FALTA DE DEFINIÇÕES OU EXPLORAÇÃO DA AMBIGÜIDADE? DZI CROQUETTES E A BUSCA POR UMA TEORIA QUEER

July 7, 2017 | Autor: Edson Oliveira | Categoria: Gênero E Sexualidade, Processos Criativos, Teoria Queer
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FALTA DE DEFINIÇÕES OU EXPLORAÇÃO DA AMBIGÜIDADE? DZI CROQUETTES E A BUSCA POR UMA TEORIA QUEER

Edson Francisco de Oliveira ([email protected]) Estudante do curso de licenciatura em Arte-Educação da Unicentro, Guarapuava, 2013 Universidade Estadual do Centro-Oeste Resumo: A ideia de estar sempre ampliando as redes de saberes e transgredindo sempre suas próprias praticas é um ponto onde a proposta de arte e vida do grupo teatral Dzi Croquettes se familiariza com as teorias queer. O filmedocumentário brasileiro de 2009, sobre o grupo Dzi Croquettes, dirigido por Tatiana Issa & Raphael Alvarez e as descrições da peça na dissertação de mestrado de Rosemary Lobert são utilizados neste estudos para entender o processo criativo do grupo. A teoria queer e a maneira “underground” com que o grupo apresenta uma forma de transgressão e subversão das práticas de sexo e comportamento de um sistema vigente é o que se busco relacionar nesse estudo. Palavras-chave: processos criativos; representação; gênero; contra-cultura.

Introdução

A proposta cênica de grupo teatral brasileiro Dzi Croquettes , que surgiu no Brasil na década de 70 é um emaranhado de referências e questionamentos que se alinham com o pensamento de teóricos queer. Ao ter contato, no ano de 2010, com o documentário produzido pro Tatiana Issa e Raphael Alvarez a respeito da trajetória do grupo, percebeu-se uma grande contestação aos sistemas vigentes de sexualidade normativa, tendo como foco a perda de definições fixas acerca do gênero e do sexo. A performance do grupo me pareceu, ainda, uma maneira de pensar na forma como se produzem corpos sexuados sem se ter a necessidade de se reforçar um sistema binário, já que o grupo produzia um discurso na busca de um ser que não é nem homem, nem mulher e sim Gente. Ser gente pode ser entendido como sendo homem, sendo mulher ou sendo as duas coisas. O que se desestabiliza na proposta do grupo seriam as categorias do sexo. Praticas como a do Dzi Croquetes acabam por questionar essas categorias. Desestabilizar e desnaturalizar essas categorias é uma grande chave para se compreender a complexidade de como as formas de poder-saber se articulam e produzem discursos que tem por finalidade a regulação, a normatização e classificação dos corpos. Os Dzi Croquettes surgem na década de 70, no contexto da ditadura militar, quando as teorias sobre o queer ainda não haviam emergido. A política do regime militar eliminou muitos de registros de artistas dessa época. As imagens utilizadas no documentário foram obtidas de um canal de televisão alemã, da gravação de um espetáculo na década de 80. O grupo utiliza o termo “underground” onde falam que passam “a curtir uma vida” “no sentido mais profundo” do termo (LOBERT, 1979, p.5). Queer e underground são constituídos em contextos de sujeitos que contestam e Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.187

dialogam com as comportamentos.

convenções

estabelecidas

por

critérios

que

normatizam

O que parece familiar entre Dzi Croquettes e teoria queer seria, em principio, o tratamento de sexo como algo passível de modificações e construções, não sendo um dado a priori que regula a inteligibilidade do gênero. Voai borboletas, voai...

A ideia de arte como um processo e não como resultado é uma das características da arte contemporânea. Investigar, experimentar, questionar é preocupação do artista dessa época. No primeiro artigo do livro “Um corpo estranho – Ensaios sobre sexualidade e teoria queer” LOURO discorre em seu artigo intitulado “Viajantes pós-modernos” sobre a metáfora da viajem. Os “aventureiros” se deslocam no espaço, que quebram fronteiras e “Há também os que se demoram na fronteira, aqueles e aquelas que se abandonam no espaço “entre” dois os mais lugares” (LOURO, 2004, p.18). O grupo Dzi Croquettes surgiu na década de 70, no momento de ditadura militar. Um movimento explosivo e libertário surge em confronto a esse momento no Brasil. Um cenário violento, repressivo e arbitrário prevalece. Tudo que é produzido passa pelo crivo da censura e precisa encontrar meios de driblar a proibição para sua veiculação pública. O teatro era mais visto como um lugar subversivo, em termos políticos, do que como um espaço de produção de cultura. É nesse momento que surge os Dzi com uma proposta contestadora das categorias sociais vigentes fantasiada de purpurina, flores e paetês. (LOBERT, 1979, p.2)

A ironia, sarcasmo e o “desbunde” são formas de contestação política pela qual o grupo ridiculariza as instituições e enquadramentos sociais, encantando seu públicotiete. O nome do grupo já é uma grande brincadeira. Dzi vem de um trocadilho com o artigo The do inglês. Croquettes faz alusão ao grupo americano The Cockets, que os atores tinham vago conhecimento, e porque quando escolhiam o nome do grupo Wagner Ribeiro, Bayard Tonelli e Benetido Lacerda, integrantes do grupo, estavam comendo croquetes de carne. Seriam então “Os Croquetes”, “porque nós não passamos disso, de pedaços de carne” comenta Benedito Lacerda no documentário. A influência de artistas que já trabalhavam a androgenia ligava o grupo a várias discussões sobre sexualidade que aconteciam em outras partes do mundo. Decorre daí pontos de relação às formas de composição inovadoras de liberação sexual. A grande influência americana trazida por Lennie Dale também é fator para vanguarda do grupo e as proximidades das bases das teorias queer. O grupo articula uma proposta inovadora ao trazer para o teatro homens utilizando roupas femininas. Os corpos fortes, peludos e masculinos misturado com roupas ousadas de mulheres. A linguagem utilizada pelo grupo era de cabaré e faziam referência aos homens cariocas que durante o carnaval se vestiam de mulher. Porém o refinamento dado a construção dos figurinos era de tal inovação e que fugiam dos padrões brasileiros conhecidos em termos de caracterização. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.188

Os atores criaram vestuários transgredindo todos os padrões socialmente conhecidos até então sejam tradicionais ou de fantasia. Mas a ressonância simbólica apontava sobretudo para o confronto de corpos masculinos em roupas supostamente femininas (LOBERT, 1979, p 7)

Com maquiagem bastante carregada, cílios enormes e muita purpurina, dançavam com vigor e delicados, com uma “sexualidade dúbia” que “balançava com as estruturas sexuais das pessoas" como fala Amir Hadad no documentário, diretor teatral e amigo do grupo. Diziam que não eram homens e não eram mulheres e sim gente. A despreocupação em ser ou homem ou mulher, em não ser masculino ou feminino, se mostra presente, de forma que uma categoria não elimina a outra em favor da experiência de se (re) construir enquanto “gente”, de forma livre e não limitada. A noção de que o gênero decorre do sexo reforça um sistema binário de classificação de sexo em par, onde duas formas assimétricas, discriminadas e coerentes são produzidas. Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a conseqüência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino (BUTLER, 2000, p.24-25)

Estranho foi ver no teatro brasileiro, uma troupe de treze homens que usavam figurinos tidos como femininos, mais que não queriam parecer mulheres. Não se preocupavam e representar papéis sexuais destinados a mulheres estando travestidos. Uma maquiagem com barbas, saias sobre pernas peludas davam a idéia de que ser homem não eliminava ser mulher. Melhor dizendo, apresentam uma forma de construção corporal onde a dicotomia homem/mulher se mostra possivelmente contestável. [...] pela primeira vez, localmente, um grupo de homens suspeitamente “travestidos”, isto é, utilizando em seu vestuário peças convencionalmente destinadas ao gênero feminino irrompem num teatro (economicamente) reservada a classes burguesas com preocupações intelectuais em vez de alojar-se nos teatros de segunda categoria ou nas boates, lugar destinado aquele tipo de espetáculo. (LOBERT, 1979 p.11).

Os figurinos utilizados não seguiam uma lógica, misturavam vários acessórios que não eram comuns serem utilizados juntos. A confusão não se dava somente por corpos masculinos em roupas femininas e sim num grande alinhamento de detalhes que dificultava uma leitura fácil do que seriam aqueles corpos. Pois não seguiam um critério pré-estabelecido de caracterização. O efeito era alcançado na combinação entre uma cinta liga com meias de futebol, chapéus e fraques, bocas coloridas com charuto. Um pé calçado com um salto e outro com coturno. Boas, colares, perucas, turbantes, roupas maiores ou menores que o corpo dos atores. A divergência aumentava a possibilidade de ampliação do que o grupo entendia como gente. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.189

Os espetáculos carregados de informações simultâneas, de movimentações, marcações rápidas, diálogos não lineares e até confusos, virtuosismo, diálogos de um universo subjetivo dos atores, cenas caseiras e experimentais. Tudo isso criam um clima de deslocamento para o público que precisa estar atento para perceber as ações dos atores em cena. Os atores se espalham no espaço cênico e logo se compõe novos quadros com danças seguidas de poemas e canções. Em uma coreografia que também pode ser vista no documentário os atores executam uma dança de salão. Dois homens dançando já seria de certa forma desestabilizante, a opção usada para aumentar a proposta de divergência se formaliza com um ator dando as costas para o outro, sendo conduzindo de costas e não de frente por seu parceiro de dueto. Os movimentos coreográficos são rápidos e precisos, e o que eles parecem dizer se dilue na complexidade do conjunto: um gesto – começado- genericamente masculino, se especifica - na ação – num feminino: a ‘continência militar’ se decompõe e se transforma num ‘virar a bolsa’. Alternativamente um ‘balanço de quadris’ se desdobra na expressão ‘virilizantes de força’. (LOBERT, 1979 p32)

Outra cena de grande riqueza poética, lembrada no documentário pelo cantor Ney Matogrosso que se inspirou bastante da proposta do grupo, é a coreografia da música Assim falou Zaratustra de Richard Strauss. Os atores dançam com tecidos que parecem asas coloridas. Realizam giros e movimentos simultâneos que balançam as “asas” com o corpo coberto de purpurinas, gravata borboleta, botas e tapa sexo. Homens viris que se entregam a metáfora de um vôo de animal tão frágil: a borboleta “dear, voar para o ar, voar, soltemos as borboletas, voemos com elas, vamos buscar o céu, a felicidade, voai borboletas, voai, voai” (LOBERT, 1979, p.46). Buscam o espírito anarquista e libertário, próprio dos artistas de vanguarda que estabelecem relações tênues entre arte e vida. São o sujeito e objeto de sua obra, experimentam, se divertem, dançam, confundem e levam o público a perceber formas de caracterizar o sujeito, além de convenções sociais e lingüísticas. O contraste da “graça da fêmea” e a “força do macho” se diluem no corpo dos artistas onde atos corporais não são barrados em função anatômica. O que é característico como feminino ou masculino se permite num único corpo, deixando claro a possibilidade de transição entre as duas categorias, e ainda questionando os critérios que produzem restrições que caracterizam atos como estranhos e desviantes. A fronteira entre homem e mulher se desintegra no corpo dos Dzi Croquettes, restando pensar no gênero de forma independente do sexo. Uma forma ambígua e indefinida de se colocar no espaço. Perturbando, encantando, desnaturalizando as convenções. Como viajantes pós-modernos, o grupo esquecido na história do teatro brasileiro, bateu asas, sentido os prazeres e incômodos de querer buscar sempre algo a mais. Algo que se efetiva na busca e não no encontro. “Uma resposta difícil de se perguntar”

Vemos em Foucault, que a noção de sexo é calcada em conceitos artificiais e que ele só pode ser entendido em consonância aos discursos de poder-saber a qual é submetido. São investidos sobre a sexualidade inúmeros discursos que tem por finalidade a regulação e sustentação a normas de inteligibilidade cultural. O construto Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.190

unívoco do sexo, sendo o sujeito ou de um ou de outro sexo acarreta uma regulação de permissividade e controle das sexualidades. Ser homem ou ser mulher dependeria da classificação de acordo com tais artificialidades, dando a intenção de que o sexo seria incontestável, pois é um elemento dado ao sujeito e não resultado de inúmeros investimentos no campo discursivo a noção de “sexo” permitiu agrupar, de acordo com uma unidade artificial, elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações e prazeres e permitiu fazer funcionar esta unidade fictícia como principio causal, sentido onipresente, segredo a descobrir em toda parte: o sexo pôde, portando, funcionar como significado único e como significado universal. (FOUCAULT,1988 p.168)

Práticas de abandono a essas artificialidades permitem abarcar a complexidade de inúmeras formas de sexualidade. O que se tem dentro dessa perspectiva seria uma multiplicidade de construções corporais, permitindo ao individuo infinitas possibilidades de sexualidade, pois a conformidade com o sexo anatômico não é uma regra a ser seguida. Fugir dessa lógica pode acarretar o surgimento de corpos estranhos, corpos que não são de fácil leitura. O termo queer tem por finalidade acolher as manifestações dos sujeitos desviantes de uma ordem compulsória de heterossexualidade. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambigüidade, do “entre-lugares”, do indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina.” (LOURO, 2008 P.8)

A relação entre a definição de queer e a busca por uma prática “underground” do grupo Dzi Croquettes parte de questionamentos muito próximos de não conformidade na relação sexo/gênero/desejo de forma linear e causal. O queer seria o raro, excêntrico, estranho que não tem por finalidade ser um “bom exemplo.” (LOURO, 2008) O termo surge de expressões que se equivalem ao português como veado, sapatão, boiola. Utilizar desse termo depreciativo, se auto-marginalizar é uma forma de sujeição onde revela a instabilidade de um poder opressivo e sem possibilidade de contestação. Cantor: “Você seria capaz de explicar o que seria underground Ator: “Fazer teatro é um barato. O teatro ama o povo. O povo ama o teatro. Enfim underground... underground ...” Cantor: “Esqueceu? Ator: “Esqueceu? Esqueceu?. Envergonhado se afasta em quanto o cantor procura outro. Cantor: “Meu amor, você acha que assim vestido assim alguém poderia dizer que você está se expondo ao ridículo?” Ator: “O que vem a ser ridículo?” Cantor: “Bem ridículo é ridículo, ora bolas” Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.191

Ator: “Ora bolas eu sei o que vem a ser, mas ridículo é uma resposta difícil de se perguntar” (LOBERT, 1979, p.40-41)

Definir o sujeito queer não é uma tarefa que se tenha significância. Nada seria tão contraditório. Uma definição do queer só seria coerente em termos de ambigüidade. Pois a busca por deslocamentos é sempre almejada. Definir Dzi Croquettes através de suas próprias definições do que eles mesmo seriam é compartilhar da mesma ambigüidade. Definir algo que em si próprio não se define. O que se caracteriza como estranho? O estranho não seria classificado apenas pela maneira que se proliferam critérios de inteligibilidade cultural, este produzido pela crença na existência de uma substancia que naturaliza o gênero decorrer do sexo? Miéle: “Muita gente tem perguntado o que vem a ser Dzi Croquettes. E vocês saberão dentro de pouco o que é a tradução. Ator 1: É o artigo definido. É aquele que define. Ator2: É tudo o que esta pra frente inclusive. Ator 3: Os faróis do carro. Ator 4: Os seios feminos. Eu disse feminino. Ator 5: (...) Etc.. Peça Dzi Croquettes ( Boate Monsieur Pujol, RJ, 1972) (LOURO, 1979, p.1)

Se durante a peça os atores oferecem ao público uma definição do que são eles mesmos e o seu teatro, ao mesmo tempo confundem e não apresentam uma definição lógica do que vem a ser Dzi Croquettes. Com a proposta de explicar o que são “confundiram mais ainda a platéia ansiosa de compreender o discurso ético e estético da peça que assistem” (LOBERT, 1979 p.1). Nota-se que não existe a vontade de se classificação e sim de ampliação do que vem a ser aquilo que esta sendo visto pelo público. O que importava para prática teatral do grupo e que dialoga de uma maneira tão familiar com a teoria queer seria uma prática performativa do gênero que fosse “reiterativa e citacional” (BUTLER,2000) É, portanto um modo de se encarar a vida, que se coloca a disposição de mudanças, num processo constante, sem contentamento e busca pela finalização desse corpo. decidir-se por um objeto de vida e teatro que evitasse enquadramentos, classificações, definições fechadas: ou inversamente preservar uma proposta que se alargasse, abrisse vão ao infinito. Sem transformar seu projeto num novo enquadramento, ou melhor, como conseguir transgredi-lo continuamente (LOBERT, p.20).

A idéia de mudança, e não de fixidez fica presente. Mudança que não tem por finalidade a materialização do sexo em uma prática compulsória de heterossexualidade. A teoria queer faz muitas perguntas, que levam a cabo uma grande prática de desestabilização de um sistema que compreende o sexo como uma categoria fixa, dada a priori pela natureza, onde um gênero pode ser construído a partir da relação e compatibilidade com este. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.192

Assim, o "sexo" é um ideal regulatório cuja materialização é imposta: esta materialização ocorre (ou deixa de ocorrer) através de certas práticas altamente reguladas. Em outras palavras, o "sexo" é um constructo ideal que é forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o "sexo" e produzem essa materialização através de uma reiteração forçada destas normas. (BUTLER, 2000 p.127)

O Estranho em cena

Dzi Croquettes acaba por representar uma estratégia de construção do sexogênero que extrapola as convenções da maneira como a linguagem condiciona tais categorias colocando em xeque a estabilidade e a naturalidade de como sexo-gênero são caracterizados. Dzi acaba desvelando a artificialidade da estrutura binária, encorajando a capacidade de imaginação de formas de construções corporais marginais. Decorre daí que uma prática teatral como a que é apresentada por Dzi coloca em questão próprio conceito de “pessoa” (ou gente), pois se distancia de conceitos estabilizadores da identidade, não se conformando com “às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas” (BUTLER, p.38) Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio constructo chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revelase absolutamente nenhuma (BUTLER, 2010 P.25).

Na proposta de não ser Homem, nem Mulher a diferença entre os sexos se torna uma materialidade não identificável e desnecessária. Rompe-se um sistema binário em favor de um sujeito livre das convenções arbitrárias que são impostas a determinado “sexo” reforçando tal sistema. Buscam não a separação de características “masculinas” para o homem e “femininas” para a mulher, e sim a busca pela redistribuição de feminilidades e masculinidades no ser andrógino, que é o ser que o grupo busca. Colocar o sexo como sendo um meio pré-discursivo onde o gênero é apenas uma inscrição cultural sobre o corpo, produz uma falsa idéia de que um sistema binário de sexualidades é por sua “natureza” imóvel. Falar que o sexo é construído antes do discurso seria uma forma de se estabilizar esse sistema. Uma crítica que possa ser realmente efetiva para os grupos marginalizados, deve-se atentar para que não se reforce as estruturas pelas quais um caráter normativo da distribuição em pares é consolidado. O grupo, ou a família (assim se denominavam) se debruçavam num grande processo, ou num grande vôo, onde suas práticas se distanciavam das normas reguladoras da sexualidade, abrindo espaço para diversificadas formas de vivenciar e contestar as normas pelas quais a diferença sexual é materializada. Tanto no vôo como a viajem a transformação, a quebra de tabus, o rompimento de regras e a transgressão são objetivos. Aonde chegar é improvável, porém o fascínio em se tornar “estranho” pode ser de grande contribuição. “No momento em que reconheço a existência de uma fronteira começa sua desintegração, a permeabilidade e nasce a possibilidade de...” Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.193

(GREINER, p.87) Dzi Croquettes deixou em “termos de pesquisa” para o pessoal do underground sua “humilde colaboração” (LOBERT p.36). Queer e underground formas de existir

Por fim, o que parece associável em Dzi Croquettes e no corpo que se caracteriza como queer seria a não conformidade dentro de classificações artificiais que delimitam o corpo em relação ao sexo/gênero. Voar tem suas quedas e seus ápices. Uma atitude contestadora e transgressiva é um grande desafio. Serão necessários ainda inúmeros estudos em acerca das propostas dessa família para se compreendê-los em sua ambigüidade. Criavam de forma a se privilegiar formas de abertura de linguagem cênica e formas de subversão, Se The é o artigo que define, Dzi é o artigo que amplia, questiona, fascina e incita a voar, para se compreender na sua amplitude. “Todo mundo pensa que contar tem fim. Todo mundo pensa que fim tem que contar. Quase todo mundo conta o que consta em contar. A gente acha que a gente existe, do verbo existir. E diante disso a gente formou uma família ...” (LOBERT, 1979, p.48) Sendo queer ou underground muda-se a terminologia, não a finalidade. A proposta é a mesma. Desestabilizar o centro, as convenções. É ficar sempre à margem, questionando e transgredindo o que é imposto. Colocar-se queer ou underground é não estar no centro e tê-lo como referência. É uma atitude política de perturbação e de se fazer visível. “A diferença deixaria de ser ausente para estar presente: fazendo sentido, assombrando e desestabilizando o sujeito”. (LOURO, 2004, p.48) O caráter “forte e adoravelmente chocante” faz com que o publico se torne freqüentador assíduo de suas apresentações. Eram aclamados, admirados pelo seu público-tiete. Invadiam a casa onde moravam os integrantes do grupo. Vestiam-se como eles. Adotavam trejeitos e formas de se falar que eram da proposta do grupo. O modo como se propunham encarar a vida e a coragem que estimularam em muita gente que se reconhece no outro como alguém próximo, fez girar em torno das peças uma grande rede de comunicação e de busca pela liberdade de expressão e multiplicidade de formas de se fazer presente. Falavam de amor e de coragem. Referências

BUTLER, Judith. “Corpos que pensam: sobre os limites discursivos do ‘sexo’”. In: LOURO, Guacira. O Corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Trad Tomaz Tadeu Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade.Trad. Renato Aguiar. 3ºed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988. LOURO, Guacira. Um corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. GREINER, C. O Corpo- Pistas para estudos interdisciplinares. São Paulo. Ana Blume, 2006 LOBERT, Rosemary. A Palavra mágica dzi: uma resposta difícil de se perguntar – a vida cotidiana de um grupo teatral. Campinas, 1979, 278f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) Universidade de Campinas. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.194

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