Fala que te direi quem és!

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BLOG DA REVISTA ESPAÇO ACADÊMICO

Revista Espaço Acadêmico, ISSN 1519-6186 – ANO XIV, Mensal. Conselho Editorial: Ana Patrícia Pires Nalesso, Angelo Priori, Antonio Mendes da Silva Filho, Antonio Ozaí da Silva, Eva Paulino Bueno, Henrique Rattner (in memoriam), João dos Santos Filho, Luiz Alberto Vianna Moniz Bandeira, Raymundo de Lima, Renato Nunes Bittencourt, Ricardo Albuquerque, Rosângela

Fale que te direi quem és! 02/04/201002/04/2010 colaborador(a), linguistica

por FLORENCE CARBONI*

Josué Machado publicou instigante artigo sobre a influência “nefasta” que os tropeços gramaticais do novo presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, são suscetíveis de ter nas salas de aula do país – “Lula e a língua do povo” [EDUCAÇÃO, São Paulo, 3.2003] Os “escorregões” de Lula da Silva no exercício do português padrão – seus “menas”, “percas”, “acho de que”; a avidez com que “devora os ‘s’ do plural” etc. – constituem um pretexto para o autor debater a variedade lingüística com a qual a escola deveria operar. No Brasil, nos últimos tempos, a variação linguística na escola tem sido objeto de complexos debates lingüístico-pedagógicos, ensejando profunda insegurança sobretudo entre os professores e futuros professores que atuam em escolas populares. Há alguns anos, para a grande maioria dos professores de português, essa questão não existia, predominando a visão de que a principal função da escola era enquadrar os alunos à variedade culta da língua nacional. Com esse pressuposto inquestionável, professores bem intencionados confundiam comumente a educação com a caça às formas sintáticas, lexicais e fonéticas desviantes, transformando as aulas de português em ensino da gramática normativa. A grande função do professor era corrigir o “português errado”. A ciência ajuda Novas investigações sobre os fenômenos psico e sócio-lingüísticos, a psicogênese da escrita e os processos de aprendizagem, etc. determinaram mudanças profundas na visão do que deve ser a prática de professores de português nos diversos níveis de escolaridade. No citado artigo, Josué Machado alude negativamente ao que considera uma “sobrecarga de informações teóricas e nomenclaturas lingüísticescas” que resultariam “num formidável caos teórico, capaz de confundir o professor comum”. Para ele, dentre as teorias lingüísticas, apenas a desenvolvida por Noam Chomsky contribuiria realmente a uma maior eficiência escolar. Para essa última, todo “falante sabe instintivamente sua língua e só precisa ser ajudado a desenvolver-se nela por meio de prática e de exercícios agradáveis”. As grandes questões postas pelo artigo, a exclusividade dada pela escola à variedade culta do português e a discriminação das formas lingüísticas populares, não envolvem apenas os processos de aprendizagem da sintaxe estudados por Chomsky. Também englobam múltiplos outros componentes de ordem lingüística, sociológica, histórica, pedagógica, etc. Língua para uso De um ponto de vista psicolingüístico, Josué Machado tem razão. Foi essencial o reconhecimento que todo ser social possui competência lingüístico-comunicativa e gramática intuitiva, interior, mesmo sem jamais ter freqüentado a escola. Por si só, esse reconhecimento põe fim à idéia que a escola deve “ensinar” a língua materna. Mas, contrariamente à opinião do autor, a Lingüística pode e deve contribuir muito mais à prática dos professores de português. Sobretudo, deve ensejar a compreensão de que a língua constitui um instrumento de comunicação destinado a cobrir uma grande diversidade de necessidades humanas – comunicação racional, afetiva, argumentativa, informativa, etc. Essa compreensão permitirá que o professor de português não caia na tentação de transformar as aulas de expressão lingüística em lições de ortografia, de gramática normativa ou, o que é pior, de nomenclatura lingüística e enfatize, ao contrário, o desenvolvimento da competência textual dos alunos, para o maior número possível de necessidades comunicativas e discursivas. Os avanços alcançados nos estudos de Lingüística Social podem igualmente contribuir – e já contribuem em larga medida – para a resolução da questão da variação lingüística na sala de aula. Apesar da tendência da escola e da sociedade de apresentarem a língua como organismo monolítico e natural, ela é uma construção social e histórica, com vínculos essenciais com a formação social de seus locutores. O essencial e o acessório

O fato que as divisões e conflitos de toda ordem – socioeconômicos, socioculturais, de gerações, de gênero, etc. – materializamse e manifestam-se plenamente na língua, de forma explícita ou implícita, comprova o seu caráter social e histórico. É também preciso enfatizar que todos os elementos que compõem a estrutura das línguas, fazendo delas eficientes instrumentos de comunicação social, não têm a mesma importância. Alguns de seus componentes, como os fonemas, têm papel secundário nos processos de significação, essência da linguagem e das línguas naturais nas quais se manifesta. O mesmo pode ser dito das unidades de nível imediatamente superior, os morfemas, cuja função é indicar modificações de número, de gênero, de pessoa ou diferenciar palavras pertencentes a categorias gramaticais diversas – um verbo de um substantivo, por exemplo. É através de unidades maiores – os enunciados e as palavras que os compõem – que se dá a significação dos intercâmbios verbais. Portanto, compreende-se que as manifestações mais visíveis da variação lingüística apareçam precisamente nos fonemas e morfemas, elementos da língua que interferem menos nos processos de construção do sentido, não interferindo, assim, no processo de intercompreensão. Onde se fixa o estigma Não atrapalha a comunicação a confusão entre a lateral [l] e a vibrante [r] em palavras como garfo – galfo; solvente – sorvente; voltar – vortar; etc. Não dificulta o entendimento a substituição da fricativa [v] pela oclusiva [b] em vassoura – bassora. O mesmo pode ser dito da troca do morfema de primeira pessoa do plural no presente e passado dos verbos de primeira conjugação: amos – emo, etc. A repressão, discriminação e correção sistemáticas dessas variantes justificam-se apenas do ponto de vista – estético – da variante dominante, e não a partir de critérios lingüístico-comunicativos. Portanto, não são práticas necessárias nem, o que é mais grave, inocentes e sem conseqüências. Em teoria, qualquer criança, locutora de uma variedade de português não padrão, é perfeitamente capaz de aprender as variantes fonológicas e morfológicas padrão, como aprenderia uma língua estrangeira, próxima de sua língua-mãe. O problema está no enaltecimento das variantes cultas pela escola, atribuindo-lhes uma natureza que não possuem: comunicar melhor do que as variantes não padrão; possuir valores estéticos, identitários e patrióticos, etc. superiores – como se a troca do [lh] de “filho” por um [i] diminuísse a brasilidade do locutor. O consenso em relação à necessidade para a escola de eleger como língua de ensino apenas a variedade lingüística praticada sobretudo pelas camadas econômica, política e culturalmente dominantes, é também alimentado por julgamentos preconceituosos e depreciativos emitidos por indivíduos que gozam de prestígio social, muitas vezes desprovidos de más intenções. O papel da escola Ao estigmatizar variantes lingüísticas não prejudiciais à comunicação, valorizadas e utilizadas majoritariamente por comunidades populares, a escola enseja dificuldades de aprendizagem e contribui para a perda da auto-estima e a insegurança lingüística dos alunos. A repressão lingüística é igualmente caminho para a repressão social e cidadã. Ela contribui para a reprodução das desigualdades sociais. Um locutor que é levado a desprezar o falar seu e de sua comunidade, tende a desprezar-se e a sua comunidade. A essência da linguagem verbal não está nos elementos fônicos e mórficos, mas na possibilidade de construção do sentido, realizada sobretudo através da palavra, do enunciado, do texto, do discurso, elementos também embutidos das concepções de mundo dos locutores. Ao defender a legitimidade e superioridade da variedade lingüística padrão e rejeitar a prática de um “multilingüismo nacional”, muitos professores, em geral desconhecedores das conseqüências de suas práticas, contribuem para o estabelecimento da hegemonia das visões de mundo das elites, participando aos processos de unificação e uniformização ideológica, política e cultural da sociedade. A prática do xibolete Não se trata de deixar simplesmente os alunos das classes populares utilizarem suas variedades lingüísticas, sem introduzi-los ao uso da chamada norma culta. A função da escola é sobretudo ajudar a criança a compreender a realidade material, social e espiritual, com suas contradições e sua variedade, para que possa atingir sua emancipação individual e coletiva. Com sua diversidade e suas potencialidades, a língua faz parte da realidade social, construída pelos seres humanos para os seres humanos. O ensino da língua materna deve sobretudo ensejar que as crianças compreendam a estrutura, o funcionamento, as funções da língua – instrumento de comunicação –, com todas as suas variedades, sociais, regionais e situacionais. A escola deve ser espaço emancipatório. Portanto, não pode utilizar-se de práticas de dominação. Para não fortalecer interpretações apologéticas sobre a língua e perpetuar a discriminação social, deve mostrar que todo preconceito lingüístico apoia-se num preconceito social.

No Antigo Testamento, o livro dos Juízes relata um episódio da história de duas tribos de Israel, os guileaditas e os efraditas, que praticavam línguas muito próximas. Em ocasião de uma guerra, para impedir que seus então inimigos, os efraditas, atravessassem o rio Jordão, os guileaditas os obrigavam a pronunciarem a palavra “Xibolet” (‘espiga’). Incapazes de expressar-se com perfeição no padrão superior da língua de Guilead, os efraditas diziam ‘Sibolet’, pois tinham uma fricativa sibilante [s] no lugar da fricativa chiada [ch]. Devido a essa variante fonética, “morreram quarenta e dois mil dos de Efraim” [Bíblia sagrada. Lisboa: Sociedade Bíblica de Portugal, 2001: p. 262]. No Brasil de hoje, simples variantes fonéticas servem também para justificar a discriminação social, e portanto, a dominação política e econômica, pelas elites, da imensa maioria das classes trabalhadoras.

* Ítalo-belga, é Doutora em Liguística pela Université Catholique de Louvain, Bélgica, e professora do Curso de Letras da UPF, RS, Brasil. Publicado na REA, nº 23, abril de 2003, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/023/23ccarboni.htm

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