\"Fazer das Tripas Coracao: O Parentesco Cultural nos Ranchos Focloricos\"

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Descrição do Produto

SALWA EL-SHAWAN CASTELO-BRANCO JORGE FREITAS BRANCO (ORGANIZADORES)

VOZES DO POVO A FOLCLORIZAcAO EM PORTUGAL

CELTA EDITORA OEIRAS

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2003

CapItulo 5 “FAZER DAS TRIPAS c0RAcAO” 0 parentesco cultural nos ranchos folclóricos Kimberly DaCosta Holton

Ao longo do século XX,’ os ranchos folclóricos portugueses mostraram uma grande capacidade de adaptacao e resistência. 2 Os grupos fundados durante o Estado Novo suportaram rnudancas poifticas dramáticas e severas refor mas pós-revolucionárias. Também ultrapassaram a rotacao de alguns mern bros, dificuldades financeiras e temporadas sobrecarregadas. Além do mais, a excepcao de alguns instrumentistas, os interpretes nao recebern ção pelo seu tempo, habilidade e trabaiho. Dadas estas condiçoes, de certo modo árduas, quais as estrategias utilizadas pelos ranchos no sentido de al cançar a longevidade caracterIstica de tantos grupos? Proponho que os ran chos folclOricos sobreviverarn a condiçoes adversas durante décadas de ace lerada transformaçao polItica através do desenvolvirnento de sistemas multi facetados de parentesco cultural. Estes sisternas de parentesco de nIvel local proporcionam urna série de “redes sociais de seguranca” que garantem a so brevivência dos ranchos enquanto colectividades performativas. 0 seguinte estudo de caso baseia-se em doze meses de pesquisa arquivfstica e trabaiho de campo etnográfico corn vários grupos da regiao da Estrernadura, sobretu do corn o Rancho FolclOrico de Sobrecelo. 3

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Traduçao do inglés de Catarina Silva Nunes e revisão técnica de Saiwa El-Shawan Castelo-Branco. Esta investigacao foi viabilizada gracas ao apoio generoso da Alumnae Fellowship da Northwestern University, do Joint Committee on Western Europe do American Council for Learned Societies e do Social Science Research Council, através de verbas atribuIdas pelas Fund açOes Ford e Mellon. Os nomes dos lugares e das pessoas foram alterados, a fim de garantir o anonimato. 143

\‘OZES DO POVO

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acordeonista principal

Muitos ranchos folclóricos oriundos de todo o Portugal forjam relaçOes entre si, seguindo urn modelo de parentesco familiar. Frequentemente, represen tam-se a si próprios corno a linhagem ou o legado de grupos de décadas ante riores. 0 Rancho Folclórico de Sobrecelo (RFS), urn agrupamento experiente da regiao da Estremadura, invoca a sua ligacao a dois grupos locais, descre vendo-se como “o fiel continuador dos Ranchos FolclOricos da Taca e dos Tn gos” (RFS s. d.). 0 Rancho dos Trigos, existente de 1945 a 1959, extinguiu-se no ano em que o RFS foi formado. 0 RFS herdou vários dançarinos deste gru po, bern como o seu ensaiador. o segundo grupo associado ao RFS, o Rancho Folclórico da Taça, funda do em Sobrecelo em 1937 e extinto em 1939, foi urn dos prirneiros grupos fol clóricos portugueses corn projeccao internacional.

o Rancho da Taça estava ligado as festas vindirnais, festas da uva e do vinho. Foi em Lisboa, e depois de Lisboa vinha a Franca... Mas depois em 1939... Grande Guerra Mundial... terminou esses congresses eram congressos que se chamava. Era o quinto rancho internacional do mundo... Come a guerra re bentou... terminou corn esses congressos... 0 rancho de cá depois terrninou. (Ferreira 1996) —

Embora o RFS não tenha herdado qualquer dos intérpretes do Taça, este ye nerado rancho legou aquele uma das suas modas que ihe serviarn de indica 4 Anotoriedade do Taça, enquanto urn dos primeiros ranchos portugue tive. ses a actuar internacionalmente, foi transmitida ao RFS corno uma herança material. 0 RFS capitaliza esta impressionante história “familiar” sempre que possIvel. Quando em actuação, por exernplo, o apresentador narra sem pre a filiacao entre o Taça, Os Trigos e o RFS como testemunho de autenticida de e da linhagem histórica do grupo. Em cartas destinadas a angariar fundos, dirigidas a politicos locais ou empresas privadas, o RFS invoca esta li gacao corno prova da sua longevidade isto é: de que se trata de urn sólido investimento gracas ao notável pedigree local e a garantia de ganhos futuros. 0 RFS, enquanto “legado devoto” de dois grupos de referência, coloca-se firmernente numa longa linha de sobrecelianos dedicados a representacao da tradiçao local. 0 RFS atribui o seu sucesso a uma dedicaçao e a urn trabalho árduos, rnas também a sorte de ter “laços de sangue” sólidos corn outros ranchos. Para além das ligacoes a agruparnentos histOricos, o RFS mantém Iaços familiares corn ranchos existentes. Segundo Manuel Costa, presidente e —

Siçuature

matins

no original (N. do T).

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do RFS, a grande maioria dos ranchos em Portugal tern padrinhos e afilhados. Costa explica:

A construção de laços locais

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“FAZER DAS TRIPAS C0RAçA0”

0 Rancho do Milinho, que é na zona de Bucelas, é nosso afilhado... Por exem plo, eu you baptizar urn bebé, come padrinho. Sou o padrinho, fui eu que dei o norne. A formaçao dos ranchos era feita assim. Ao formar-se o rancho convida yam urn rancho ja creditado para padrinho dele. Nós somos padrinhos de mui tos ranchos. (Costa 1996) Atradicao de escolher padrinhos para o rancho deriva, como sugere Costa, da prática baptismal católica de escolher duas pessoas para dan o nome a uma crianca recém-nascida e assegurar a sua educaçao religiosa, caso os pais ye nham a morrer. 0 rancho-padrinho apoia o afilhado, contnibuindo para o re pertónio em formaçao pela cedência de vánias das suas modas mais conhecidas. Supenvisiona ainda as primeiras actuaçöes, ensinando aos membros do ran cho-afilhado a coreografia e a müsica tIpicas da regiäo. De facto, o padninho abencoa o afilhado, oferecendo-lhe repertOrio e conhecimentos como dádivas. Estas aliancas inter-ranchos, contudo, podem também tornar-se tensas e confusas quand se trata de lidar corn questOes de repertório. Em situaçoes especIficas, a partilha ou cedência de repertório e de rnais elernentos perfor mativos é aceite (corno acontece, por exemplo, quando o padninho do rancho baptiza o afilhado, ou quando urn rancho local decide extinguin-se, quando outro gnupo é cniado, legando todo o seu nepertOrio ao rancho emergente). Contudo, o roubo ou apropriacão indevida de repertorio e uma pnatica co mum que quebra as relacoes intergrupos. Estas rupturas ocorrern corn rnais frequencia entre grupos vizinhos que operam na rnesma freguesia ou no rnes mo concelho, tendo ern conta a perrnutabilidade devida a sirnilitude das suas tradicoes musicais e coreograficas. 0 assalto ao repertOnio é particularmente destrutivo para grupos, como o RFS, que lutam por rnanter uma identidade musical e coreografica distinta e autOnoma, diferenciando-se das dezenas de ranchos da mesrna localidade. A criaçao e a rnanutençao de uma identidade própria ou, rnelhor ainda, de um estilo e de urn repertónio ünicos garantem urn major nümero de solicitaçoes para festivais e espectáculos remunerados. Os habitantes locais tambérn podem servir de padninhos de rancho. Quando o RFS foi fundado, a filha de urna proeminente farnIlia sobreceliana tornou-se a madrinha do rancho. Esta farnIlia desempenhou um papel impor tante no perIodo inicial de desenvolvimento do RFS; forrnada por urn clä de engenheiros e lavradores nicos, pois todos os anos onganizava na sua quinta urna festa estrondosa em honra do aniversário do seu grupo-afilhado. Estas festas ajudaram nao apenas a fortalecer o vInculo entre o RFS e Os seus padni nhos, como tarnbém tornaram püblica esta auspiciosa alianca local. De acordo corn Costa (1996), o RFS e a famflia local tern vindo a perder o contacto. Teoricamente, se a madrinha é uma residente local, a sua

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VOZES DO POVO

responsabilidade é “não deixar acabar este rancho por respeito àqueles que ja passaram por cá antes. E uma obra que tern que continuar, nao pode parar.” Na prática, porém, Costa admite ser difIcil dar continuidade a uma tal relaçao, da das as profundas transformaçoes sociais e polIticas ocorridas. Costa relaciona o esfriar da ligacao entre o RFS e a famflia local corn a queda do fascismo em Por tugal, ocorrida em 1974: “Näo so mudaram as mentalidades, em termos de p0lItica, como as pessoas passaram a ser outras também” (Costa 1996). 0 perIodo politico conturbado que durou entre 1974 e o princfpio da dé cada de 1980 nao so quebrou a relaçao entre o RFS e a sua madrinha, como criou também urn grande conflito no seio do próprio grupo. Contudo, o ran cho reagiu, consolidando os Iaços entre os seus membros e criando novas re laçoes corn empresas e personalidades locais. Corn o inIcio, em meados dos anos 80, do processo de privatizacao da econornia portuguesa, vários tipos de cornércio tern tido em Sobrecelo urn crescimento espectacular. E o caso de Pa rago, uma fábrica de materiais de construçáo que emprega vários dançarinos do RFS e tern assurnido efectivamente o papel de madrinha deste rancho. Todos os anos, o proprietário desta empresa faz donativos finance iros conside ráveis ao grupo. Esta alianca decididarnente pOs-revolucionária tern menos a ver corn urn apoio cultural e espiritual do que corn urn acto explIcito de patro cInio econórnico. A Parago serve de mecenas do RFS. As acçöes benernéritas da Parago ao RFS cumprern várias funçOes. Fi nanciando este rancho, o proprietário da Parago retribui alguma coisa a loca lidade de onde extrai recursos rnateriais e humanos. 0 mecenato em prol do RFS, urn grupo dedicado a preservacao e divulgacão das tradiçoes locais de Sobrecelo, permite ao proprietario industrial contribuir de forma indirecta para a producao de identidade local, através do espectaculo. Este gesto tarn bern serve os interesses da própria empresa. Financiando as actividades lüdi cas dos seus ernpregados, meihora a relaçao entre patrao e trabalhadores. Além disso, ganha boa reputacao entre os habitantes de Sobrecelo que constituern nao apenas a sua forca de trabalho, como tarnbém urn rnercado para os seus produtos. Durante o Estado Novo o governo proporcionava o enquadrarnento para estas alianças locais. Através das casas do povo, definidas corno “institu tos patrao-empregado para os trabalhadores rurais” (Wheeler 1993: 70), o es tado rnediava relaçoes sociais entre classes, pretendendo promover a harmo nia no local de trabalho e funcionando por vezes corno urna espécie de alto patrono. Hoje, contudo, o patrao e os trabalhadores negoceiarn directarnente entre si. 0 estado ja nao desempenha o papel de intermediário. Para mais, os laços padrinho/afilhado actuais, entre cidadãos proeminentes e ranchos lo cais, derivam rnenos de urn sentido de obrigacão moral próprio do catolicis mo social, do que de vantagens econOmicas mOtuas. —

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“FAZER DAS TRIPAS coRAçAo”

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FarnIlias e pertenca ao Rancho Foklórico de Sobrecelo ou “fazer das tripas coração” pesde Agosto de 1996, o RFS conta corn 31 mernbros, entre cantata, tocata e 5 Comparado corn outros grupos, constituIdos dancarinOs ou dancadores. essencialmente por jovens intérpretes com idades compreendidas na casa entre os 10 e 20 anos, o RFS é urn grupo relativarnente rnaduro. Tal corno apresentado no quadro 5.1, a distribuição das faixas etárias no rancho é equilibrada, tendo 0 mais jovem 11 e o mais idoso 74 anos, o que revela o nO mero elevado de famIlias extensas existentes no RFS, abarcando ate trés ge racOes. Todos Os mernbros do RFS tern ou tiveram pelo rnenos urn familiar no rancho. Na farnIlia Tavares, por exernplo, seis membros actuavam em 1996 —José; o seu irrnão, LuIs; a sua filha, Rosa; a sua cunhada, Manuela; a sua sobrinha, Ana; e 0 sogro do seu irmão, Miguel. A grande rnaioria dos membros do RFS tern também familiares que actuam ou actuararn em ran chos vizirihos. Estes dados indicarn a grande incidência de famIlias extensas em ranchos. Como os interpretes do RFS declararn frequentemente, “o fol clore fica nas farnIlias”. Outros familiares participarn como rnascotes ou acompanhantes. 0 RFS tern cinco mascotes regulares, corn idades entre os quatro e os dez anos. As mascotes, crianças dos dançadores do rancho, nao actuam corn o grupo, mas estäo trajadas durante o espectáculo e participarn regularmente na Marcha de Entrada, ernpunhando bandeiras ou alfaias agrIcolas. 0 devotado grupo de acomparthantes do RFS presta auxflio nos preparativos para as exibicoes, zela pela rnanutençao da sede do rancho, pelo conserto dos trajos e assiste a maioria dos ensaios e actuaçöes. Grande parte dos acompanhantes são mulheres, todas elas familiares dos membros. Além de proporcionarem apoio moral durante as exibiçOes, elas cuidam ainda das crianças enquanto os seus pais actuarn. Segundo os membros, a matriz das relaçoes interfamiliares nos intérpre tes do RFS deriva da tradiçao de educacao infantile de consideraçoes de ordem prática. Quando gravidas ou enquanto as crianças são muito pequenas, rnuitas mulheres suspendern a actividade no grupo por urn ou dois anos, reentrando mais tarde e trazendo as crianças consigo. Logo que entrarn no rancho corn as suas mães, servem de mascotes ou integrarn-se no agrupamento infantil, cui dadas pelas acompanhantes. Aintegracao da criação dos filhos em todas as ac tividades do RFS resulta da vontade de conciliar matemidade corn actividades lOdicas. Por isso, nao é surpreendente que muitos deles, que literalmente cres ceram no “foiclore”, se tornem membros quando jovens adultos. 5

Durante os dois anos que passei corn o RFS, o grupo perdeu duas vocal istas, urn tocador de ferrinhos, urn dancador, ganhando urn casal de dançadores e urna jovern vocalista. Uma dançarina assistia aos ensaios no esperanca de poder ingressar no rancho no inver no de 1997.

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Outra razão evocada pelos membros do rancho para a prevalencia de fa mIlias extensas no seu seio, é o facto de o interesse e o talento pelo foiclore se transmitirem de geracão em geracao. Como afirma Alexandre Correia, urn veterano corn 20 anos de RFS, cujas duas filhas tarnbérn nele actuam: “Como se diz cá em Portugal, ‘filho de peixe sabe nadar” (Correia 1996). Apredispo sição para saber dancar o folclore é caracterizada como “ter jeito”. José Tava res (1996), tesoureiro e membro do RFS, a sua filha Rosa, uma dançarina, e a sua rnulher, uma acompanhante, descrevem o modo como a famIlia inteira se ligou ao folciore numa espécie de efeito de bola de neve: Eu andava, eu gostava e o meu irmão andava muito comigo nos bailari cos e nas festas... Eu andava no rancho, “também you”. E pronto, foi assim: o LuIs veio quase a reboque do mano. Rosa: E eu fui a reboque do meu pai e do rneu tio. José: Eu fui assirn e o LuIs foi influenciado. Maria: Dançavam em casa os dois.

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“FAZER DAS TRIPAS CORAcAO”

Quadro 5.1

Rancho FolclOrico de Sobrecelo (RFS): faixas etárias dos membros (1996)

Percentagem

Grupos etárIOS

23 23 23 20 10

10-20 21-30 31-40 41-50 +51 Rota: Dado o arreciondamento dos pontos percentuais, a soma das parcelas nao alinge Os 100%.

José:







Ametáfora do reboque descreve o modo como urn interesse contagiante pelo folclore foi desencadeado, mas “ter jeito” traduz a forma como a famIlia foi capaz de concretizar esse interesse através da performance. Toda a famIlia Tavares foi facilmente integrada no rancho, dado o seu grande talento como dancadores. Contudo, alguns dos familiares foram gra dualrnente dispensados devido a avaliacão, por parte da direccao, da sua fal ta de habilidade fIsica para aprender as dancas ou, simplesrnente, por “não terem jeito”. Habitualrnente, aos membros que não são aceites corno danca dores é dada outra funçao, como a de tocar percussao ou a de acompanhante, ou então limitam-se-lhes as oportunidades para actuar, o que os pode levar a abandonar o grupo. Entrar para urn rancho, sobretudo quando apenas urn dos cônjuges ac tua, e frequentemente desgastante para as famulias nucleares. As estratégias para ultrapassar estas dificuldades diferem muito de acordo corn o género. Para as muiheres casadas, a ünica maneira de conciliar as responsabilidades familiares corn o rancho-farnIlia, é assegurar a inserção do rnarido no grupo. For isso, todas as muiheres casadas do RFS tern os maridos no rancho e as que são dancarinas fazem par corn os maridos. For outro lado, ha actualmente sete homens casados a actuar sem as suas esposas. Algurnas rnulheres afirma ram-me que seria quase impossIvel actuar num rancho sern a cornpanhia dos seus maridos: “Nern pensar! Não dava.” Daqui decorre que a causa principal do termo da perrnanência das mu iheres no RFS e o casamento. João, tocador de reco-reco, mencionou-me que a sua filha, ate af dançarina, após o casamento tinha deixado de o fazer, por se ter tornado “forte que não dá para dançar.” Em 1994, Sofia deixou de ser vocalista, evocando o seu casamento recente, como a principal razão. Airmã —

mais veiha de Claudia, apOs vários anos a desempenhar o papel de dançado ra, tambérn abandonou o rancho depois do matrimónio. Fatima Veloso (1996), está noiva de Miguel e e uma jovern e talentosa dançarina; disse-me que terá de abandonar o rancho quando casar. Nurn dialogo revelador, Mi guel, Fatima, a mae de Fatima, Joana e eu abordámos a sua saIda eminente: Porque nao gosta de folclore? Autora: Não sei, talvez por prender muito do nosso tempo... Miguel: Ha pouca juventude dentro do nosso rancho... Joana: Autora: E nao fica ciumento de ela dançar corn outro? Não. Miguel: Fdtima: A dançar corn outro não, mas por eu dançar no rancho sirn. Por vonta —







de dele já tinha saIdo o ano passado. No RFS, as mulheres casadas cujos cônjuges não se integraram no rancho, abandonararn a actividade. Algurnas rnulheres solteiras tern vindo a negociar estas polIticas de genero, escolhendo o futuro marido dentro do rancho. Como Paulo Mendonça (1996), urn dançador, afirma: “ha rnuitos casamentos feitos no rancho”. Claudia e Jose Oliveira, por exernplo, namorararn e passa ram os primeiros anos de casamento corno dançadores do rancho. Outra es tratégia usada pelas mulheres que se vao casar em breve e cujos noivos dan cam noutros ranchos é conseguir que os homens se transfiram para o RFS, como foi o caso de Francisca e LuIs Silva e de LIdia e Fernando Santos. Do mesmo modo que os casamentos resultararn em abandonos do rancho por parte das muiheres recérn-casadas, o rancho tarnbém beneficiou do ingresso de dançarinos, que queriam estar juntos corn as mulheres, corn quem se ha viam casado recenternente. Contudo, o duplo padrao, relativo ao género, que existe entre os casais no RFS, serve para criar urn tipo especIfico de famIlia co lectiva, no qual as dançadoras casadas devern ser acompanhadas pelos seus maridos e forrnar pares corn eles, tanto nos ensaios, como nas actuaçOes. Quando os conflitos surgem, aumentam de imediato os riscos. 0 RFS deve negociar posicoes frequentemente unânimes de unidades familiares inteiras.

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F se o conflito não se resolver, o perigo de alienar toda uma farnIlia, ao ponto de esta se demitir, constitui uma séria ameaça a integridade do RFS, enquanto grupo performativo. A pertenca ao rancho tambérn constrange fIsica e financeiramente rnui tas farnIlias nucleares. Lidia Santos (1996), trabaihadora rural, explica: Tive dificuldades na vida, o meu marido não estava neste emprego, estava na Ca mara e era urn ordenado muito pequeno, mas na hora em que era preciso eu faltei sempre... Eramos urn dos pares que não faltava ao ensaio. Eu viriha cansada da Ce noura... as tantas da noite, eu não comia, so tomava banho para ir para o ensaio. 0 testernunho de LIdia coincide corn as afirmaçoes de muitos outros intérpretes do rancho. Este tipo de dedicaçao a colectividade não so ameaça os ernpregos como impoe restriçoes financeiras as farnIlias dos mernbros do rancho. Muitos dos quais gani-tam pouco acima do salário mfnimo (ver quadros 5.2 e 5.3). Tendo como pano de fundoo aperto financeiro e o latente conflito den tro das farnIlias nucleares, o que leva estas pessoas a empenharern-se na reali zaçào de uma representaçao do passado e qual a explicaçao para a manuten ção do agruparnento desde ha quatro décadas? Que funcao desempenha a fa milia RFS na vida dos seus rnembros no Portugal do século XX? Paulo Men donça (1996) acredita que a colectividade dura devido aquilo a que charna a “camaradagem extraordinária” entre os seus rnembros: Tudo isso cativa para se continuar e por fazermos, como dizemos cá na nossa gI na, ‘das tripas coraçäo’, para manter, para pedir dispensa ao patrao para poder mos estar em todas. Mas desde que haja uma harmonia entre o pessoal nos tenta mos superar todos os prejuIzos monetários que isso possa trazer— traz sempre. LIdia Santos (1996), que pertenceu a quatro ranchos ao longo de 12 anos corno intérprete, tambérn assinala esta carnaradagern quando compara o RFS corn o rancho onde tinha dançado antes:

o Rancho Folclórico de Sobrecelo e uma famIlia. E uma amizade tao grande que

eu tenho por eles... ali e urn bocado independente... juntavam-se em grupos e a gente as vezes sentia-se urn bocado ma!... eu tinha lá a malta, mas näo é aquela amizade que me agarra muito... Dávamo-nos bern corn urn casal ou dois mas os outros estavam independentes. A gente nurn rancho ou numa coisa folclOrica, corn montes de casais... a gente sente-se bern, é born quando varnos dancar... e assim nao, estamos sempre comprimidos e näo nos metemos corn aquele por que aquele não nos liga. Aquela independencia náo dá. Em entrevistas individuais, rnuitos intérpretes do RFS fazem eco dos senti mentos de Paulo e LIdia, invocando o conceito de convivência, singular na

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‘FAZER DAS TRIPAS CORAcAO”

Quadro 5.2

Rancho Folclórico do Sobrecelo: niveis de rendimonto dos membros (1996)

RendimentO (escudos) SaláriO minimO cm 45.000-52.000 53.000-100.000 101.000-200.000 200.000 e +

Nota: 0 inteiro.

Percentagem 0 10 54 32 4

-

quadro apresenta o rendirnento mensal de todos Os membros assalariados do RFS, que trabalham a tempo

Quadro 5.3

Rancho FolclOrico do Sobrecelo: ocupacoes dos membros (1996)

Nümero de elementos

ocupac5o Comerciante Desempregado Done de casa Electricista Estudante Gerente Metal6rgico (ferreiro, solclador) Motorista (camionela, camiSo, carro de aluguer) Pedreiro Restauraç5o e servico dornéstico: empregaclo(a) dornéstico(a), enipregado(a) de mesa, cozinheiro(a) Trabaihador agricola

Percentagem

1 1 2 1 6 1 6 4 3 3

3 3 7 3 20 3 20 13 10 10

2

7

Note: 0 quadro apresenta apenas as ocupaçSes a tempo inteiro. Urn dos construlores civis e também empregado de escritário num flegdcio de venda a rotaiho, mas a tempo parcial. Urn dos motoristas trabatha igualmente a tempo parciat, como bombeiro remunerado. 0 membro do RFS desempregado trabathou anteriormente na Onha de montagem de uma fábrica a encontra-se a procurar activamente urn ernprego.

lingua portuguesa, para descrever o seu empenhamento. 6 Se os membros do RFS sublinharn a sua pacIfica vida em comum, fazem-no corn o conhecimento implIcito de que a convivência é uma “conquista social inerentemente fragil” (Appadurai 1996). Os interpretes do RFS lutam por esta conquista corn vigi lância e determinaçao, porque a sua colectividade performativa, a sua farnIlia de folclore, ajuda a processar, exibir e produzir urn sentido de localidade em transformaçao acelerada. 0 orgulho e a solidariedade locais encontram-se ex plicitamente ligados as contingencias da perforrnacao. E através da supera ção dos obstáculos no seio do grupo que os membros traçarn urn carninho que lhes permite articular a histOria corn a contemporaneidade local. Para os rnembros do RFS, a localidade, uma “propriedade da vida social”, não está 6

Esta expressao foi também utilizada pelos membros de urn coro amadon em Lisboa: “A expressao convivncia foi a mais invocada, quando os elementos eram solicitados a defi nm o seu coro numa palavra. (Cardoso 1986: 49) “

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dada; é antes “efémera, a menos que se assuma urn trabaiho árduo e regular em ordem a produzir e manter a sua materialidade” (Appadurai 1996: 180-181). E quando a convivência não é conseguida, a pertenca ao grupo ter mina, transformando-se o rosto do foiclore-famIlia. Os elementos excluIdos partern em busca de novos projectos de construçáo da identidade local. As ünicas constantes nesta cacofonia de variáveis sO os factos de a performacao folclórica produzir identidade local e de os seus interpretes servirem conti nuamente como construtores da localidade. 0 sisterna de parentesco local do RFS nao nasceu da comunhao passiva, mas de urn ensaio continuado.

Entrevistas citadas Correia, Alexandre (1996), entrevista realizada pela autora, gravacao audio, Sobrecelo, Portugal, 16 de Junho. Costa, Manuel (1996), entrevista realizada pela autora, gravacao audio, Sobrecelo, Portugal, 22 de Maio. Ferreira, Bruno (1996), entrevista realizada pela autora, gravacao audio, Sobrecelo, Portugal, 18 de Junho. Mendonca, Paulo (1996), entrevista realizada pela autora, gravacao audio, Sobrecelo, Portugal, 29 de Junho. Rancho Folclórico de Sobrecelo (s/d), Historial, documento näo publicado que deli neia a histOria do RFS. Santos, LIdia (1996) Entrevista realizada pela autora. Gravaçäo audio, Sobrecelo, Portugal. Tavares, José (1996), entrevista realizada pela autora, gravacão audio, Sobrecelo, Por tugal, 21 de Junho. Veloso, Fatima (1996), entrevista realizada pela autora, gravacão audio, Sobrecelo, Portugal, 27 de Junho.

Parte III

I

METAMORFOSES

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