um dia Quando o vento mal bulia E o céu o mar prolongava Na amurada de um veleiro No peito de um marinheiro Que estando triste cantava Ai que lindeza tamanha Meu chão meu monte meu vale De folhas, flores, frutos de oiro Vê se vês terras de Espanha Areias de Portugal Olhar ceguinho de choro Na boca de um marinheiro No frágil barco veleiro Morrendo a canção magoada Diz o pungir dos desejos Do lábio a queimar de beijos Que beija o ar e mais nada

Ilustração 14: Amália Rodrigues

Fado Português, José Régio (1941)” 21 (SANTOS, p.2)

Já José Lúcio, no seu portal da internet, põe o Fado, ele-mesmo, a falar pela sua boca: “Deixem-me que me apresente... eu sou o FADO. Por favor não me confundam com o meu homónimo "fado" que tem a sua origem no

20

SANTOS, Marta – FADO. ORIGENS E IDEOLOGIA, ed Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, LISBOA, 2003 21 idem

Página 31

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

vocábulo latino "fatum", que quer dizer destino, aquilo que tem de acontecer”

22

(LÚCIO).

Considerando que poderá até ter razão na sua abordagem quanto ao étimo, José Lúcio aduz mais adiante, decretando: “Qualquer que tenha sido a origem do FADO, a opinião de Alberto Pimentel, para mim, é a mais credível. No seu livro "Triste Canção do Sul" ele é bem claro nas suas investigações. Luís de Camões, na sua epopeia "Os Lusíadas" utiliza 18 vezes a palavra fado. É precisamente aqui que o leitor menos atento começa por ter conceitos errados sobre a origem do FADO.”

23

(LÚCIO)

E prossegue: “A palavra fado é uma coisa e FADO, como expressão musical, é outra. A comprovar esta afirmação está o estudo feito, por Alberto Pimentel, da literatura portuguesa do século XVI, XVII e século XVIII. Tinop não partilha da mesma opinião. Vislumbra no FADO uma origem marítima. É pouco provável. Sendo Portugal um país com tão grande extensão marítima, O FADO teria aparecido em diversos pontos de Portugal, levado por marinheiros e constaria dos arquivos e diários de bordo, por exemplo na Ponta de Sagres, onde existiu a Escola Náutica”

24

(LÚCIO).

Assim, à guisa de conclusão peremptória e lapidar, talvez motivada por razões que a razão desconhece, José Lúcio aproveita o ensejo para se contradizer várias vezes na mesma oração: “Outra opinião não fundamentada é a visualização de semelhanças entre o FADO e o Lundum, dança de umbigada africana. Se assim o fosse, mais uma vez ele teria sido levado para outros pontos e não teria ficado circunscrito à zona de Lisboa. Estabelecer uma ligação directa do FADO com a nostalgia das Mornas, com o Tango argentino, com as Festas de S. João de Braga ou com a solidão de um marinheiro no alto

22 23 24

LÚCIO, José – http://www.jose-lucio.com/Pagina2Fado/Prefacio.htm - 23-12-2007 LÚCIO, José - http://www.jose-lucio.com/Pagina2Fado/Expressao%20Musical.htm - 23-12-2007 idem

Página 32

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

mar, implicaria que o mesmo tivesse aparecido no pulsar de outros povos de culturas bem diferenciadas da portuguesa”

25

(LÚCIO).

Pois é por aqui que a sustentabilidade de José Lúcio se esboroa uma vez que a argumentação usada serve precisamente para contrariar a linha de pensamento do seu autor. Efectivamente, Lúcio não tem em conta que o Fado não se implanta como um Género de primeiro plano mas sim a partir do lúmpen mais proletário então existente no tecido social: a Umbigada, a Fofa (que é errado que não tenha proliferado pelo território português pois ainda hoje é dançada nas ilhas dos Açores) e o Lundum nascem como formas associadas aos divertimentos dos escravos, imbuídas de propósitos sincréticos. (Por outro lado, sobre a “nostalgia das mornas” e sua relação com o Fado existem já abundantes estudos que certamente escaparam a José Lúcio). Ora, é sobejamente conhecida a tarefa censória da Igreja Católica desde a sua Instituição até aos dias de hoje no afã de erradicar manifestações artísticas que possam ser conotadas com o prazer e o desfrute. Tais exteriorizações populares foram também objecto de repressão como mais adiante desenvolverei. O sincretismo de que foram objecto muitas culturas africanas em contacto com a(s) cultura(s) europeia(s) (ou, maioritariamente, dominadas por ela(s) através de regimes esclavagistas impostos, nomeadamente no plano religioso – que é onde, maioritariamente, se desenvolve o fenómeno antropológico

do

Sincretismo)

constituíram

elementos

de

resistência

cultural, pois se é certo que se adoptaram valores e códigos culturais da entidade dominante, faziam-no exteriormente, mantendo viva a chama intrínseca em que radicavam os seus valores civilizacionais próprios.

25

LÚCIO, José - http://www.jose-lucio.com/Pagina2Fado/Expressao%20Musical.htm - 23-12-2007

Página 33

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Por exemplo, referindo-se aos negros praticantes de Lundum, Gregório de Matos Guerra conta-nos o seguinte: “Criam-nos com liberdade, nos jogos como nos vícios, permitindo-lhes que saibam tanger guitarra e machinho”26 (GUERRA, p.194, 1695).

Aqui ocorre referir que Gregório de Matos está do lado dos amantes do Lundum e demais manifestações boémias pecaminosas e lascivas, pelo que se deverá intuir alguma conotação irónica (e até cínica) na formulação do autor. Com efeito, segundo Tinhorão, “na vasta colecção de versos apógrafos a esse crítico de costumes e desabrido forjador de ironias e sarcasmos Gregório de Matos Guerra, a quem chamariam o «Boca do Inferno», projectam-se de forma viva (…) centenas de episódios engraçados ou escatológicos da vida da cidade de Salvador e de outros centros urbanorurais do Recôncavo. (…) É levado por temperamento a viver os últimos dez anos da sua fase madura envolvido em pagodeiras e aventuras sexuais com a

gente

negra

e

mestiça

(principalmente

prostitutas)

que

preconceituosamente desprezava no início” 27 (TINHORÃO, 1990, p.45). Ainda do Boca do Inferno, outra referência, esta já retratando o rebolado dos quadris (influência negro-africana, ainda novidade nas danças populares europeias – leia-se dominantes – da época): “Pasmei eu da habilidade Tão nova, tão elegante Porque o cu sempre é dançante Nos bailes desta cidade”28 (GUERRA, p.216, 1695)

26

GUERRA, Gregório de Matos – CÓDICE MANUEL PEREYRA RABELO. Edição de Cordel, BAHIA, 1695 TINHORÃO, José Ramos, op.cit, 1990 28 GUERRA, Gregório de Matos – op.cit. 27

Página 34

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Das raízes prostibulárias Por outro lado, o terreno onde fertiliza e germina o Fado é indubitavelmente de raíz prostibulária: Manuel António de Almeida, num capítulo intitulado “Primeira Noite Fora de Casa” do seu romance Memórias de Um Sargento de Milícias29, ambientado num Rio de Janeiro entre 1817 e 1821, retrata assim a primeira escapadela masculina ao controlo familiar, de um grupo de adolescentes que se dirigiam a um quilombo (nome de origem africana com que se denominavam inicialmente os acampamentos de escravos): “Os meninos entraram sem que alguém reparasse neles e foram colocar-se junto do oratório. Daí a pouco começou o fado. Todos sabem o que é o fado, essa dança tão voluptuosa, tão variada, que parece filha do mais apurado estudo da arte. Uma simples viola serve melhor do que instrumento algum para o efeito. O fado tem diversas formas, cada qual mais original. Ora uma só pessoa, homem ou mulher, dança no meio da casa por algum tempo, fazendo passos os mais dificultosos, tomando as mais airosas posições, acompanhando tudo isso com estalos que dá nos dedos, e vai depois pouco a pouco aproximando-se de qualquer que lhe agrada; faz-lhe adiante algumas negaças e vira-voltas, e finalmente bate palmas, o que quer dizer que a escolheu para substituir o seu lugar. Assim corre a roda até que todos tenham dançado”

30

(ALMEIDA).

Ilustração 15: dançando o Lundum

Esta será uma realidade do Lundum, moralmente reprovável na época, 29

ALMEIDA, Manuel António de – MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS, RIO DE JANEIRO, 1817/21? 30 ALMEIDA, Manuel António de - op.cit

Página 35

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

mas já em fase de transição para outro plano mais tolerável, embora ainda objecto de respeito pela censura de costumes. Assim, os originais quilombos mantêm o mesmo nome mas mudam os seus terreiros para os centros urbanos, com consequente proximidade de superior poder aquisitivo. Com efeito, Tinhorão chama a atenção para alguns detalhes na narrativa de Manuel António de Almeida: “Após esta primeira visão da dança já urbanizada (note-se a expressão «no meio da casa») e depurada de suas figuras mais primitivas (palmas em lugar da umbigada para tirar o substituto a «terreiros», Manuel António de Almeida continuava mostrando como ao fado se incorporavam realmente elementos do lundu (o desafio amoroso entre o casal de dançarinos) e do fandango (claramente revelado no «sapateio às vezes estrondoso» e nos estalos com os dedos)

31

(TINHORÃO, 1990,

p.87).

De confusões linguísticas e etnocentrismos Não há dúvida que esse devia ser o clima sonoro

dos

desenho

fados

intitulado

pois,

ao

Interior

explicar de

seu uma

Residência de Ciganos, incluído no seu

Ilustração 16: escravos dançando

livro Viagem Pitoresca e Histórica através do Brasil32, o pintor francês Jean Baptiste Debret, residente no Rio de Janeiro, descreveu-os assim em 1811, quando o Fado era dança, inclusive de ciganos: “O progresso da bebedeira entre os assistentes aumenta-lhes a ternura e os leva a relembrarem os favores prestados uns aos outros e a se

31 32

TINHORÃO, José Ramos, op.cit, 1990 DEBRET, Jean Baptiste, VIAGEM PITORESCA E HISTÓRICA ATRAVÉS DO BRASIL, RIO DE JANEIRO, 1811

Página 36

CARLOS CLARA GOMES

agradecerem

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

com

lágrimas

nos

olhos:

à

cena

teatral

sucedem,

repentinamente, cantos entrecortados de clamores de alegria, como prelúdio a suas danças lascivas. O canto é monótono e desafinado; preferem o ritmo lento do côro dos convivas. Ouvido inicialmente sobre o mais respeitoso silêncio, é logo aplaudido com furor. A dança é um sapateado à moda inglesa. O dançarino acompanha-se a si mesmo, imitando com os dedos as castanholas, e os espectadores reforçam o acompanhamento com palmas”

33

(DEBRET, p.161).

(Chamo a atenção para o etnocentrismo contido nas palavras do pintor quando se refere a que "o canto é monótono e desafinado”. Na verdade, em muitos dos relatos antropológicos desta altura tal conduta é ditada pelo modelo de análise vigente que é o do Homem europeu, tendo em linha de conta o presumível primitivismo por parte de outras culturas). Esta descrição remete-nos não apenas para uma fogueira andaluza flamenca com seus fandangos mas também – atendendo à permissividade e liberalismo patentes na exposição, próprios de convívio em ambiência prostibulária – para o outro Género: o Tango. A partir destas descrições “poderá concluir-se que – tal como aconteceria mais tarde com a palavra Samba – o termo Fado serviu não apenas para denominar a dança em si mesma ou a própria festa ou função músico-coreográfica”

34

(TINHORÃO, 1990, p.88).

Se exceptuarmos uma referência indirecta no verso final do lundu setecentista A Saudade Que No Peito

35

, a mais recuada notícia que se

conhece da dança do fado é a do viajante francês Louis Claude Desaulces de Freycinet (1779-1842) que, na sua viagem à volta do mundo esteve por duas vezes no Rio de Janeiro: uma em 1817 (durante cerca de dois meses) e, outra, em 1820 (durante aproximadamente três meses e meio). Assim,

33

DEBRET, Jean Baptiste, op.cit TINHORÃO, José Ramos, op.cit., 1990 35 BARBOSA, Domingos Caldas – A SAUDADE QUE NO PEITO, in Lunduns, cordel s/ed. LISBOA, 1797 34

Página 37

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Freycinet conta o que presenciou em matéria de diversões, na Corte de D. João VI, em livro publicado em 1825

36

:

“As classes menos cultas preferem quase sempre as lascivas danças nacionais, muito parecidas com as dos negros de África. Cinco ou seis delas são bem caracterizadas: o Lundum é a mais indecente; e em seguida o caranguejo e los fados (sic) em número de cinco; estas se dançam com a participação de quatro, seis, oito e até dezasseis pessoas; às vezes são entremeadas de cantos improvisados; apresentam variadas figurações,

mas

todas

muito

lascivas.

São

vistas,

porém,

mais

comummente no campo do que na cidade. As raparigas solteiras raramente participam delas, e quando dançadas aos pares, é a dama quem tira o cavalheiro”

37 (FREYCINET).

Mais uma vez é evidente o etnocentrismo neste retrato feito por Freycinet pois o prisma utilizado para a descrição são os olhos europeus. Contudo, aqui não é somente de etnocentrismo de que é rodeada a perspectiva do viajante francês: também é notório um ângulo marcadamente classista com as seguintes expressões: “As classes menos cultas…”, “São vistas mais comummente no campo do que na cidade…” e “As raparigas solteiras raramente participam nelas” (sendo que, obviamente, nesta categoria de raparigas solteiras Freycinet pretenderá referir-se às “raparigas solteiras” brancas e ricas ou “de família”, como soía dizer-se). Porém, recorro novamente ao Boca do Inferno, para completar a penúltima frase citada de Freycinet. Assim, Gregório de Matos Guerra, “desde 1679 de volta a Salvador, após estudo de leis em Coimbra” 38 (TINHORÃO, 1994, p.26)

através de poema seu39 (em que a cidade de Salvador

fala de si mesma), refere:

36

FREYCINET, Louis Claude Desaulces – VOYAGE AUTOUR DU MONDE… PENDANT LES ANÉES 1817, 1818 ET 1820, Chez Pillet Ainé, Imprimeur-Librairie, PARIS, 1825 37 FREYCINET, Louis Claude Desaulces, op.cit 38 TINHORÃO, José Ramos – op.cit, 1994 39 GUERRA, Gregório de Matos – QUE DE QUILOMBOS QUE TENHO in OBRAS COMPLETAS VOL. I. ed. Janaína, SALVADOR, 1699

Página 38

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

“Não há mulher desprezada Galã desfavorecido Que deixe de ir ao quilombo Dançar o seu bocadinho”40 (GUERRA, 1699)

Mas o folião não se queda por aqui, entregando-nos nesse mesmo poema mais informação sobre os quilombos41: “Com mestres superlativos Nos quais se ensinam de noite Os calundus, e feitiços Com devoção os frequentam Mil sujeitos femininos E também muitos barbados Que se prezam de narcisos. Ventura dizem que buscam; Não se viu maior delírio! Eu, que os ouço, vejo e calo Por não poder diverti-los. O que sei, é, que em tais danças Satanás anda metido, e que só tal padre-mestre 42 pode ensinar tais delírios” (GUERRA, p.29, 1699)

O Boca do Inferno seria deportado para Angola em 1694, voltando em 1696 para falecer em Pernambuco. Indiscutivelmente terá, durante esses dois anos, convivido com a população

negra

de

forma

mais

favorecida

que

os

seus

restantes

concidadãos brancos. Por

tal,

os

testemunhos

de

Gregório

de

Matos

Guerra

serão

necessariamente menos empolados de etnocentrismos do que os restantes relatos da época de que nos socorremos.

40

idem Chamo a atenção para o facto de que, ainda nos dias de hoje, em ambas as margens do Rio de La Plata, quilombo tem como sua primeira acepção o significado de prostíbulo. (N.A.) 42 GUERRA, Gregório de Matos, op.cit, 1699 41

Página 39

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Dos fados como locais onde se adivinhavam destinos E, como observa muito justamente Tinhorão: “Ora, se na Bahia da segunda metade do século XVII a gente branca da cidade não hesitava em participar em tais solenidades da religião africana para conhecer o futuro – o que os «mestres do cachimbo» faziam invocando o kilundu, nada mais natural que, além de as conhecer, participassem também dessas danças rituais, logo chamadas de calunduns” 43 (TINHORÃO, 1994, p.27).

Assim, calundum, constitui-se por corruptela da palavra kilundum (“divindade secundária responsável pelo destino de cada pessoa”

44

) (MATTA).

Será então legítimo questionar se a tese do étimo latino fatum – Fado que alguns investigadores sustentam, aplicando-a não só à significação destino mas também ao género, não terá o seu fundamento? Ou seja: tal como defende Tinhorão quando afirma que se terá generalizado a designação de Fados, confundindo-o com a Festa dos Fados ou com a função músico-coreográfica inerente à mesma Festa, não será menos verdadeiro afirmar que, quando os convivas frequentadores dos quilombos se dirigiam lá para saber o seu destino ou o seu Fado? (depreendendo que uma das motivações seria consultarem a tal “divindade responsável pelo destino”)? Não será de declinar esta hipótese porquanto a Filologia nos tem provado inúmeros fenómenos semelhantes. Também com o Tango, como mais adiante demonstraremos, fenómeno semelhante poderá ter sucedido, originável por uma confusão linguística. Aliás, ainda hoje generalizamos vocabularmente alguns locais onde vamos praticar determinados actos: por exemplo, ir à Igreja não significará 43 44

TINHORÃO, José Ramos op.cit., 1994 MATTA, J.D. Cordeiro da – ENSAIO DE DICIONÁRIO KIMBUNDU – PORTUGUÊS, ed. A.M. Pereira, LISBOA, 1893

Página 40

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

necessariamente ir à Igreja-instituição da religião católica mas tão-somente ir à capela (templo) dessa mesma religião. Como ilustração, observo que, nos dias de hoje, em Mértola, a população refere-se, indo praticar ofícios do culto católico, a ir à Mesquita, apenas porque o nome ficou de antigas dominações muçulmanas. Esta designação localmente é generalizada e tida como uma verdade intocável. Não ocorreria a nenhum mertolense, soar-lhe-ia mal, inclusive, que alguém dissesse numa soalheira manhã de Domingo: “já foste hoje à Igreja?”. Assim,

vários

fenómenos

semelhantes

produziram

baptismos

de

Géneros exclusivamente pela associação de nome ao local onde se praticavam alguns desses Géneros. Esta é, claramente, uma marca sincrética por excelência. É também o caso do nordestino Forró, derivado por corruptela, da expressão inglesa For All (para todos), quando os concertos passaram a ser públicos e abertos a toda a população. Ou como, no caso do Rio de La Plata, a propósito do tão delicioso molho Chimichurry com que se regam os asados. Os ingleses responsáveis pela implantação

das

vias-férreas

na

Argentina

e

Uruguai

terão

pedido

repetidamente a algum gaucho pouco documentado sobre a língua de Shakespeare: Gi’me the curry45.

45

Give me the curry: Passa-me o caril (N.A.)

Página 41

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Das modinhas e do fadinho Mas regressemos novamente ao Fado e aos seus ancestrais: FredericoJosé de Santa-Anna Nery, em tratado exaustivo sobre o Folclore Brasileiro46, estabelece: “Os romances populares, aos quais se dá o nome de modinhas, tidas antigamente em grande estima em todo o Brasil, davam uma fisionomia nacional bem caracterizada à música vulgarizada e cantada nas ruas, nos salões e nas festas íntimas. Essas canções populares nos vieram de Portugal, onde sempre foram muito apreciadas. Portugal mesmo parece tê-las emprestado dos árabes e um conhecedor me afirma que as toadas têm ainda certo ar de parentesco impressionante, de um lado com a música das dançarinas indianas, do outro com os chiardachs húngaros” 47

(SANTA-ANNA NERY, p. 83).

Saliente-se, para melhor credibilização da perspectiva do autor, que Nery não está escavar no tempo em busca de dados que lhe asseverem uma qualquer verdade peregrina ditada por palpite. Com efeito, trata-se dum relato quase testemunhal pois o seu autor assiste

sensivelmente

em

tempo

real

a

todo

este

fenómeno

de

transformações, conforme continua, tentando explicar de que forma se perdeu a modinha no Brasil: “O brasileiro, povo eminentemente melómano, começou infelizmente a desprezar pouco a pouco esse género nacional. O romance francês, a scie dos cafés-concertos, as árias de operetas estão a ponto de fazer desaparecer nossas toadas simples e ingénuas, enquanto o cancan e o chahut se preparam para destronar o fadinho, o sapateado, o lundu e as outras danças do país. Entretanto, essas modinhas, acompanhadas ora pelo violão, ora pela viola ou o cavaquinho, são um produto bastante

46

SANTA-ANNA NERY, F.-J- de – FOLK-LORE BRÉSILIEN, com prefácio do Príncipe Roland Bonaparte, ed. Pérrin et Cte., Libraires-Éditeurs, PARIS, 1889 47 SANTA-ANNA NERY, F.-J- de – op.cit.

Página 42

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

curioso da musa dos mestiços brasileiros” 48 (SANTA-ANNA NERY, pp. 83 e 84).

Importa frisar a expressão “género nacional” quando se refere à modinha. Mas, mais importante ainda é, a meu ver, o desmembramento citado por Nery dos lunduns já atrás descritos por Manuel António de Almeida49 e Louis Claude Freycinet50, nos primórdios daquele Género: Com efeito, convém levantar a questão se os Géneros fadinho (possivelmente

usado

no

diminutivo

por

conotação

carinhosa

duma

manifestação artística bastante querida pelos seus cultores, tal como poderia ser sambinha ou, até, a própria modinha em apreço), sapateado e lundum não fariam parte duma mesma realidade (chamada lundum ou, se quisermos, fados) que antes juntava todos esses estádios, como se fossem vários andamentos duma mesma suite. Mais à frente, este mesmo tratado de Folclore, Santa-Anna Nery

brinda-nos

a

seguinte

informação sobre o lundum: “O lundu é muito popular e se dança em todo o Brasil. É de origem negra. É executado da seguinte Ilustração 17: Lundu dançado actualmente no Nordeste do Brasil

dançarinos

maneira: estão

os todos

sentados ou de pé. Um par se levanta e começa a festa. Quase não se mexem no início: estalam os dedos como se fossem castanholas, levantam os braços, balançam-se molemente. Pouco a pouco o cavaleiro se anima: evolui em torno da dama, como se a fosse enlaçar. Ela fria, desdenha as investidas. Ele

48

idem ALMEIDA, Manuel António de – op.cit. 50 FREYCINET, Louis Claude Desaulces – op.cit 49

Página 43

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

redobra de ardor e ela conserva a soberana indiferença. Agora, ei-los face a face, olhos nos olhos, quase hipnotizados pelo desejo. Ela se agita, lança-se; os seus movimentos se tornam mais sacudidos e se aceleram numa vertigem apaixonada, enquanto a viola suspira e os assistentes, entusiasmados, batem palmas. Depois ela pára, ofegante, exausta. Seu parceiro prossegue a sua evolução por um instante e, em seguida, vai provocar outra dançarina, que sai da roda, e o lundu recomeça, febricitante e sensual. O lundu tem encantos que viram as cabeças mais assentadas” 51 (SANTA-ANNA NERY, p. 87).

De mais sete origens do Fado Além destas, há pelo menos mais sete explicações sobre a génese do Fado (no Portugal metropolitano): 1. O Lundum trazido para Portugal pelos marinheiros A Enciclopédia Luso Brasileira52 fala-nos do Fado como pertencente “à canção popular portuguesa, tardiamente nascido e gerado fora de Portugal, definindo três períodos de aparecimento e evolução musical deste género de música: a) No primeiro período, dá-se o aparecimento do Fado de Lisboa (a partir de 1822); Na transição do Lundum para o Fado, a dança continua a ter maior importância. b) No segundo período (a partir de 1840), o canto supera a dança, sendo associado à valorização da guitarra, em substituição da viola; c) No terceiro período (a partir de 1888), o Fado já é totalmente divulgado, passando a ser aceite pelas classes sociais. A sua divulgação

51 52

SANTA-ANNA NERY, F.-J- de – op.cit. ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE CULTURA, Verbo Editores, LISBOA, 1995

Página 44

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

chega a Coimbra através dos estudantes da Universidade” 53 (ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE CULTURA, p. 453, Tomo IV).

Segundo Pinto de Carvalho (Tinop), “até 1840, apenas existia um tipo de canção entoada pelos marinheiros, a qual era cantada à proa das embarcações. A partir de 1840, começou a aparecer nas ruas de Lisboa”54 (TINOP, p. 23)

Esta teoria de Tinop, em que inscreve o Fado no género de canções de torna-viagem não contraria o já exposto como também o reforça. 2. As melodias trazidas para Portugal pelos estudantes brasileiros Alberto Sousa Lamy já pressupõe duas origens para o Fado de Coimbra: Uma delas seria baseada nas melodias “trazidas pelos estudantes brasileiros que vieram, a partir de 1860, estudar para a Universidade de Coimbra, pelo que, o Fado de Coimbra teria aparecido pela primeira vez nesta cidade, na récita de despedida do ano lectivo de 1900-1901”55 (LAMY, p.142). Não posso deixar de concordar com Lamy porquanto já se viu que o próprio Gregório de Matos Guerra foi um desses Estudantes. Consideremos, contudo, que a preocupação de Lamy concerne apenas à Universidade de Coimbra (e ao Fado de Coimbra, que ainda hoje é objecto de controvérsia quanto a uma sua denominação mais exacta: Canção Coimbrã). Com efeito, poucas semelhanças formais ou estilísticas existem nos Fados actuais de Lisboa e de Coimbra, exceptuando talvez o uso do mesmo instrumento protagonista: a Guitarra de 6 ordens (havendo quem defenda que, na realidade não se trata do mesmo instrumento pois a Guitarra de Coimbra afina-se em Si Bemol em relação à Guitarra Portuguesa).

53

ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE CULTURA, Verbo Editores, LISBOA, 1995 (TINOP), Pinto de Carvalho – A HISTÓRIA DO FADO, ed. Dom Quixote, LISBOA, 2003 55 LAMY, Alberto Sousa – ACADEMIA DE COIMBRA, 1537 - 1990, ed. Rei dos Livros, LISBOA, 1990 54

Página 45

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

3. A canção teria sido trazida por estudantes provenientes de Lisboa, para Coimbra Outra teoria de Lamy derivaria “da vinda de estudantes portugueses, provenientes de Lisboa, os quais depois de terem convivido com os estudantes brasileiros trouxeram as canções e melodias para Coimbra. Já com os estudantes desta cidade, teve a possibilidade de se individualizar e diferenciar em Coimbra”56 (LAMY, p. 185). Na verdade esta conjectura de Lamy apenas nos informa como o Género terá chegado de Lisboa a Coimbra (se é que estamos a falar do mesmo Fado), pelo que se presume que esta tese não é autónoma da anterior mas sim uma sua variante pois a procedência desde o Brasil não está nela refutada. 4. A Modinha e o papel do padre José Maurício Ainda segundo Lamy, “existe também uma remota possibilidade de a origem do Fado de Coimbra ter evoluído a partir da "Modinha", género sentimental que teve um grande cultor no Padre José Maurício (1752/1815), professor da cadeira de Música da Universidade de Coimbra que, trocando o piano pela guitarra, e os salões pelas ruas em noite de luar, simplificou o género musical virilizando-o na voz masculina”57 (LAMY, 170). Esta outra possibilidade (também endossando a tese de Lamy ao Fado de Coimbra) não será de todo descabida e não contraria os anteriores postulados porquanto se sabe que, normalmente, as Fofas, Lunduns e Modinhas compunham o reportório usados pelos mesmos executantes. A esse respeito, convém também rever a obra de F.-J. Santa-Anna de Nery58. 5. A influência das melodias Árabes ou Mouras no Fado Armando Simões envereda por outra e diferente tese quanto às suas origens, quando afirma que "Na invasão árabe, no século VIII, vê-se uma

56

LAMY, Alberto Sousa. Op. Cit. Idem. 58 SANTA-ANNA NERY, F.-J- de – op.cit 57

Página 46

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

nova hipótese da génese do Fado na natural dolência dos cantos mouros, na suavidade dos seus romances e na cadência das suas lengas-lengas ..."

59

(SIMÕES, p.28).

Não rejeitando completamente a tese de Simões, importa referir que também



nesta

citação

existe

algum

etnocentrismo

(inadmissível

porquanto já foi produzido numa época – 1974 – em que as considerações de carácter antropológico já se revestiam de mais elaborado detalhe sobre a análise do outro). Com efeito, a expressão “natural dolência dos cantos mouros” contém em si mesma várias inexactidões por não serem, na minha perspectiva, baseadas num sistema ordenado de aquisição e processamento de conhecimentos (já para não referir que hoje se põe em causa se a vinda dos povos do Norte de África para a Península constituiu verdadeiramente invasões no sentido militar e geopolítico do termo, segundo relativamente recente teoria do Arqueólogo Cláudio Torres60). Assim, duvido que exista nalgum compêndio de etnomusicologia considerado sério um único dado que consiga provar a natural (sendo que nenhum acto musical é natural mas sim cultural) dolência (adjectivo de quantificação aleatória) dos cantos, como diz o autor, mouros. Ainda salta à evidência o etnocentrismo usado atendendo a que por mouros, sarracenos, árabes, muçulmanos, cafres, foram genericamente catalogados todos os povos procedentes do Norte de África sem cuidar de perceber que só em Marrocos – e não em todo o seu território – há culturas que utilizam cerca de 350 escalas diferentes dentro duma mesma oitava. Por fim, as lenga-lengas a que possivelmente se refere Simões não deverão certamente corresponder a um exaustivo estudo sobre os diversos idiomas mouros, usando a sua expressão, mas sim a palavras que não compreende, classificando-as, assim, dessa forma (etnocêntrica). 59 60

SIMÕES, Armando. A GUITARRA – Bosquejo Histórico, ed. Autor, ÉVORA, 1974 TORRES, Cláudio – in entrevista pessoal ao autor, inédita, MÉRTOLA, 2001

Página 47

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Assim, por mais honesta e dificultosa que possa ter sido a abordagem de Armando Simões ao tema, o etnocentrismo nela contido (aduzido da aplicação da expressão “cadência”, possivelmente com conotação rítmica e não harmónica61) recomenda-me alguma desconfiança na atenção a prestar à mesma. 6. A influência africana dos escravos enviados para o Brasil Ainda nesta obra, Armando Simões encontra uma outra possível influência, a Africana: “Junto com os escravos africanos, nomeadamente angolanos, que foram levados para o Brasil, foram também algumas manifestações culturais próprias, e entre elas, o «Batuque» e o «Calundum», integrando-se

com

muita

facilidade

no

conjunto

das

danças

locais

brasileiras. Foi no Brasil que se transformou em «Lundum» e «Fado», sendo já com estes novos vocábulos que surgiu em Portugal, no qual viria a ser conhecido simplesmente por «Fado», vindo a desenvolver-se no nosso país, a partir de meados do século XIX” 62 (SIMÕES, p.63). Embora mais sustentável em termos científicos – convém explicitar que a obra de Simões, reveladora de imensa paixão, tem enfoque no instrumento a que hoje chamamos Guitarra Portuguesa e não pretende teorizar sobre o Género, o que leva a presumir que a sua ânsia investigadora ficou confinada ao domínio da Organologia, matéria em que, aliás, é bastante exacto na argumentação

utilizada



esta

teoria

aborda,

ainda

que

muito

superficialmente, pelas razões já identificadas, a génese do Fado, não contrariando mas reforçando a teoria de José Ramos Tinhorão. Assim, a já referida alusão ao Calundum tem sede, seguramente, nas mesmas fontes citadas pelos principais investigadores deste tema. Também um outro autor - Manuel de Sousa Pinto - concorda com esta sexta origem, confirmando e documentando, na sua obra O Lundum, avô

61

Colocar-se-á em dúvida, igualmente, que Simões quisesse fazer corresponder o termo cadência ao italiano cadenza. (N.A.) 62 SIMÕES, Armando. op.cit.

Página 48

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

do Fado, 63 que “não só a melodia do Lundum mas a própria designação de Fado, na sua aplicação coreográfica, é de origem brasileira”

64

(PINTO, p.131).

Este autor ainda acrescenta que Mário de Andrade, musicólogo brasileiro, provou com factos e datas, a origem brasileira do Fado. Assim: “[…] o Lundum chegou a Portugal através de marinheiros, que o teriam introduzido, pouco a pouco, nos bairros típicos da cidade de Lisboa. (A suportar esta hipótese está o facto de que as primeiras músicas dentro do género estavam de ligadas não só ao mar como às terras para lá daquele, onde habitavam os escravos. Veja-se o exemplo de uma das músicas cantadas pela Amália, chamada «O Barco Negro», da autoria de Caco Velho, que fala precisamente de uma sanzala.) O Território português limitar-se-ia assim, a receber o Fado, especialmente nas cidades de Lisboa e Coimbra, chegando em geral por via estudantil (de brasileiros). Em Lisboa, a canção foi-se desenvolvendo pelas vielas e lupanares, e daí conseguiu alcançar fama, ascendendo às casas de família ou salões aristocratas, sendo cada vez mais aceite pelas senhoras e damas, que passaram a dançá-lo e dedilhá-lo, em substituição da Modinha. Em Coimbra, nas serenatas ou nas reuniões académicas, o Fado adaptou-se nas banzas (violas) estudantis num estilo local e mais romântico, enriquecendo-se em novas variações, sendo a partir daqui espalhado como canto, toques e danças populares. Com o decorrer do tempo, as modificações foram-se dando, levando o Fado, em Coimbra, a ser exclusivamente cantado e tocado pelos estudantes, que lhe deram características próprias de lirismo e romantismo”

65

(ANDRADE).

Dotada de bastante credibilidade, esta origem não anula mas também reforça (tal como outras já descritas) a defendida por Tinhorão.

63

PINTO, Manuel de Sousa – O LUNDUM, AVÔ DO FADO, ed. Ilustração, LISBOA, 1931 idem 65 ANDRADE, Mário de – PEQUENA HISTÓRIA DA MÚSICA, Livraria Martins Editora, S. PAULO, 1942 (citado por Mascarenhas Barreto em respectiva op.cit) 64

Página 49

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

7. As Cantigas de Amor e a Trova Provençal da Idade Média Alguns investigadores ainda afirmam que as origens do fado estarão ligadas à Idade Média, nas cantigas de amor e na trova provençal. Em obra de Mascarenhas Barreto 66 , este autor concorda com esta última origem: "(...) De origem provençal, o Fado sofreu a influência melodico-poética árabe e, ao longo dos séculos, ganhou características mais definidas, tornando-se numa maneira de cantar que exprime, genericamente, um estado psíquico de nostalgia. (...) O casamento dos príncipes trazia para Portugal a sua corte de cavaleiros e trovadores. Assim se formou, entre os portugueses, a escola de poesia Provençal que veio fortalecer os primeiros passos de uma Literatura Nacional. (...) A «Chansó» era o mais nobre género de canção, própria de cavaleiros fidalgos; O «Sirvente» era cantado por soldados; Os «Contenses» eram controvérsias travadas entre dois trovadores; O «Plang» era uma canção lamentosa: «Cantiga de Amigo» cantada de mulher para homem, e «Cantiga de Amor», cantada de homem para mulher; e ainda outra forma de poesia, de expressão satírica: «Cantiga de Escárnio ou Mal Dizer». (...) Oito séculos passados, o Fado actual conserva ainda antigas características. O Fado dos Estudantes de Coimbra, como expressão do sentimento masculino, manteve o mesmo espírito das Cantigas de Amor. No Fado de Lisboa, parece predominar a forma das Cantigas de Amigo, expressão feminina, em que a mulher manifesta o seu sentir."

67

(BARRETO, p.26).

Parecendo bastante estribada a investigação de Mascarenhas Barreto no que concerne às formas Trovadorescas e Provençais, tal sustentação é extraviada pois o autor, no correr de toda a sua obra, não nos demonstra como evoluíram tais Géneros nos cerca de oitocentos anos que distam entre a época provençal e a actualidade, limitando-se a conjecturar sobre o que lhe parece ser o sentido melódico-poético do Fado. 66 67

BARRETO, Mascarenhas – FADO, CANÇÃO PORTUGUESA, ed. Oficina Gráfica Boa Nova, LISBOA, 1959 BARRETO, Mascarenhas, op.cit.

Página 50

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Do que não tem ajudado à dignidade do Fado Outras teses peregrinas defendem uma génese do Fado tendo como berço a cultura Celta e daí estabelecem estranhas relações com as Touradas (que remontariam ao período de influência Celtibérica no território que hoje se chama Portugal). Da leitura em diagonal que dediquei a algumas dessas opiniões pouco retive pois afigura-se que a vocação investigadora dos respectivos autores mais não servia do que para lhe sancionar as componentes ideológicas conservadoras e reaccionárias que mais não têm feito do que tolher os passos ao Fado dos dias de hoje no sentido do seu rejuvenescimento musical e poético, de feição que lhe permita a ele mesmo escolher os seus rumos, seguindo a natural caminhada protagonizada pela esfera da Vida e projectando-se como forma verdadeiramente Humanista que é. Por essas mesmas razões (embora usadas com outros propósitos e motivações) não me dei ao trabalho de ler mais do que as primeiras linhas duma obra datada de 1931 com o sugestivo título: Fado – Cancro da Vida e da Cultura Nacionais, do consagrado Fernando Lopes-Graça. Não prossegui pois considerei imperdoável que tal vulto da Música (e com responsabilidades acrescidas no domínio da divulgação e reabilitação da Música Popular Portuguesa) possa ter escrito e intitulado tal conjunto de mimos. Não nego ao Mestre – quem sou eu, afinal, para tal? – o direito de não gostar dum determinado género. O que, no entanto, questiono (atendendo à época em que tal escrito foi produzido, no fulgor dum Estado Novo recém-implantado, totalitário e TodoPoderoso), é que o Maestro tivesse gasto energias em eleger o Fado como alvo a abater ao invés de ter optado por o renovar por dentro, conferindo-lhe a autenticidade de que o Género necessitava, contribuindo para que o mesmo

Página 51

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

não servisse de arma de arremesso e instrumento de propaganda do regime nazi-fascista português. Como, afinal, acabou por sê-lo... Tratou-se, pois, no meu modesto entender, de um acto de terrorismo intelectual que de pouco serviu ao Povo português e em nada beliscou o conservadorismo de que adornava o Fado existente então. Pouco importa que Lopes-Graça tenha emendado a mão mais tarde no que concerne à Música Popular. Pouco importa porque, dentro das barreiras em que compartimentou o seu pensamento estético, a Música Popular não compreendia o Fado (estando os portugueses, segundo o Maestro, em artigo datado de 1955, “Habituados (...) a julgarem a canção portuguesa pelo paradigma do execrando

fado

ou

das

pífias

contrafacções

revisteiras

e

radiofónicas”68(LOPES-GRAÇA, p.101) Afinal, todos teremos esqueletos no armário ou então seremos como Michael Jackson: teremos um passado negro?

De volta a Lisboa Para rematar este já longo capítulo, cito mais uma vez Tinhorão: “Embora se possa dar como certo que em Portugal já se conhecesse a dança do fado desde final de Setecentos – considerada a dinâmica normal das relações culturais entre as baixas camadas da metrópole e da colónia -, ia ser o regresso do rei D. João VI e sua corte para Lisboa, em 1821, o responsável pelo impulso maior na sua difusão”

69

(TINHORÃO, 1994, p.

59).

68 69

LOPES-GRAÇA, Fernando, NOSSA COMPANHEIRA MÚSICA, ed. Caminho, LISBOA, 1992 TINHORÃO, José Ramos op.cit. 1994

Página 52

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

E prossegue Tinhorão, caracterizando o séquito (nota importante para a compreensão dos tais veículos de transmissão que abordo no penúltimo parágrafo do capítulo Génese dos Géneros) e a realidade do País com que D. João VI se vai encontrar: “Saído do rio de Janeiro a 26 de Abril de 1821 com a família e cerca de quatro mil nobres e funcionários numa nau de guerra, duas fragatas e nove grandes transportes, D. João VI chegava às nove horas da manhã de três de Julho a Lisboa para enfrentar um dos piores momentos da história político-económica de Portugal, após quase quinze anos de invasões francesas, tramas espanholas e domínio militar inglês. Período que deixaria como herança um desastre representado por cem mil mortos, devastação da produção agrícola, saques de bens (inclusive artísticos) e um tesouro exaurido (para alento do qual trazia o rei do Brasil, em todo o caso, 50 milhões de cruzados)” 70 (TINHORÃO, 1994, p.59)

Este relato é fundamental para que se perceba como o Fado se implanta na Metrópole, tendo em conta o perfil dos agentes responsáveis pela operação de implantação do mesmo. De facto, são as classes menos desfavorecidas quem acabará por arraigar o Género na Metrópole. Pois, se atendermos a que as dificuldades do País, governado por uma elite adepta do Constitucionalismo Liberal mas sob mira de fogo de uma nobreza

saudosa

do

poder

absoluto

e

em

meio

a

levantamentos

revolucionários, caracterizam bem o cenário económico e social de um Portugal metropolitano em escombros, rapidamente chegaremos à seguinte conclusão: “ (…) se as dificuldades de vida e o clima político não permitiam a troca de informações culturais entre as classes como acontecera meio século antes – quando os folhetos de cordel e o teatro popular dos entremezes mediavam as relações culturais, divulgando as «modas novas» resultantes de estilizações produzidas para consumo geral -, não 70

TINHORÃO, José Ramos op.cit. 1994

Página 53

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

há dúvida de que, no seu dia-a-dia as camadas mais baixas do povo haviam de continuar a divertir-se como podiam”

71

(TINHORÃO, 1994, p.60).

Desta forma, o cenário natural da dança do Fado da criadagem chegada do Brasil só podia ser – face ao retrato traçado – o dos meios da pobreza da cidade. E isso indicaria a sua presença nos bairros que tradicionalmente abrigavam a gente das camadas mais baixas, “humanidade a que agora se acrescentava – ao lado de seus trabalhadores humildes, desocupados eventuais, vadios e delinquentes – as modernas figuras dos operários, dos cocheiros e boleeiros dos serviços de transportes públicos e da crescente categoria das prostitutas e seus clientes, chulos e rufiões”

72

(TINHORÃO, 1994,

p.60).

Aqui o temos, finalmente delimitado pelo terreno social onde crescerá, fértil alfobre de poéticas atormentadas e imaginários errantes: Nos passos perdidos duma tasca em viela mal-frequentada, em meio de putas engenhosas, chulos oportunistas, filhos duma nobreza decadente, vates de boémia e menestréis desesperados. Minhas Senhoras e meus Senhores: Silêncio que se vai cantar o Fado...

Ilustração 18: Azulejos reproduzindo Fado, de Malhoa

71 72

TINHORÃO, José Ramos op.cit. 1994 Idem.

Página 54

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

POSSÍVEIS GÉNESES DO TANGO

Página 55

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

“Ela era a única que esperava os homens sem vestir o espartilho. Quer para erguer o peito descaído quer para manter as aparências, as outras enfaixavam-se com fervor entre cada cliente. O pintor apreciou a franqueza desa loura arruivada, apenas coberta por uma camisa transparente que lhe fluía sobre as 73 carnes esparramadas no divã ” (ORTIZ, p.11 ).

S

e nos pareceu intrincada a aborgadem ao Fado, asseguro que o que nos espera por parte do Tango não o será menos. Tentemos pois, perceber a árvore genealógica de algumas crianças:

Escolhamos duas como amostra. Apenas duas. Aleatoriamente. Há porém uma condição prévia: a origem social das duas deverá ser diferente. Uma deverá frequentar a Escola, pública ou colégio privado, não importa o grau. A outra criança deverá ser um menino de rua.

73

ORTIZ, Alicia Dujovne – MUJER EN TONOS DE TANGO, ed. ALFAGUARA, BUENOS AIRES, 1998

Página 56

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

A rua: meu lar, minha família Com efeito, deste menino de rua que cresce e evolui de forma pouco documentada, escondendo até alguns episódios do seu processo de crescimento,

pouco

conseguiremos

obter

directamente.

Possivelmente

lograremos mais êxito se nos rodearmos de testemunhos daqueles que o viram crescer. Esqueçamos o outro menino por agora. Recorreremos a ele se necessitarmos de comparar com o menino de rua. Não desprezemos, contudo, o facto de que ele por vezes - não raro -, rouba os berlindes ao menino de rua quando a vigilância social afrouxa e os dois meninos brincam num trajecto comum (não é verdade, menino Débussy?, não é menino Ravel?) Será difícil que o menino de rua nos descreva com exactidão a sua genealogia – um luxo, se considerarmos que se trata dum conhecimento, para ele, de menor importância do que garantir o plano que lhe proporcionará matar a fome desse mesmo dia –. Pois com estes meninos de rua que são o Tango e o Fado também se torna empreitada igualmente problemática. Para estes meninos a “família” é circunstancial. Trata-se de um valor desconhecido – se o considerarmos nos códigos socialmente vigentes de família -. Nesses códigos, normalmente, a família é associada ao conceito de lar, habitat não apenas físico (casa) como também do ponto de vista de célula nuclear duma sociedade (pais, irmãos, correlativos). Para um menino de rua o seu lar é ocasional, é (está contido na sua designação): a Rua, ela-mesma, a sua Família são os outros meninos de rua, todos os que com ele partilham esse mesmo Lar.

Página 57

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Para o Tango e o Fado, meninos de rua da Música e da Poesia, socialmente olhados de lado por Géneros instituídos e classistas - esses sim, com lares e famílias bem identificados e constituídos por Conservatórios, Academias e outros satélites de Poderes Vigentes – torna-se ciclópico descreverem-nos agentes que genealogicamente correspondam às suas inquietações: Saber-nos-ão contar onde vivem (a rua como Lar) e com quem vivem (os outros meninos como Família) mas não creio que se lembrem de todas as moradas por onde passaram (a memória pode ser ingrata e trazer recordações desagradáveis) nem de todos aqueles com quem conviveram. E quando estes meninos de rua – entretanto crescidos – já são avôs e bisavôs, continuam a ganhar a pulso, quotidianamente, o direito a viver na Grande Selva de Betão, cidadãos sem cidadania em meio dum injusto, déspota e exclusório sistema social? Não lançarão mão de mistérios que protejam e salvaguardem a sobrevivência do seu imaginário? Mais difícil se torna produzir trabalho sobre um Género associado a imaginários socialmente desaprováveis.

De mais mistérios Além disso, o próprio mistério – sem o qual não se alimentariam tais imaginários – de que se reveste também o Tango constitui precisamente um enorme entrave ao seu estudo. Como refere Ruben Umpiérrez: “Os olhares alheios não podem olhar bem na casa do tango, assim como um profano não pode olhar bem num templo sagrado”74 (UMPIÉRREZ, p.17). Na verdade, segundo o mesmo investigador uruguaio: 74

UMPIÉRREZ, Ruben Orestes Muyano – HAY UN TANGO TODAVÍA, Editorial Nordan-Comunidad, MONTEVIDEO, 1999

Página 58

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

“[…] há revisões verídicas e outras que são falsas revisões. Na generalidade as boas revisões são exaustivas mas têm uma atmosfera de festividade, de alegria no modo de rever conceitos, de registar com o ímpeto da fidelidade. Sendo isto válido para qualquer tema, é-o certamente também para o tango. De acordo com estas diferenças, há uma voz popular errónea e uma que é certa. A errónea parece mais realista e determinante e, além disso, é a que mais abunda. A voz certa parece rebuscada, demasiado analítica e, nalguma medida, inviável. A voz popular é o reflexo das revisões divulgadas, mas não é o reflexo da verdade ou da mentira: é apenas o reflexo da verdade ou da mentira que lhe

introduziram.

Quanto

à

falsa

revisão,

essa

conspira

internacionalmente, fazendo crer que o tango é um reflexo do passado que uns eruditos ou uns produtos internacionais demonstram como se fossem escrupulosos protectores do património universal do século XX. Isto não só não ajuda como também afasta. Seria como ver e ouvir um Rock and Roll, já só divulgado nalgum filme

ou

em

selectos

restaurantes

da

Europa ou Japão. Seria como ver que o Blues, a Psicadélica ou o Jazz são um conjunto de filmes onde se tocam essas músicas, nos quais estão representadas as classes altas, o jet set, ou lugares elitistas, quando todas estas manifestações são património de identidades populares”

75

(UMPIÉRREZ, p.17).

Para demonstrar como o elevado grau de

dificuldade

na

investigação

sobre

Tango, convém aclarar que alguma dose de

75

chauvinismo

por

parte

de

alguns

UMPIÉRREZ, Ruben Orestes Muyano – op. cit.

Página 59

o Ilustração 19: Capa de partitura de La Cumparsita

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

autores e dos mass media argentinos tem colocado o Tango como património exclusivamente daquele país, sem referir que em Montevideu, na outra margem do Plata, o Género cresceu em paralelo com Buenos Aires. Assim, muitas designações de Tango trazem a classificação Tango Argentino como se tal fosse privativo da Argentina. Episodicamente, refira-se que, em muitos espectáculos de Tango Argentino, a peça que abre o mesmo é nem mais nem menos que a emblemátioca La Cumparsita, que é uma obra uruguaia, justamente considerada “el más famoso Tango del Mundo”76 (VIDART, p.41). Para escavarmos meticulosamente e a preceito desde o presente até à raiz do Tango, muito há que desenterrar pois o Género é fruto de inúmeras apropriações, transformações, evoluções e retrocessos, cambiantes de sentido, influências exteriores, aproveitamentos políticos e comerciais. Como diz o Tango: “Hay de todo en la casita…”77 (LENZI).

De “un sentimiento triste que se baila” Mas,

inversamente

ao

Fado,

abordarei

o

Tango

em flashback,

começando a aproximação ao mesmo a partir da Edad de Oro e daí saltaremos para a sua origem: Assim, Martiniano Arce, explica:

76

VIDART, Daniel, UN HECHO CULTURAL RIOPLATENSE, EDICCIONES ORIENTALES, MONTEVIDEO, 1989 77 LENZI, Carlos C. (letra) y DONATO, Eduardo (música) – A MEDIA LUZ, (por CARLOS GARDEL), ed. ODEON, BUENOS AIRES, 1926

Página 60

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

“O Tango é um estilo musical e uma dança rioplatense (uruguaia e argentina), próprio das cidades de Buenos Aires, Montevideu e Rosário, de natureza nitidamente urbana e renome internacional. Musicalmente tem forma A-B repetida, (tema e estribilho)

e

compasso

de

quatro

Ilustração 20 - Orquestra Típica

colcheias (apesar de lhe chamarem «el dos por cuatro»). Classicamente interpreta-se mediante orquestra típica (denomina-se orquestra típica ao conjunto musical dedicado ao tango: Habitualmente

é

composta

por

piano,

bandoneons,

violinos

e

contrabaixo, incluindo às vezes guitarra, flauta, viola, violoncelo e bateria) ou sexteto (na década de 1920 conformou-se a orquestra típica do tango, inventada originalmente por Julio de Caro e consolidada principalmente em forma de sexteto com a instrumentação seguinte: piano, dois bandoneons, dois violinos e contrabaixo). 78 (ARCE, p.3)

Note-se como Arce separa claramente as águas na definição: “é um estilo musical e uma dança”. Prosseguindo, caracteriza a parte que concerne à dança: “A coreografia, desenhada a partir do abraço da pareja

79

, é

sumamente sensual e complexa. As letras estão compostas tendo por base um argot local chamado lunfardo e costumam expressar as tristezas, especialmente «nas coisas do amor», que sentem os homens e as mulheres do povo, circunstância que os aparenta em certo modo com o blues 80 (ARCE, p.3).

78

ARCE, Martiniano, TANGO, ed. DELSUR, BUENOS AIRES, 1976 Observo que mantive a expressão pareja em castelhano pois não considero equivalência à sua tradução como casal ou par. Concedo que poderia traduzir-se por par (de dança) embora possa existir confusão quando nos referimos a cada um dos pares que compõem o par de dança. Assim, no que concerne ao Tango, para efeitos deste trabalho, manterei pareja no original sempre que pretender referir-me ao grupo composto pelo homem e pela mulher (enquanto pares de dança). (N.A) 80 ARCE, Martiniano, op.cit. 79

Página 61

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Enrique Santos Discépolo, um dos maiores poetas do tango diria em várias entrevistas que “Tango es un pensamiento triste que se baila”. A familiariedade com o Blues detectada por Martiniano Arce poderia ser facilmente estabelecida com o Fado também. Como igualmente se poderia detectar no Choro e na Morna. Será que uns géneros influenciaram os outros? Ou será que os cenários onde todas se desenvolveram tiveram como pano de fundo o cais? ou será que foi o prostíbulo? Ou – mais simples ainda – será que na sua génese esteve o bisavô africano escravo?... Viajemos, então, no tempo pois trata-se dum excelente exercício:

Os “salteadores de uma origem perdida” Vamos, então, ao étimo de Tango. Aqui não temos uma resposta pacífica pois foram levantadas por um mesmo grupo de investigação 25 sinónimos de Tango, procedentes de várias civilizações de todo o Mundo81 (TEAM PROTANGO PERÚ). Como vemos, entre os muitos mistérios que encerra o Tango, o primeiro é, definitivamente, a sua própria denominação. “O nome Tango encontra-se em culturas africanas, hispânicas e coloniais. Segundo algumas teorias, tango derivaria de tang que, numa das línguas faladas no continente africano significaria apalpar, tocar e aproximarse. Entre os Bantús, além do mais, há dois idiomas que se denominam Tanga e Tangui. E, entre as línguas sudano-guineenses figura o Tangalé.

81

TEAM PROTANGO PERÚ, www.teamprotangoperu.com JUNHO DE 2007

Página 62

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Tango, em castelhano é considerada uma palavra derivada do latim tangere que significa tocar” 82(GÓMES, P.312). A investigadora progride, referindo-se à Argentina: “Na colónia, por sua vez, tango era a denominação que os negros 83

davam à pele

dos seus instrumentos de percussão. Pronunciavam-nos

como uma palavra aguda: tangó. E tango eram também os bailes que organizavam os africanos chegados pela força ao Rio de La Plata. Nessas Reuniões, geravam-se tais desordens que os montevideanos ricos – autoconsiderados respeitados chegaram a pedir ao Vice-Rei Francisco Javier Elío que proibisse «os tangos dos negros». A acepção hondurenha que oferece o dicionário, referindo-se a uma espécie de tambor que fabricam os indígenas, parece aproximar-se do sentido africano da palavra. É difícil saber se se trata duma casualidade ou de uma transculturação. Apenas como curiosidade, porque no princípio não têm vinculação com a origem do tango rioplatense, cabe mencionar que uma região do Japão se chama Tango, assim como uma festa infantil desse mesmo país e que, antigamente, no Brasil, tango era sinónimo de Samba”

84

(GÓMES, P.313).

No entanto, existem várias etimologias erróneas, detectadas pelo linguista Andrés Carretero85: “O Diccionario de Lengua Española de la Real Academia de España, na sua edição de 1899, definia o tango como «uma festa e dança de negros ou de gente do povo, na América» e, também, como segunda acepção, «a música dessa dança», dando ao termo tango uma origem latina («tangir»). É interessante notar que tal é uma falsa origem latina pois o correcto seria «tangere» donde provém «tañir» e daí «ego tango»: «yo taño»86. A edição de 1914 trazia a etimologia «tangir» e «tangere», com o significado: «tañir87» 82

GÓMES, Miriam Victoria, LA PRESENCIA NEGROAFRICANA EN ARGENTINA: PASADO Y PERMANENCIA, Ed. BIBLIOTECA DEL CONGRESO DE ARGENTINA, BUENOS AIRES, 1990 83 Parche no original (N.A) 84 GÓMES, Miriam Victoria, op.cit. 85 CARRETERO, Andrés – BREVE HISTORIA DEL TANGO, ed. Materos, ROSARIO, 1978 86 Equivalendo, em português a: eu toco. (N.A.) 87 Mantive o original em castelhano: = tocar (N.A.)

Página 63

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

ou tocar (um instrumento). As edições seguintes eliminaram o erro. A edição de 1925 definia o Tango como as de antes (ainda que sem a etimologia latina errónea) e agregava: «Dança da alta sociedade importada da América no princípio deste século». Também se agregaram mais acepções: «música desta dança» e «tambor das Honduras». O Creole88 que se fala nos morenales89 da costa caribenha das Honduras (de população maioritariamente negra), conserva muitas palavras africanas originais. A edição de 2001 (a vigésima segunda)

definiu

o

tango

como

internacionalmente, de pareja

90

«um

baile

rioplatense,

difundido

entrelaçada, forma musical A-B

91

e

compasso de dois por quatro” 92 (CARRETERO). Considera-se também tango como “o local onde se divertiam os escravos ou os locais onde habitualmente pernoitavam os negros ou, também, sala de ordenha (das vacas)” 93(ROSSI, pp.137 e 138). A partir desta designação (tambo 94 ), é possível que a palavra tenha evoluído para tango por aliteração palatal do b com o g, ocorrentes no mesmo fenómeno fonético, verificado em alguns regionalismos do Português tal como: vomitar para gomitar. A argumentação mais consistente parece, no entanto ser a que identifica o termo Tango como procedente do idioma ibíbio (Nigéria e Congo) pelo vocábulo tamgú: =tambor e =bailar (ao som do tambor).95(ROSSI, p.138) Rossi adianta que “não se sabe de ciência certa se a palavra espanhola tambor deriva deste termo ibíbio ou do árabe hispânico tabal. Em Buenos Aires acreditava-se – incorrectamente – que os negros chamavam ao seu instrumento «tangor» por terem dificuldades em pronunciar a palavra

88

Creole no original castelhano (N.A.) Morenales no original castelhano (N.A.) 90 Chamo a atenção para a nota sobre a tradução de pareja (N.A.) 91 Forma musical binaria, no original castelhano. (N.A) 92 CARRETERO, Andrés – op. cit. 93 ROSSI, Vicente – COSAS DE NEGROS, ed. Hachette, BUENOS AIRES, 1958 94 Tambo em Castelhano (Rioplatense) significa casa de ordenha (N.A.) 95 ROSSI, Vicente – op.cit 89

Página 64

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

«tambor». No Século XIX, na ilha El Hierro (Ilhas Canárias) e noutros lugares da América, a palavra tango significava «reunião de negros para dançar ao som de tambores» ”96(ROSSI, p.140). O historiador Ricardo Rodríguez Molas investigou os idiomas dos escravos trazidos para a Argentina: “A maioria procedia de etnias do Congo, do Golfo da Guiné e do Sul do Sudão. Para eles, tangó significava «espaço fechado», «círculo» e qualquer espaço privado em que, para entrar, fosse necessário pedir licença. Os traficantes de escravos espanhóis chamavam «tangó» aos lugares onde encerravam os escravos, tanto na África como na América. O local onde os vendiam também recebia esse nome“97 (MOLAS, p. 267)

Ainda segundo Molas, “Antes de 1900 este Género era frequentemente conhecido por Tango Canyengue,

palavra

de

origem

africana.

Os

negros

porteños

98

pronunciavam a palavra como caniengue e, desde 1900, os brancos escreveram e pronunciavam o termo como Canyengue (com o “y 100

porteño“)

99



(MOLAS, p. 274)

O caminhar canyengue (leia-se: “Canjengue” e estabeleçam-se daí comparações fonéticas e de sentido com o caminhar jingão próprio do universo social do Fado) é uma maneira de caminhar do compadrito 101 , caracterizado por cadenciados movimentos de ancas. É também chamado de caminar arrabalero.

96

ROSSI, Vicente – op.cit MOLAS, Ricardo Rodríguez – ALGUNOS ASPECTOS DEL NEGRO EN LA SOCIEDAD RIOPLATENSE DEL SIGLO XVIII, in Anuario de la Universidad Nacional del Litoral, nº 3, ROSARIO, 1958 98Porteño: de Buenos Aires (N.A.) 99 No Rio de La Plata, o Y entre ou antes de vogais, bem como o duplo LL pronunciam-se Ch ou J (N.A.) 100 MOLAS, Ricardo Rodríguez – op.cit. 101 Compadrito: Rufia, transposto para o imaginário do Fado (N.A.) 97

Página 65

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Da Milonga e novas confusões linguísticas Mas há também quem aposte no nascimento do Tango a partir da Milonga: Considera-se Milonga

“é

tradicional

um em

também estilo

de

várias

que

a

música

partes

da

América Latina e na Espanha. Deriva da Habanera, assim como o tango. É um

estilo

muito

popular

na

Argentina. É um canto e dança da Andaluzia que, nos fins do Século XIX se

popularizou

Montevideu

e

nos

subúrbios

Buenos

Aires”

de 102

Ilustração 21: Almacén (espécie de mercearia) em Montevideu. 1902

(QUIROGA, p. 25).

Quintín Quintana é etnomusicólogo. Investiga as raízes culturais da música rioplatense e a origem, evolução e desenvolvimento dos instrumentos da Região. Num extraordinário hangar do bairro de Boedo (Buenos Aires) tem coordenado, há mais de dez anos, o Proyecto Dos Orillas (Projecto Duas Margens), articulado com o Centro Investigación y Difusión de Instrumentos y Música de América (CIDIMA). Quintana esclarece: “A milonga representa as nossas heranças africanas e crioulas, portanto representa as nossas origens mulatas. Na realidade, é quase impossível referirmo-nos no singular a qualquer género de cultura popular. Deveríamos dizer sempre as milongas porque se trata de um género com imensas sub-espécies. (…) A mim parece-me que, para lá do

102

QUIROGA, Hernán P. – DE BAILES Y OTRAS YERBAS, Edicciones Orientales, MONTEVIDEO, 2003

Página 66

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

étimo de que provenha a palavra Milonga, a importância está em que as suas origens remotas representam um lugar de reunião, de comunhão: desde as originárias danças de roda que fazem os povos bantos em que no centro baila um par, homem e mulher, representando assim a fecundidade da terra e pedindo ou agradecendo uma boa colheita, até às posteriores rondas de baile entre compadritos, quase como uma capoeira porteña, onde também se resistia à ordem estabelecida. E também, já nos 103

cafetínes

onde aos poucos deixou de ser milonga no aspecto musical

para passar a ser o que hoje já se conhece como tango. Mas reparemos que não deixou de se chamar milonga ao local da reunião: vai-se a uma milonga para se bailar 104

tango”

(QUINTANA, p. 49).

Assim,

tal

como

vimos

nas

pesquisas

dedicadas ao Fado, deveremos considerar a Milonga ou as milongas como elementos isolados de um mesmo universo homónimo, sendo que, nos dias de hoje, milongas significa os bailes onde se dançam tangos, milongas, habaneras, etc. mas também significa milonga enquanto Género musical autónomo. Com efeito, tal como cauciona ainda Quiroga:

Ilustração 22: Clase (=Aula) de Tango. Buenos Aires, 1914

“Também se chama milonga aos bailes onde se dança Tango e, por extensão, aos locais onde esse baile se realiza. São locais e bailes muito populares na Argentina e no Uruguai. Tradicionalmente, numa milonga baila-se tango, milonga e vals cruzado, ou vals argentino (uma variante da valsa Vienense). Outros ritmos podem encontrar-se numa milonga 105

tais como: chacareras, salsa, rock, etc.” ”

103

(QUIROGA, pp. 25 e 26)

Cafetín: Tasquinha, transposto para o imaginário do fado: também era um local onde ocasionalmente se ia bailar. (N.A.) 104 QUINTANA, Quintín - LAS RAÍCES DE LA MILONGA, revista LA ONDA, año XII, MONTEVIDEO, Junio 2006 105 QUIROGA, Hernán P. – op.cit.

Página 67

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Voltando ainda a Cordeiro da Matta: Milonga, em língua quimbunda, um dos grandes grupos idiomáticos de Angola e Congo “significa «palavra» e é também usada para se referirem aos cânticos de responsório em que dois ou mais escravos negros cantam alternadamente as estrofes duma mesma canção”106 (MATTA). (Terão estes “cânticos de responsório” paralelismo com as canções ao desafio ou desgarradas já citadas neste trabalho sobre o Fado e o Lundum?) O Tango está, portanto, indiscutivelmente ligado a uma origem Africana, negra e escrava. Mas, se bem que o Tango certifica longínquos antecedentes africanos, latino-americanos e europeus, as suas origens culturais fundiram-se de tal modo que se torna quase impossível reconhecê-las (tal como no Género que hoje designamos como Fado).

Os imigrantes Em essência, o Tango é uma expressão artística popular de fusão – por resultar de fenómenos de aculturação (tal como o Fado), de contornos nitidamente urbanos (tal como o Fado) e raiz suburbana, arrabalera107 (tal como o Fado), que corresponde ao processo histórico concreto da imigração massiva, maioritariamente europeia, que reconstituiu completamente as sociedades rioplatenses, especialmente as de Buenos Aires e Montevideu, a partir das últimas décadas do Século XIX. “Só a Argentina, que em 1850 contava com um milhão e cem mil habitantes, recebeu seis milhões e seiscentos mil imigrantes entre 1857 e 1840. O Uruguai sofreu um processo semelhante. Tratou-se duma 106

MATTA, J.D. Cordeiro da – op.cit. Por arrabal entendam-se os bairros pobres da periferia de Buenos Aires e Montevideo. Tal como para pareja e outras referências rioplatenses, serão conservadas no original (castelhano ou lunfardo). Se quiséssemos traduzirlhe o sentido para o imaginário do Fado, poderíamos utilizar a expressão bairrista. (N-A.)

107

Página 68

CARLOS CLARA GOMES

experiência

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

humana

contemporânea.

aluvial,

Diferentemente

quase de

sem

outras

paralelo zonas

do

na

história

mundo,

os

imigrantes que chegaram ao Rio de La Plata a partir da segunda metade do século XIX, superavam em quantidade as populações nativas e foram parte activa dum intenso processo de mestiçagem multicultural e multiétnico grandemente induzido pelos Estados Argentino e Uruguaio através de uma formidável promoção da escola pública laica, obrigatória e gratuita”

108

(ROMERO, p.368).

Como podemos perceber através deste relato do historiador José Luis Romero, a sociedade rioplatense é fortemente alicerçada num fluxo mais de seis vezes superior à sua população em 1850. Mas quem são, afinal, estas pessoas? Quem são, genuinamente, os actores desta transformação duma matéria prima cujo princípio activo procede – já se viu – de África? 1. “Italianos Estes

constituem

seguramente

o

grupo

mais

numeroso. Pelo seu número, pelas suas indústrias, pelos seus comércios, pelo

seu

pelos

capital

seus

financeiro

quadros

e

técnicos,

Ilustração 23: Imigrantes italianos em Montevideu

ocupavam um lugar proeminente na vida económica e social das cidades de Buenos Aires e Montevideu. Este grupo também foi muito importante em Santa Fé e Rosário. Até 1894 vieram fundamentalmente do Norte de Itália e, depois, vieram levas de migrantes na sua maioria do Sul daquele país (com destaque para a Sardenha e a Sicília).

108

ROMERO, José Luis – HISTORIA DEL RIO DE LA PLATA, ed. Malinche, BUENOS AIRES, 1993

Página 69

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

2. Espanhóis Seguindo

em

importância

os italianos,

este

grupo chega

mais

tardiamente mas é muito mais numeroso. Os espanhóis registam entradas superiores aos italianos: vêm fundamentalmente da Galiza, Astúrias, País Basco, Catalunha e Castela. 3. Ingleses, Franceses, Portugueses, Alemães, Suíços e Galeses Numericamente, é o grupo mais débil mas desempenhou um importante papel económico. Na sua maioria (exceptuando Franceses e Portugueses), eram detentores de qualificações profissionais, de certo grau de instrução e, no seu todo eram geralmente portadores de meios financeiros que investiram nas Agricultura e na Indústria. 4. Russos, Sírios, Libaneses e Arménios Distingue-se dos outros grupos pela sua entrada tardia, pelas diferenças das suas línguas (fundamentalmente línguas árabes e o russo) e das suas religiões (judaica, muçulmana e cristã ortodoxa)”

109

(UMPIÉRREZ,

pp.104 e 105).

Como já se referiu, estes imigrantes contribuíram para o progresso dos dois países, chegando a elevar a Argentina à classificação – atendendo à sua diversidade cosmopolita – de “O País Europeu da América Latina”. Com a imigração dá-se for finalizada a chamada Era Criolla para se entrar numa Argentina e num Uruguai modernos. “É necessário destacar que a Argentina e o Uruguai (durante quase um século desde a sua independência considerado «o país mais letrado da América», graças ao já referido incentivo à escola pública, laica e obrigatória instituída pelo seu fundador e prócer, José Gervásio Artigas) não nasceram com a imigração. Os recém-chegados descobriram dois países que possuíam uma cultura, organizações políticas, antigas estruturas sociais e, acima de tudo, um grupo dirigente empreendedor que apelava à imigração para necessidades conjunturais. A justaposição

109

UMPIÉRREZ, Ruben Orestes Muyano – op. cit.

Página 70

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

de rasgos culturais criollos e estrangeiros constituiu a principal característica desta «sociedade em transição»”

110

(UMPIÉRREZ, p.105).

Anos depois, a mistura do criollo e do gringo (respectivamente, os “autóctones” e os estrangeiros europeus) produzirá a classe média e seu consequente afã de elevação do bem-estar económico e posição social.

Do como nasce uma subcultura Com estas sociedades, assentes em princípios doutrinários “baseados no conceito de colónia, e atendendo ao perfil social de muitos dos seus componentes, maioritariamente procedentes de um tecido social bastante baixo, muitos deles a contas com justiças injustas nos países de onde procediam (justiças essas que exilavam também livres-pensadores, maçons e anarquistas e outros agitadores adeptos de ideais signatários do iluminismo e das teorias libertárias) também não será difícil entender, juntamente com a fixação das camadas proletários nos arrabales e o convívio com os mais pobres (que já o eram antes da sua chegada e que prosseguiriam sendo), a geração espontânea de uma subcultura (ou de uma contracultura) baseada no espólio cultural mestiço constituído por tais imigrantes”111 (ÓSCAR). Assim, depreendo que o fulgor arrivista de muitos dos elementos da comunidade imigrante também fundamentou – ou potenciou – a exclusão social de outros. Em meio de todo este caldear de gentes de diferentes e díspares procedências, tanto culturais como sociais, torna-se indiscutível que aquele Tango (aquele conceito unitário que hoje chamamos Tango) se gesta em ambas as margens do Rio de La Plata entre os anos de 1850 e 1890, estagiando como Género.

110 111

UMPIÉRREZ, Ruben Orestes Muyano – op. cit. ÓSCAR, Ruben, LAS IDEAS LIBERTARIAS Y LA CUESTION SOCIAL EN EL TANGO - In revista ANARQUIA Y LIBERTAD, SANTIAGO DE CHILE, Enero, 1999

Página 71

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

A princípio do Século XX, com a sua aceitação popular a nível mundial, a dança evolui até à sua forma actual. Conforme ilustra o historiador argentino Jorge Gútman: “Este baile, que se originou nos portos de Buenos Aires e de Montevideu e rapidamente se estendeu aos bairros do Sul da capital argentina, como San Telmo, Monserrat e Pompeya, teve o seu crescimento paralelo com o da sociedade argentina e uruguaia, formada por imigrantes europeus que para ele contribuíram com muitos dos seus elementos culturais e expressivos”112 (GÚTMAN, p.25).

O próprio escritor Jorge Luis Borges, aficionado do Tango, escreve, citando Portugal e indo mais longe na sua análise: “O Fado, manifestação popular irmã do Tango terá sido, mais do que tal laço familiar de irmão, seu pai pois a influência que os portugueses exerceram em Buenos Aires, trazendo suas guitarras para as guitarreadas comuns com outros povos, determinou a fixação da forma tal como hoje a conhecemos” 113 (BORGES, p.4)

Não explicando com esteios robustos como tal influência se exerce, Borges continua estabelecendo uma comparação cujo teor poético a cauciona mas que carece de argumentação mais substantiva em termos científicos no que concerne a outros aspectos:

Ilustração 24 - Carlos Gardel

“(...) por isso, Fado e Tango são duas mesmas caras da mesma moeda, uma moeda de abandonos e desencontros. De um lado, no Fado, o homem abandona a mulher. No Tango, é a Mulher quem abandona o

112

GÚTMAN, Jorge – LOS COMIENZOS DEL TANGO, in revista NORTE-SUR, año 21, nº 241, BUENOS AIRES, Septiempre, 2001 113BORGES, Jorge Luis – prefácio do livro CARLOS GARDEL, de ZUBILLAGA, Carlos, ed. Feris, BUENOS AIRES, 1976

Página 72

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

homem. Por isso, Fado se chama Amália Rodrigues e Tango tem o nome de Carlos Gardel”

114

(BORGES, pp. 4 e 5).

Do Candombe e do “branqueamento” das culturas negras Mas, voltando a Gútman: “Por volta de 1860, entre criollos e gauchos rioplatenses,

marinheiros,

índios,

negros

e

mulatos, bailava-se sem critério músicas como valsas de origem austríaca e alpina; pasodobles andaluzes;

zarzuelas,

danças

de

origem

escocesas, habaneras vindas de cuba, polcas, mazurcas, quadrilhas galesas e milongas. Tinham como base o fandango e o candombe dos 115

negros”

(GÚTMAN, p.25).

É interessante repararmos como Gútman introduz aqui a questão do fandango: Na verdade

Ilustração 25: O etnomusicólogo Quintin Quintana com um tambor de Candombe

já passámos várias vezes – tanto no Fado como no Tango – por referências ao Género sem que nos tenhamos detido nelas, seja nas explicações detalhadas da dança do Fado ou do Lundum, seja porque apareceu taxativamente o nome Fandango (o próprio Tinhorão dedica um capítulo inteiro intitulado A Fofa da Bahia e o Fandango de Sevilha em sua obra já várias vezes citada no âmbito deste trabalho)

116

(TINHORÃO,

1994, pp. 21 a 25).

Focalizemo-nos, contudo, no Candombe (considerado hoje O ritmo popular do Uruguai) e remetamo-nos novamente para Quintín Quintana:

114BORGES,

Jorge Luis – op.cit GÚTMAN, Jorge – op.cit. 116 TINHORÃO, José Ramos, op.cit, 1994 115

Página 73

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

“Claro que é um lugar-comum dizer-se que as nossas origens musicais são negras. As origens de tudo o que respeita ao Homem são localizadas em África. (…) Não nos esqueçamos, porém, que uma imensa legião de nefastos historiadores e demais intelectuais a soldo, vieram dizer assim e assado e legalizar o «branqueamento» do Uruguai. Hoje já se está fazendo alguma justiça. Daniel Schávelzon na Arqueologia, Pablo Ciro na Etnomusicologia, Alejandro Frigerio na Antropologia, Tomás Platero, O. Natale, María Florencia Guzmán e Ponchi Flores na Historiografia, entre muitos outros, chegam a algumas conclusões

interessantes (e tão

simples, na verdade!...). Na diferença entre Milonga e Candombe a questão está – apenas – em como os géneros forma percebidos «pelo negro» e «pelo branco». Trata-se da mesma célula rítmico-melódica, apenas adiantada ou atrasada uma semicolcheia. Em suma: podemos inferir que a a Milonga e o Candombe originalmente são o mesmo ritmo. A milonga pode também ser filha directa do Candombe pois não possui contributos indígenas (como se encontram na baguala, na chaya, no wayno ou no yaraví)”117 (QUINTANA, p. 49).

Vemos, então, que (tal como no Fado), o Tango também progride na linha do tempo através de miscigenações e manuseamentos culturais diversos.

Dos escândalos Recorrendo novamente a Gútman, referindo-se aos anos cerca de 1860:

Ilustração 26: El ocho (=o oito), passo de Tango

“Nessa época não existia o Tango como dança propriamente dita. O som do bandoneon (de origem alemã) incorporou-se como algo imprescindível a pianos, guitarras criollas contrabaixos e violinos. Nos bairros pobres surgiu o tango arrabalero, aquele que

117

QUINTANA, Quintín – op.cit.

Página 74

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

bailavam no arrabal, homens e mulheres118 fortemente abraçados e que escandalizou a sociedade da época. Condenado pela Igreja e proibido pela polícia por incitar ao escândalo, foi associado com a luxúria e a diversão «non sancta» juntamente com a bebida e o baile. A sua proibição obrigou a bailá-lo em sítios ocultos até entrar no século XIX, por isso o seu ambiente é de nostálgica paixão. Amparados na obscuridade da noite, guapos e arrabaleros deslizavam os seus sentimentos no profundo de um verso,

numa

melodia,

ou

bailavam

abraçados

à

sua

ardente

companheira. Nesse então somente os estratos sociais humildes, os do subúrbio, cultivavam essa dança. O Tango surgiu em bordéis, rancherías e boliches

119

. Os prostíbulos fomentavam-no com a finalidade de

aproximar os corpos masculinos dos femininos. Era considerado «vulgar» pelos estratos mais conservadores, socialmente marginalizado por buscar 120

a sensualidade e o prazer.”

(GÚTMAN, pp. 28 e 29).

Ilustração 27: Pareja

118

Segundo MONETTE, Pierre, no seu GUIA DO TANGO, ed. Assírio & Alvim, LISBOA, 1998 (p.89), inicialmente, atendendo à escassez de mulheres no Rio de La Plata, o Tango era dançado entre homens. (N.A.) 119 Boliches: Cafés mal-afamados (MONETTE, Pierre, op.cit., p.252) 120 GÚTMAN, Jorge – op.cit.

Página 75

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Tal como com o Fado, aqui o encontramos, finalmente, balizado pelos pudores e hipocrisias sociais onde agigantará as suas legiões de adeptos: Também ele nos passos perdidos dum boliche em viela mal-frequentada, também ele acolitado por minas 121 engenhosas, Cafishios 122 oportunistas, bacanes123 decadentes, poetas e músicos desesperados. Minhas Senhoras e meus Senhores: Tirai a nostalgia da algibeira pois vai-se dançar o Tango.

121

Mina: «Pêga»; Mulher gentil e muitas vezes «galdéria» (MONETTE, Pierre, op.cit., p.256) Cafishio: «Chulo»; Proxeneta (MONETTE, Pierre, op.cit., p.252) 123 Bacán: «Ricaço»; que tem os meios para sustentar alguém (MONETTE, Pierre, op.cit., p.251) 122

Página 76

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

DOIS GÉNEROS IMORAIS E FATALISTAS

Página 77

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

“Verás que todo es mentira Verás que nada es amor!... Que al mundo nada le importa 124 Yira! Yira! ” (DISCÉPOLO). “Santa Maria das Dores Mãe de Deus, se for pecado Tocar e cantar o fado Rogai por nós pecadores125” (VIANINHA).

C

olocados

ambos

os

Géneros

nos

seus

respectivos habitats,

povoados – já se viu – não escolhidos mas, ainda assim, redutos possíveis de práticas artísticas socialmente reprováveis, poderemos seguir as viagens dos dois irmãos, bastardeados e estigmatizados

por sociedades moralmente hipócritas e, mais tarde, instrumentalizadas por regimes políticos ditatoriais. Com efeito os pedestais a que foram guindados Fado e Tango no início do Século XX - os anos, afinal, da sua fixação como Género, sobretudo pelo aparecimento dos meios de reprodução mecânica protagonizados pelos

124

125

DISCÉPOLO, Enrique Santos – Yira, Yira, gravado por CARLOS GARDEL ed. Odeon, BUENOS AIRES, 1 de Junho de 1930 VIANINHA, Linhares Barbosa e – AVÉ MARIA FADISTA, gravado por AMÁLIA RODRIGUES, ed. Valentim de Carvalho, LISBOA, 1961

Página 78

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

cilindros de gravação – não eram nesses entãos aquilo a que propriamente poderemos chamar de altares de devoção como o são hoje.

Os redutos de nostalgias Naqueles tempos, não acorriam como hoje hordas de turistas ansiosos às Mecas do Fado ou do Tango. Os turistas que havia eram gente a quem o dinheiro sobejava e os altares que Fado e Tango disponibilizavam para gáudio e entretém dos passantes não eram coisa lá muito sacralizada. Eram, isso sim, contra-altares possíveis para os cultores autóctones dessas mesmas religiões. Não que existisse propriamente nos meandros dos Géneros uma massa crítica consciente das transformações que urgia desenvolver social e politicamente (os republicanos em Portugal andavam entretidos no anseio de uma revolução que finalizasse com o regime monárquico que estava já no seu estertor; por seu turno, no Rio de La Plata – apesar das Repúblicas já existentes – os ventos de mudança ditavam-se a partir das teorizações prescritas por Martí, Bolívar, Artigas, Garibaldi existisse prática,

ou

Zapata,

ainda uma

sem

que

uma

experiência

Grande

Revolução

Operária que a todos proporcionasse a tão desejada terra sem amos). O Ilustração 28: Imigrantes num conventillo (tradutível para casa de bairro da lata) de Buenos Aires

desmedido

capitalismo e

canibal

industrial estavam

instalados de armas e bagagens por

Página 79

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

todo o continente americano com todo o séquito de injustiças que o caracterizavam e que facilmente podemos consultar em qualquer livro de História. Por

Portugal,

mercê

da

fome,

da

economia

estilhaçada

e

do

subdesenvolvimento endógenos e intrínsecos que estavam arraigados como uma chaga crónica num país que fora já sede dum imenso império colonial, quando Lisboa era verdadeiramente considerada a capital do Mundo, historicamente vocacionado para o centralismo de poder, (des)governado agora por uma nobreza saudosa dos privilégios e das glórias de outrora, estoicamente sonhando com o mais que improvado regresso quimérico de D. Sebastião numa qualquer manhã de nevoeiro, com uma burguesia sacrificada por pesados impostos e um povo faminto, explorado e vilipendiado, a baixa estima da população traduz-se numa condição miserabilista e deprimente. Nestes cenários de amargura latente, de convívio lado-a-lado com a injustiça, de miséria profunda, sem forças organizadas e consequentes de resistência política que pudessem liderar as causas dos mais pobres, sem uma vanguarda revolucionária ainda verdadeiramente aceite e querida pelos mais pobres dos mais pobres, em meio de uma sociedade tolhida pelo conceito egoísta do salve-se quem puder, há que afogar as mágoas numa possível diversão que corresponda às exigências do lazer citadino. Assim, Fado e Tango constituem-se como os tais contra-altares, assentes

em

contraculturas

sem

chamas

contestatárias

que

fossem

animadas por uma qualquer doutrina política mas apenas inspirados em poéticas de sofrimento, em desamores, escoradas em experiências próprias e alheias. O fatalismo que lhes está associado e colado como uma lapa resulta de um sentimento de impotência perante a crueldade humana. Nem a massa humana do Fado nem a do Tango esperam amanhãs gritantes.

Página 80

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Apenas o amanhã mesmo: O dia seguinte ao que se está vivendo.

No topo da árvore genealógica está um negro: um Escravo Pois não esqueçamos que ambos os Géneros são filhos de escravos. Escravos alforriados, é certo. Mas, socialmente, sempre escravos. E, sedundo o antropólogo brasileiro Frederico Pernambucano de Mello, “ninguém gosta de ser escravo-liberto num sítio onde já foi escravo. Por isso se verificou o êxodo de escravos alforriados do Litoral Nordeste do Brasil para o interior, para o sertão e a caatinga, apesar de muito mais pobre, inóspito e infértil do que as zonas litorâneas”126 (PERNAMBUCANO DE MELLO) E, apesar de o primeiro negro que pisou o Continente Americano poder ter sido, segundo alguns investigadores, um dos contramestres da Pinta da esquadra de Colombo (não o pisando na condição de escravo mas na de conquistador), seguramente

que

pelas

nossas

lusas

bandas houve muitos negros a visitar-nos na condição de príncipes. Antes mesmo de

haver

Portugal,

o

Alentejo

foi

governado por Al-Mu Thamid, poeta árabe Ilustração 29: Litogravura representando tocadores em Montevideu. 1863

seguramente

de

tez

escura

e

cabelo

encarapinhado.

Não! A questão racista ainda hoje é tida na ordem do dia e, por vezes é manipulada como sendo uma falsa questão, argumentando que os foros de

126PERNAMBUCANO

DE MELLO, Frederico – entrevista pessoal ao autor, RECIFE 1994

Página 81

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

cidadania estão consagradas na maior parte das Constituições a toda a Humanidade. Assim como quem argumenta que a emancipação da Mulher é um facto consumado e uma conquista social adquirida, usando Margaret Tatcher como exemplo. Tal como só uma mulher que tivesse a idiossincrasia de “ter as virtudes de um homem” poderia ser primeiro-ministro de um país tão conservador como o Reino Unido, igualmente só uma população maioritariamente branca aceitaria com respeito um negro que fosse rico ou que estivesse conectado de alguma forma às instâncias próximas do poder. Acontece que, tanto no Fado como no Tango, os negros que os fabricaram não eram daqueles negros que vemos cantando hoje nos videoclips, destilando sucesso. Não: os nossos negros do Tango e do Fado eram negros de estirpe escrava. Eram o que, indubitavelmente, de mais baixo havia na hierarquia dos valores sociais. Lumpén do lúmpen, portanto. Providencialmente (e muito convenientemente, diga-se de passagem) a Igreja Católica acabou por reconhecer aos negros (e demais gentios) a existência de Alma. Aconteceu

pouco

depois

de

ter

admitido esse direito à Mulher. Estamos a falar de finais de meados do Século XIX, sensivelmente quando o Tango e o Fado explodem nas ruas de Buenos Aires, Montevideu e Lisboa. Ilustração 30: Fado

Mas todos sabemos que o direito legal não cauciona alterações aos códigos morais vigentes.

Página 82

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Olhemos o caso do divórcio, por exemplo: Está legalizado em Portugal desde 1974. Quantos casos de divórcios socialmente reprováveis – ou politicamente incorrectos, como soe dizer-se agora – não conhecemos? Ouro tema polémico: Em Portugal foi recentemente aprovada a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez, vulgo Lei do Aborto. Quantas mulheres que o pratiquem não são olhadas de viés pela sociedade em meio duma conversa de circunstância num qualquer mini-mercado de bairro? No entanto a moral social não condenava (porque fingia não conhecer os casos) as mulheres com posses suficientes para se deslocarem a Espanha para

praticar

os

abortos

em

meio

de

caras

clínicas

assépticas

e

desempoeiradas. Com os Géneros em apreço trata-se do mesmo: Não esqueçamos a raiz dos dois Géneros, associada a uma diáspora negra, contrariada e violentada. Explicar-se-á

tanta

subserviência,

tanta

revolta

anulada

por

recalcamentos de séculos de opressão, tanto pessimismo tido como natural pelas recomendações tantas vezes dirigidas aos Escravos (e também inerentes à sua própria cultura e condição, tantas vezes usada como mecanismo de defesa e autoprotecção): não protestes! Não te revoltes! Não contestes os Senhores do engenho! Uma mera carta de alforria não limpa estes conceitos

inculcados

pertinazmente

durante

séculos nas mentes dos ex-escravos. O ex-escravo prosseguirá o seu código de conduta

com

a

subserviência

que

o

caracterizava enquanto era escravo, não importa Ilustração 31: Dança de origem africana no Pará

um pedaço de papel que lhe garanta algo tão vago e de contornos tão indefinidos como o

falacioso, aleatório e distante conceito de Liberdade.

Página 83

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

De facto, um negro alforriado mais não era do que um negro munido de um papel chamado Carta de Alforria. Papel esse que, na maior parte dos casos os seus portadores não sabiam o que dizia exactamente. Esse mesmo papel poderia garantir-lhe que não trabalharia forçado para outrem mas não lhe outorgava a dignidade perdida nem a sua cultura original

beliscada

e

ofendida,

transformada

agora

numa

cultura

transumante. Os movimentos políticos e sociais liderados por Martin Luther King e Malcolm “X” pela emancipação negra vinham ainda longe. E os movimentos protagonizados pelo escravo rebelde Zumbi dos Palmares (que governou um grande território no Brasil por vários anos) e por António Conselheiro, na Guerra de Canudos (onde se incorporaram vários escravos libertos). Seria, pois, natural, que negros, mulatos e crioulos relativamente recém-libertos se associassem socialmente com aqueles que não reprovavam o seu convívio (por serem eles-mesmo, também objecto de discriminação social).

O cais e o prostíbulo como habitats lógicos Essa

amostra

de

gente

encontra-se

precisamente nos prostíbulos, tanto do lado da oferta como do lado da procura. Florescendo – maioritariamente – em prostíbulos

pobres,

os

dois

Géneros

coabitaram com o que de mais pífio e reles era socialmente tolerado. E porquê em prostíbulos?

Página 84

Ilustração 32: dançarina de Tango

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Evidentemente sempre houve prostíbulos. Estão relacionados com a lei da oferta e da procura do sexo. E sempre houve os prostíbulos finos e os outros. Nos tempos a que nos referimos, na Europa e na América – início do Século XX – a aquisição de sexo pago, embora moralmente indefensável, era ainda uma prática comum e considerada natural. E é-o ainda, se tivermos em conta os upgrades que as sociedades conservadoras (perdoem-me a redundância pois é uma tendência da generalidade das sociedades serem conservadoras – mesmo as inspiradas em dinâmicas revolucionárias) autodenominadas modernas promovem por forma a aparentar modificar algo que deixe ficar tudo na mesma. Por exemplo, entre a classe média, era frequente o próprio pai levar o filho a perder o cabaço (expressão usada tanto aqui como no Brasil – e, curiosamente, derivando de étimo quimbundo127) num prostíbulo, até para garantir que o seu herdeiro não fosse homossexual. A razão por que estes Géneros nascem em prostíbulos e crescem dentro deles está intimamente ligada às seguintes circunstâncias: a) como já se viu, eram os últimos redutos onde poderiam existir fora dos olhares reprovadores das morais estabelecidas; b) porque normalmente estes prostíbulos estavam associados a zonas portuárias de leva e traz128, dotadas de maior poder aquisitivo; c) porque estas mesmas zonas portuárias ofereciam oportunidades de trabalho aos mesteres mais sacrificados: carrejões, estivadores, etc. d) porque a conotação erótica das poéticas das formas ancestrais do Fado e do Tango prescreviam o recato e recolhimento por forma a permitir o contacto físico entre homens e mulheres; e) porque aí poderiam entrar os “senhores respeitáveis”: tanto os bacanes como os filhos boémios duma nobreza decadente; 127 128

MATTA, J.D. Cordeiro da, op.cit E também dos fenómenos de Torna-Viagem, NA.

Página 85

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

f) porque compositores, poetas e músicos encontravam aí meios regulares de subsistência; g) porque muitos poetas e escritores, saídos dum Romantismo desmoronado buscavam musas inspiradoras numa vertigem de amor barato e acessível; g) porque, finalmente, atendendo a que crescem e se estabelecem como Géneros de Cais e a todo o miserabilismo pulsante nas letras dos Fados e dos Tangos, acarretavam no seu seio a miragem do advento de alguém que chegasse do outro lado do mar e que pudesse eventualmente transformar a vida de quem os frequentava.

Ilustração 33: Trio de Fado

Da “coexistência pacífica” de dois tipos de gente Para aditar mais ingredientes de baixo carácter a todo este caldo, já de si socialmente pouco recomendável, Ruben Óscar – no caso do Tango – informa-nos que “estes «antros de devassidão», tais como eram arrolados na época, também eram guarida frequente de activistas anarquistas e de outros livres-pensadores em rota de fuga das polícias. E até pela própria natureza obscura e pouco delineada desses mesmos pontos de diversão nocturna, assumiam-se idealmente como fáceis templos de culto, locais modelares de reunião de sociedades secretas por acometerem

Página 86

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

a moral social instituída mas por não serem suficientemente perigosos para arrostar o Poder (atendendo à sua natureza pouco doutrinária). ”129 (ÓSCAR). Pelo que Óscar nos patenteia, facilmente se perceberá que se verificava uma coexistência pacífica de dois tipos de gente nesses locais (situação facilmente transponível para as Tasquinhas do Fado também), gentes essas animadas de diferentes registos: a) Por um lado os adeptos de reviralhos, aos quais os arrendais de culto do Tango e do Fado serviam muito convenientemente como pontos de reunião clandestina ou esconsos de fuga; b) Pelo outro lado, embora sendo o mais significativo, o lúmpen do proletariado mesclado com os representantes dos escombros duma aristocracia já caduca (no caso de Portugal) ou de novos-ricos melancólicos (no caso do Rio de La Plata) que pouco mais pretenderiam do que comprar amor a pronto pagamento. Note-se que esta coexistência pacífica reunia contraditoriamente duas posturas face ao Mundo: No primeiro caso, tratava-se de gente que pretendia transformá-lo pela força de levantamentos populares, inspirada em doutrinas e manuais filosóficos que perspectivavam câmbios sociais e uma mais justa repartição social do trabalho e dos bens produzidos; No segundo caso, tratava-se de gente que pretendia apenas defender o seu cantinho sossegado, inserido (ainda que de forma marginal) no status quo vigente por considerar que nada poderia transformar o Mundo e a maldade humana que lhe era intrínseca e congénita. É bastante provável, contudo, que o convívio entre um grupo e outro possa ter despoletado nas poéticas dos dois Géneros a germinação de reportórios baseados em códigos éticos inscritos num fenómeno que poderíamos justamente classificar como uma subcultura (textos de cariz

129

ÓSCAR, Ruben, op.cit.

Página 87

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

revolucionário) dentro de uma contracultura (textos de carácter conformista, associados às culturas marginalizadas do Tango e do Fado).

O Erotismo Por outro lado, há a questão erótica quer do Fado quer do Tango, idiossincrasia de ambos os Géneros pois derivam de tipos coreográficomusicais relacionados com o culto da fecundidade. Assim, o desejo sexual, sublimado em sensualidade, a tristeza e a melancolia, derivadas de um estado permanente de insatisfação, são os elementos centrais quer do Tango quer do Fado. Nas suas origens, esses sentimentos afloraram da dura situação de milhões de trabalhadores imigrantes, maioritariamente do sexo masculino, solitários em terras estranhas, acudindo massivamente a prostíbulos, onde o sexo pago acentuava a nostalgia da comunhão e do amor, a saudade da mulher e a evidência da solidão. O Fado e o Tango emergiram, assim,

dum

ressentimento

erótico

massivo e popular que conduziu a uma dura reflexão introspectiva, também massiva e popular, sobre o amor, o sexo,

o

ciúme,

a

frustração

e,

finalmente, o sentido da vida e a finitude

da

mesma

analisada

Ilustração 34: dançando Tango

pelo

Homem comum. No decurso do Século XIX e com a importância que adquiriu a sexualidade e a introspecção, assim como uma visão existencial e menos optimista da vida, o Tango e o Fado desenvolveram os seus componentes básicos, argamassas daquilo em que se iriam transformar: expressões

Página 88

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

artísticas notavelmente relacionadas com a problemática do Homem seu contemporâneo. Igualmente,

no

que

concerne

à

acção

castradora

da

censura

eclesiástica, o tecido social que compunha tais antros não se deixa amedontrar pela mesma. A Mulher, dando-se conta de que é senhora do seu próprio destino, não pede meças a homens, não age por decisões de homens, não necessita do beneplácito de homens para os seus passos e decisões. A Mulher (mais no Tango do que no Fado) é uma mulher independente de vínculos matrimoniais e, quando estes existem, mais facilmente os poderá quebrar. Igualmente, esta mulher sente-se desobrigada de amarras sociais, faz o trabalho duro e pesado tradicional (e falsamente) acometido aos homens e comporta-se como eles na sua gestualidade e vocabulário de bas fond. Frequentemente troca paixões por novas paixões. Sente que nenhuma moral hipócrita a censura por isso. Apenas a Moral exterior, a dominante, o faz. Mas essa não constituiu dor de cabeça para esta mulher: elemento que é de um submundo desprezado, a mulher à qual nos referimos finge que fora desse seu mundo nada mais há. Inúmeras letras de Tangos e Fados transportam, aliás, essas mesmas palavras nos seus versos.

Página 89

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

De temas comuns de gente comum para gente comum Ou seja, Fado e Tango introduzem novas personagens na narrativa e na dramaturgia da Canção – ou promovem-nas, atribuindo-lhes protagonismos, actores que até então eram Ilustração 35: Vendedor de rua. Lisboa. 1908

circunscritos,

quando

muito,

ao

papel

secundário de Coro (na acepção teatral e clássica do termo). Com

efeito,

as

gentes

comuns

guindam-se às ribaltas construídas pelos textos das canções, indubitável raíz do Neo-Realismo que mais tarde explodirá. Delas emergem poéticas que, apesar de fatalistas e conformistas, estão à mão dos seus receptores por se identificarem

Ilustração 36: Lechero em Buenos Aires. 1891

com elas. Na verdade, ficam para trás as senis e rugosas personagens dos romances de cavalaria, esboroam-se os mitos gregos e latinos bem como os épicos do Egipto. Shakespeare não teve suficiente implantação no gosto popular e a tragédia de Inês de Castro já pouco comove.

Página 90

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Trata-se de temas que já pouco ou nada dizem aos auditórios existentes por neles não se encontrarem domiciliados pontos comuns com as suas vidas amarguradas. E é, afinal, de amargura que se trata: Poetas que sabem o que é a amargura escrevem textos que reflectem amargura, para serem cantados por gente para quem a amargura não é estranha, que, por sua vez, cantará essa mesma amargura a pessoas – como elas – doutoradas numa amargura com pós-graduações em saudades, miséria, injustiça social e a pouca fé na natureza humana. Uma Humanidade descalça, famélica e marginal salta, então, para o protagonismo dos textos das canções, emergindo dos âmagos de um submundo para a tona do mesmo, ameaçando – pelo relevo que o mundo socialmente instituído lhe enxerga – a moral vigente, fazendo esse mesmo mundo sentir-se desafiado nos seus decoros e bases civilizacionais. Vulgarizam-se os novos próceres, os novos heróis: A nova Canção Popular Urbana certifica que o processo para se ser herói não passa por terçar armas em cruzadas longínquas em nome duma qualquer Pátria ou Trono, não passa por descobrir caminhos marítimos para as Índias, não passa por ter sangue azul, não passa por agarrar mastros de bandeiras com os dentes por os dois braços terem sido decepados na sanha da batalha nem passa por salvar manuscritos de poemas em meio dum naufrágio. Não. Estas novas formas trazem um novo tipo de herói no seu ventre: São a mulher traída, o homem traído, os desamores frequentes, os rufias, o vigarista, a prostituta, o chulo. E são heróis que falam na primeira pessoa. E falam para gente como eles... Mais: Não cantam vitórias mas um imenso caudal de tristezas e desgraças cada uma mais desgraçada do que a outra como se de um campeonato se

Página 91

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

tratasse em que o vencedor fosse aquele ou aquela que de mais infortúnios se gabasse... Estes anti-heróis ganham foros de protagonismo em meio duma derradeira esperança num longínquo horizonte de radical transformação do seus destinos individuais, transformação da qual não fazem questão de ser seus artífices, esperando que tal câmbio se opere por milagre de lotaria ou por superior desígnio de Deus. Tanto nas casas de passe lisboetas como nos quilombos rioplatenses, o florescimento destes reportórios baseados em tal compromisso de conteúdo, é fenómeno próprio do dealbar do Século XX, alicerce onde se verificarão mais tarde a edificação de correntes do realismo e do neo-realismo (já referido atrás), tendo o Homem (leia-se: o Explorado) como público-alvo, autor, intérprete, criador e tema. Aqui, o Explorado sem consciência de classe nem farol doutrinário ou matriz ideológica que o cole a outros seus iguais (a única matriz que verdadeiramente protagoniza tal colagem é a desgraça de que todos se sentem titulares), cria anti-hinos, pejados de anti-refrões. Nesta poética – entendendo-se por poética o conjunto de valores éticos residuais existentes nas letras das canções – florescerão as ideias da cançãopanfleto, eivada de circunstancialismos, obras que mais tarde marcarão situações políticas e sociais indexadas a determinadas épocas e tempos bem definidos. Contudo, será dos sentimentos deste lúmpen proletário que tal reportório se irá alimentar.

Um Neo-Renascimento de estirpe popular Já se viu que se trata do vestíbulo de um novo Renascimento. Trata-se duma Humanidade a gritar à socapa e em surdina a si mesma a urgência duma renovação, a necessidade de sacudir-se dos torpores

Página 92

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

instalados e criados por ela mesma, prefigurando tensões sociais para uma nova ordem mundial, a que os movimentos iluministas e republicanos não são alheios. Trata-se indiscutivelmente da voz dos pobres, oprimidos e humilhados a falar para os pobres, oprimidos e humilhados das suas pobrezas, das suas opressões e das suas humilhações. Não se confundam com canções de protesto porque serão tudo menos isso (embora exista quantidade substancial de Fados e Tangos com habilitação para esse epíteto). Tampouco são canções de intervenção, designação apenas nascida nos exílios parisienses e outros recantos europeus de cantautores de várias procedências durante as décadas de 1960 e 1970. Tango e Fado não apontam curas para os males sociais tal como o fazem mais tarde os apóstolos (e intelectuais resistentes) do neo-realismo e da canção panfletária. Tango e Fado nem sequer fazem diagnóstico do sofrimento: Tango e Fado são a sintomatologia, são O sofrimento. São os sinais visíveis dum corpo purulento do qual nem sequer são considerados um órgão mas sim o pús. Trata-se, contudo, de retratos eivados duma injustiça social e egoísta, que representam um microcosmos humilde e sincero apesar do fatalismo que lhes é inerente e peculiar. E encerro este capítulo recorrendo ao órgão oficial do Vaticano, L’Observatore Romano referindo-se à prática do Tango em 1914 (pouco antes da Primeira Guerra Mundial, a propósito da decisão do Imperador da Alemanha, Guilherme II, proibindo os oficiais prussianos de dançar o Tango se estivessem a usar uniforme): “O Kaiser fez tudo o que pôde para impedir os gentis-homens de se identificarem com a baixa sensualidade dos negros e dos mestiços (…). E alguns saem por aí dizendo que o Tango é como outro baile qualquer quando não se baila licenciosamente! A dança do Tango é, no mínimo,

Página 93

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

uma daquelas em que não se pode conservar de nenhuma maneira a mais longínqua possibilidade de decência. Porque, se em todos os outros bailes está em perigo próximo a moral dos bailarinos, no Tango a decência encontra-se em pleno naugrágio, e por esse motivo o Imperador Guilherme

proibiu-o

aos

oficiais

enquanto

estes

enverguem

uniforme”130(LANDA).

Ilustração 37: Cartaz de filme com Sarita Montiel

130

LANDA, Enrique Cámara de – RECEPCION DEL TANGO RIOPLATENSE EN ITALIA (citando L’Observatore Romano) in Revista Transcultural de Musica, 2, ISSN:1697-0101, 1996

Página 94

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

CONCLUSÃO

Página 95

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

“Qualquer produto musical português que tenha uma menina de preto a cantar desgraças vai ser visto internacionalmente como identitário de Portugal, porque é essa a memória que as pessoas têm da Amália… Neste momento de grande sucesso internacional do fado há pessoasque integram esse êxito internacional como um amadurecimento pessoal enquanto artistas dentro do contexto do fado; e essas vão sobreviver. E há uns modismos gerados pelo circuito da world music que terão o seu tempo contado quando aparecer um tocador de marimbas das Seychelles que, na altura, preencha o gosto de exotismo do mercado. E essa é a lógica do mercado. 131 ” (VIEIRA NERY).

F

ica aqui ponderado que estes dois Géneros coincidem com dois imaginários

éticos

e

estéticos

e

que

são

constituídos

por

idiossincrasias próprias de cultos, revestidos de algum ecumenismo poético-musical.

Como preconizei na Introdução deste trabalho, estes mesmos Géneros estão longe de ser retratados aqui com exaustão. Fica muita coisa por dizer – atendendo a que, só para o caso de qualquer um dos Géneros, isoladamente, não se conseguiria, ainda que de forma superficial, abordar todas as temáticas imprescindíveis ao mesmo no exíguo campo constituído pelo suporte dum trabalho desta índole–.

131

VIEIRA NERY, Rui – NA LINHA DO FADO, Ed. Público, LISBOA, 2004

Página 96

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Ficaram por explorar os fados republicanos, o fado operário132, ou as Milongas e Tangos da fase pré-litorânea ou ainda tantas outras cambiantes resultantes de parentescos e similitudes próprios de Géneros como estes: mestiços, migrantes, forçados, promíscuos até. Fixei-me na questão das mestiçagens e tenho a consciência que, mesmo para isso, muito falta para que este trabalho possa ser revestido do rigor necessário, só alcandorado através da reunião de elementos que numérica e qualitativamente se impõe angariar, acumular e processar. Por exemplo, não se falou de correntes estéticas dentro dos Géneros nem se abordaram nominalmente os artífices de Fado e do Tango da nossa era, obreiros que fixaram a grafia dos Géneros e aqueles que, depois, a transformaram. Ficou por falar, portanto, em Troilo, Bettencourt, Hilário, Zeca, Gardel, Manzi, Amália, Marceneiro, Cadícamo, Armandinho, Piazzolla, Paredes, Adriano, Zitarrosa e muitos outros. Como dos actuais (incluindo as novas revelações): Cuarteto Cédron, Carlos do Carmo, Mariza, María Marta Serralima, Camané, Gotán Project... Nem se falou de fenómenos importantes como o lunfardo e o calão bairrista, argots linguísticos dos submundos respectivamente do Tango e do Fado e importantíssimos para aquilatar dos seus traços sociais e suas procedências antropológicas. Não se expuseram com a veemência que seria necessária para a certificação

de

credibilidade

de

asserções

aqui

inscritas

citações,

documentos, até facsimiles de obras e panfletos, acervo que impunha ser levantado, coscuvilhado, devassado. O tempo era pouco e o espaço disponível também não ajudava.

132

Vastamente explorado na obra de LIMA, Paulo – O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO SÉCULOS XIX E XX – o contexto do profanista Manuel José Santinho, Ed. Tradisom, VILA VERDE, 2004

Página 97

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

Não pretendo, contudo, defender-me com argumentaçõs escudadas no culto da mediocridade. Mas também não posso esperar percorrer um caminho extenso e fecundo sem dar o primeiro passo. Lancei mão, no entanto, de todo um escrupuloso processo para edificação do presente trabalho tendo como bússola uma única ferramenta: toda a minha honestidade.

Página 98

CARLOS CLARA GOMES

FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

FONTES CONSULTADAS

Página 99

CARLOS CLARA GOMES



FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

ACCORSI, José Ramos Fabiano entrevista a JOSÉ RAMOS TINHORÃO, Revista ÉPOCA, Secção Cultura http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,,EPT761353-1661,00.html - 26-12-2007



ACOSTA, Leonardo MÚSICA Y DESCOLONIZACIÓN Editorial Arte y Literatura, LA HABANA, 1982



ALMEIDA, Manuel António de MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS RIO DE JANEIRO, 1817/21?



ANDRADE, Mário de PEQUENA HISTÓRIA DA MÚSICA, Livraria Martins Editora, S. PAULO, 1942



ARCADY, Valério AS ESQUINAS PERIGOSAS DA HISTÓRIA ed. Xamã, S. PAULO, 2004



ARCE, Martiniano TANGO ed. DELSUR, BUENOS AIRES, 1976



BARBOSA, Domingos Caldas A SAUDADE QUE NO PEITO, in Lunduns cordel s/ed. LISBOA, 1797



BARRETO, Mascarenhas FADO, CANÇÃO PORTUGUESA, ed. Oficina Gráfica Boa Nova, LISBOA, 1959



BERLINGERI, Osvaldo EL CLARÍN, entrevista El Clarín, BUENOS AIRES, 24 Fevereiro 2007



BERNARDI, Bernardo INTRODUÇÃO AOS ESTUDOS ETNOANTROPOLÓGICOS ed. Edições 70, LISBOA, 2002



BERTÍ, Eduardo EL TANGO Y EL ROCK: ENCUENTROS Y DESENCUENTROS Rockologia, BUENOS AIRES, 2007



BORGES, Jorge Luis prefácio do livro CARLOS GARDEL, de ZUBILLAGA, Carlos ed. Feris, BUENOS AIRES, 1976



CARRETERO, Andrés BREVE HISTORIA DEL TANGO ed. Materos, ROSARIO, 1978



CORREIA, Mário MÚSICA POPULAR PORTUGUESA – Um Ponto de Partida ed. Centelha / Mundo da Canção, PORTO, 1984



DISCÉPOLO, Enrique Santos Yira, Yira, gravado por CARLOS GARDEL ed. Odeon, BUENOS AIRES, 1 de Junho de 1930

Página 100

CARLOS CLARA GOMES



FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

FREITAS, Frederico de O FADO, CANÇÃO DA CIDADE DE LISBOA – SUAS ORIGENS E EVOLUÇÃO Separata da Revista Língua e Cultura, LISBOA, 1973



FREYCINET, Louis Claude Desaulces VOYAGE AUTOUR DU MONDE… PENDANT LES ANÉES 1817, 1818 ET 1820 Chez Pillet Ainé, Imprimeur-Librairie, PARIS, 1825



GIRON, Luís Antônio TINHORÃO DESVENDA ORIGEM DA MÚSICA URBANA in GAZETA MERCANTIL, SÃO PAULO, 25 de Abril de 1997



GODINHO, Sérgio OS DEMÓNIOS DE ALCÁCER QUIBIR, in Pano Crú ed. Valentim de Carvalho, LISBOA, 1979



GÓMES, Miriam Victoria LA PRESENCIA NEGROAFRICANA EN ARGENTINA: PASADO Y PERMANANCIA Ed. BIBLIOTECA DEL CONGRESO DE ARGENTINA, BUENOS AIRES, 1990



GUERRA, Gregório de Matos CÓDICE MANUEL PEREYRA RABELO Edição de Cordel, BAHIA, 1695

QUE DE QUILOMBOS QUE TENHO in OBRAS COMPLETAS VOL. I. ed. Janaína, SALVADOR, 1699



GÚTMAN, Jorge LOS COMIENZOS DEL TANGO in revista NORTE-SUR, año 21, nº 241, BUENOS AIRES, Septiempre, 2001



LAMY, Alberto Sousa ACADEMIA DE COIMBRA, 1537 – 1990 ed. Rei dos Livros, LISBOA, 1990



LANDA, Enrique Cámara de RECEPCION DEL TANGO RIOPLATENSE EN ITALIA in Revista Transcultural de Musica, 2 ISSN:1697-0101, 1996



LENZI, Carlos C. (letra) y DONATO, Eduardo (música) A MEDIA LUZ, (por CARLOS GARDEL), ed. ODEON, BUENOS AIRES, 1926



LIMA, Paulo O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO SÉCULOS XIX E XX – o contexto do profanista Manuel José Santinho ed. Tradisom, VILA VERDE, 2004



LETRIA, José Jorge A CANÇÃO POLÍTICA EM PORTUGAL ed. A Opinião, LISBOA, 1978



LOPES-GRAÇA, Fernando A CANÇÃO POPULAR PORTUGUESA ed. Europa-América, LISBOA, 1973

A MÚSICA PORTUGUESA E SEUS PROBLEMAS – Ensaios (2º Volume) ed. Vértice, COIMBRA, 1959

NOSSA COMPANHEIRA MÚSICA ed. Caminho, LISBOA, 1992

Página 101

CARLOS CLARA GOMES



FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

LÚCIO, José http://www.jose-lucio.com/Pagina2Fado/Expressao%20Musical.htm 23-12-2007 http://www.jose-lucio.com/Pagina2Fado/Prefacio.htm 23-12-2007



MAESTRI, Mário O ESCRAVO GAÚCHO – Resistência e Trabalho ed. Universidade Federal do Rio Grande do Sul – PORTO ALEGRE, 1993



MARX, Karl O CAPITAL, Edições Avante!, LISBOA, 1974



MATTA, J.D. Cordeiro da ENSAIO DE DICIONÁRIO KIMBUNDU – PORTUGUÊS ed. A.M. Pereira, LISBOA, 1893



MOLAS, Ricardo Rodríguez ALGUNOS ASPECTOS DEL NEGRO EN LA SOCIEDAD RIOPLATENSE DEL SIGLO XVIII in Anuario de la Universidad Nacional del Litoral, nº 3, ROSARIO, 1958



MONETTE, Pierre O GUIA DO TANGO ed. Assírio & Alvim, LISBOA, 1998



ORTIZ, Alicia Dujovne MUJER EN TONOS DE TANGO, ed. ALFAGUARA, BUENOS AIRES, 1998



ÓSCAR, Ruben LAS IDEAS LIBERTARIAS Y LA CUESTION SOCIAL EN EL TANGO In revista ANARQUIA Y LIBERTAD, SANTIAGO DE CHILE, Enero, 1999



OSÓRIO, António A MITOLOGIA FADISTA Ed. Livros Horizonte, LISBOA, 1974



PERNAMBUCANO DE MELLO, Frederico entrevista ao Autor, RECIFE 1994



PINTO, Manuel de Sousa O LUNDUM, AVÔ DO FADO ed. Ilustração, LISBOA, 1931



QUINTANA, Quintín LAS RAÍCES DE LA MILONGA, revista LA ONDA, año XII, MONTEVIDEO, Junio 2006



QUIROGA, Hernán P. DE BAILES Y OTRAS YERBAS Edicciones Orientales, MONTEVIDEO, 2003



RIVERO, Edmundo UNA LUZ DE ALMACÉN – EL LUNFARDO Y YO ed. Losada, BUENOS AIRES, 1973



ROMERO, José Luis HISTORIA DEL RIO DE LA PLATA ed. Malinche, BUENOS AIRES, 1993

Página 102

CARLOS CLARA GOMES



FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

ROSSI, Vicente COSAS DE NEGROS ed. Hachette, BUENOS AIRES, 1958



SÁBATO, Ernesto TANGO: DISCUSIÓN Y CLAVE ed. Losada, BUENOS AIRES, 1963



SALAZAR, Jaime Rico CARLOS GARDEL – Su Vida y Sus Canciones Ed. Impresión Editorial Kimpres, Ldª, BOGOTÁ, 1991



SANTA-ANNA NERY, F.-J- de FOLK-LORE BRÉSILIEN, com prefácio do Príncipe Roland Bonaparte ed. Pérrin et Cte., Libraires-Éditeurs, PARIS, 1889



SANTOS, Marta FADO. ORIGENS E IDEOLOGIA ed Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, LISBOA, 2003



SARAIVA, António José ALGUMAS FEIÇÕES PERSISTENTES NA PERSONALIDADE CULTURAL PORTUGUESA in A Cultura em Portugal, Teoria e História. Livro I Ed. Livraria Bertrand, LISBOA, 1982



SIMÕES, Armando A GUITARRA – Bosquejo Histórico ed. Autor, ÉVORA, 1974



TEAM PROTANGO PERÚ www.teamprotangoperu.com Junho de 2007



TERRIO, Ricardo EL LUNFARDO EN EL ROCK Y LA CUMBIA VILLERA Revista Intertexto, nº5, BUENOS AIRES, DEZEMBRO 2004



TINHORÃO, José Ramos OS NEGROS EM PORTUGAL, Uma Presença Silenciosa, Editorial Caminho, LISBOA, 1988

HISTÓRIA SOCIAL DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA Editorial Caminho, LISBOA, 1990

FADO, DANÇA DO BRASIL, CANTAR DE LISBOA - O FIM DE UM MITO Editorial Caminho, LISBOA, 1994



(TINOP), Pinto de Carvalho A HISTÓRIA DO FADO ed. Dom Quixote, LISBOA, 2003



TORRES, Cláudio entrevista ao Autor inédita, MÉRTOLA, 2001



UMPIÉRREZ, Ruben Orestes Muyano HAY UN TANGO TODAVÍA Editorial Nordan-Comunidad, MONTEVIDEO, 1999

Página 103

CARLOS CLARA GOMES



FADO E TANGO – estórias de mestiçagens

VÁRIOS ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE CULTURA Editorial Verbo, LISBOA, 1995



VEGA, Carlos DANZAS Y CANCIONES ARGENTINAS. TEORÍAS Y INVESTIGACIONES. UN ENSAYO SOBRE EL TANGO 



Ed. Ricordi, BUENOS AIRES, 1936

VELOSO, Caetano SAMPA in LP MUITO AZULADA ed. POLYGRAM Brasil, S.PAULO, 1967



VIANINHA, Linhares Barbosa e AVÉ MARIA FADISTA, gravado por AMÁLIA RODRIGUES ed. Valentim de Carvalho, LISBOA, 1961



VIEIRA NERY, Rui NA LINHA DO FADO Ed. Público, LISBOA, 2004



VIDART, Daniel UN HECHO CULTURAL RIOPLATENSE EDICCIONES ORIENTALES, MONTEVIDEO, 1989



ZUCCHI, Oscar EL TANGO, EL BANDONEÓN Y SUS INTÉRPRETES Ed. Corregidor, BUENOS AIRES, 1998

Página 104

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.