Feliz Aniversário: As aparências reveladoras dos laços de família

September 1, 2017 | Autor: V. da Cruz Pacheco | Categoria: Brazilian Literature, Clarice Lispector, Short story
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“FELIZ ANIVERSÁRIO”: AS APARÊNCIAS REVELADORAS DOS LAÇOS DE FAMÍLIA Victor Augusto da Cruz Pacheco1

O conto “Feliz Aniversário” de Clarice Lispector está dentro da obra Laços de Família publicada em 1960. Não é preciso ter um olhar mais atento para perceber que o título da narrativa já é bem revelador como um todo. A expressão que dá nome ao conto é dita para cumprimentar alguém no dia do nascimento e remete também ao contexto de comemoração onde as pessoas com algum laço afetivo se reúnem para prestigiar o aniversariante. Dada essa primeira informação retirada do título, o leitor entra no conto numa de “zona de conforto”, pois supõe-se o que será tratado ali é um acontecimento corriqueiro na vida das pessoas. De fato, não há no conto algo que beire ao extraordinário ou fora do comum: trata-se da comemoração dos 89 anos da matriarca da família que está rodeada nesta data pelos filhos, noras, netos e bisnetos. Mas é neste ponto, dos acontecimentos cotidianos, que a autora Clarice Lispector faz do simples um momento de perplexidade e busca da compreensão das situações ao redor. E a autora tendo como temática uma festa de aniversário, tratará sobre a relação com a morte, inerente à natureza humana. Como em Laços de Família temos o fio condutor “o universo familiar”, em “Feliz Aniversário” não será diferente. Entretanto, voltando na definição dada acima, o que há neste conto são justamente as aparências dos laços afetivos entre a família diante da matriarca, e a relação desta com ”a carne de seu joelho”. É necessário, porém, fazer uma breve consideração sobre o contexto e formação da família na época de escritura. Devido aos processos de modernização e influências externas vindas dos países desenvolvidos (lembrando que o Brasil sempre teve como modelo os costumes vindos da Europa), a estrutura familiar dos anos 50 – 60 começava a se modificar, apesar de ter suas bases e origens firmadas no século XIX. Entretanto, vale ressaltar que as mudanças se dão de forma desiguais e não refletem todas as camadas sociais e regionais. As alterações começam na representação da figura 1 Victor Augusto da Cruz Pacheco é aluno de graduação da Universidade de São Paulo, cursando bacharelado em Letras (habilitação em Português – Espanhol). Tem como área de estudos a literatura irlandesa com a pesquisa intitulada “As representações da Irlanda revolucionária nos contos de Sean O'Faolain” em andamento.

do pai que deixou de ser o líder do grupo com poderes absolutos e decisões indiscutíveis, pois, segundo Antônio Cândido em “The Brazilian Family”, a liderança também se tornou algo dependente da capacidade intelectual e não só da força e do prestígio econômico.2 O papel da mulher também teve um grande avanço se aproximando cada vez mais do papel que o homem exercia. O direito ao trabalho, ao voto e à separação, são grandes vitórias de um grupo expressivo que vivia submisso a um tipo de sistema social e assim, tentando mudar seu lugar na sociedade. Apesar do texto não ter como função a crítica de costumes sociais, esse panorama serve como plano de fundo para o desenvolvimento da narrativa que tem uma relação com o contexto social. Não se pode negar o fato de que ao pontuar o nome do bairro onde está localizada a festa (bairro de Copacabana) infere-se que a família é de classe média alta, reafirmando ainda mais a importância de um tipo de sistema familiar (que será discutido mais adiante) para aquelas pessoas. Além disso, é necessário manter um status, esse é confirmado pela nora de Olaria quando “ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma, não passava de economia” (p. 63) e ainda mais pelo veredicto da aniversariante, indignada pelas noras estarem “com as orelhas cheias de brincos – nenhum, nenhum de ouro!” (p. 61). Todas essas apreensões são mostradas através do narrador em terceira pessoa que desenvolve a onisciência seletiva múltipla. Temos vários diálogos internos das personagens com o predomínio do discurso indireto livre e dos deslocamentos do foco narrativo. Aqui observamos os pontos estilísticos de Clarice Lispector: a tripartição do conto, que em “Feliz Aniversário” podemos dividi-lo em chegada à festa, a festa propriamente dita e o final da festa; a repetição de sentenças, mostrando que o narrador se perdeu dentro das vozes das personagens tentando retomar ou retomando o fluxo narrativo; a utilização de adjetivos incomuns conferidos aos substantivos, como “sorrindo cegamente” e “punho mudo”. Apenas em alguns momentos vemos um narrador neutro, dando certa objetividade ao ponto narrado (“A família foi pouco a pouco chegando”), atenção a uma cena específica (“E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava no seu último bocado?”) e julgamento (“[...] quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe.”). 2 CÂNDIDO, Antonio. “The Brazilian Family”. In: SMITH, T. Lynn; MARCHAND A (ed) Brazil: potrait of a half continent. New York: Dryden Press, 1951, p. 306.

As personagens mostradas no conto podem ser dividas no gênero masculino e feminino (até as crianças podem ser divididas entre meninas e meninos), cada uma representando o seu papel na sociedade, e no caso das crianças, refletindo uma educação e costumes contínuos passados de geração a geração da família. As mulheres compõem a grande maioria das personagens, mostrando que a representação do lugar da mulher dentro do ambiente familiar será destacada. Algumas personagens são nomeadas, como é o caso dos filhos Zilda, José, Manoel e Jonga (este último já morto); Cordélia, a nora mais nova, e o filho Rodrigo (neto predileto da aniversariante) e Dorothy, a neta que serve o vinho. Há duas noras que são apenas nomeadas pelo seu bairro de residência (nora de Olaria e nora de Ipanema) e outra apenas chamada de concunhada de Olaria, mostrando também a diferença entre classes sociais entre os convidados da festa. E por fim a aniversariante, D. Anita, que descobrimos seu nome somente por causa de uma frase da vizinha que participa dos parabéns. Desde o primeiro parágrafo é trabalhado as aparências num modo geral e o conflito entre as relações familiares. Ao longo do conto, aparecem palavras ou expressões que evidenciam algum tipo de mascaramento das ações, como “disfarçar”, “fingindo” e “como prova de animação”. A primeira convidada a chegar é a nora de Olaria, acompanhada dos três filhos, que viera ao aniversário representando o marido “para que nem todos os laços fossem cortados”. São destacadas as vestimentas da nora, assim como a dos seus filhos, pontuando que a aparência exterior é fundamental numa recepção familiar, e também porque “a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana”(p. 54). Observa-se que a nora de Olaria externaliza aquilo que não é falado, porém compartilhado por todos: a insatisfação de estar ali, naquele lugar e com aquelas pessoas. Depois chega a nora de Ipanema, que trazia os netos, e que tivera algum desentendimento com a concunhada de Olaria, pois esta “cheia de ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadoramente a nora de Ipanema” (p. 56). Os dois filhos da aniversariante, José e Manoel, presentes na comemoração, representam um papel secundário de uma totalidade tomada pelo feminino. José tenta substituir o irmão já morto como o líder, tentado puxar discursos de animação e os parabéns “com um olhar severo”. Mas ele se vê numa situação difícil tanto pela “(...) próxima frase do discurso. Que não vinha. Que não vinha.” quanto por perceber que aquele não era o seu devido lugar na família. Manoel, sócio de José, funciona como um

“papagaio de pirata”, repetindo o que o irmão fala e tentando conversar sobre negócios. Já a “única mulher entre os seis irmãos homens”, Zilda, ficou encarregada a alguns anos de alojar a mãe. O narrador passa ao leitor exatamente os sentimentos amargos da personagem: Zilda encara a tarefa de cuidar da mãe e da festa como um “expediente” de trabalho, beirando a escravidão. Percebe-se que não foi uma escolha da personagem na frase “estava decidido já havia anos, [que Zilda] tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante” quando observamos o uso impessoal da terceira pessoa do singular. Além disso, Zilda considera a sua ação um verdadeiro sacrifício e, ainda por cima, enfrenta os juízos de valores empregados pelos seus familiares, como por exemplo, nos pensamentos da personagem (que a consideram nervosa e impaciente) que ela “sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltariam muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe” (p. 61). E sentada à cabeceira da longa mesa está D. Anita, personagem principal do conto, que será encarregada em trazer algumas questões pontuais da natureza humana (a morte que “era o seu mistério”) e trará a tona tudo aquilo que estava sendo trabalhado ao longo do conto. A festa de aniversário, claro momento de comemoração de (mais um ano de) vida, serve como pretexto para intensificar a proximidade da morte, não só para a aniversariante que está completando 89 anos, mas também aos seus convidados (ou mais especificamente para uma convidada em especial). E com isso temos também o bolo. Sendo um símbolo de uma festa de aniversário, ele tem uma nova camada de significação quando observamos que o corte de um pedaço dele é comparado com o lançamento da “primeira pá de terra”, uma alusão direta a um enterro. E isso é compartilhado secretamente por todos ao redor, pois cada convidado estava esperando parte da sua “pazinha”, e ainda mais por “alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se encontrar diante do bolo aceso”(p. 67), significando mais um ano de vida para D. Anita e uma oportunidade para um encontro familiar indesejado. E também, as características visuais do bolo “apagado, grande e seco” são semelhantes às características físicas da aniversariante. Até o simples fato de apagar as luzes tem outra caracterização através do verbo “fechar” que se mostra inocente, entretanto, está reiterando essas imagens de morte.

D. Anita, “a mãe de todos”, é descrita como uma “velha grande, magra, imponente e morena”. “Os músculos do rosto da aniversariante já não a interpretam mais, de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre.” (p. 56). Ela fica o tempo todo sentada à mesa, feito uma rainha, com o punho fechado, como se segurasse um cetro e só se comunica (excluindo o momento de sua irrupção) através do piscar de olhos e com a sua “mudez que era a sua última palavra”. Mostra-se rude, e com um olhar firme e severo na percepção do filho José. Ela é a matriarca da família, e com o desenrolar do texto, infere-se que sua vida foi regrada pelas tradições que ela ainda quer que sejam seguidas pela suas noras, “aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar...”(p. 61) e também, apesar de irônico, podemos considerar que em uma das vezes quando ela se indaga “Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar” é também uma maneira de perpetuar as tradições, e que as coisas continuem no seu devido lugar. Um ponto interessante é que lidamos com um choque de gerações que está escondido embaixo de camadas de significações mais evidentes. Um corte sincrônico dos anos 50 - 60 do século passado em relação à estrutura familiar que estava se modificando é, de certa forma, equivocado, servindo para analisar não a personagem principal do conto, mas sim, a descoberta da personagem Cordélia que vive as transformações do século XX. Deve ser considerado que D. Anita nasceu no século XIX, oferecendo ao leitor um novo panorama histórico. O sistema de base para a formação da família era o patriarcal, que é caracterizado pela centralização do poder nas mãos do pai, tendo este a autoridade sobre todos os membros da família e sobre todas as decisões. A autoridade paterna era praticamente ilimitada, uma vez que esposa e filhos eram sujeitos ao pai enquanto ele estivesse vivo. Essa figura do “líder” é reforçada pela lei, religião e moral. Ainda dentro deste contexto histórico-social, temos o tratamento dado aos filhos e esse é mais um ponto que serve como uma possibilidade de leitura. Um pouco mais acima, foi comentado sobre a relação do filho José com a mãe, onde ele sempre destaca a ausência do irmão mais velho Jonga e o quanto ele fazia falta em algumas situações, como na cena do “discurso final”: “Como Jonga fazia falta nessas horas – José enxugou a testa com o lenço – como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera ao Jonga tanta segurança.” (p. 65)

Este tipo de tratamento apontado pela personagem é típico da família patriarcal. Segundo Antonio Cândido no já citado ensaio “The Brazilian Family”: “The older chidren had great authority over the younger ones (...) and could punish them and comand them after the death of the father” (Cândido, 1951 p. 294). Ou seja, o filho mais velho ocupa uma posição privilegiada tanto na visão dos pais, pois será ele que assumirá a parte financeira caso o pai morra, quanto perante aos irmãos. Temos então uma nova visão em relação às personagens. Visto que a figura de base no sistema patriarcal é o pai, o marido de D. Anita não é nomeado como um membro de destaque na família em momento algum durante a narrativa. O discurso do patriarcado está tão arraigado dentro da aniversariante que a presença dele não é necessária e nem faz falta para o leitor. Ela é a “última representante” de um modo de vida em decadência e ainda defende um destino imutável, que estava sendo substituído pelas mudanças no conceito familiar. Observando a sua família, sentada à cabeceira da mesa, a aniversariante principia num tom crítico um julgamento acerca de todos ao seu redor: Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. (...) Aquele seria um homem. (...) Oh o desprezo pela vida que lhe falhava. Como?! Como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem, a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. (p. 60) Esta passagem é muito importante para ver o quanto o discurso de um passado não tão remoto, regrava os pensamentos da matriarca e mantém as relações ideológicas entre o homem e a mulher que ainda dominavam boa parte da formação familiar. Vemos toda a afetividade destinada ao neto Rodrigo que era “carne do seu coração” justamente porque a “corjas de maricas” não tinha algo essencial para qualquer homem: a virilidade. Na visão da aniversariante, aquele membro da família seria um homem, o único. Isso se difere em relação ao outro neto, filho da nora de Ipanema, que estava “acovardado pelo terno novo e a gravata”, ponto que passa despercebido por causa da sutileza do narrador. Vemos que as vestimentas símbolo do mundo masculino davam ao menino uma aparência contrária aquela que deveria dar. Outro ponto desse

excerto se destina ao papel da mulher dentro da sociedade. Este conceito de submissão ao homem está afirmado desde o começo dos tempos no mundo cristão. Desde o começo dos tempos, e ainda mais reiterado pela Bíblia, a mulher tem como função dar herdeiros ao homem para que o nome (sangue, legado, etc.) seja perpetuado e essencialmente para que os bens da família continuassem no círculo familiar. D. Anita destaca que cumprira a sua função como esposa, que ao marido “respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos.” O cuspe diante de todos é, obviamente, uma exteriorização de todos esses pensamentos que foram mostrados de forma profunda ao leitor. Ainda dentro dessa atmosfera de (o)pressão social e familiar, temos a personagem Cordélia, que nos traz uma forma muito comum na escritura dos textos de Clarice Lispector: a epifania. Essa técnica é mais visível e explorada densamente em outros contos de Laços de Família, e em “Feliz Aniversário” podemos considerar que a epifania é algo secundário, pois não é esse o foco central do narrador. A narrativa parece não ser sobre uma revelação para Cordélia, assim como foi para Ana (no conto “Amor”) e Laura (em “A Imitação da Rosa”). Entretanto é o ponto central onde o leitor se depara com o futuro irremediável da personagem. Segundo Affonso Romano Sant’Anna, a epifania pode ser vista tanto pelo lado místico-religioso quanto pelo literário, em que esse “significa o relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira, mas que acaba por mostrar toda a força de uma inusitada revelação” (Sant’anna, 1975, p. 187). Sabemos pouco da personagem, e as poucas vezes que aparece na narrativa “olhava ausente, com um sorriso estonteado, suportando sozinha o seu segredo.” (p. 63). Podemos relacionar a descrição, que está ligada à percepção, como parte do processo epifânico. Essa parte da narrativa, que dentro do livro ocupa uma única página, também pode ser dividida em três partes. Apesar de reducionista, Affonso Romano Sant’anna diz que em “1- a personagem está numa situação corriqueira; 2- surgem sinais de uma estranha situação, que se transforma numa epifania reveladora; e 3- esgota-se a epifania e a personagem volta ao cotidiano modificada.”(Sant’anna, 2013 p. 130). Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amara pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.

Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. (...) enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar. Mas a esse novo olhar – a aniversariante era uma velha sentada à cabeceira da mesa. (p. 64) Aqui, podemos ter duas interpretações para a epifania. A primeira delas, mais visível, está ligada a iminência da morte que vinha sendo trabalhada de forma sutil durante a narrativa. Durante o processo epifânico, a personagem vê a velha sentada como se estivesse esperando a morte, destino irremediável que um dia também será dela. A verdade que foi mostrada é um relance tanto quanto a vida pode ser. Vemos a insistência e a força pela repetição daquilo que deve ser sabido pela personagem: “Que a vida é curta” e “que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver.” Observado por Osman Lins, no ensaio “O Tempo em ‘Feliz Aniversário’”, que focaliza o tempo dentro do conto, tanto como na escrita dos tempos verbais, quanto pelo passar do tempo tendo como destino a morte, o autor destaca que a “relação temática de Cordélia com o tempo (...) é evidente” e que “o tempo arrasta-a em direção à velhice, à solidão e à morte, tal como sucede com a velha à cabeceira da mesa (...)” (Lins, 1974 p.18). O parágrafo introdutório do ensaio “O Vertiginoso Relance” de Gilda de Mello e Sousa, que não é direcionado para o conto e sim para o livro A Maçã no Escuro de 1961, reforça indiretamente a possível segunda interpretação da epifania, mostrando uma unidade na obra de Clarice Lispector. A autora, se referindo ao lugar da mulher na sociedade, diz que: (...) o universo feminino é um universo de lembrança ou de espera, tudo vivendo, não de um sentido imanente mas de um valor atribuído. E como não lhe permitem a paisagem que se desdobra para lá da janela aberta, a mulher procura sentido no espaço confinado em que a vida se encerra(...). (Sousa, 1980 p. 79). Essa interpretação tem a ver com o discurso que vinha sendo trabalhado pela D. Anita e a relação do conto visto no conjunto da obra de Laços de Família. As personagens femininas do livro ainda estão muito presas dentro do ambiente familiar que era dominado e comandado pelo homem. Não muito diferente, D. Anita e Cordélia também estão neste mesmo contexto. Enquanto aquela personifica o discurso do

patriarcado e aceita sua posição inferiorizada em relação ao homem, esta descobre no momento da epifania que “sem remédio” também se tornará mais um ser oprimido pelas relações domésticas praticamente até a sua morte. Isso se confirma e fica mais intenso quando Cordélia “implorando à velhice ainda um sinal” não fica explicitado que somente a personagem deve “agarrar a sua derradeira chance e viver”, e sim “que uma mulher deve” fazer tal ato. Ou seja, há uma generalização que não se restringe apenas a personagem Cordélia e sim o que poderia ser o papel das mulheres se elas não estivessem presas por um laço que aprisiona sendo definido pelas relações sociais. A morte é mais intensificada na terceira e última parte do conto, durante a despedida dos convidados. Aquele que “Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto.” (p. 66) onde “Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e dizer aquela palavra a mais – que palavra? (...)” (idem) deixa mais explícito a contraposição entre silêncio versus fala. Apenas reforçando, a narrativa foi construída em cima dos pensamentos das personagens, onde foram poucas as vezes que o narrador cedeu sua voz (que na verdade era a voz interna das personagens) para elas pudessem se expressar por si só. Temos o silêncio de D. Anita destoando da sala cheia de gente, que ao chegar “ruidosamente se cumprimentava” e as crianças, “já incontroláveis, gritavam cheias de vigor”. Mas é um barulho vazio, assim como as relações entre esses familiares são vazias, “As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas voltadas com a atenção para dentro de si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável (...)” (p. 63). O silêncio, compartilhado por todos, serve para sufocar o interior e alimentar a opressão. Percebemos, assim, que “Feliz Aniversário” está ligado desde o começo ao ato da percepção e às aparências externas e afetivas. A palavra “feliz” que dá título ao conto pode ser vista como algo irônico dentro de um ambiente totalmente hostil onde o exterior é quem impera nas relações sociais e principalmente nas relações familiares que são regradas por algo que também é externo. O narrador denuncia as aparências encobertas por uma falsa camada de normalidade, desmascarando apenas ao leitor um universo interior instável. E mesmo quando revelado para uma personagem, esta se questionará por um momento, sairá transformada, entretanto, não poderá mudar a sua situação, pois o “fora passa a ser vertiginosamente apreendido como um dentro aprisionador” (Sousa, 2006 p. 174). Clarice Lispector faz com que uma simples festa

de aniversário tome proporções reflexivas, onde a morte, ocupando um lugar de destaque, sentada á cabeceira da mesa, seja o grande mistério do conto.

Referências Bibliográficas BOSI, Alfredo. O Conto Brasileiro Contemporâneo. São Paulo: Editora Cultrix, 1974. CÂNDIDO, Antonio. “The Brazilian Family”. In: SMITH, T. Lynn; MARCHAND A (ed) Brazil: potrait of a half continent. New York: Dryden Press, 1951, p. 291312. LEITE, Ligia Chiappini Moraes. “A tipologia de Norman Friedman”. In. O Foco Narrativo. São Paulo: Ática, 1993. LINS, Osman. “O Tempo em Feliz Aniversário”. In. Colóquio de Letras. Lisboa, Março de 1974 p. 16-21 < http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay? n=19&p=16&o=r> Acesso em 4 de novembro de 2013, às 18h59min. LISPECTOR, Clarice. “Feliz aniversário” In. Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998 p. 54-67. PASSOS, Cleusa Rios. “Clarice Lispector: Os Elos da Tradição”. In. Revista da USP n. 10, jun-jul-ago., 1991, p. 167-174. SANT’ANNA, Affonso Romano. “Laços de Família e Legião Estrangeira”. In. Análise Estrutural de Romances Brasileiros. Petrópolis: Vozes, 1975. ____________, COLASANTI, Marina. “O ritual epifânico do texto” In. Com Clarice. São Paulo: Editora Unesp, 2013 p. 121-166. SOUSA, Carlos Mendes de. “A Íntima Desordem dos Dias”. In. LISPECTOR, Clarice. Laços de Família. Lisboa: Livros Cotovia, 2006 p. 127-157. SOUSA, Gilda de Mello e. “O Vertiginoso Relance” In. Exercícios de Leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980 p. 79-91.

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