«Farmacopeia infatigável. Carlos de Oliveira e a Escrita Lisérgica», in Osvaldo M. Silvestre, ed., Depois do Fim. Nos Trinta e Três Anos de ‘Finisterra’, Coimbra, CLP | Universidade de Coimbra, 2011, pp. 45-73.

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FARMACOPEIA INFATIGÁVEL Carlos de Oliveira e a escrita lisérgica PEDRO SERRA Ao Américo António Lindeza Diogo

Num anterior ensaio sobre Finisterra, como modo de dizer a obsidiante sequência de revisão e correcção em que assenta a Obra de Carlos de Oliveira,1 vali-me de um conjunto de tropos que encontrei na Filologia – sobretudo numa das suas disciplinas mais laboriosas: a ecdótica – como símil que respondesse por essa libido scribendi, por essa compulsão escrevente que fulgura encarnada, com brilho baço, na “Nota Final” do último romance do autor de Pastoral.2 O presente ensaio, por seu turno, é detonado pelo campo analógico da ivresse escritural – como veremos, da “mescaligrafia” – como forma de produzir uma nova entrada na obra de Carlos de Oliveira.3 Na verdade, como tentarei mostrar, a escrita lisérgica e o trabalho ecdótico são dois análogos que fazem comunidade: dois símiles da estesia, da incorporação material da “farmacopeia infatigável” da escrita. Trata-se, pois, de ensaiar novos acordes sobre a gisandra e a escrita, o nexo encriptado que as une e que as distingue; interpelar, nesta oportunidade, esse nexo em função do inebriamento alquímico que tem um exemplum maior (mas não único) na gisandra de Finisterra: “Esfrega a gisandra                                                                                                                         1

Cf. Serra, 2004. Na penumbra do meu texto encontrava-se, nesse momento, o trabalho levado a cabo em conjunto com Ana María García Martín de edição crítica de O Hissope. Poema HeróiCómico de António Dinis da Cruz e Silva (cf. Cruz e Silva, 2006). Encetado em 1997 com um apoio do IPLB para a sua edição na colecção das “Obras Clássicas da Literatura Portuguesa – Século XVIII”, o livro foi finalmente editado em 2006. 3 Os estudos de referência do Germán Labrador Méndez sobre poesia e química espanhola transicional foram-me fundamentais para estabelecer contornos visíveis desta matéria na poesia portuguesa contemporânea. Cf. Labrador Méndez, 2009. 2

entre os seios; oxalá fosse sumo de mandrágora: alcalóides, excitantes, farmacopeia infatigável da fertilidade”.4 Princípio activo oculto o da gisandra – se bem que, como explicito mais adiante, haja que distinguir diferentes avatares da gisandra –, tal como a eficácia da escrita enquanto pharmakon, entre o veneno e o remédio como formula Jacques Derrida.5 Gisandra e escrita: dois líquidos farmacológicos assimiláveis em contacto com o corpo, e como tal dispositivos de repetição – dois rituais – que in-distinguem fertilidade e esterilidade. Escrita lisérgica, mescaligrafia: um novo campo de inteligibilidade da obra de Carlos de Oliveira, um novo contexto problemático. A tópica aflora em Mãe Pobre, segundo livro de poemas publicado por Carlos de Oliveira, na figuração do poeta como “mago” ou “bruxo” que manipula líquidos venenosos, manipula versos que geminam líquidos. O sujeito poético, assombrado “bruxo dos versos”,6 imagina-se a si mesmo “um mago novo: / na alquimia do sangue e do resgate / destilei os vocábulos do povo”.7 Destilação e alquimia, trabalhos de uma lisergia ainda predicada pela protensão redentiva (o “resgate”), impelida por um passado de “dor” (o “sangue”), que endivida o agente de acção poética. Destilação e alquimia, ofícios ancestrais, primitivos, cuja assimilação permite ao poeta ancorar o seu labor numa língua popular (os “vocábulos do povo”), desde sempre língua sofredora e necessitada de redenção. Mago novo, prefiguração do aprendiz de feiticeiro, mago de uma ars obscura e cuja obra é “obra ao negro”, vocabulário destilado. Em Colheita Perdida a tópica tem replicação, modulada agora por uma intensificação da ebriedade poética que se concebe como comunhão expurgada de constrições teológico-morais (logo, tratar-se-á de uma                                                                                                                         4

Obras, p. 1082. Eu sublinho. Neste ensaio, todas as referências às obras de Carlos de Oliveira pertencem a Obras de Carlos de Oliveira (cf. Oliveira, 1992). Nas notas-derodapé, abrevio as menções com o vocábulo ‘Obras’. 5 Cf. Derrida, 1997. 6 Do poema “Assombração”, Obras, p. 61. 7 Do poema “Soneto Final”, Obras, p. 64.

comunhão puramente “estética”): “Vontade de beber / sem crimes e sem erros”, como lemos no poema “Capricho”.8 Ebriedade sem crime ou erro, isto é, uma pura estesia, uma arte que o seja sem determinações, uma arte que seja refúgio, reduto final de uma subjectividade não determinada pela política ou pela moral. Ivresse iluminada – “(estou bêbado de luz / caio ou não caio?)”9 – que tem intensidades e extensões mínimas e máximas. Por exemplo, as de um olhar que ilumine a noite: “dos teus olhos bebo o vinho breve / dum torrencial e súbito luar”10. Ainda, o Mundo, entre o recorte nítido de umas “florestas” e a massa amorfa das “manchas”, é uma geografia alucinada – um “Pesadelo”, justamente: “As florestas que daqui conheço, minerais, / são as manchas da terra alucinadas”.11 Vocábulo ‘forte’, este último: dentro/fora, sujeito/objecto, traduzem uma posição em que o ‘eu’ poemático, sujeito gnosiológico, tem na alucinação o modo de conhecer. O Mundo é “alucinado” – visionado – “daqui”, isto é, no poema e pelo poema. O poema é esta ebriedade lúcida. Um novo paroxismo alucinatório significará a entrada física, corpórea, na matéria. É da queda na matéria, na estação infernal da matéria, no descensus ad inferos da matéria, que emanará a alucinação. O corpo é conduto de um veneno no livro Descida aos Infernos, em cuja sexta estação lemos: “desço alucinado / com pedra a ferver nos pulmões”.12 Viagem ao centro da matéria por uma geografia lisérgica, demanda de uma fons et origo que terá como corolário a indistinção entre sujeito e objecto. Tropel que “devassa” – ‘escruta’, ‘descobre’ ou ‘corrompe’, mas também no sentido de ‘fazer devassa’, levantamento ou inquirição escritural – qualquer Origem, de onde emana muito embora um líquido vital: “cavalgo devassando as fontes da vida / donde goteja                                                                                                                         8

Obras, p. 74. Do poema “Tempo”, Obras, p. 77. 10 Do poema “A noite inquieta”, Obras, p. 84. 11 Obras, p. 99. 12 Obras, p. 110. 9

um leite amargo e turvo”.13 Narco-viagem da percepção em que as imagens são imagens alucinadas, sem conexão ao mundo por correspondência. As imagens são “levadas”, processo de alteração material que comuta neste livro o tropo da “destilação”: “como um rio ao contrário, de águas povoadas / por alucinações mortas boiando levadas”.14 Imagens em suspensão – “boiando” –, isto é, que retornam sem a inexorabilidade das ‘leis naturais’ – “um rio ao contrário”. Enfim, a descida ou catábase culmina numa combustão em que o sujeito e o objecto se indistinguem, ápice de uma queda alucinada ao “centro do assombro”: “Eis-me no centro do assombro, / onde não há distinção nenhuma / entre ser queimado e ser fogo”.15 No “centro do assombro”, criação e destruição indiferenciam-se, o sujeito é agente e paciente da criação e da destruição. A narco-náutica, “mortal trajecto”, em demanda e devassa da fons et origo, estação infernal, é uma via de alucinações que se intensificam no “assombro”. Transfiguração perceptiva que temos também em Terra de Harmonia, “Ave Solar” e Cantata, manifestando-se nestes conjuntos a sua dominante essencialmente visual. O desvario perceptivo atrai figuras como a do ‘sono’ e da ‘insónia’, estados de consciência precisamente propensos à visão. Uma visão que pode ser quer negativa, quer positiva. Em Terra da Harmonia, lemos: “Você viu / por um súbito rasgão da insónia / os animais miúdos comidos pelos maiores, os / maiores comidosa pelos homens, os homens / roídos pela antropofagia e pelos dentes / amarelos das estrelas”.16 Tanto é visão um pesadelo assim, como a seguinte imagem de “Ave Solar”: “Rompe de ti o leite da harmonia / um colo de estrutura alucinante”.17                                                                                                                         13

Do poema “4”, Obras, p. 108. Obras, p. 105. 15 “9”, Obras, p. 113. 16 Do poema “Visão de José Gomes Ferreira no Vanderman”, Obras, p. 159. 17 Obras, p. 171. 14

Destilação, combustão: análogos de uma perceptividade transfigurada e transfiguradora. Corpo e Mundo extáticos, suspensos na alucinação. A partir de Sobre o Lado Esquerdo, livro que introduz a poética final de Carlos de Oliveira,18 assistismos a uma nova dilatação do topos da escrita sous influence, da escrita lisérgica. A alquimia é expandida agora pela tópica da “revelação”, processo fotográfico e cinematográfico. Antes, uma nota mínima para recordar que João César Monteiro considerava serem Herberto Helder e Carlos de Oliveira os intelectuais portugueses mais atentos ao cinema.19 Do meu ponto de vista, a imagem cinematográfica, precisamente o seu carácter alucinatório, é sem dúvida o fulcro do interesse de Carlos de Oliveira pelo cinema. O cinema como visio do movimento, o movimento como dimensão do tempo. No poema “Look back in anger”, precisamente, lemos algo como a rentabilização analógica do cinema, que proporciona um amplo campo tropológico que permite iluminar o trabalho poético (e, já agora, que o torna ainda mais enigmático): “As imagens latentes... entrego-as às palavras como se entrega um filme aos sais de prata. Quer dizer: numa suspensão de cristais, revelo a minha vida”.20 Onde antes se dizia a metamorfose com imagens como a da ‘destilação’ ou da ‘combustão’, agora diz-se ‘revelação’, um vocábulo que se ajusta ainda mais ao trabalho alucinatório verbal e que introduz uma nova área de expansão imagológica. “Revelar” como processo material (químico), mas também “revelar” como acontecimento hermenêutico, psíquico ou iluminação secularizada.                                                                                                                         18

Cf. Silvestre, 1997, p. 78 e ss. Cf AA. VV. (2005). Eis a feliz observação levada a cabo por César Monteiro: “C’est surprenant por tout le monde, mais je suis une boîte à surprises, si j’ose dire que la réflexion cinématographique la plus profonde et tout a fait originale a été faite par deux poètes: Carlos de Oliveira et Herberto Helder. Le premier es mort depuis dix ans; le deuxième est encore parmis nous. Parfois on se rencontre et on boit des verres.” 20 Obras, p. 203. 19

O inapreensível fulgor do Mundo – a realidade extática – induz uma poesia que produz ecos sensíveis (sonoros, visuais) dele. O sujeito poemático, dimensionado como corpo físico, é um vidente ébrio de palavras e dos mundos possíveis que contêm: “Quando vi / o poema organizado nas alturas / reflectir-se aqui, / em ritmos, desenhos, estruturas / duma sintaxe que produz / coisas aéreas como o vento e a luz”.21 O corpo físico interioriza a matéria externa do Mundo, incorpora líquidos que se imiscuem no organismo e o alimentam: “condenado toda a vida às ampolas de soro nutritivo diluídas em leite”.22 Imagem primitiva, isto é, infantil. Ainda, e no mesmo livro de poemas, temos a figuração – heteronímica e autonímica – de um bebedor nocturno cujo trabalho alquímico (luciferino) de suspensão do tempo – o tempo suspenso da alucinação, dentro e fora do presente – passa por uma solitária e invivível experiência íntima que não anula (apenas suspende, justamente) uma exterioridade crono-lógica, crono-métrica. É o que leio no poema intitulado “Edgar Allan Poe”, aliás figura tutelar da tradição de uma escrita vidente e lisérgica: “Ele bebia. Sílabas abriam-se uma a uma pelos cantos do quarto... Gotas de álcool... O filtro apenas decompôs mais cedo o horror em luz, não alterou a solidão dos dias, que a noite separa uns dos outros para sempre”.23 Novo input, nova abertura imagética: o “filtro”; ‘filtrar’ como processo transfigurador que amplifica o campo da ‘destilação’ e da ‘revelação’. Processos farmacológicos, simultaneamente construtivos e destrutivos. O corpo venoso é canal de venenos que ora vivificam, ora aniquilam, via de passagem e fuga de imagens que fulguram por instantes; venenos que ora liquefazem, ora galvanizam, as pulsações do corpo. O corpo – um projector projectado – é ainda e uma vez mais cinema, imagens em marcha: “o suicídio com o gás de escape,... ou por outras palavras, /                                                                                                                         21

Do poema “Tarde”, Obras, p. 206. Do poema “Desenho Infantil”, IV, Obras, p. 214. 23 Obras, p. 218. 22

flashes, combustões, / entregues ao acaso das artérias, / melhor, das pulsações”.24 Neste mesmo poema, é-nos dada a imagem extática como imagem cuja fluidez mortifica o “sangue” (isto é: o corpo), também ele um fluxo: “e habita agora / a fluidez do sangue: / cada imagem de fora, / presa no fotograma que já foi, / de glóbulo em glóbulo se destrói”.25 A imagem, concomitantemente, é mortificada pelo corpo: a imagem é do corpo, o corpo é da imagem; ambos dissolutos. Por outras palavras, imagem e corpo (ambos corpos e ambos imagens) vão-se estranhando mutuamente, sem deixarem de se individuar no lance. Cotejam-se mutuamente até à indiferença mútua. É precisamente o que nos propõe o poema “Filtro” do seguinte livro de poemas, Micropaisagem. Na segunda secção, leio: “O poema / filtra / cada imagem / já destilada / pela distância, / deixa-a / mais límpida / embora / inadequada / às coisas / que tenta / captar / no passado / indiferente”.26 O poema “filtrado” – neste momento da escrita oliveiriana, suplementado por um rigor progressivo – cresce em ‘lucidez’ (“mais límpida”), mas também em opacidade (o “passado indiferente”). É esta, aliás, a ‘lição de trevas’ de Carlos de Oliveira, como muito bem viu o já mencionado João César Monteiro no pequeno texto in memoriam, intitulado “A dor não é um mineral”, publicado no Jornal de Letras em 1991. O retrato breve de Carlos de Oliveira aí produzido, dez anos após o seu falecimento, tem também o cariz de auto-retrato. A construtiva dialéctica treva/luz que adensa a ‘lição de trevas’ é também a via criativa de João César Monteiro.27A arte, em ambos os criadores, é “subtil veneno”. E é de venenos que nos continua a falar o livro Micropaisagem. Sob a égide conspícua de Malcolm Lowry – também referente maior da tradição de uma escrita em transe –, o poema IV do conjunto “Debaixo                                                                                                                         24

Do poema “Cinema-II”, Obras, p. 220. Do poema “Cinema-II”, Obras, p. 221. 26 Obras, p. 291. 27 Cf. Monteiro, 1991, p. 18. 25

do Vulcão” é o poema que tematiza precisamente a “mescaligrafia” como duplo da poesia e da música, enfim, da poiesis: “Tépido mescal / para inventar / a mescaligrafia / gémea do som / ou da sombria / pauta musical”.28 O poema, uma espécie de auto-hetero-retrato, parece cumprir o ‘método’ escritural de Lowry, tensado entre “fazer música” e proscrever o “ruído”, numa deriva igualmente de reescrita. Enfim, Under the Volcano como “sinfonia” ou “ópera”, a escrita como música. Seja como for, anoto uma especificação fundamental levada a cabo pelo poema de Carlos de Oliveira: o líquido ébrio transfigurado em mescaligrafia mantém uma relação gemelar com o “som” e a “pauta musical” (a ‘escrita’). Artes gémeas, idênticas não-idênticas. Artes imiscuídas, promiscuidade de ‘ebriedade’ e ‘lucidez’: “Este álcool decantado / gota a gota / bebe-se / e embriaga / um pouco / mas / por outro lado / apura, / aguça / a lucidez / do texto”.29 A intensificação da “lucidez” do texto – dada por formas verbais como “apura” e “aguça” – devolve-nos a progressiva entrada na materialidade do texto, na materialidade do mundo, de cujo cerne vazio – isto é, de cuja “indiferença”30 – emana o veneno, o mescal. Voltarei a este poema mais adiante. Em “Líquenes” teremos, enfim, uma prefiguração do objecto mescaligráfico par excellence, a “gisandra” de Finisterra: “o lento trabalho / da metamorfose / entre a alga e a campânula / venenosa... o sono / criptogâmico / incapaz de sonhar a forma duma flor”.31 No âmago da matéria informe – “incapaz de sonhar a forma” –, o “sono criptogâmico”, isto é, uma espécie de morte, uma espécie de silêncio. A via tenebrosa, a ‘lição de trevas’ chega, digamos, a um impasse! Até onde se pode intensificar e sustentar o rigor? Até onde a entrada na matéria do texto e do mundo? A ebriedade, a escrita lisérgica, a                                                                                                                         28

Obras, p. 270. Do poema “Filtro”, Obras, p. 292. 30 Cf. Lopes, 1990; Mourão, 1996 e Silvestre, 1996. 31 Do segundo poema, Obras, p. 312. 29

mescaligrafia, tem uma face construtiva na metamorfose – digamos: na imagem que sempre tende para outra imagem –, mas estabelece também as condições de possibilidade de um non plus ultra pela sua face destrutiva. Metamorfose e decomposição: remédio e veneno. Considero o “sono criptogâmico” um dos achados poéticos e epistêmicos mais eloquentes de Carlos de Oliveira. Líquenes, musgos ou algas proporcionam um campo analógico centrado no reino vegetal – e a gisandra, não se limitando a ser planta, é predominantemente espécie vegetal – em que a geração e a reprodução é abscôndita: Kryptós, oculto; gamós, união. Um potente análogo da reprodução do mundo – quando oculta desígnios, etc. –, da origem das imagens, do poema como forma metamórfica, de uma temporalidade metastática – isto é, não linear –, enfim, da própria escrita e do mistério que a move. Líquenes, musgos e algas, mas também o mescal: como ‘uma outra natureza’ na natureza. Reitero as interrogações: até onde se pode intensificar e sustentar o rigor? Até onde a entrada na matéria do texto e do mundo? Por outras palavras, a lucidez do texto é conduzida a um limite insuportável, insustentável. Donde sobrevém, então, a figura da “decomposição”. A via mescaligráfica contém o risco (o limite) do excesso. Contraparte da escrita sous influence: o sono decomposto. É precisamente este “turn of the screw” que leio em, e a partir, de Entre Duas Memórias, em cujos últimos três versos temos: “a imagem exposta a um ácido excessivo, / começa a decompor-se”.32 Neste livro, o corpo, posto em silêncio – estação de uma poesia progressivamente dessubjectivada – continua a produzir, insciente, fulgurações lisérgicas. Tenham-se presentes, enfim, os seguintes versos de “Cristal em Soria”: “... poema escrito / entre uma aresta e um gume, / entra nas veias, fere: / agulha de morfina fria; / como arde este cristal?”.33 A escalada ébria tem como culminação uma insciência: “como arde este cristal?”, combustão que retorna mas que é                                                                                                                         32 33

Da secção “Tempo Variável”, conjunto “Fotomontagem”, poema V, Obras, p. 383. “I”, Obras, p. 325.

inconcebível e ilegível, impondo-se como silêncio sonambúlico de um corpo presente: “difícil ler a densidade / que o silêncio impõe a um corpo / donde se tira o sono / por seringas lentas; gota a gota”.34 Isto é, depois daquele “sono criptogâmico”, o impensável absoluto singular da morte física – a que nenhuma arte verdadeiramente conduz. A deriva da obra poética e ficcional de Carlos de Oliveira, progressivamente fazendo da forma o seu conteúdo – isto é, radicalizando a ausência de fundamentos, impossivelmente dados por uma lábil estética –, significa, uma exponencinal fenomenalização da escrita. Mas, significará uma similar multiplicação de momentos de presença? Diante da oclusão de essências e desígnios do mundo – oclusão que tem no “sono criptogâmico” de algas, líquenes e musgos um objectivo correlativo –, de um mundo que ainda assim continua a gerarse, foi-se instalando uma dúvida radical sobre a epistemologia e a ontologia da “geometria submersa na natureza”. É inevitável citar aqui um lugar muito trilhado d’O Aprendiz de Feiticeiro, concretamente o último parágrafo de “A fuga”: “O céu real é talvez irreal. Nada me garante que não contemplo um universo morto, um deserto. Talvez a máquina de facto parasse. Mas trabalha ainda nos meus olhos. Tece neles a sua própria harmonia. Dentro de oito anos pensarei na catástrofe ou no cansaço a que o médico dá o nome clínico de angústia. Tentarei separar então a aparência da realidade, se valer a pena”.35 Derrogação da pulsão epistemológica (“se valer a pena”), dubitatio (“talvez”, “nada me garante”) e indeterminação sujeito/objecto no que à origem da “harmonia” da “máquina” se refere. A máquina do mundo funciona nos meus olhos configurando a sua (da máquina?, dos olhos?) harmonia? É pelos meus olhos que a máquina do mundo trabalha configurando a harmonia (da máquina?, dos olhos?)? Seja como for, diz-se ter acontecido a “contemplação” e um momento de “harmonia”. Sendo dita,                                                                                                                         34 35

Da secção “Sub Specie Mortis”, poema VII, Obras, p. 359. Obras, p. 599.

é diferida; mas é na instanciação do dizer que teria uma “autenticidade” (im)possível. Logo, do meu ponto de vista, tanto Pastoral como Finisterra devolvem-nos, efectivamente, uma inflação de momentos de presença, mas em regime alegórico. Ambas as obras, enfim, acabam por ser “avejões” da presença, de um escritor existencialmente sincronizado com uma escrita assincrónica. “Tentarei separar então a aparência da realidade, se valer a pena”: resignação, por cansaço, à vacuidade de uma tamanha demanda epistemológica? Determinação de uma situação clínica de angústia? Talvez não. O texto a que pertencem estas palavras, datado de 1961 e 1967, em muitos aspectos tematizando uma consciência de ‘ser estruturalmente tardio’ – o universo pode ter acabado, a notícia ainda demorará a chegar, “eu” terei sobrevivido ao apocalipse –, responde por um tempo em que os possíveis criativos são ainda muitos. O que este parágrafo d’ “A Fuga” me devolve, ainda, é a possibilidade de uma aceitação da “harmonia” como pura intensidade sem sentido. Aceitação de momentos de presença, necessários para garantir um mínimo de legitimidade à aspiração de uma outra mais agradável vida. A matéria da escrita e do mundo é finita (esgota-se); finita também a energia – a matéria – de um corpo humano e da consciência que encarna. Contudo, a resistência destes materiais é assimétrica. Para um corpo humano e a consciência que encarna, tanto a resistência da escrita como a resistência do mundo são, na prática, quase infinitas. Fazer contas com o apocalipse do universo, é perder-se nas contas: ou seja, produzir uma imagem da orbe celeste que permite manter em suspensão o distinguo entre “mundo” e “deserto”, “máquina parada” e “harmonia”. Análogos deste ‘manter em suspensão’: “alquimia do sangue”, “vinho breve”, “leite amargo e turvo”, “rio ao contrário”, “soro nutritivo”, “álcool decantado” ou “morfina fria”, figuras da mescaligrafia, tropologia do pharmakon que tem no ‘líquido’ o seu elemento: “La esperma, el agua, la tinta, la pintura, el tinte perfumado: el fármacon penetra siempre como el líquido, se bebe, se absorbe, se introduce en el

interior, al que marca primero com la dureza del tipo, invadiéndole enseguida e inundándole con su remedio, con su brebaje, con su bebida, su poción, su veneno”.36 A mescaligrafia devolve-nos, assim, um novo paradigma para a orientação da libido scribendi de Carlos de Oliveira: progressiva materialização da escrita, progressiva materialização do mundo; entrada na matéria, matéria incorporada. Imersão em e incorporação de uma “farmacopeia infatigável”. Finisterra significará o colapso geral das hipóteses farmacológicas – janela, fotografia, pirogravura, desenho infantil, filme, maquete –, repetição ad infinitum da presença e da perda da escrita e do mundo. Em todos e cada uma das hipóteses farmacológicas, teremos versões daquela “vision of heaven and world enterely devoided of teleolgical interference”, como formulou De Man a respeito de um conhecido (e fundamental) lugar kantiano.37 Entretanto, reitero a série “destilar”, “descer”, “cavalgar devassando”, “súbito rasgão da insónia”, “revelar”, “ver o poema”, “filtrar”, “decantar”, “embriagar”: quando o mundo persiste diante dos olhos, indiferente às palavras e aos pensamentos, resistindo na sua aberrância a conhecimentos e crenças, esse mundo adquire uma consistência entre o fluído e o extático e move a visão alucinada. O mundo fulgura em imagens que bóiam num estado de levitação, suspensas de um silêncio, penduradas de uma espécie de veneno aquoso, com forma e informe, cristalino e duro. Na obra poética de Carlos de Oliveira, de Turismo a Pastoral vamos encontrando visões dadas por uma tropologia ébria que, tanto quanto sei, ainda não foi relevada. Há todo um trabalho em torno de imagens narco-líquidas, imagens em que se apontam estados de consciência alterados, muito próximos quer do êxtase quer da alucinação. Em Finisterra esta tropologia repercute, da criança que “flutua” no início do romance, até ao feto que “flutua” em “álcool” ou “formol”, passando pela alucinação das vozes dos animais, dos                                                                                                                         36 37

Derrida, 1997, pp. 230-231. De Man, 1996, p. 174.

peregrinos ou da visão do colapso dos astros. Enfim, a bem da prova pelo exemplo, estes dois lugares: “Não me lembro de um sossego assim. Nem desta suavidade: o corpo leve, aéreo”38; e “Sente-se levitado, suspenso, como as aves brancas”.39 Voltarei a Finisterra, mas antes recordo que, como revelou Carlos de Oliveira, o já mencionado “Debaixo do Vulcão”, de Micropaisagem, foi um poema “escrito velozmente”. Contudo, o livro, globalmente considerado, teve uma elaboração lenta e vagarosa: “Feito, desfeito, refeito, rarefeito”.40 Ora, no texto “Micropaisagem” incluído em O Aprendiz de Feiticeiro, Carlos de Oliveira diz-nos o seguinte: “Neste livro, porém, o poema ‘Debaixo do Vulcão’ (sugestão do título? coincidência?) foi escrito velozmente a partir de um mero jogo espontâneo de palavras e mandado mais tarde para a tipografia sem nenhuma emenda”.41 Talvez possamos, e quem sabe, devamos necessariamente, pedir a este “Debaixo do Vulcão” que perfaça o lugar de suplemento do trabalho processual – “desfazer”, “refazer”, “rarefazer” – que descreve a ontologia da obra oliveiriana. O que quero significar é que podemos tomar este poema como exemplo da massa estável de uma história da escrita, de uma história de escrita, em que a instabilidade crítica da matéria é a paradoxal norma. Numa Obra que acaba por ser subsumida pela slow motion,42 temos engastado o movimento célere, uma espécie de fast motion. Por outras palavras, diría que a processualidade da obra de Carlos de Oliveira tem inscrita a nãoprocessualidade. Há um limite na sequência de revisão e correcção, teremos mesmo o caso em que a obra de Carlos de Oliveira progride tendo como horizonte o fim da revisão e correcção. Pastoral e Finisterra são livros que, tomados na sua integridade, não seriam novalemente                                                                                                                         38

Obras, p. 1149. Obras, p. 1149. 40 Obras, p. 585. 41 Obras, p. 585. 42 Cf. Silvestre, 1995. 39

publicados “desfeitos”, “refeitos” ou “rarefeitos”. Certamente porque são, precisamente, o resultado da decantação e despojamento da obra anterior de Carlos de Oliveira. Até onde se pode (ou vale a pena) desfazer, refazer, rarefazer um poema ou um romance? Para todos os efeitos, Pastoral e Finisterra significam o término da revisão e correcção da obra anterior. A velocidade e o “sem emendas” pede precisamente, ao contrário do que poderia parecer, um tom menor: “Lava? Não, não exageremos”.43 Malcolm Lowry, escritor sous influence, faz grupo com Carlos de Oliveira na medida em que ambos agonizam a pulsão modernista de uma escrita processual, em fuga, tensada pela impossível fixação no instante de absoluta imanência, e por isso perfilando-se como depósito (e deposição) que acumula fragmentos, restos irredutíveis a um projecto, a um fundamento, a uma solução orgânica. Escritores na imanência da escrita, performers de uma caligrafia alucinada, de uma “mescaligrafia” em suma. “Debaixo do Vulcão”: apresentação de um rosto que torna inteligível dois rostos incomensuráveis. Rostos gemelares no paradigma da “mescaligrafia”. Leia-se, do poema IV: “Tépido mescal / para inventar / a mescaligrafía / gémea do som / ou da sombria / pauta musical”.44 Cerne gemelar: entre o som e a sombra (o silêncio), a “mescaligrafia” é um pharmakon. Ainda, a “mescaligrafia” é um modo de estar dentro e fora do presente, é o modo de activação de uma percepção extática: no tempo, fora do tempo. A minha entrada na obra de Carlos de Oliveira, assim, visa estabelecer algumas cláusulas sobre um campo analógico que perfura o seu trabalho poético e que implica a figuração de uma perceptividade alterada, implica a figuração de uma alteração perceptiva. Quando os dispositivos de representação claudicam, a dominante epistemológica da relação com o mundo é impelida a ser também                                                                                                                         43 44

“Micropaisagem”, Obras, p. 585. “Debaixo do Vulcão”, Obras, p. 270.

mediada pela ontologia. O mundo está aí mesmo que a máquina do mundo tenha parado ou apenas a continue a funcionar “nos meus olhos”.45 O mundo que está aí, na sua opacidade e resistência à representação – também ela opaca – adquire um contorno extático. Estáse sensivelmente no mundo, como em êxtase. No início de Finisterra isto é dito na figura da ‘flutuação’: “A densidade calcária decresce tanto que podem ambos flutuar (a criança e o osso de baleia) sobre musgos biliosos, caules de gisandra, líquenes, doenças vagarosas”.46 O mundo é encarnação de singularidades, de acontecimentos que, ao serem irredutíveis a leis – têm uma dimensão estética, sem regras apriorísticas –, são mediados por analogia. Entre singularidade e singularidade, entre imagem e imagem – entre a fotografia, a pirogravura, o desenho da criança, a maquete – temos engastada a gemelaridade. Modelos de mundo – precários como precário é o modelo de mundo que é o romance Finisterra –, cancelam a lógica do binómio singular/universal. Não são nem sujeito, nem objecto; nem teoria, nem matéria; nem realidade, nem ficção; nem verdade, nem mentira; nem forma, nem conteúdo. Creio que é este funcionamento paradigmático que amalgama Pastoral e Finisterra à obra(s) anterior(es) de Carlos de Oliveira. Cada obra é uma singularidade que se soma a um campo de forças de outras singularidades, configurando um campo de inteligibilidade em que cada singularidade é simultaneamente paradigma do conjunto e singularidade de outra sigularidade paradigmática. A amálgama é, assim, uma constelação de erros e acertos. “Debaixo do Vulcão”: poema escrito em fast motion. Volto agora a este suplemento da libido scribendi de Carlos de Oliveira, pois pretendo ampliá-lo a uma releitura da gisandra sub specie farmacológica. Releitura, enfim, em função da tópica de uma escrita em transe. “Terra / sem uma gota / de céu”, “Céu / sem uma gota / de terra”. O quiasmo                                                                                                                         45 46

Obras, p. 599. Obras, p. 1009.

obriga a pensar a “gota” como propriedade que, sendo atributo tanto do “céu” como da “terra”, bloqueia, contudo, a assimilação da “terra” e do “céu”. Tanto o “céu” como a “terra” estarão por algo como a Natureza, aquela que um determinado modo de imaginação concebeu idêntica a si mesma.47 O quiasmo propõe uma outra imaginação, em que a Natureza se concebe na diferença de si mesma. Enfim, se a minha leitura é correcta, o quiasmo propõe que se conceba a Natureza em transe, isto é, na suspensão de identidade e diferença. Centremo-nos na “gota”, essa que identifica, distingue e, ao mesmo tempo, indistingue o par identificação/distinção. A “gota” é singular e universal: nenhuma gota é outra gota; mas qualquer gota é outra gota. Quem diz esta “gota”, diz o “musgo” de Pastoral, entre a “água” – isto é, a virtualidade da diferenciação – e a “indiferença”.48 E a gisandra, pharmakon terminal, veneno último? A gisandra: objecto intratável, teológico – como o dinheiro, vulgo ‘massa’ –, verdadeiro desafio hermenêutico, talvez mesmo um desafio à hermenêutica. Luís Mourão, precisamente, leu a gisandra como “princípio anti-dialéctico”: “forma de pensar o impensável marxista”, ao significar “a negatividade teleológica da materialidade histórica e da materialidade natural. No próprio cerne da dialéctica da natureza”, assim, “Carlos de Oliveira introduz um princípio anti-dialéctico [a gisandra é natureza que não produz mais natureza] que lentamente devora para homogeneizar e paralisar”.49 Avanço agora com a minha proposta de leitura da gisandra, que entendo como cifra alegórica tanto da escrita em transe como do mundo em transe. Na detonação do meu ensaio insinuei, justamente, a ideia da gisandra como pharmakon e antecipei que considero ser necessário diferenciar duas ou três gisandras. Na passagem que citei ao início é consignado já um dos modos de (não) ser da gisandra. A gisandra diferencia-se da                                                                                                                         47

Cf. De Man, 1984, p. 4 e ss. Cf. “Musgo”, Obras, pp. 407-408. 49 Mourão, 1996, p. 285. 48

mandrágora: “Esfrega a gisandra entre os seios; oxalá fosse sumo de mandrágora: alcalóides, excitantes, farmacopeia infatigável da fertilidade”.50 Esta frase diz-nos apenas que entre a gisandra e a mandrágora se estabelece uma relação particular. Que significa “oxalá fosse”? Desejo de que a gisandra seja ou venha a ser num futuro como a mandrágora? O enunciado não diz “oxalá seja”, mas sim “oxalá fosse”: desiderato, então, de que a gisandra viesse a ser como a mandrágora no sentido de partilharem uma unidade perdida primordial mas ainda recuperável no presente? Por outro lado, o “oxalá fosse” pode devolver um sentido deceptivo. Na base da frase, então, teríamos não um juízo sintético que afirmasse a similitude entre gisandra e mandrágora, mas um juízo analítico que as distingue.51 A gisandra não é a mandrágora, e viceversa. Ora, a propriedade que as distinguiria seria, precisamente, a da fertilidade. Onde a mandrágora é sumo fértil, a gisandra pode ou não ser fértil, o que lança sobre ela o ónus da probabilidade de ser substância estéril. Até aqui, um conjunto de especificações a partir da frase citada, que não é, todavia o único lugar onde o discurso se aproxima da ‘natureza’ da gisandra. Se neste lugar temos o par gemelar gisandra/mandrágora, noutra passagem do romance – bem conhecida – deparamos com um outro gémeo da gisandra, o óvulo: “Óvulo e gisandra seguem processos degenerativos próprios, corrompem a seu modo certas leis (e certa intimidade) da genética, mas tendem a instaurar uma única tara nos dois reinos mais vulneráveis”.52 Note-se que nos primeiros dois acordes da frase, podemos ler a relação analógica de óvulo e gisandra: partilham o atributo degenerativo, mas em processos discretos (isto é, “próprios”). Mesmo as “certas leis da genética”, afectadas pelos processos degenerativos, não têm por que ser as mesmas leis genéticas. Por fim, o atributo que as indistingue, aquela “única tara”. É neste terceiro tempo                                                                                                                         50

Obras, p. 1082. Cf. De Man, 1996, p. 174. 52 Obras, p. 1093. 51

que se afere a identidade de ambos, óvulo e gisandra. O último acorde, por fim, recupera a tensão analógica, os “dois reinos mais vulneráveis” são novamente “próprios”: o óvulo contamina o reino animal, a gisandra o reino vegetal. Esta mesma dialéctica em suspensão é a que temos na gemelaridade gisandra/feto. Eis a passagem de Finisterra em que são assimilados: “Tudo aceitável, se vários fenómenos não escapassem à regra, não indicassem mesmo que os objectivos parecem alterar-se (sejam eles quais forem). Exemplos? A gisandra, designada (?) para indiferenciar as espécies do segundo reino; o feto, cortando (no primeiro) um fio vital, indiferenciando (por escassez ou recuo) caracteres bastante definidos”.53 Note-se, desde já, que a gisandra contamina explicitamente o “segundo reino” (isto é, o reino vegetal), ao passo que o feto afecta o “primeiro”. Neste passo, entretanto, o elemento importante é do desenvolvimento da tal “única tara”, o atributo em que coalescem gisandra/óvulo, agora dito processo de “indiferenciação”, que é então o predicado que indistingue gisandra/feto. Por último, assinale-se que a tensão analógica se mantém: ambos, feto e gisandra “indiferenciam”, mas enquanto a gisandra o faz rasurando espécies, o feto difumina “caracteres bastante definidos”. De momento, três observações: a ontologia da gisandra tem um contorno no reino vegetal; tanto óvulo como feto são como a gisandra na medida em que, operando dentro dos limites dos seus reinos respectivos, são agentes de “indiferenciação”; por último, “indiferenciação” não significa o mesmo no caso da gisandra, por um lado, e no caso do óvulo/feto, por outro (isto é: uma coisa é indiferenciar espécies, outra indiferenciar “caracteres bastante definidos”). Seja como for, o que tenho estado a tentar argumentar é que a gisandra, dentro do paradigma gemelar abordado, se define num marco relacional. Por outro lado, haverá que fazer uma distinção entre a gisandra que entra nesse marco relacional – nesse marco analógico – da tal gisandra intratável e                                                                                                                         53

Obras, p. 1141.

indialéctica. Para tanto, há que recuperar o capítulo VII e os dois parágrafos finais do último capítulo do romance. Curiosamente, o início do capítulo VII e os últimos parágrafos do derradeiro capítulo coincidem na nomeação dessa outra gisandra. Leia-se, então: “O estrume desta gelatina ávida, que se alimenta de si mesma, dos resíduos possíveis, da humidade escapando às locas pelas raízes de arame, é a gisandra morta”.54 O capítulo que descreve a gisandra começa por nomear a “gisandra morta”. Começa pelo fim da gisandra, e é desse depois do fim da gisandra que se diz “estrume” e “gelatina”. Fá-lo como um ser vivo, sendo um corpo morto: antropomorfizada, esta “gisandra morta” ‘alimenta-se’, ‘escapa’ ou revela ‘avidez’. Voltarei à descrição com que continua o capítulo VII, desta feita da “gisandra viva”. Mas antes, salto para parágrafo final do capítulo, onde regressa a actividade da “gisandra morta”. A apresentação da gisandra é feita no contexto das “ameaças lá de fora” que fazem perigar a casa. A gisandra, de facto, não é a única ameaça, também o é a “névoa” que é descrita no início deste último parágrafo. Assim, a gisandra é um “segundo perigo”: “Não tarda muito, há-de juntar-se à névoa um segundo perigo, também obsessivo: a lama das gisandras percutindo os alicerces todo o inverno”.55 “Estrume”, “gelatina” e agora “lama” nomeiam a “gisandra morta”. E, uma vez mais, o pendor relacional que assimila/distingue gisandra e névoa: ambos “obessivos”. Se recuperarmos, por último, o dois parágrafos finais do romance, veremos que é também o trabalho da “gisandra morta” o que conclui a obra. Uma vez mais, a introdução da gisandra é geminada pela névoa que a antecede: “Exagerei com certeza a importância da deambulação nocturna pela casa e o poder do halo contra as ameaças lá de fora. Não é só a névoa: a lama das gisandras começa também a entrar”.56 Só neste parágrafo final chega a gisandra, contudo a Casa já foi afectada tanto                                                                                                                         54

Obras, p. 1033. Eu sublinho. Obras, p. 1034. 56 Obras, p. 1153. 55

pela infiltração da névoa – que é a ameaça número um – como pelo processo metamórfico invisível dos materiais de que é feita. A exposição à névoa e este processo ‘interno’ são durativos. Da resistência dos materiais, aliás, dir-se-á mesmo que a sua decomposição, prolongada no tempo, terá eventualmente sido fatal: “Mudaram imperceptivelmente: décadas e décadas de escuridão. Metamorfoses invisíveis (talvez as mais importantes)”.57 Se a névoa (que tocou a casa muito antes que a gisandra) e as metamorfoses invisíveis determinaram a decomposição da Casa, que função cumpre no domicídio – seja-me permitido o neologismo – a “gisandra morta” que, aliás, apenas começou a entrar? Tudo se joga, enfim, no último parágrafo do romance. O cotexto, entretanto, é fulcral para entender o que acontece nesse último lugar da obra: o parágrafo anterior fez várias coisas: relativizou o trabalho negativo da gisandra pela agência, também corruptora, da névoa; relativizou o trabalho negativo da gisandra pelo princípio de metamorfose ‘encriptada’ dos materiais; estabeleceu um marco temporal durativo “longo” para o processo fatídico da casa, relativizando assim a afecção súbita por parte da recém-chegada gisandra. Ora, que nos diz então o último parágrafo? Transcrevo-o na íntegra: “Vejo (num breve fulgor do halo) a golfada gelatinosa rondando a cadeira de espaldar, onde esteve o executor fiscal (e, a seguir, a mulher dos dois rostos). Nasce no vão da janela (em baixo, junto ao rodapé: linha aberta entre duas tábuas podres), espraia-se pelo tapete. Dissolve (primeiro) a cinza que tombou do xaile de merino; e depois (à segunda investida), arrasta os grãos de saliva do executor, que tilintam (e brilham) até desaparecer”.58 O último parágrafo é uma visão: “Vejo”, e o vidente é o adulto que, sentado à mesa de vinhático, revê os papéis da família. O conteúdo da visão, entretanto, é a dissolução da cinza e o arrastamento e desaparição dos grãos de saliva. E é uma visão porque há uma alteração perceptiva, que                                                                                                                         57 58

Obras, p. 1153. Eu sublinho. Obras, p. 1153.

se objectiva se comparamos a visibilidade deste processo agenciado pela “golfada gelatinosa” – “gelatina”, recorde-se, era um dos nomes da “gisandra morta” – com a invisibilidade das metamorfoses dos materiais da casa. O adulto pode ver a dissolução, o que significa também que pode ver um processo em regime acelerado. Como se se tratasse de um filme em fast motion, numa velocidade tal que concentrasse naquele “breve fulgor do halo” – o instante do transe visual, como se lê no primeiro parêntese do parágrafo – todo um processo agenciado pela “gisandra morta”: “rondar” a cadeira, “espraiar-se” pelo tapete, “dissolver” a cinza e, por fim, “arrastar” os grãos de saliva. Enfim, a fulguração desta visio, desta alucinação do fast motion – uma vez mais, o cinema como máquina alucinatória coalesce no último parágrafo – é levada até às “últimas palavras”: os grão de saliva “tilintam” (transe auditiva) e “brilham” (transe visual). “Até desaparecer”: fagocitação pela “golfada gelatinosa”? Ou fade out (isto é: fim do “breve fulgor”)? Retorno, enfim, ao capítulo VII: funciona do mesmo modo a “gisandra viva”? Em que se assemelha e em que se distingue da “gisandra morta”? Vejamos, então, como é o metabolismo da “gisandra viva”, objecto também de descrição no capítulo VII. A “gisandra viva”, pertencendo ao reino vegetal, é descrita como um aparente dispositivo de reprodução que seguisse um modelo “animal”. Efectivamente, se atentarmos para os termos que integram a descriptio dos atributos da planta veremos que são colocados ao lado de predicados do reino animal. A actividade da gisandra é crepuscular, depende do “vento”, da “aragem” ou do “frémito” que “[a]rrepia as plantas túmidas de leite; comprime os caules penugentos; espreme a seiva para as campânulas (carne de cogumelo). O tecido esponjoso incha e os poros, dilatados sob pressão, ressumam um líquido pouco espesso (gotas de suor a despontar na pele): tensa e húmida, a cabeça da gisandra brilha”.59 Por um lado, os vocábulos “plantas”, “caules”, “seiva” e, por outro, os vocábulos                                                                                                                         59

Obras, pp. 1033-1034.

“carne”, “suor”, “cabeça”, devolvem-nos uma planta como um animal. O processo da actividade crepuscular – “comprimir”, “espremer”, “inchar”, “dilatar”, “ressumar” – culmina na etapa noctura. Durante a noite a actividade da planta pode depender ou não depender do vento, pois intervém uma ‘princípio interior’: “Durante a noite, mesmo sem vento, o metabolismo da gisandra (desencadeou-se o instinto da ejaculação) decide o resto: a planta goteja até de madrugada; depois, sob o toque da luz, explode num jacto que a esvazia e faz pender para o chão, exausta”.60 O ciclo crepúsculo/noite tem como resultado a explosão ejaculatória. Ora, é este esvaziamento ejaculatório o que reproduz a planta e agencia o seu crescimento? O texto não no-lo autoriza a formular categoricamente. Diz-nos que o ciclo metabólico da planta depende não apenas do “vento”, dos transes crepuscular e nocturno, mas também do ritmo das estações do ano. Um outro ciclo que se define pela sequência triádica “estio” / “outono” / “inverno”. Vejamos, então. O processo que culmina na explosão ejaculatória ocorre durante o “outono”, segundo o texto: “Durante o outono, atravessando o jardim, ouve-se o chão estalar (tal e qual a caruma pisada). Expelido o seu licor, carcaças ocas enchemse de bolhas, rebentam compassadamente”.61 A explosão ejaculatória é aqui dita no sintagma “Expelido o seu licor”. Depois do jacto, o esvaziamento, a exaustão: “carcaças ocas”. O excerto, contudo, acrescenta nova informação sobre a actividade das plantas após o ápice ejaculatório: “enchem-se de bolhas” e, enfim, “rebentam compassadamente”. Rebentação compassada: as plantas morrem? Não sei exactamente, mas a fase que se segue, a que corresponde ao “inverno”, é aquela que temos descrita no início do capítulo e que refere a “gisandra morta”. Referência que utiliza já não o plural “gisandras” mas o singular “gisandra”. No “inverno” há actividade nesse ente                                                                                                                         60 61

Obras, p. 1034. Obras, p. 1034.

nomeado “gisandra morta”, mas trata-se de uma actividade cujos atributos ou predicados são outros em relação aos atributos e predicados das “gisandras” outonais e estivais: “O inverno amassa-as, dá-lhes elasticidade: e então, a goma borbulhante espraia-se contra os muros, as paredes da casa, digere insectos, areia, folhas, insinua-se na gestação geral e assimila, por sua vez, gérmenes alheios”.62 No “inverno”, a “gisandra morta” não se define pelo dispositivo ejaculatório: a actividade é determinada pela alimentação. Massa elástica – a “gelatina”, também “goma” – por efeito da chuva que “não suportam”, a contrastar com o “vento” crepuscular/outonal? A dinâmica agora é dita por vocábulos como “espraiar-se”, “digerir”, “insinuar-se” e “assimilar”. Propagação e alimentação omnívora, já que inclui espécies dos três reinos: “insectos”, “folhas”, “areia”. Término da actividade da “gisandra morta”?63 O parágrafo que tenho estado a citar inclui ainda um novo lance, uma novo turn of the screw: “De ano para ano, as espécies rareiam ou desaparecem: o jardim pressente a vegetação uniforme e degenerada (acopulando os três reinos na gisandra futura)”.64 O trabalho alimentício da “gisandra morta” é                                                                                                                         62

Obras, p. 1034. Jean Baudrillard refere o caso da multiplicação de células tumorais para além da morte do organismo onde se aninham. A gisandra poderia ser entendida como uma espécie de clonação espontânea: “Hay algo escondido dentro de nosotros: nuestra propia muerte. Pero algo más está oculto, al acecho, dentro de cada de nuestras células: el olvido de la muerte. En las células aceha nuestra inmortalidad” (Baudrillard, 2008, p. 5). A gisandra: indivisível, idêntica a si mesma, imortal. Em Finisterra, como é sabido, Carlos de Oliveira recupera a figura brandoniana do “avejão”. No texto de O Aprendiz de Feiticeiro intitulado “A Pergunta”, diz-nos sobre o terror que infunde: “Mas não. De maneira nenhuma. Não se pode encarar a hora extrema sem horror. O avejão, o espectro impiedoso, bifronte, dualidade da consciência e do temor à inevitável cessação, irrompendo no limiar do tempo que a cada um compete, é o mensageiro da dúvida e do medo, a memória cruel do que passou e passou para sempre” (Obras, p. 451). A gisandra é da ordem do “avejão”? Neste sentido, o que importará é que, perante o “avejão”, os sonhos diferentes de todos os letraheridos que “sonham” se tornam um mesmo “sonho”: “Este sonho [i.e., o de Raul Brandão] não coincide ponto por ponto com o nosso, mas diante do avejão a diferença parece-me insignificante” (Obras, p. 452). 64 Obras, p. 1034. 63

degenerativo: esteriliza a reprodução das espécies que, assim, se tornam “raras” e “desaparecem”. É de supor que, “aliment[ando]-se de si mesma” os ciclos voltem a repetir-se ainda mas reduzindo progressivamente o que tenha de regeneração dos ciclos. Isto significa que a degeneração é finita, e a interpelação desse limite é feita com o sintagma “gisandra futura”. Depois das “gisandras” e da “gisandra morta”, a “gisandra futura” que é da ordem de um pressentimento. A antevisão da “gisandra futura” apresenta dois atributos ou predicados novos: por um lado, a “vegetação uniforme e degenerada” e, por outro, aquele (diabólico) “acopulando os três reinos”. Como ler estes últimos sintagmas? A “gisandra futura” é, por um lado, vegetal que indiferencia outras espécies vegetais (é “uniforme”). E no caso dos “três reinos”? Diz-nos o texto que na “gisandra futura” se indiferenciam, também, os “três reinos”? Não exactamente, segundo creio. Como interpretar o neologismo “acopulando”, que amalgama ‘copular’ e ‘acoplar’? Se coligimos as acepções principais de ‘copular’ teremos ‘acasalar’ e ‘juntar algo com outra coisa’. No caso de ‘acoplar’, temos ‘ajustar algo a um lugar’, ‘emparelhar’ (e.g. dois animais), ‘unir dois circuitos’, ‘acordar discordância’ (e.g. de ideias) ou ‘juntar pessoas para actividade coordenada’. Acopular os “três reinos” na “gisandra futura” é indiferenciá-los ou diferenciá-los? Ou é a indiferença da diferenciação? Incognitus scriptor, um texto não decide, mantém a questão em suspenso: texto em transe, pois.

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