feminismo nos mangás: é possível?

September 3, 2017 | Autor: Bianca Cestaro | Categoria: Manga and Anime Studies, Feminism, Yaoi and Shojo Manga/Anime, Feminismo
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Bianca Cestaro de Almeida

Centro Universitário Senac

feminismo nos mangás: é possível? Trabalho de Conclusão de Curso submetido ao Centro Universitário Senac para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Visual Curso: Comunicação Visual

São Paulo 2º. Semestre 2010

RESUMO Este projeto pretende estudar a imagem da mulher apresentada nos mangás(nome dado às histórias em quadrinhos japonesas) através da análise de personagens encontrados nas obras mais significativas segundo crítica e público. Busca-se também investigar a presença, nos mangás, de conceitos ou propostas feministas ou derivadas dos embates dos movimentos feministas.

Palavras-chave: feminino, mangá, heroína

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SUMÁRIO Introdução 04

PARA ENTENDER ESTE TCC 05 1 Mangá: mais um fenômeno de aculturação? 05 2 História do mangá 06 3 Análise dos estilos de mangá 09

Feminismo 15 1 Alguns olhares feministas 15 2 Feminismo no Japão: uma frustração? 20

MANGÁS ANALISADOS QUANTO AO PAPEL E IMAGEM DA MULHER

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1 Death Note 25 2 Naruto 27 3 Fruits Basket 30 4 Yu Yu Hakusho 34 5 NANA 36 6 Berserk 44 O PROJETO FANZINE DOKUFU 47 1 O que é fanzine 48

ESTUDOS DE IMAGEM, ESTILO E TRAÇO 52

1 O traço realista e confiante dos shonen 2 O traço estilizado e etéreo dos shojo 3 O que o traço pode dizer?

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Considerações finais 56

Referências 57

LISTA DE IMAGENS 59

ANEXO: Matthew Thorn e o mangá para meninas

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INTRODUÇÃO

Este trabalho teórico teve o intuito de compreender como as personagens femininas nos mangás refletiam de fato as conquistas sociais das mulheres japonesas. O resultado prático dele é um processo de descobertas que se expressa na confecção de um fanzine anexo a este volume, o fanzine Dokufu, cujo nome é o termo que, em japonês, designa as “mulheres-veneno”, mulheres que, em resposta ao machismo opressor do casamento tradicional de sua cultura, matavam ou agrediam seus maridos. O termo também era usado para mulheres que se comportassem de forma considerada inadequada socialmente. O fanzine associa-se a este conceito porque as personagens que analisa são diferentes das comumente encontradas nesta mídia, na medida em que têm sua psique explorada e são colocadas na trama como algo que supera uma passividade ilustrativa bastante frequente. Procuramos no fanzine analisar as personagens e sua relação com o universo feminino na tentativa de encontrar indícios de traços estéticos e narrativos que demonstrassem valores das conquistas feministas. Encaixar as teorias feministas no universo do mangá japonês se mostrou logo de início um equívoco. Seria necessário um estudo aprofundado do feminismo japonês e da própria ocidentalização do Japão. Seria adentrar num redemoinho profundo demais para um trabalho de conclusão de curso. Procuramos desta forma, demonstrar apenas como as teorias de conceitos estudados se diferenciavam na mídia estudada e na cultura japonesa. Procuramos contextualizar o mangá, analisar seus estilos, refletir as frustrações de um feminismo nesta mídia e por fim, esboçar os pensamentos num fanzine explorando a linguagem particular deste veículo. Dokufu propõe muitos textos e discussões e questiona o universo do consumo e a apropriação do corpo e pensamentos femininos como consumo. Talvez seja hora de encararmos as brechas reflexivas que estas histórias em quadrinhos possam proporcionar, retirando-as do mundo exclusivo do entretenimento do consumo, encontrando os humanos que pensam estórias para mulheres e por elas.

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PARA ENTENDER ESTE TCC

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Mangá: mais um fenômeno de aculturação?

Nos anos 90, os desenhos japoneses eram considerados uma “febre” pela mídia ocidental. Acreditava-se que atraía somente crianças estranhas, que resultava de uma temporária falta de criatividade dos ocidentais e dos estúdios Disney e que eram violentos, parecidos uns com os outros e fúteis demais para durarem no imaginário do consumidor ocidental. Os japoneses, no entanto, nunca foram desatentos. Percebendo que o desenho animado japonês, ou “anime”, de temática grega Os Cavaleiros do Zodíaco e que o curioso Sailor Moon, sobre meninas mágicas que usavam luzes coloridas e apetrechos fofinhos contra o Mal, faziam grande sucesso no exterior, eles logo investiram em pesquisas sobre o público que consumia estas produções e usaram muito bem o apelo de sua cultura exótica milenar para lucrar com os ocidentais, entediados e revoltados com a belicidade e arrogância das produções norte-americanas da época. Aliando isso ao criativo design japonês e sua capacidade de relacionar-se comercial e tematicamente com os desenhos, entendemos por que esta “febre” não passou e, portanto, deixou de ser considerada uma febre. Passamos para o excesso de disponibilidade de mangás(segundo a Publisher’s Weekly online de junho deste ano, a maior parte do tráfego da web atual é de sites que traduzem mangás e os disponibilizam de graça para os leitores, se não contarmos o tráfego de sites de relacionamentos, downloads e pornografia ocidental, o que é um dado impressionante que não pode mais ser ignorado, a meu ver, pelos analistas culturais de nossa era) e um investimento maciço do entretenimento e da moda norte-americanos em inspirar-se na cultura japonesa, e os especialistas acabam por desconfiar: estaria o Japão investindo na mesma manobra de aculturação que os americanos? Estariam estes desesperadamente tentando recriar a cultura e o entretenimento japonês para retomar seu poderio cultural? Há algo de bom nos desenhos japoneses ou eles são puramente destinados ao consumo de massas alienadas e desinteressadas em defender a própria cultura? Por mais que o mangá seja visto com ceticismo, surpreendo-me de ver que poucos estudiosos se dedicam a investigar a razão do fascínio que esta estética provoca, ou em lutar contra o que consideram apenas mais um filhote da indústria cultural ou da sociedade do espetáculo, apelativo, repetitivo e frequentemente ofensivo. Se for este o caso, por que o quadrinho americano, igualmente industrializado e apelativo, perdeu lugar para o japonês? E por tanto tempo? E por que buscar um feminismo nos mangás? Bem, tenho acompanhado uma impressionante quantidade de meninas fãs de desenhos japoneses que cada vez mais identificam, investigam e divulgam algo que as faz crer num feminismo revolucionário e perfeito nestas obras, e como interessada na luta pelos direitos femininos e no mangá como estudiosa e fã, considero importante a pesquisa deste fenômeno por ele estar passando perigosamente despercebido pelos círculos acadêmicos, o que pode significar duas coisas que deveriam ser esclarecidas: ou a academia está cega a um movimento positivo, ou são as fãs que se iludem com os mangás sem que ninguém as tire deste caminho equivocado.

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História do Mangá

Segundo Sonia M. Bibe Luyten, doutora em Ciências da Comunicação pela USP(2002), os mangás, ou quadrinhos japoneses, têm sua origem na Idade Média japonesa(séculos XI e XII), quando já se produziam desenhos pintados sobre grandes rolos de papel de arroz de forma sequencial. Os mais famosos são chamados de Chojugiga – desenhos humorísticos de pássaros e animais – de origem sacra, elaborados pelo monge Kakuyu Toba(a maioria das sinopses dos livros sobre mangá encontradas na internet resume o fato, creditando a Toba a invenção destes desenhos e até usando seu nome para determinar o estilo). A partir do século XV popularizam-se as histórias de fantasmas com cunho humorístico, como a obra “Caminhada noturna de cem demônios” ou Hyakki Yako, tema presente até hoje no mangá. Foi, porém, no Período Edo ( (1660-1867) que os quadrinhos japoneses deram um grande salto com o artista Katsushita Hokusai, grande gravurista da modalidade ukyiyo ê. Este gênero de arte consistia na produção de gravuras em madeira, com temas populares. Hokusai, entre os anos 1814 e 1849, criou 15 volumes designados como Hokusai Manga. Estes desenhos de forma caricatural – exagerando a forma dos seres humanos – tinham como tema a vida urbana, as classes sociais, a natureza fantástica e a personificação dos animais. Somente alguns anos mais tarde, contudo, que o mangá teve o nome adotado e consagrado através do desenhista Rakuten Kitazawa. Ele pertence à geração de artistas “pós-abertura dos portos” do Japão, abertura que ocorreu em 1853, depois de mais de 200 anos de isolamento, sob pressão dos EUA. A nova era nipônica, chamada Meiji, trouxe muitas inovações no âmbito artístico e jornalístico com a vinda de estrangeiros, principalmente da Europa. Assim os japoneses conheceram as primeiras revistas de humor de moldes ingleses e franceses, e Kitazawa acabou por receber grande influência do inglês Charles Wirgman, editor do jornal The Japan Punch. O sucesso foi tão grande que surgiu a primeira revista japonesa de humor, Marumaru Shimbun, em 1877, que durou 30 anos. Os japoneses trocaram o pincel pela pena e os quadrinhos tomaram rumos diferentes do que o resto do mundo a partir daí. Ainda segundo Luyten(2002), a princípio os japoneses desenhistas traduziram muitas histórias e HQs norte-americanas que apareceram no início do século XX na imprensa local, mas pouco a pouco iniciaram uma produção própria, sentindo o humor e os temas ocidentais distantes de sua realidade e cultura. O outro grande marco editorial japonês ocorreu na década de 1920, com o início de publicações para o público infantil. Após a Segunda Guerra Mundial houve uma intensificação na produção específica para o público adolescente, dividido em sexo: quadrinhos para garotas, os shojo manga, e quadrinhos para rapazes, os shonen manga, cobrindo uma faixa etária aproximadamente de 12 a 18 anos. É importante mencionar que após a Segunda Guerra havia poucos recursos materiais e financeiros e cada setor teve que se adaptar às necessidades da época. No caso do mangá, o recurso foi utilizar o papel jornal como alternativa nas revistas. O artifício foi a impressão monocromática – variando do rosa, roxo ou azul claro – conforme o teor do enredo, sendo que esta característica continua até hoje devido às grandes tiragens e rapidez com que se lançam títulos novos no mercado editorial japonês. O mangá que conhecemos no Brasil é o volume compilado das revistas de mangá japonesas mais consumidas. Os volumes são para colecionadores das obras favoritas, e as revistas apresentam novas obras aos leitores. As revistas de mangá, conforme a faixa etária a que se destinam, contêm de 100 até 500 páginas, fugindo do formato tradicional americano. Estas revistas contêm diferentes histórias, de diferentes autores, cada uma seguindo sua série que, muitas vezes, duram alguns anos, até décadas. Segundo Luyten(2002), cada semana ou quinzena a editora faz uma pesquisa de opinião pública para verificar o grau de contentamento dos leitores sobre as histórias da revista e introduz novos artistas, despedindo outros com uma crueldade mercadológica incomum na visão editorial e artística ocidental(o artista pode melhorar e voltar a ser contratado se convencer o editor de uma ideia nova). Os desenhistas de mangá dão tudo de si para permanecer empregados, chegando a viver internados 6

por estafa e correr risco de vida para publicar um capítulo novo a cada semana se seus trabalhos ficam muito populares, já que o artista de quadrinhos que não tem sucesso comercial é visto com desprezo na cultura japonesa por não se adequar às necessidades e gostos de sua sociedade. Ironicamente, a maioria dos mangás tem como tema principal a sensação de não-pertencimento e desapego do mundo “comum”, e é feita por desenhistas jovens. No Japão há cerca de uma centena de editoras de revistas de mangá, sendo as mais importantes a Shueisha, Kodansha e Shogagukkan, possuidoras das maiores tiragens. O grande marco no conhecimento do mangá nos Estados Unidos foi através do desenhista norte-americano Frank Miller. Inspirado nos épicos japoneses sobre samurais, ele produz em 1983 Ronin, a saga de um samurai sem mestre(“andarilho vagabundo” na tradução japonesa), aventura narrada em quase 300 páginas, revolucionando o mercado ocidental. Na Europa a personagem Candy Candy, de Yumiko Igarashi e Kyioko Muzuki, alcança o público italiano e na Suíça a revista em língua francesa Le cri qui tue publica obras de Osamu Tezuka, entre outros, acompanhando a moda de se traduzir mangás para o público ocidental. No Brasil, no entanto, muito antes de Frank Miller “descobrir’ os mangás, estes já eram fartamente lidos pela comunidade dos descendentes de japoneses, importados por distribuidoras normalmente localizadas no bairro da Liberdade na cidade de São Paulo e enviados para as colônias nipônicas do interior. O mesmo aconteceu com os animês, desenhos animados japoneses, e filmes japoneses, que eram veiculados em alguns cinemas, especialmente o Cine Niterói, no bairro da Liberdade. Na TV brasileira, desde a década de 1970, os heróis japoneses também já eram conhecidos do público. Luyten(2002) constata que a leitura do mangá para a comunidade japonesa no Brasil tinha como função manter a língua coloquial viva para os que estavam fora do Japão e introduzir expressões do inglês no alfabeto japonês internacional para quem não poderia entender estas expressões no alfabeto ocidental. Foram os desenhos animados, os animês, que deram grande difusão ao conhecimento dos mangá, cujas séries penetraram primeiramente pela TV e mais tarde pelo cinema. Foi também a época que as editoras japonesas e os estúdios de cinema e animação começam a fazer contratos em grande escala com vários países ocidentais. O primeiro animê produzido no Japão remonta de 1917, o Bunpuku-Chagama, e o primeiro longa-metragem é de1943, Momotaro no Umiwashi, de Mitsuyo Seo. No entanto, as produções norte-americanas e os desenhos animados dos estúdios Walt Disney por muito tempo ofuscaram as produções locais. Somente após a Segunda Guerra é que surge a companhia Toei Doga, que formou boa parte dos animadores japoneses. Osamu Tezuka foi um deles. Tezuka fundou seu próprio estúdio, Mushi Produções, e inicia-se assim a primeira apresentação de animês regulares pela TV japonesa com Tetsuwan Atomu (Astro Boy) em 1963. Tezuka é cultuado no Japão por inaugurar o que hoje se considera o clichê do mangá e do animê, com os olhos grandes e brilhantes que o criador admite ter absorvido de Walt Disney, animador que ele muito admirava. Em seguida, no entanto, os artistas japoneses de mangá passaram a detalhar os olhos de formas diferenciadas, e o estilo atual predominante é menos estilizado que o de Tezuka, que não desenhava muitos brilhos nem pupilas com marcas e degradês. Outro grande marco foi a obra Akira, de Katsuhiro Otomo, que obteve tanto sucesso no cinema como nos mangás. A grande figura venerada no Japão é Hayao Miyazaki, o autor de Nausicaä, Tonari no Totoro, Mononoke Hime, e Sen to Chihiro no Kami Kakushi ou A Viagem de Chihiro, que ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim e o Oscar de melhor desenho animado em 2003, tirando a supremacia norte-americana da categoria. A partir de 1994, quando a indústria cinematográfica japonesa destinou uma verba considerável(cerca de cinco bilhões de dólares) aos desenhos animados, os animês se multiplicaram em quantidade e qualidade. E assim se inicia a era da moderna cultura pop japonesa. Os mangás bem sucedidos originam roteiros para animês que estimulam a venda de mais revistas, seguidas de reedições em forma de pocket-books, merchandising, moda e assim por diante. Atualmente o mangá vende mais fora do que dentro do Japão, que vive uma fase de crise econômica e a rebelião do jovem japonês contra o repetitivo entretenimento nacional. O envelhecimento da população faz com que o mangá jovem também 7

perca em quantidade de vendas. De acordo com Luyten(2002), em meados da década de 1990 é que realmente ampliou-se o número de revistas sobre mangá de todos os tipos no mundo inteiro: desde as que se propunham ensinar a desenhar mangá até as do tipo hentai, denominação usada no Japão para quadrinhos eróticos. Se de início as publicações vinham assinadas com sobrenomes de origem japonesa, pouco a pouco, os artistas provinham de outras descendências como Sérgio Peixoto, também organizador de festivais de animê e mangá e principal editor de revistas sobre o assunto no Brasil. Aqui, estes festivais iniciados pelo Mangácon e depois seguidos pelo Animecon e o Animefriends chegam a reunir mais de 10.000 pessoas fãs de mangá e animê. Até o fim dos anos 90 os eventos eram atraentes porque não havia como baixar animes e mangás pela internet, fenômeno que hoje tornou os eventos como um mero local de consumo de produtos relacionados.

Figura 1: Exemplo do Hokusai Manga.

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Análise dos estilos de mangá

Segundo Luyten(2002), os mangás, ou quadrinhos japoneses, no caso que nos interessa(os para jovens; no ocidente, os mangás para adultos não são muito conhecidos por terem como tema a educação social de classes e gêneros, assunto que não gera interesse comercial e que nos parece estranho ao universo dos quadrinhos) podem ser divididos, de acordo com a visão mercadológica etária e de gênero das editoras japonesas, entre: 1- Mangás/revistas infantis – normalmente de cunho didático, se denominam shogaku e possuem uma variedade imensa de temas abordados, desde assuntos escolares até conselhos sociais. Na parte central da revista há a inclusão de uma história em quadrinhos sobre aventura, lendas antigas do país, sátiras, etc. Sob a forma de entretenimento, as revistas infantis direcionam a criança não só para o aprendizado mas para sua inserção na sociedade japonesa, lembrando-as sempre do respeito aos mais velhos e da memorização das datas comemorativas do país, por exemplo. 2- Mangás/revistas femininas, denominadas shojo manga, cobrem a fase da adolescência feminina japonesa e tiveram grande sucesso de vendagem nas décadas de 1970 e 80. Com uma faixa de quase 50 títulos de revistas(lembrando que as revistas publicam vários títulos semanais; os mangás em si saem em coleção depois e são muito mais de 50 títulos), seu êxito deveu-se muito à identificação do público leitor feminino japonês com as histórias contidas nas revistas, junto à exploração máxima de enredos melodramáticos e o clima de romantismo. A temática é variada sempre enfocando amores impossíveis, separações e rivalidades entre amigas. Uma característica marcante do estilo é que embora o gênero tenha se iniciado por mãos masculinas como as de Osamu Tezuka, ele é feito em sua maioria por jovens mulheres desenhistas. O Japão é o país onde há a maior incidência de mulheres neste mercado de trabalho. 3- Revistas masculinas, denominadas shonen manga, têm como público meninos e rapazes. Alguns de seus títulos venderam na década de 1980 milhões de exemplares semanais. Seu conteúdo, além dos quadrinhos, apresenta reportagens sobre esportes, artistas da época, competição entre escolas e novidades na área de brinquedos, robôs e videogames. Os protagonistas costumam ser variantes do samurai invencível e do esportista perseverante, dentro sempre da autodisciplina, profissionalismo e competição pregados pela sociedade japonesa. Todas dão ênfase à rigidez moral e o fortalecimento do espírito, algo muito semelhante ao código de conduta do bushido – o caminho do guerreiro samurai. Se as situações românticas prevalecem no mangá feminino, no masculino a violência em todas as suas modalidades é a principal característica. Atualmente os limites entre os estilos para meninos e meninas têm se tornado mais flexíveis devido a mudanças comportamentais da juventude japonesa e das consequências socioculturais do mundo pós-guerra. O importante para Luyten é que a indústria do mangá, com o passar do tempo, sempre soube captar tendências de comportamento, decodificá-las e transformá-las em sua linguagem característica acompanhando também a evolução tecnológica. Segundo Étienne Barral em seu livro Otaku: os filhos do virtual, de 2000, em 1997 o mangá gerava 21,6% do número total de negócios editoriais e representava em volume 37% das publicações japonesas, e a revista que mais influencia o público é a Shonen Jump, da editora Shueisha. A esta revista é cre- Figura 2: Mangá shogaku, para crianças, de Tezuka. 9

ditada a criação do lema de sucesso dos mangás para meninos, a tríade “Esforço, Amizade e Vitória”, bastante frequente na cultura masculina japonesa desde os primórdios, mas intensificada pela propaganda das guerras e pós-guerras para que o país vencesse e se erguesse após as derrotas. Para esta autora, o consumo de mangás, que aumentou no pós-guerra, tem como causa principal um cotidiano repetitivo e com poucos minutos entre um emprego e outro, um compromisso e outro, o que faz dele um meio de entretenimento que cansa menos a vista por ser desenhado e exige menos esforços intelectuais que obras-primas artísticas, além de oferecer ao povo japonês um individualismo e fantasia por meio da expressividade e excentricidade dos personagens. Reciclados, os mangás costumam ser jogados no lixo dos metrôs, já que sua estrutura de folhetim e altas tiragens os torna frágeis para estoque. Baratos, permitem que o leitor os compre e decida por colecionar as versões de luxo dos que mais gostou. Ao tratar do polêmico mangá erótico, a autora cita pesquisas japonesas, como as de ministérios e Figura 3: Capa da revista shojo Margaret. associações nacionais para a educação sexual e renomados psiquiatras do país, que provam que eles causaram uma diminuição no número de estupros no Japão por permitirem aos oprimidos estudantes, que são incentivados a se envolverem o mínimo possível sexual e afetivamente entre si, um meio de descarregar suas frustrações sexuais e fantasiar sobre elas. Os pais japoneses não falam sobre o assunto e apenas recentemente as escolas começaram a discutir as questões afetivas, já que as de saúde sempre foram ensinadas. Apesar de violentos e misóginos, a maioria dos leitores não busca colocar o que eles mostram em prática e sabe que é apenas o registro de fantasias, como no caso da pornografia ocidental. Embora em menor quantidade, também há um lucrativo mercado de mangá pornográfico mais suave, dedicado a meninas e mulheres. Dentro do estilo shojo, há uma variante que trata de relacionamentos homossexuais entre homens para um público de mulheres heterossexuais, feito por mulheres, que surgiu quando as fãs desenhistas no Japão começaram a satirizar a amizade colorida dos guerreiros em mangás shonen. Este estilo foi denominado yaoi pelas pioneiras quando pornográfico e de shonen ai quando mais platônico. Segundo a historiadora fã de mangás Valéria Fernandes (sem data, n.08, p. 49), Antes de tudo, é preciso dizer que os mangás shojo centrados em relacionamentos homossexuais precedem a cunhagem do próprio termo YA-O-I. Esta expressão, aliás, não surgiu dentro das revistas shojo, mas no mundo alternativo das feiras de doujinshis(fanzines japoneses). A mais importante destas feiras começou em 1975 e chama-se COMICMARKET(...). Foi nesse meio que surgiu a sigla yaoi para “yama-nashi, ochi-nashi, imi-nashi”, que quer dizer “sem clímax, sem objetivo, sem significado”. No início, yaoi era somente diversão e até sinônimo de fanzine de baixa qualidade; hoje, é um filão que move milhões de dólares em produtos.

No anexo deste TCC, o professor e antropólogo estadunidense Matt Thorn resume a história do estilo yaoi e suas variantes e tenta explicar o fascínio das leitoras japonesas pelo conteúdo inusitado, já que no Ocidente, onde a mulher tem mais liberdade do que na sociedade japonesa, ao menos sexual e socialmente falando, um interesse feminino por homens fazendo sexo entre si é considerado perversão e jamais se tornaria tão tranquilamente uma atividade lucrativa. Valéria, no entanto, alerta para 10

aqueles que deduzem deste fato que a sociedade japonesa seria mais aberta em relação às fantasias sexuais femininas ou ao homossexualidade em si. Segundo ela, japoneses, em sua maioria, não são cristãos, e representavam o sexo com certa liberdade em sua arte tradicional. Porém, mesmo sem existir a ideia do pecado, no Japão todos são pressionados ao que ela chama de padronização: independente de “gostar de meninos ou meninas”, os japoneses sentem-se obrigados a casar e deixar descendência, encaixando-se e de forma discreta exercitando suas perversões em locais, idades e momentos apropriados. Apesar de poderem, por exemplo, frequentar prostíbulos ou relacionar-se com pessoas do mesmo sexo, os homossexuais japoneses não podem falar disso ou demonstrar explicitamente que são diferentes, nem deixar de se encaixar no ideal social e familiar por isso. Assim como as mulheres podem fantasiar nos mangás yaoi e rirem entre amigas sobre sexo e ousadias sociais, mas não são ouvidas quando defendem a prática e não escapam do desprezo e violência dos maridos homossexuais reprimidos. Como no filme Tabu, de Nagisa Ôshima(Gohatto, 1999), nenhum samurai se importa de satisfazer suas vontades sexuais com o belo e delicado Senzaburo, desde que não haja distúrbio da ordem militar pelo ciúme que ele causa entre os generais e desde que ele respeite a hierarquia do exército, jamais se recusando a deitar com superiores. Infelizmente, ele tem um fim trágico por querer ser “livre” entre os soldados, já que a única alternativa ao homossexual samurai era um estilo de casamento em que deveria haver diferença de idade e hierarquia e os noivos se tratavam por irmãos. A prática deixou de existir com a queda da nobreza japonesa. O filme Tabu, no entanto, não é só um filme de época: ele critica a postura dos soldados, pois apesar de machistas eles realmente se afeiçoam ao menino e temem mais as ameaças dos generais e as brigas que o jovem desperta entre amigos, do que a beleza feminina dele ou a homossexualidade generalizada no quartel devido à presença dele. No fim, a sociedade que os samurais temem contestar torna-se uma fria assassina de um menino habilidoso, que não sabe como equilibrar a honra exigida dele sobre seu corpo e a obrigatoriedade de obedecer aos desejos de seus superiores. A feminilidade de seus traços o coloca numa situação em que sequer sabemos se ele, nascido em outras condições, teria relações homossexuais por livre e espontânea vontade. Nada no comportamento de Senzaburo denuncia uma opção sexual absoluta ou desvio social. O artigo de Marc MacLelland Male Homosexuality and Popular Culture in Modern Japan(2000) explica bem a diferença entre a visão ocidental e a japonesa sobre a homossexualidade(tradução própria): A discussão de ‘homossexualidade’ é comum numa grande variedade de mídias japonesas. No entanto, é quase impossível dar significado claro a qualquer um dos termos geralmente usados para isso, já que eles misturam o desejo pelo mesmo sexo pelo cross-dressing e o transgênero, tanto para homens como mulheres. Embora o Japão possua uma vastidão de vocabulário para descrever os parceiros envolvidos em interações homossexuais masculinas, houve uma mudança deles no período moderno. Na Era Tokugawa(1600-1867), o eroticismo masculino, chamado “código nanshoku” ou danshoku, continha definições de parceiros dependendo em fatores como idade, status, papel de gênero, e o contexto no qual as relações ocorriam. Estes termos descreviam estilos ou papéis sexuais que os indivíduos adotavam, e não alguma identidade íntima ou essência baseada numa preferência por um parceiro de mesmo sexo. Era aceito que um homem atraído por mulheres pudesse se sentir atraído por rapazes ou meninos, ou por um chamado “encarnador de mulher”. O termo onnagirai ou “odiador de mulheres”, usado para os homens que preferiam não se envolver sexualmente com mulheres, sugere que não era a preferência por homens, e sim o ódio pelas mulheres ou pela fe-

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Figura 4: Capa da revista yaoi BeBoy Gold.

minilidade que era considerada incomum. No entanto, durante a rápida modernização do Japão na Era Meiji(1867-1912), o entendimento do “caminho homossexual” ou “maneira homossexual” foi sendo definido como os termos sexológicos ocidentais para “homossexual” no sentido de pessoa. O termo, importado do chinês, sugeria que o desejo pelo mesmo sexo era típico de um tipo de pessoa diferenciada e não um ato. A disseminação desta ideia nem por isso foi totalmente assimilada pela sociedade japonesa, e como descreverei adiante, a maneira de encarar o homossexual no Ocidente hoje em dia não é mais a de que qualquer pessoa com desejos pelo mesmo sexo seja necessariamente homossexual. Em textos japoneses nota-se a percepção da homossexualidade como um “caminho” de forma até menos rígida que o nome sugere, como uma prática por hobby ou brincadeira.(MACLELLAND, 2000, online)

Assim, diferentemente do Ocidente, no Japão os direitos das mulheres não se relacionam necessariamente ao direito dos homossexuais ou à visão deles como ofensivos, perigosos ou doentes, porque não existe um ser homossexual e sim a homossexualidade. No Ocidente, a mulher teve que juntar-se aos gays porque também é, ou era, considerada um ser cuja função de mais impacto social e biológico é heterossexual, e assim a luta por uma visão mais livre de sexualidade acabou por colocá-la no mesmo grupo dos gays. Além disso, a homossexualidade foi condenada pela Igreja, inexistente no Japão, porque o homem se comportava como mulher, não porque ela era considerada anti-natural. Segundo Eduard Vacek em seu artigo A Christian Homosexuality?(tradução própria), A tradição da Igreja e a autoridade eclesiástica continuamente rejeitaram a atividade homossexual. A primeira objeção lançada contra a atividade homossexual foi que ela era “contra a Natureza”. Essa não-naturalidade frequentemente significou que homens estavam agindo como mulheres. Mulheres regularmente foram vistas, mesmo por iluministas como Tomás de Aquino, como naturalmente inferiores aos homens. Portanto parte da degradação envolvida na homossexualidade não era vista tanto como degradação da natureza humana, mas como degradação do homem ao nível da mulher. Assim, também, o lesbianismo raramente foi proscrito em nossas escrituras ou tradição. Homossexualidade masculina, por outro lado, foi comumente vista como um pecado mais grave que estupro, prostituição, fornicação, todos “naturais”. (1997, p. 132)

Por não se relacionar a uma visão que coloca homossexuais “passivos” no mesmo patamar da mulher, o machismo japonês é muito mais complexo e difícil de desvendar na visão ocidental, acostumada a associar mulheres e gays como sexualmente desviantes e dominada por valores católicos. Se o japonês não vê o sexo como algo que tem que ser praticado nas normas do patriarcado heteronormativo, por que a mulher é tão controlada? No Japão, o homem é considerado superior à mulher independente da maneira com que exerce sua sexualidade, enquanto que no Ocidente o homem gay ainda sofre preconceito. Apesar de mais profunda e enraizada, e de mostrar um biologismo estranhamente resistente numa cultura tão intelectualizada, esta misoginia pode não ser pior ou diferente do que a da mulher ocidental, já que apesar do enfraquecimento do catolicismo a mulher continua oprimida por aqui. Seria o desvendar da raiz do machismo japonês a solução para a erradicação do machismo ocidental? Apesar de parecer que o ato homossexual é considerado natural na sociedade japonesa, assim que passou a importar conceitos de mídia do Ocidente, a mídia japonesa passou, segundo McLelland, a reforçar a ideia de que “a atração pelo mesmo sexo envolve necessariamente algum tipo de transgenderismo ou desejo de mudar de sexo”. Por ser discrepante da cultura local, isso parece mais uma tentativa de conciliar a cultura japonesa aos valores preconceituosos ocidentais quanto à homossexualidade. O autor continua em seu artigo comentando um fato importante: embora o estilo yaoi criado pelas autoras japonesas de mangá tenha sido considerado pelos homossexuais japoneses e estudiosos como apenas mais um construto escapista com conceitos de ativo e passivo e hierarquia sexual, estas artistas passaram a estudar a cena gay underground do Japão e contribuíram para o chamado gay boom do país com a publicação, na revista acadêmica CREA de fevereiro de 1991, do artigo “Gay Renassaince”. As mulheres deixaram de ter a visão romântica da homossexualidade como uma forma ideal de amor por não ter hierarquia sexual e conheceram por meio de relatos gays a dificuldade de sentirem-se confor12

táveis para expressar carinho e formarem uniões estáveis e emocionais na sociedade fria e rígida em que vivem, obrigados a corresponder a um modelo único de masculinidade independente da opção ou práticas sexuais. Infelizmente, mais uma vez, a situação das mulheres não se alterou, visto que passaram a divulgar e praticar o “casamento de amizade” com homens gays, para que fossem auxiliadas no trabalho doméstico(suposição totalmente sem fundamento) e porque eles eram menos incomunicáveis e agressivos. O que poderia ter sido uma reivindicação pela sexualidade feminina ou por direitos sociais de grupos omitidos tornou-se uma birra contra o heterossexual japonês. McLelland(2000) cita a feminista japonesa Ueno Chizuko, que diz que “os homens e mulheres japoneses não dormem com o sexo oposto, eles dormem com o sistema”. Há algo poderosamente intrincado na cultura deles que os faz possuir um profundo desinteresse pela compreensão do sexo oposto. A união para a procriação e a rígida separação de papéis e tarefas masculinas e femininas não determina o que os sexos são capazes ou interessados em fazer, e sim o que devem fazer para a sociedade japonesa funcionar como desejado. Ainda assim, há casos suficientes na mídia e cultura japonesa para provar que o homossexual afeminado sofre mais preconceito que o não-afeminado, o que tende a ocorrer no mundo todo. No entanto, os japoneses não perdem tempo em oprimir os afeminados, cross-dressers e transexuais ou transgêneros, porque acham esquisito dar muita atenção à sexualidade ou papel social alheios. Prova disso é que ao contrário do caso ocidental, não há e nem nunca houve nada na legislação japonesa que se referisse a práticas sexuais. Infelizmente isso se manteve até pouco tempo atrás em relação ao abuso sexual, fosse ele de qualquer tipo. Por pressão ocidental, nas últimas décadas o Japão passou a punir o estupro público de menores por ele ser “100% comprovável”.

O estilo shonen, para meninos, é bastante violento graficamente, mas seu principal tema é a luta de um herói incompreendido ou incomum por reconhecimento através de habilidades marciais especiais. Recentemente estas habilidades têm se tornado menos marciais e mais intelectuais ou mitológicas. Geralmente este protagonista tem com seu rival uma relação de ódio homoerótico, já que embora possa ser sexualmente bem-resolvido, o herói vê as mulheres como inferiores e quando há heroínas carismáticas elas são vilanizadas ou não se contentam com os homens à sua volta, terminando como mártires ou damas exemplares intocadas. Em muitos casos o protagonista conquista sua paixão de infância ou adolescência mas vive saindo de casa para “aventuras com os amigos” ou “enfrentar as provocações do rival”. A maioria destes mangás sugere que não há relacionamento mais fascinante que o de um homem por seu rival ou grupo de amigos. Quanto mais maduro o shonen, porém, maior a probabilidade de encontrarmos um ódio à figura feminina e uma espécie de compensação pela distância entre a ingenuidade das meninas japonesas e a imagem agressiva e fria que o homem japonês deve ter. Assim, é comum acharmos muitas cenas de abuso sexual nestes trabalhos, embora atualmente eles tenham se tornado impopulares devido a uma tímida emancipação feminina no Japão. Os rapazes japoneses, por outro lado, têm se revoltado contra a tradição rígida de seus pais, que só gera tragédias familiares e hipocrisias, além da crise econômica do país por falta de contratação de estrangeiros e excesso de idosos; assim, os mangás de sucesso têm acompanhado nacionalmente a preferência dos ocidentais, que desprezam mangás machistas demais. Boa parte da luta pelos direitos femininos no país, entretanto, infelizmente foi imposta comercialmente pelos ocidentais, que ameaçaram boicotar produtos misógenos japoneses se eles não criassem regras para o estupro de colegiais em metrôs e o abuso de professores por alunas. Um caso escandaloso de bons resultados foi o do jogo japonês RapeLay, cujo objetivo do jogador é estuprar o maior número de mulheres e suas filhas e eliminá-las ou forçá-las ao aborto se não quiserem perder pontos pelo fato de terem de criar os bebês. Os EUA geraram uma grande discussão e proibiram o jogo no país, o que deu aos japoneses muito o que pensar, já que este tipo de jogo é comumente vendido aos rapazes, que vêem isso como um escapismo e fantasia sexual irrealizável. O problema é que estupros em locais do jogo, como escolas e metrôs vazios, são muito comuns no Japão, o que gerou revolta quanto ao caso RapeLay no ocidente. 13

É pela análise dos mangás shonen nos últimos anos que reparamos na mudança de visão da mulher no Japão de forma mais intensa, já que as mulheres autoras de shojo sempre foram um tanto subversivas, sem nunca conseguirem mudanças sociais reais, nem mesmo nas leitoras, a não ser quando incentivando a prostituição para comprar fetiches da moda. Os mangás mais populares tanto no mundo quanto em território nacional são os que criam personagens femininas cada vez mais verossímeis, menos idealizadas, e lutando para serem reconhecidas pelos heróis, que as têm tratado com mais naturalidade e respeito e menos desconfiança.

Figura 5: Capa da revista shonen Shonen Jump.

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Feminismo

Segundo Camille Paglia, principal defensora de um “pós-feminismo” e uma das escritoras e críticas de arte e mídia mais influentes do mundo, em entrevista à revista IstoÉ em 2001, Até a década de 50, a maioria das moças americanas colocava o casamento e a família acima de qualquer coisa, inclusive da carreira. Muitas nem sequer fizeram faculdade, outras se formavam e seguiam direto para o altar. Mas a minha geração, dos baby boomers(como chama-se a geração do pós-guerra, que celebrando o fim da Segunda Guerra tiveram muitos filhos), que chegou à universidade nos anos 60, quando o movimento feminista pulsava, era mais egoísta. Acontece que, na década de 90, quando elas alcançaram os 40 anos, claramente começaram a se questionar. ISTOÉ - O que questionaram? Camille - As mulheres que haviam deixado a maternidade para priorizar a carreira começaram a querer ser mães e a ter problemas para engravidar. As líderes feministas, que haviam prometido um mundo de possibilidades a elas, nunca haviam mencionado o fato de que ficar grávida é muito mais fácil e saudável para as jovens. Então, profissionais bem-sucedidas e solteiras começaram a perceber que haviam aberto mão de sua vida pessoal. Elas passaram a escrever artigos e livros sobre sua solidão e desilusão a despeito da posição profissional e da prosperidade material. Só para ilustrar, os homens de 40 anos, solteiros ou divorciados, não estavam casando com mulheres da mesma idade, mas com moças de 20 e poucos anos. (2001, online)

Em entrevista à revista Veja em 2009, ela diz que a gravidez é algo que não afeta os homens, e não vê por que deveria. A dificuldade da mulher atual em conciliar trabalho e família, para Paglia, não deve significar uma luta contra a gravidez como processo de maior impacto na vida de uma mulher: ela é algo natural, embora algumas mulheres nasçam inférteis e outras possam doar filhos ou terem problemas de saúde por excesso de partos, ou optarem por não terem filhos e ir atrás de métodos contraceptivos que não as deixem loucas ou doentes, se não quiserem se abster de sexo heterossexual. A família antigamente ajudava a mãe a cuidar do filho e a protegia quando gestante; atualmente, o feminismo, que para Paglia é todo o processo que buscou direitos às mulheres, mas que exagerou na vingança e neurose, jogou em cima da mulher toda a responsabilidade da procriação, o que é um absurdo, já que o homem tem o direito(e dever) de participar disso. Para ela, parte da causa disso tudo é o sistema capitalista ter precisado de mulheres agressivas e consumistas para trabalhar durante as guerras e concentrar recursos em poucos filhos. A família pequena torna-se um problema e o acúmulo de capitais dá à mulher executiva a ilusão de estar no caminho certo. Não é apenas o “pós-feminismo”, termo ainda discutido entre os teóricos, que existe na atualidade, junto a situações culturais diversas e locais onde o chamado feminismo sequer teve tempo de se mostrar. Um excelente artigo de Ana Gabriela Macedo discute o termo “pós-feminismo”, sugere uma definição interessante e critica as diversas definições de feminismo, algo que para ela reforça a ideia patriarcal de que tudo relacionado ao feminino ou à mulher tem que ser volúvel e não chegar a nenhum resultado prático. Agora, no entanto, precisamos definir o que seria então o feminismo, ou de onde surgiu o que Paglia critica. Segundo Ana Maria Ramos Seixas(2000, p.91), O movimento feminista começa efetivamente em 1966, nos Estados Unidos, com a fundação da Organização Nacional em Prol das Mulheres. Surge na luta pelos direitos civis e contra a Guerra do Vietnã. (...) Com a conquista do direito ao voto, ao trabalho e ao controle de natalidade, o movimento feminista altera o status pessoal da mulher. Questiona-se o poder doméstico, reflete-se sobre a oposição dos papéis familiares de dominação masculina versus submissão feminina. A vida profissional traz à mulher indepen-

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dência econômica e oportunidade de realização individual além da encontrada no casamento – do qual pode sair se não lhe parecer bom, pois sua sobrevivência está garantida.

Esse otimismo das primeiras feministas em relação ao mundo do trabalho é mais tarde criticado, principalmente devido à análise dos seguintes dados, pela mesma autora: Hoje, em mais de dois terços dos países do mundo a mulher é autorizada a votar nas eleições nacionais. Ela representa quase 50% da força de trabalho no mundo inteiro. (...) Todavia, as mulheres são menos educadas, continuam ganhando um salário inferior pelo mesmo trabalho – a média mundial é de 25% do salário do homem e a brasileira é de 50%. E ainda cumprem dupla jornada de trabalho. Devido aos preconceitos, são exceções as mulheres que ocupam cargos de maior responsabilidade e poder. E são elas as que primeiro perdem o emprego.(...) As mulheres são mais pobres – da massa de 1 bilhão de pessoas consideradas pobres no planeta, 60% são mulheres. (SEIXAS, 2000, p.95)

Ou seja, a mulher valorizada no mundo do trabalho é apenas a que trabalha em cargos originalmente masculinos ou que agradem ao patriarcado. A dona-de-casa, por exemplo, não é paga pelo Estado pelo serviço que presta indiretamente a ele e que permite que o homem da casa tenha tempo de gerar mais impostos. Falando nisso, não há redução de imposto à mulher, correspondente ao fato do salário feminino ser menor. E para que a mulher profissional tenha tempo de compensar os baixos salários com mais empregos ou para que ela tenha família, é geralmente a mulher mais pobre ou sua mãe, e não seu marido ou parentes homens, que mantém sua casa, por salários mais baixos devido a uma injusta desvalorização do serviço considerado feminino, como a limpeza doméstica e a cozinha familiar. Fora isso, sendo o capitalismo um sistema criado por homens, atualmente a maioria dos milionários, donos das maiores empresas do mundo e dos estilos de negócios construídos há séculos, são homens, o que contribui para a grande quantidade de mulheres no grupo de pessoas pobres. Há uma importante visão crítica do movimento feminista, que precisa ser mais levada em conta. Ela é a do renomado historiador Eric Hobsbawm. Em seu livro A Era dos Extremos (1994, p.305), ele afirma: A entrada em massa de mulheres casadas – ou seja, em grande parte mães – no mercado de trabalho e a sensacional expansão da educação superior formaram o pano de fundo, pelo menos nos países ocidentais típicos, para o impressionante reflorescimento dos movimentos feministas a partir da década de 60. Na verdade, os movimentos de mulheres são inexplicáveis sem esses acontecimentos. Desde que as mulheres em tantas partes da Europa e da América do Norte tinham conseguido o grande objetivo do voto e direitos civis iguais desde a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa(...), os movimentos feministas haviam trocado a luz do sol pelas sombras, mesmo onde o triunfo dos regimes fascistas e reacionários não os destruíram.(...) Contudo, a própria amplitude da nova consciência de feminilidade e seus interesses torna inadequadas as explicações simples em termos de mudança do papel da mulher na economia. De qualquer modo, o que mudou na revolução social não foi apenas a natureza das atividades da mulher na sociedade, mas também os papéis desempenhados por elas ou as expectativas convencionais do que devem ser esses papéis, e em particular as suposições sobre os papéis públicos das mulheres, e sua proeminência pública. Pois enquanto se podia esperar que grandes mudanças, como a entrada em massa de mulheres casadas no mercado de trabalho, produzissem mudanças concomitantes e consequentes, nem sempre essas mudanças ocorrem – como atesta a URSS, onde(depois que se abandonaram as aspirações utópico-revolucionárias iniciais da década de 1920) as mulheres casadas em geral se viam carregando o duplo fardo de velhas responsabilidades domésticas e novas responsabilidades no emprego, sem mudanças de relações entre os sexos ou nas esferas pública e privada. De qualquer modo, os motivos pelos quais as mulheres em geral, e sobretudo as casadas, mergulharam no trabalho pago não tinham relação necessária com sua visão da posição social e dos direitos das mulheres. Talvez se devessem à pobreza, à preferência dos patrões por operárias, por serem mais baratas e mais dóceis, ou simplesmente ao crescente número – sobretudo no mundo dependente – de famílias chefiadas por mulheres. A migração em massa da mão-de-obra masculina, como do campo para as cidades da África do Sul, ou de partes da África e Ásia para os Estados do Golfo Pérsico, inevitavelmente deixou as mulheres chefiando a economia familiar em casa. Tampouco devemos

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esquecer os apavorantes massacres das Grandes Guerras, que deixaram a Rússia pós-1945 com cinco mulheres para cada três homens.

A análise dos fatos históricos por Hobsbawm é muito importante, pois alerta o movimento feminista: não se pode afirmar que a emancipação feminina independeu das condições criadas pelo homem no mundo, como as guerras e a expansão do ensino superior. A mulher, por séculos, e por variados e complexos motivos, não conseguiu, sozinha, organizar movimentos significativos que alterassem o que era esperado dela na sociedade. O que precisamos fazer é ter cautela e não necessariamente levar essa afirmação para o lado depreciativo: e por que seria necessário que a mulher mudasse as expectativas para com seu sexo e gênero? Tendo antes um papel valorizado e fixo na sociedade, talvez ela se sentisse segura o suficiente para não participar do “mundo dos homens” enquanto não teve que substituir a falta dele. Obrigar a mulher a lutar por um papel nos valores masculinos é forçá-la a alterar-se por estes mesmos valores. Hobsbawm continua falando de como esse “segundo feminismo”(consideramos o primeiro aquele que exige que a mulher possa votar e que tenha direitos civis) é fruto da mulher de classe média americana e tem um significado inteiramente novo na História da Humanidade: Mesmo uma leitura desatenta das pioneiras americanas do novo feminismo na década de 1960 sugere uma distinta perspectiva de classe nos problemas femininos(Friedan, 1963; Degler, 1987). Elas se preocupavam maciçamente com a questão de “como a mulher pode combinar carreira ou emprego com casamento e família”, um problema fundamental apenas para as que tinham essa opção, inexistente então para a maioria das mulheres do mundo e para todas as pobres. Estavam, com toda razão, preocupadas com igualdade entre homens e mulheres, um conceito que se tornou o principal instrumento para o avanço legal e institucional das mulheres ocidentais, pois a palavra “sexo” foi inserida nas Leis dos Direitos Civis americana de 1964, originalmente destinada a proibir apenas a discriminação racial. Mas “igualdade”, ou melhor, “igual tratamento” e “igual oportunidade”, supõe que não há diferenças significativas entre homens e mulheres, sociais ou outras, e para a maioria das mulheres do mundo, sobretudo as pobres, parecia óbvio que parte de sua inferioridade social se devia à diferença, enquanto sexo, dos homens, e podia portanto exigir remédios específicos do sexo – por exemplo, provimentos para a gravidez e maternidade, ou proteção especial contra ataques pelo sexo fisicamente mais forte e mais agressivo. O feminismo americano demorou a abordar interesses vitais da operária, como a licença-maternidade. Uma fase posterior do feminismo na verdade insistiu em diferenças de gênero, além de desigualdade de gênero, embora o uso de uma ideologia liberal de individualismo abstrato e o instrumento da lei de “direitos iguais” não fossem de fato compatíveis com o reconhecimento de que mulheres não eram, e não deviam necessariamente ser, iguais aos homens, e vice-versa.(1994, p.311)

Esta fase posterior do feminismo ao qual se refere Hobsbawm é chamada de pós-feminismo ou feminismo de “Terceira Onda”, como geralmente os teóricos chamam os movimentos feministas, dividindo-os em três ondas de acordo com as exigências e o período histórico. Ela retoma as diferenças biológicas entre homens e mulheres mas sem por isso ligá-las à personalidade e papéis sociais, equilibrando a Primeira Onda, que ainda acreditava numa feminilidade delicada e naturalista, vilanizando a mulher que adotava valores masculinos e não fazia questão de ser mãe, e a Segunda Onda, que dizia que a mulher era tão capaz de exercer atividades masculinas quanto o homem. O erro da Segunda Onda, como vimos com Paglia, foi vilanizar a maternidade e buscar uma masculinização da mulher para que ela “derrotasse o homem em seu campo”, mas negasse as diferenças de seu sexo, como por exemplo a gordura corporal, necessária aos hormônios sexuais, a menstruação, a gravidez, as oscilações hormonais, uma tendência de ter o hemisfério cerebral emocional mais desenvolvido e o espacial, menos, entre outros detalhes que as feministas achavam ser tentativas de inferiorização da mulher enquanto são apenas diferenças. Claro que a frequente manipulação dos dados biológicos pelos cientistas ao longo da História, para adequar as descobertas da medicina ao machismo, contribuiu para a desconfiança das feministas e a hesitação delas em investigarem as ciências por si próprias em busca de visões diferentes. O ensaio “Fazendo diferenças: teorias sobre gênero, corpo e comportamento”, de Maria Teresa Citelli, citado na bibliografia deste trabalho, é um inventivo resumo brasileiro da forma com que se tra17

tou do conhecimento científico desde Darwin e a maneira deste analisar o corpo feminino. O ensaio contém dados pouco conhecidos sobre o preconceito de gênero e raça influenciando nas descobertas científicas, até hoje protegidas por uma aura de credibilidade que infelizmente domina a opinião pública, por esta ser geralmente educada em locais que culpam apenas a política por movimentos como a eugenia. O artigo é excelente exemplo de feminismo como uma recusa de se aceitar a leitura médica do corpo feminino na visão masculina heteronormativa, já que denuncia como as descobertas acerca do funcionamento do organismo da mulher são sempre adaptadas a uma tendência que considera a reprodução a principal, quando não única, função feminina. Assim, todas as doenças são estudadas ligadas ao aparelho reprodutório, e todas as questões que não precisam necessariamente relacionar-se a ele são imediatamente associadas a ele, direta ou indiretamente, enquanto que no caso masculino os aspectos emocionais, por exemplo, são geralmente ligados ao trabalho, à sociedade e aos valores individuais. Neste trabalho adoto como o feminismo contemporâneo o definido por David William Foster, professor doutor da Arizona State University, no trecho abaixo(2005, p.111): Um dos conceitos fundamentais da ideologia feminista contemporânea é o imperativo de contradizer o olhar masculino, em geral e em particular, quando se relaciona com o corpo feminino. Draper(1997) explica os conceitos essenciais. É um refutar que se deve manifestar com desarticulação ou desconstrução de premissas – e o privilégio do poder – do olhar masculino, acompanhado por estratégias que promovem perspectivas alternativas, especificamente feministas, lésbicas ou, se possível, masculinas, porém desprovidas de toda atitude paternalista. Entendemos por olhar(ponto de vista) masculino a contemplação interpretativa do corpo em um denso processo de exclusão e inclusão, de ausência e de presença, do convalidado/legitimado e invalidado/ilegitimado, em que esse corpo(de mulher, de criança, de homem ou até de não-humano) adquire significado tanto quanto reforça os princípios obrigatoriamente heteronormativos do patriarcado ou possa ser utilizado para demonstrar o que se pode considerar desviantes não aceitáveis ou inadequações – quando não diretamente amenizantes – desses princípios.

Uma brasileira que discutiu o feminismo recentemente é Mary del Priore, historiadora que em entrevista à revista IstoÉ de março de 2010 fala do Dia Internacional da Mulher. Segundo ela, “o espelho é a nova submissão feminina”. Para ela, “A executiva não deu certo. Ela hipoteca sua vida familiar ou sacrifica seu prazer. Depressão e isolamento se combinam num coquetel regado a botox(toxina botulínica, retirada de fungos e amplamente utilizada hoje em dia para esticamento estético e tratamento de rugas)”. A entrevistadora dá um breve resumo da luta das operárias de uma fábrica de Nova Iorque que foram homenageadas pela ONU para a criação da data comemorativa, mas a entrevistada não considera a mulher vitoriosa nisso tudo. A revolução sexual troxe armadilhas, na visão da autora de 25 livros e 57 anos: Ocupando cada vez mais postos de trabalho, a mulher se vê na obrigação de buscar o equilíbrio entre o público e o privado. A tarefa não é fácil. O modelo que lhe foi oferecido era o masculino.(...) Se mulheres orientais ficam trancadas em haréns, as ocidentais têm outra prisão: a imagem.(DEL PRIORE, 2010, online)

Ao questionada sobre as inglesas serem contra a ditadura da cor rosa nos produtos para as filhas, Del Priore explica que fatores socioculturais a colocam um pouco a frente das brasileiras, e aproveita para criticar a famosa boneca Barbie. Para ela, o feminismo não pegou no Brasil porque a mulher aqui continua marcada por formas arcaicas de pensar. Elas defendem os filhos agressores de mulheres e não permite que lavem louça e arrumem o quarto. Ela cita o caso da aluna da Uniban, Geisy Arruda, ameaçada por usar um vestido curto rosa na faculdade: “é em casa que jovens como os alunos da Uniban aprenderam a jogar a primeira pedra”. No caso, nas mulheres que cultivam o mito da virilidade, julgadas por parâmetros além de seu alcance. Ela finaliza: 18

De Mary Woolstonecraft, no século XVIII, a Simone de Beauvoir, nos anos 50, o objetivo do feminismo foi provar que as mulheres são como homens e devem se beneficiar de direitos iguais. Todavia, no final deste milênio, inúmeras vozes se levantaram para denunciar o conteúdo falso e abstrato dessas ideias, que nunca levaram em conta as diferenças concretas entre os sexos. Para lutar contra a subordinação feminina, essa nova ética considera que não se devem adotar os valores masculinos para se parecer com os homens. Mas que, ao contrário, deve-se repensar e valorizar os interesses e as virtudes femininas. Equilibrar o público e o privado, a liberdade individual, controlar o hedonismo e os desejos, contornar o vazio da pós-modernidade, evitar o cinismo e a ironia diante da vida política. Enfim, as mulheres têm uma agenda complexa. Mas, se não for cumprida, seguiremos apenas modernas. Sem, de fato, entrar na modernidade. (...) Só com educação e consciência seremos capazes de compreender e definir nossa identidade”. (DEL PRIORE, 2010, online)

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Feminismo no Japão: uma frustração? Segundo Guilherme Solari, da revista Made in Japan, em 2008, uma mulher executiva japonesa conseguiu vencer as barreiras culturais que a impediam de ser presidente de empresa, Mas uma pesquisa revelada no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, mostrou uma realidade bem diferente para a grande maioria das japonesas. O Japão ficou em 98º lugar em matéria de discriminação sexual de um total de 130 países estudados. De longe a colocação mais baixa entre as nações desenvolvidas. O Brasil ficou no 51º lugar.

Além disso, a maioria dos insatisfeitos sexualmente no Japão, seguindo o padrão do resto do mundo, é do sexo feminino. Segundo a revista virtual Gambare!(2009), Uma pesquisa, realizada pelo laboratório Pfizer (fabricante do Viagra), mostra que apenas 10% da população japonesa, na faixa dos 25 aos 74 anos, está satisfeita com sua vida sexual. O estudo foi realizado em 13 países da região da Ásia e do Pacífico. No total, 64% das mulheres e 57% dos homens que responderam ao questionário disseram estar insatisfeitos com sua atividade sexual. A pesquisa foi realizada entre maio e julho de 2008.

Notícias sobre o uso da pílula anticoncepcional feminina no Japão, legalizada apenas em 1999, mostram bem como a postura sexual feminina é contraditória neste país. Segundo o UOL Últimas Notícias(2004), “No caso do Japão, muitas mulheres abusam dos abortos porque atualmente é um método seguro, por causa do avanço técnico e por ser legal no país”, disse Kitamura. Segundo o Ministério da Saúde, Bem-Estar Social e Trabalho, 17,2% das japonesas já fizeram abortos e, dentre estas, 30% recorreram ao método várias vezes. Embora seja dito que o aborto no Japão é seguro, os especialistas insistem que essa prática danifica o corpo das mulheres em maior ou menor escala. Apesar disso, elas recorrem cada vez mais a essa intervenção médica em vez do consumo de anticoncepcionais. Kitamura explica que “o termo ‘pílula’ tem sido sinônimo de efeitos secundários nocivos, daí o medo das pessoas”. Segundo uma pesquisa da JFPA, 70% das mulheres que as consomem dizem ter efeitos secundários, razão principal para não tomá-las. “Tenho medo dos efeitos secundários. Os homens simplesmente cobrem seu órgão sexual com o preservativo, mas as mulheres têm que ingerir uma substância química. Por que tenho que arriscar meu corpo? Acredito que impedir a concepção é responsabilidade dos homens”, afirma Nakano.

O que parece mostrar uma atitude muito mais consciente e feminista das japonesas quanto à obrigatoriedade imposta às mulheres para evitar a concepção, a custo de sua saúde, esconde uma postura ainda submissa, já que Esta mulher não é a única que deixa para os homens a tarefa de evitar a gravidez. “Muitas meninas não insistem para que os homens usem preservativos por medo de serem rejeitadas. Como conseqüência disso, são infectadas com doenças venéreas”, disse à EFE o ginecologista Tsuneo Akaeda, cuja clínica atende diariamente a cerca de trinta mulheres afetadas por este problema. No Japão, alguns especialistas temem que o aumento do uso de anticoncepcionais orais dispare os casos de doenças venéreas, que já crescem drasticamente especialmente entre os jovens. Quanto à Aids, o Japão é o único país desenvolvido onde a quantidade de infectados está aumentando. Segundo o Ministério da Saúde, o número de pessoas que contraem doenças venéreas triplicou nos últimos 12 anos, principalmente entre mulheres com menos de 30 anos. “Agora o mais importante é prevenir que as meninas contraiam doenças venéreas. Para isso, o meio anticoncepcional mais eficaz é o preservativo”, afirmou Akaeda. Segundo o especialista, atualmente muitas adolescentes têm vários parceiros e pouco estáveis, daí o risco de contágio. “Eles acreditam que as doenças venéreas são algo inevitável e que a Aids só contagia

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quem tem azar”, explicou. Akaeda já fez consultas gratuitas em algumas regiões, pediu uma campanha para vender preservativos com garantias e solicitou apoio dos hospitais para as jovens e seus exames médicos.(UOL, 2004, online)

Esta notícia alertou a sociedade japonesa sobre a falta de informação(bastante estranha, visto a sociedade japonesa investir tanto nisso; talvez seja apenas baixa auto-estima e a comum tendência suicida nipônica) das jovens sobre as DSTs e os danos do aborto. Os fatos denunciam, portanto, que até as doenças venéreas nos jovens se tornarem um problema, não havia preocupação com os danos do aborto à saúde e psique da mulher, já que o importante era tirar do homem a responsabilidade de usar camisinha, e talvez se ignorasse em geral a vida sexual mais livre da nova juventude japonesa. O agravante aqui é também a frieza da sociedade com os bebês, já que seria bom ao Japão, país cuja quantidade de idosos aumenta demais em relação à de jovens, ter mais filhos. Não é a condição financeira que faz as meninas abortarem, já que para abortar vezes seguidas é preciso dinheiro, e sim o desinteresse dos jovens em geral em adotar o modelo único de família que lhes é apresentado, a seu ver, o falho modelo de seus pais. Temerosos, os japoneses não sabem o que fazer com a revolução dos costumes e como propor novos modelos de família. Rosemary Iwamura(1994), em artigo para uma revista australiana de mídia e cultura, investiga a imagem da mulher japonesa no cinema e produções de entretenimento nacional, e conclui que por muito tempo as atrizes sofreram com uma ideia cultural de que, no fundo, a mulher japonesa sente prazer no estupro, por estar cansada de ter a sexualidade tão controlada. Iwamura alerta para o absurdo de que os diretores preferem que a cena de estupro seja real, para que a atriz realmente se apavore. Se este é o caso, como sustentar a noção absurda de que a mulher sente prazer nisso? Um diretor entrevistado pela escritora diz que para isso as atrizes são provocadas de maneira a sexualizar o ato ao máximo e tentar transformá-lo numa fantasia, mas é elementar em algumas cenas que as atrizes não conseguem chegar a este ponto; fora que o que é narrado a seguir sobre a postura da equipe de filmagem mostra o real intuito das cenas: A ideia de uma mulher sendo estuprada e eventualmente gostar disso é um tema comum em filmes japoneses pornográficos ou não. É tão comum inclusive que, no caso dos filmes pornográficos, a maioria dos estupros é real e não atuado. Um diretor deste tipo de filme, Ishigaki Akira, diz que gosta de dar a impressão nos vídeos de que as garotas estão “lutando de verdade em frente às câmeras. Não será um bom vídeo se não tiver um pouco de resistência”. (Tokyo Journal, July 1992 34) Quando meninas fazem teste para ser “AV girls” elas preenchem um papel detalhando o quanto estão dispostas a fazer nos vídeos. Uma das coisas que Ishigaki pergunta é se a menina está ou não disposta a ter relações reais de penetração vaginal ou anal; mas mesmo se responder negativamente, é muito provável que ela mais tarde vai ser convencida ou forçada a fazê-lo. Ishigaki diz: “Meu trabalho é deixá-las excitadas e prontas para o inevitável. Elas estão preparadas para o sexo mas ficam hesitando. Eu exijo cada vez mais paixão e elas finalmente ficam bêbadas na atmosfera”(Tokyo Journal, July 1992 34). Isso soa exatamente como o que foi dito, de que nos vídeos a menina resiste mas parece finalmente sucumbir a um ‘desejo’ de ser estuprada. Este cenário é espelhado nos bastidores quando prevalece a assunção de que a atriz vai ter prazer em ser atacada por operadores de câmera, atores, artistas envolvidos e diretores, que muitas vezes entram na ação e fazem sexo com ela.(IWAMURA, 1994, online)

Este tema é tratado de forma consistente no mangá shojo de sucesso mundial NANA, no qual uma atriz pornô tem dificuldades de livrar-se de um contrato que é alterado por seu diretor de acordo com sua disposição em submeter-se a posições e situações comprometedoras ou de abuso violento. Mas o filme que mais critica esta situação e mostra que esta imagem sobre o estupro feminino tem mudado no Japão é Perfect Blue, de Satoshi Kon. A protagonista, personagem que cantava numa banda japonesa de meninas, busca carreira no cinema e é obrigada a fazer uma cena de estupro; quando o ator lhe pede desculpas em cima dela, pelo fato do diretor criticá-lo por ele não parecer maníaco o suficiente, ela diz “não, não, está tudo bem”, de um jeito submisso e acostumado que uma atriz ocidental não demonstraria. O filme é extremamente triste e incômodo por mostrar não a impossibilidade da mulher japonesa satisfazer-se sexual e profissionalmente, mas sim denunciar como a mesma coisa ocorre com acla21

madas atrizes ocidentais(e se elas são poderosas e inspiradoras, como ficam as mulheres comuns?). O estupro e a exposição sexual, fora ou dentro da atuação, sempre tornam as atrizes mais propensas a serem elogiadas e premiadas, coisa que não ocorre com os atores. O modo surrealista de contar a história do filme mostram de forma crua, corajosa e importante o quanto a mulher envolvida no entretenimento não consegue se livrar da obrigatoriedade de fazer um certo número de papéis em situações machistas ou falsas quanto à capacidade feminina para enfim ser “levada a sério” e reconhecida como profissional de mídia. O que melhor explica e resume isso tudo é a cena na qual a protagonista está dançando como stripper, sentindo prazer nisso, o que é manipulado pelo diretor para justificar a cena seguinte, e alguns homens em volta do palco a admiram e gritam por ela; não se sabe se estes homens estão num set de filmagem ou são personagens, pois no momento em que ela se abaixa e um deles pula sobre ela, os outros a seguram e ela deve mostrar desespero; porém, a atuação que o diretor quer da moça não é a ideia que ela tem de como se apavoraria no caso. Ele pede que ela grite para que eles parem, mas ela sabe que isso parece excitar mais os homens, e ela quer chorar e demonstrar ódio. Ao sucumbir ao pedido do diretor, a cena se torna tão erótica que ela desmaia de choque(é horrível ver os homens segurando-a por todos os lados, o ato maquinal da penetração, os risos dos atores/equipe da impotência da atriz em não poder xingá-los como faria uma mulher normal nessa situação, e como a personagem de repente não ouve mais nada e o que vemos na tela é uma visão do teto embaçando e um ombro que se move). A única assistente de produção do sexo feminino presente, que protege a ingênua ‘ex-pop-star aspirante a atriz’ das brincadeirinhas machistas da equipe, interrompe a cena e chora ainda mais do que quando já chorava ao ver o diretor manipular a menina. Apesar de saber que o filme é péssimo, a assistente só pode trabalhar com cinema, seu sonho, nestas condições, e sabe que está sendo cruel com as atrizes que o diretor contrata, mas ninguém se comove o suficiente com as reclamações e argumentos dela para fazer heroínas e roteiros melhores sobre o desejo sexual feminino. Ao analisar a famosa companhia de teatro Takarazuka, Iwamura conclui que elas vivem numa terra fantasiosa de infantilidade eterna, por medo das diferenças sexuais da vida adulta, e suas fãs são atraídas por isso. A companhia tem apenas mulheres, que atuam como garotos e muitas vezes homossexuais, nunca como mulheres. Cheias de seguidoras fanáticas que as consideram homens ideais, estas moças são proibidas de relacionar-se sexualmente com homens por toda a vida, sendo expulsas se o fato é descoberto, o que é fácil devido ao fato delas morarem, segundo Bornoff, numa ‘Disneyland feminina com pontes cor-de-rosa sobre rios artificiais’, forma deste estudioso definir a cidade fechada e particular onde as atrizes devem morar quando aceitas na companhia(Bornoff 647). Não se descobriu até hoje se pode haver alguma corrupção entre os vigias, o que deve ser improvável devido ao fato dos japoneses considerarem um crime a violação de uma regra para que uma irmandade feminina artística possa expressar-se em condições ideais, ainda mais quando o público é feminino e parece haver um culto ao pseudolesbianismo de forma a, como no Ocidente, desviar dos homens a responsabilidade por frustrações sexuais femininas, desafogando-as no fanatismo da indústria de espetáculo e no culto às atrizes dessa companhia. Parece ser por meio dos mangás yaoi que as meninas mais expressam atualmente seus novos valores sexuais, já que a pornografia no país segue a misoginia apontada por Iwamura e as celebridades japonesas não saem do modelo comercial imposto pela indústria machista, tanto nipônica quanto mundial. Segundo Barral(2000, p.145), Furukawa Masuzo(...) observa a sociedade japonesa através da moda de mangás, e, segundo ele, o fenômeno mais impressionante dos últimos vinte anos é a evolução da mentalidade feminina: As mídias falam da liberação da mulher há pelo menos 25 anos, mas só muito recentemente é que esta liberação é constatada em fatos. A principal consequência dessa liberação da mulher é a perda de suas referências sociais. As jovens no Japão são como um cavalo que voltou a ser selvagem. Não mais se parecem com as mães, mas também não sabem o que fazer de sua liberdade em uma sociedade ainda dominada por homens. A sociedade não espera mais que elas sejam apenas boas esposas e boas mães, porém isso não significa que elas tenham conquistado seu lugar no mundo do trabalho. Elas são

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livres, é verdade, mas não com igualdade. Grande parte de sua energia, reprimida por muito tempo e novamente liberada, passou para o fenômeno dos fanzines. Este tornou-se para estas adolescentes o meio de exprimir sua personalidade profunda. O gênero yaoi, é, eu penso, uma reação à opressão sexual dos homens. É uma revolta contra a imagem estereotipada da mulher na mídia. Com esse gênero, elas reivindicam outras representações sexuadas além das que lhe são propostas, analisa Furukawa.

Há uma outra visão do fenômeno neste livro de Barral(2000, p.145): Os mangás comerciais destinados às jovens acentuam demais o romatismo cor-de-rosa, e tendem a considerar suas leitoras como cinderelas à espera paciente de seus príncipes encantados. É essa ruptura entre os mangás comerciais e a expectativa das leitoras que explica, em grande parte, a razão de as adolescentes se voltarem progressivamente para os fanzines de mangá yaoi, explica Yonezawa.

Embora a situação da mulher japonesa não se altere com os mangás yaoi, é de se admirar a capacidade nipônica de aceitar manifestações sexuais de todos os tipos, separando-as da realidade e aproveitando o potencial capitalista e expressivo das mulheres para incluí-las no mercado das fantasias eróticas.

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MANGÁS ANALISADOS QUANTO AO PAPEL E IMAGEM DA MULHER

O livro de Walnice Nogueira sobre a personagem “donzela guerreira” na literatura mundial contribui para a noção das formas de apresentação da mulher na literatura e no estudo do entretenimento atual, essencial para se entender o papel da mulher na mídia ocidental e compará-lo ao da mulher como é retratada nos mangás. Segundo Walnice, quando não estereotipada nas figuras de mãe ou prostituta(e em seus derivados: irmã, esposa, filha, que infelizmente se comportam como a mãe), a donzela guerreira é uma figura assexuada que não se identifica com a mãe, geralmente possuindo apenas um pai que a concebeu virginalmente, e que assume o papel do filho quando este não existe. Assim, reforça-se o machismo, pois a mulher que não assume um dos papéis pré-estabelecidos pelo patriarcalismo não pode exercer sua sexualidade e deve encarnar a postura paterna ou o amigo do protagonista. O entretenimento altera esta situação criando heroínas que, além de melhores amigas e competentes no campo masculino, são mães e prostitutas dos heróis ou vilões. Não houve a criação de uma nova heroína e sim a junção de todas as exigências das anteriores, focando na liberdade sexual por esta ter sido mais oprimida anteriormente e por ser mais atraente ao olhar masculino. No caso dos mangás, a imagem feminina segue o mesmo modelo limitador descrito por Walnice, sendo as raras exceções exploradas nos mangás apresentados neste TCC. Aqui busco personagens femininas que, de alguma maneira, saem do padrão “mãe-prostituta-amigo”, ou porque criam novas possibilidades de se discutir esses papéis, por exercerem-nos de forma inusitada, ou porque transitam entre eles ou até criam uma nova categoria de personagem feminina, geralmente perdida no mundo dos homens ou impondo-se nele sem adequar-se totalmente ao modelo de masculinidade para serem heroicas.

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Death Note O mangá foi lançado em 2004 com roteiro de Tsugumi Ooba e traço de Takeshi Obata e tornou-se um fenômeno mundial devido à revolução que causou no clichê shonen e ao tema politicamente polêmico. Death Note narra a história de Light Yagami, estudante japonês de QI altíssimo que encontra um caderno sobrenatural: se você escrever o nome de uma pessoa com a imagem de seu rosto na mente, essa pessoa morre. Se quiser adicionar detalhes à morte, faça-o em um determinado tempo limite após escrever o nome; senão, a pessoa morre de ataque cardíaco. Entediado com a injustiça do mundo, Light usa o caderno para criar um assassino, seu alter-ego, apelidado de Kira pela internet: ele pesquisa sobre criminosos perigosos e julga com cuidado quando o crime foi feito por pura maldade. Matando-os de ataque cardíaco, ele chama a atenção da mídia e autoridades, porque o fato de criminosos morrerem da mesma causa natural de repente parece punição divina. A Interpol é obrigada a chamar o genial detetive L, um rapaz excêntrico e lânguido, para conseguir pegar Kira. Light e L, num brilhante jogo de gato e rato, vão se tornando amigos na caça a Kira, enquanto devem, no futuro, matar um ao outro. O tema é comum nos shonen de rivais, mas neste caso a identidade é por um tempo um mistério para o outro, o que dá mais possibilidades relacionais entre eles. Fora que há um clima bastante erotizado entre os dois, criado pelo fato de L ter um comportamento livre de convenções sociais e Light desprezar as mulheres, talvez por sua educação japonesa e pela falta do pai, policial autoritário, em casa. O poder do caderno vai corrompendo Light, que após conseguir matar L, torna-se cada vez mais psicótico e se deixa levar pela arrogância, sendo pego por um discípulo de L, o jovem Near. Light, machista e arrogante, é obrigado por sua criadora, Tsugumi Ooba, a aturar, a série inteira, o tipo de mulher que mais odeia – infantil, ciumenta, grudenta, persistente, e acima de tudo, capaz de pressioná-lo contra a parede com estratégias que exigem grande atenção e um mínimo de inteligência para serem planejadas: Misa Amane é uma menina que passa a idolatrar Kira porque ele mata os assassinos de seus pais, soltos pela polícia por falta de provas. Ela procura Kira e o acha sozinha, mostrando ter um QI bem acima da média e do esperado por uma modelo japonesa de voz estridente, e se apaixona por ele, contribuindo para seus planos. Isso me parece a vingança da autora sobre o desprezo que seu protagonista tem pelas mulheres, de forma nunca antes feita num shonen. Por outro lado, Light respeita sua mãe e sua irmã; esta última inclusive causa nele um grande estresse em dado momento da série, por ser sequestrada por pessoas que parecem saber sua verdadeira identidade. Aliás, elas fizeram mais parte da vida dele do que o próprio pai, sempre ocupado com o desgastante serviço de policial, o que indica que o machismo de Light não é tão forte quanto enxergam muitos fãs. Talvez ele tenha raiva das mulheres porque tem que ajudar a irmã manhosa com as tarefas de casa e sua mãe sempre o recebe em casa perguntando por suas notas. Numa cena tocante do mangá, Light chega em casa, e antes que possa aproximar-se da mãe, ela estende as mãos sem falar nada; ele diz, “ah sim, o boletim”, e após entregar a ela, sobe para o quarto, parecendo desolado. É como se o boletim fosse um abraço. Naomi Misora, então, é a primeira personagem feminina cuja inteligência desafia o protagonista de forma tão forte na história dos shonen. Brilhante e discreta, ela é responsável por um dos momentos mais tensos para Light na série, quando encurrala o jovem e quase descobre sua real identidade, forçando-o a matá-la de forma imediata e arriscada. Fora isso, Death Note parece ter lançado uma evolução do gênero harém, tornando-os menos machistas, como podemos ver em Code Geass e nos shonens mais recentes. Ao invés de disputar um protagonista socialmente covarde, tarado e relapso com a aparência, como é comum nesse gênero de mangá shonen, as moças brigam nesta obra por um macho alfa: Light é genial, sociável, lindo, responsável, e seu primeiro ato com o caderno é matar um homem que está prestes a abusar de uma moça no meio da rua, segurando-a com a ajuda dos amigos de moto. As pessoas passam reto, ignorando o fato – e Light, revoltado, “testa” o caderno, anotando o nome do rapaz, que ouve porque ele se exibe para a moça, que volta do trabalho à noite. Ou seja, a revolta dele 25

em relação ao estupro público de mulheres japonesas é maior que o de sua sociedade. Há em Death Note uma crítica do machismo quando, por cavalheirismo, Misa não é filmada no banho enquanto fica sob vigilância, e assim quando foge por sentir-se oprimida, os ingênuos policiais japoneses sentem pena dela, que é uma excelente atriz, cúmplice do assassino. É permitido à agente Hal Lidner desligar as câmeras de vigilância de seu banheiro, e ela aproveita para esconder ali um personagem foragido da polícia. Até Mello, o personagem menos cavalheiro de todos, atrás talvez de L, se dá mal por deixar uma refém nua ficar enrolada numa toalha, de maneira que ele não visse algo escondido e que causa sua morte. O cavalheirismo japonês é criticado por idealizar as mulheres como inofensivas e também oprimir sua sexualidade, já que se há tanta relutância em ver as suspeitas nuas, é porque isso não é tido como natural ou os policiais, que tanto se gabam por sua moral conservadora, não conseguem vê-las nuas de forma neutra, não-sexualizada, e elas se aproveitam disso. Pra finalizar, destaco aqui a primeira vez num shonen em que o protagonista se vê preso numa situação em que, se não agradar a menina que se interessa por ele, sua vida corre risco(em outros, a menina varia entre o tipo “apaixonada tímida e submissa” e “gostosona que seduz os rapazes mas cuja atitude sexualmente liberta é criticada”, ou aquela que entra no mundo dos homens mas não os supera em nada). Light tem que vender seu corpo e atenção a Misa para que Remu, entidade sobrenatural protetora dela, não o mate e para que Misa continue servindo-o com seu caderno e habilidades. Ou seja, pela primeira vez na história dos shonen, é o protagonista que prostitui o corpo em troca de favores. Light não a trata muito bem verbalmente – mas desde que eles se deitem juntos toda noite, ela está satisfeita. Ou seja, Misa faz o papel do marido machista que só quer a mulher à noite e cuidando de sua casa, e Light é o que a protege e aumenta seu lucro(ela é independente dele financeiramente) e ainda tem que agradá-la pra não perder seus poderes, coisa que ele obviamente abomina. Não vejo machismo algum aqui. O que não gosto em Misa é ela substituir sua auto-estima por Light, tendo que obedecê-lo para sentir-se amada. Mas ele faz o mesmo, substituindo a sua pelo entreter de Ryuk, sua entidade sobrenatural protetora(essas entidades são as verdadeiras donas dos “cadernos da morte”, chamadas shinigami) sua imagem para a sociedade e os pais, e a melhora do mundo, que não é responsabilidade dele. É o casal perfeito, duas pessoas que não conseguem ter auto-estima sozinhos e que dependem de algo exterior para sentirem-se aprovados. Antes de encontrar o caderno, Light se comportava como um verdadeiro suicida, sempre sério e sem coragem de largar os estudos e confrontar os pais, embora sua inteligência acima da média lhe desse tempo para, por exemplo, ter uma vida social ou conhecer culturas diferentes.

Figura 6: Capa de DVD da obra com Misa à frente.

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Naruto Segundo o site oficial estadunidense, o mangá Naruto já vendeu mais de 100 milhões de cópias no Japão e mais de 4 milhões nos EUA, onde fica sempre na lista dos 150 livros mais vendidos. O nome do mangá foi a sétima palavra mais procurada no Yahoo em 2008 e o volume 7 do mangá ganhou em 2006 o prestigiado Quill Award na categoria Quadrinhos. Serializado na revista Shonen Jump desde 1999, Naruto é de autoria de Masashi Kishimoto e ganhou a versão animada em 2002 no Japão pelo tradicional Studio Pierrot. A princípio, este mangá é o típico shonen, com um protagonista que sofre bullying, um rival que é popular e faz sucesso com as garotas, e uma menina que no começo é apaixonada por este rival, mas depois descobre que ele é frio e machista, apesar de profissional e sexualmente competente, e passa a gostar do atrapalhado protagonista. A maioria dos shonen segue esta fórmula porque mangá no Japão é considerado algo feito por aqueles que não se encaixam na sociedade, por não quererem no futuro trabalhar como funcionários das grandes empresas. O mundo das artes, música e entretenimento não é levado a sério no país, principalmente porque geralmente contém ideias que contestam a estabilidade e a racionalidade, tão valorizados na cultura japonesa. Os sofridos e incompreendidos protagonistas dos shonen, invejando os que sacrificam seus sentimentos para serem os primeiros da escola e terem os melhores empregos, são portanto alter-egos de seus autores, tímidos com as mulheres, mas que as amam de forma menos fria que os tradicionais rivais. Geralmente o vilão dos shonen era a encarnação de um estrangeiro. A maioria deles era ridicularizada pelo mocinho e seu rival/melhor amigo, que vêem os loiros e ruivos como psicóticos obcecados por armas de destruição em massa e poder. Atualmente, com a valorização dos valores ocidentais e a negação do preconceito com os estrangeiros, devido à nova geração japonesa não ter o rancor das bombas atômicas e saber que isso não justifica a xenofobia de seu país, os protagonistas passaram a ser loiros ou ruivos, e os rivais ou vilões, rapazes de cabelos negros e comportamento samurai, o que é a impressionante evidência de uma mudança de valores na juventude nipônica. Além disso, a personagem feminina passou a ser do time de heróis pela primeira vez em Naruto, o que me fez destacar esse mangá neste trabalho. Antigamente, tinha-se a vilã sensual, a mocinha ingênua e as moças, familiares ou deusas em perigo, a serem salvas pelos heróis. Em Naruto, as meninas fazem parte do time e salvam mulheres comuns, e quanto mais fortes, mais admiradas são pelo protagonista. O rival, no entanto, seguindo a tradição japonesa, as despreza de qualquer forma. E cada vez mais os autores de mangá shonen criticam o homoerotismo hipócrita e a falsa imagem da mulher como inferior em suas obras, porque o jovem japonês, vendo a mulher ocidental e a emancipação da japonesa, não se contenta mais ou não pode mais contar com essa visão de mulher. Naruto, o protagonista que dá nome a esta obra, sofre preconceito de seus conterrâneos por conter em si o espírito do demônio Raposa de Nove Caudas, famoso no folclore japonês por sua beleza, inteligência e poderes de sedução e ilusão, além de cura e conhecimento de ervas mágicas. Mais uma vez temos aqui uma subversão, visto que esta entidade mitológica é associada à sedução feminina, geralmente representada por personagens andróginos que fazem as garotas suspirarem, mas terminam a história sozinhos. Aqui o autor ousa ao colocar o protagonista como encarnador de uma entidade essencialmente feminina, mas comportando-se como um moleque travesso. Não é à toa que ao longo da história o menino usa sua magia ninja para transformar-se numa bela garota e distrair o inimigo: essa postura sensual e brincalhona é típica da raposa oriental e, embora pareça que o autor a usa como desculpa para desenhar uma loira sensual nua, ele também acaba colocando Naruto como um menino que gosta de fantasiar sexualmente estando literalmente no corpo feminino. Essa abordagem ousada geralmente acontece apenas nos shojo, que abusam de androginia e trocas de corpo e sexo porque buscam uma alternativa à limitada vida sexual de suas protagonistas opressas. Em Naruto, o protagonista usa sua transformação para seduzir um velho mestre tarado, para que ele o ensine técnicas de luta e magia novas; ele também faz isso para tirar sarro dos professores, porque tem dificuldade em aprender as técnicas e é isolado do resto da sociedade por ter o demônio feminino no corpo. 27

Sasuke, o rival de Naruto(curiosamente, este é branco de olhos e cabelos negros enquanto Naruto é bronzeado, loiro e de olhos azuis), é de uma tradicional família ninja que tem poderes oculares especiais, que permitem que eles desenvolvam os golpes entre os mais perigosos existentes: os que controlam a mente do oponente através do olhar. Sasuke é o aluno-modelo da sala, o ninja mais poderoso e belo de sua idade na vila, treinado pelo irmão mais velho, um prodígio que se tornou capitão de um esquadrão de assassinato aos 13 anos de idade. Só que este, Itachi, por volta desta idade, matou a todos do clã, inclusive os próprios pais, e só deixou Sasuke vivo, dizendo que era para ele vingá-lo. Com medo de que sua ligação com Naruto o fizesse esquecer a morte dos pais, ele se junta a um mestre inimigo da vila para ficar mais poderoso, mesmo que isso signifique que vai ser perseguido como um traidor. Toda a obra gira em torno de Naruto tentando convencer Sasuke a desistir da vingança, e mais futuramente, a salvá-lo da insanidade que vem de tê-la consumado. A personagem feminina principal da obra, Sakura, aqui neste inovador shonen tem seus pensamentos e psique intensamente explorados, ao invés de ser apenas o típico apoio para o relacionamento entre os rivais homens. Sakura vai aos poucos perdendo seu amado Sasuke para Naruto, que descobre que o rival passa a ser mais importante que ela. Ao invés de conformar-se com isso, no entanto(postura comum das meninas de outros shonens), ela se esforça para ser reconhecida na sociedade de valores machistas, masculinos e ninjas no qual se insere; e chega a se tornar uma poderosa ninja, que vai recuperando a admiração de Naruto, antes visivelmente deslocando sua atração pelo rival devido talvez ao desenvolvimento da sexualidade adolescente, que não é definitiva nessa época. Sakura amadurece da irritante e inútil fã de Sasuke para a madura e habilidosa “mana” que quer vê-los juntos de novo.Ela admite ser um fardo aos garotos num dos exames ninja, porque quer ser defendida por eles, mas depois inspira-se neles positivamente ao invés de assumir a posição da maioria das meninas da trama(ser a médica do time, sem poderes ofensivos). O fato dela ter duas personalidades, se fazendo de boba por fora e sendo agressiva por dentro, mostra que o autor de Naruto aprofundou o clichê da heroína: como as japonesas, ela se faz de fútil, mas é inteligente e maliciosa por dentro. E a mulher mais poderosa da série até agora, a velhinha Chiyo, que para mim tem a melhor participação na série, diz a Sakura algo que pode ser considerado machista pelas feministas vitimizantes: “Você se parece comigo...Há poucas mulheres cujo cavalheirismo se equipara ao dos homens”. Esta afirmação é aceitável, porque vem das mulheres guerreiras, geralmente vítimas de preconceito e da inveja das submissas, tendo mais respeito dos homens na vida. E ser uma mulher cavalheiresca não precisa significar ser superior nem inferior às outras. Sakura tem que se inspirar nos colegas homens a princípio porque não há ninja feminina conhecida para tomar o lugar patriarcal de admiração – até a chegada de Tsunade, que vira a Hokage(imperatriz ninja) de Konoha. O triste é esta ser uma velha que usa suas habilidades ninja(os jutsus) para manter-se nova e peituda, e quando vão resgatá-la de Orochimaru, por mais lendária que ela seja, tem que ficar de lado sem conseguir fazer nada enquanto os homens, que deveriam ser mais fracos que ela, a salvam, por causa de um trauma mal-explicado(uma fobia de sangue, sendo que ela é médica! Parece uma desculpa para deixá-la paralisada enquanto os homens lutam). As outras personagens femininas são secundárias e irrelevantes como tais. O único momento feminista nos é dado pelo personagem Konohamaru, que, após mostrar seu jutsu de lésbicas peladas a Naruto(fã deste, ele aprende seus jutsus ilusórios bobos, “para distrair o inimigo”, claramente apenas Figura 7: Sakura, protagonista feminina de Naruto. 28

para diversão pornográfica – embora essa diversão se traduza para os meninos em apenas fazer as meninas duelarem pelo posto de mais bela, de forma comicamente ingênua), faz um de homens gays, usando a imagem dos dois personagens homens mais belos da obra, fazendo Sakura sangrar pelo nariz(no Japão isso indica excitação sexual reprimida). Konohamaru então diz “ahá, então vocês são como nós!”. Inserir uma apelação ao público feminino japonês, que gosta de yaoi, nunca antes havia sido feito num mangá shonen, o que destaca Naruto por sua preocupação com esse público, incentivando as meninas a serem “pervertidas” como os meninos, sem criticá-las por isso ser “estranho”, como já havia sido feito em mangás shonen anteriores, ainda preconceituosos com as fantasias sexuais femininas. Fora isso, temos a ilógica sugestão de que as ninjas mulheres(kunoichis) devem ser apenas médicas ou administrativas, servindo de freio entre rivais homens nos times de três; mas no trio de Naruto isso falha, porque ele coloca Sakura em risco em suas rixas com Sasuke. Ou seja, o autor critica esta tradição da vila de sua obra, e mais tarde apresenta trios de vilas diferentes que fazem o sistema oposto, de duas meninas e um menino por time. Quando Sasuke e Naruto finalmente se reencontram e aquele parte friamente, Naruto ajoelha e se desfaz em lágrimas, sendo consolado por Sakura. Acredito que aqui ocorre uma inversão de papéis que torna este triângulo amoroso tão fascinante: enquanto a menina se livra da atração infantil que sentia por Sasuke e conforta Naruto, este se apega cada vez mais ao outro e se envolve com ele de forma a não conseguir mais simplesmente atacá-lo pra trazê-lo de volta à força. É a primeira vez num shonen que a personagem feminina supera a rejeição amorosa de forma madura enquanto o protagonista continua se apegando ao passado. Nas últimas edições do mangá no Japão, Sakura percebe que a insistência de Naruto em não querer que Sasuke seja tratado como o inimigo internacional que deve, pelas loucuras que vem fazendo no mundo ninja, vão colocá-lo na lista de procurados junto com Sasuke. Ela tenta convencer Naruto de que ele não precisa mais manter a promessa de trazer Sasuke de volta, pois ela vai ficar com ele mesmo ele sendo um homem que não consegue cumprir promessas. Naruto, no entanto, diz que não é só por ela que ele quer salvar Sasuke e que “detesta pessoas que mentem para si mesmas”. Sakura então decide matar Sasuke sem que ninguém saiba(mas um personagem desconfia e a segue, avisando Naruto), o que é uma inédita forma da heroína de mangá tratar o rival do protagonista; parece que ela quer eliminar o outro por puro ciúme. E o mais intrigante é que Sasuke percebe: quando ela o encontra e diz que decidiu ir com ele, porque pode ajudar com suas habilidades médicas e não é mais a garotinha inútil de antes, ele finge que acredita mas a ataca antes dela conseguir enganá-lo. É como se Sasuke tivesse certeza de que se ela viesse pra ele, seria para matá-lo, como a um rival amoroso. Sasuke parece testar até que ponto Naruto vai por ele; este chega, interrompe a luta e diz pra ele relaxar, que se for preciso, vai morrer com ele. Algo se altera na fisionomia de Sasuke, que pára a luta e vai embora. Embora esteja numa triste situação em que não consegue o amor nem de um, nem do outro amigo de infância, Sakura faz algo polêmico e inédito na história dos shonen, que é tentar matar aquele que lhe rouba a atenção sem que lhe expliquem por quê. Não importa o quanto fique poderosa, ela não supera uma estranha barreira emocional entre os homens, e o mangá sugere que ela se torna cada vez mais neurótica e perigosa por conta disso. Antes, os shonen tratavam do assunto fazendo a menina se apaixonar por um terceiro personagem que lhe dê mais atenção, ou dando-lhe um posto honrado e poderoso entre os homens, sem resolver sua situação romântica. Aqui, o autor de Naruto promete levar os problemas deste estranho triângulo amoroso às últimas consequências.

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Fruits Basket A história começa com o clichê shojo da protagonista acordando pra ir à escola; mas não, ela não sai de uma mansão, atrasada com a torrada na boca e cheia de itens fofinhos e caros. Tohru Honda sai misteriosamente de uma barraca na qual vem morando desde que a mãe morreu. Seu avô pediu pra que ela dormisse na casa de uma amiga enquanto a reforma da casa durasse, mas a exageradamente servil Tohru não consegue pedir tamanho favor a suas companheiras de escola – a sensitiva gótica Saki Hanajima e a ex-delinquente Arisa Uotani, ambas excluídas como ela; mais uma fuga dos clichês shojo, em que as meninas são sempre da turma das populares – e compra uma barraca de camping em liquidação, mudando-se para o terreno baldio do território da poderosa família Souma – da qual faz parte o garoto mais popular de seu colégio, com quem ela acaba trombando por ali. Yuki Souma, o tal popular, a acompanha gentilmente até a escola e na noite seguinte a encontra quase desmaiando de cansaço, chegando tarde de seu trabalho de faxineira num prédio. Ele estava com o primo, o já adulto Shigure, que, ao invés de ter piedade da menina, chora de dar risada da situação, mostrando que esse não é um mangá de personagens preto-e-branco. Apesar de terem misteriosas restrições quanto a mulheres na casa – e a autora brinca com a sugestão yaoi várias vezes neste genial mangá, mas de forma bem mais misteriosa que nos similares –, eles pedem à jovem que fique com eles enquanto sua reforma não termina. Em troca do favor ela limparia a casa e cozinharia, o que pra ela é uma inestimável gentileza. Aliás, a princípio a servilidade de Tohru irrita e quase sugere o machista aspecto da valorização da japonesa submissa, mas é assombrosa a sensibilidade da autora ao explicar, mais pra frente, o motivo desse comportamento da protagonista. E, logo no comecinho, alguns podem derramar as primeiras das muitas lágrimas que surgem ao se ler este mangá: Tohru conta a Shigure que trabalha duro pra não incomodar o avô e que, embora não queira terminar o colegial(seria menos cansativo apenas trabalhar, então), ela o fará porque a mãe pediu e porque deve isso a ela “por não ter dito ‘vá com cuidado’ na manhã em que ela morreu atropelada a caminho do serviço, porque eu estudei até tarde pra uma prova na noite anterior”. O modo com que Tohru conta isso é de apertar o coração de qualquer pessoa que ame uma mãe. Ao mesmo tempo que desenvolve uma trama divertida e emocionante de colegiais comuns, Natsuki Takaya, a premiada autora deste bestseller mundial, deixa o leitor curioso com um mistério sobrenatural envolvendo a família Souma. A mãe de Tohru contava à filha quando pequena uma fábula dos 12 signos do zodíaco chinês, e cada membro dos Souma se transforma em um deles quando abraçado pelo sexo oposto. Esse fato aparentemente nonsense liga de forma intensa a protagonista aos que a encontraram na floresta “por acaso”: essa transformação é uma metáfora genial da tensão entre os sexos na sociedade japonesa: tradicional, a família Souma só permite casamentos internos. No mangá isso se justifica pelo óbvio fato de ser impossível uma união entre um animal e um humano; mas descobrimos mais pra frente que, ao contrário de justificar a prática nipônica do casamento arranjado, Takaya fez uma crítica poderosa ao costume submisso e fechado de seus compatriotas. Os personagens se transformam em animais porque não querem se envolver com os outros. Somente o conseguem com alguns familiares por costume e obrigação. Tohru é a primeira a aceitar os esquisitos Souma do jeito que são. Isso é visto por eles como estupidez ou insanidade, mas na verdade ela é uma grande psicóloga. Tohru teve uma mãe que, até certo ponto do mangá, vemos que a mimou e a criou com todo o carinho do mundo(mas não se engane, tudo em Fruits Basket é mais complexo do que parece: essa mesma mãe a abandonou por luto à morte do marido, e quase a deixou passar fome; o avô de Tohru a visitou para ver se estava bem, e é ao desistir de se jogar no mar para ver o marido que ela se lembra de Tohru, porque passa na rua uma mãe com a filha pequena; ou seja, parte do mimo da senhora Honda é para se redimir), o que faz com que ela se valorize e seja forte sozinha, aturando a tiração de sarro de sua escola – da qual a protegem as geniais Saki e Arisa –, trabalhando duro para não ser um incômodo a ninguém e sorrindo o tempo todo, se satisfazendo com a menor das gentilezas. A obrigação de obedecer Akito, o patriarca(ou seja, obedecer ao Pai) é o que atormenta os membros da família Souma, que vão sendo apresentados a Tohru, cada um se transformando num animal 30

do zodíaco chinês. Uma reviravolta impressionante ocorre perto do final, e diálogos geniais sobre Akito estão à altura da mais exigente das feministas: conta-se que na verdade Akito é uma mulher, criada pela mãe como homem porque os Souma só aceitam herdeiros homens e porque o pai de Akito, apesar de discordar disso, morre cedo. Os mais próximos de Akito, que se sentem mais presos a ele por terem sofrido o mesmo, são os que tiveram as piores mães. Os sortudos, ou seja, que tiveram mães carinhosas, Hiro e Kagura, são totalmente desconectados de Akito, nada afetados por sua visão pessimista de mundo e seus xingamentos sem motivo. Já Kyo é pouco ligado a Akito porque desprezava a corujisse falsa e carente da mãe e teve um pai, embora adotivo, exemplar, o que é raríssimo no mangá, e isso lhe fez não idealizar a figura materna e ver Tohru mais como mulher, ao contrário de Yuki e os outros. É isso que o faz ser diferente deles, e que o exclui da festa do mito dos signos: a não idealização da mulher, o que é extremamente positivo, pois a coloca no patamar de igualdade. Tohru, que representa a Mãe, tem uma discreta inteligência em descobrir maneiras gentis de confortar as pessoas sem exigir que elas se alterem ou se abram antes de estarem prontas pra falar do assunto. A genialidade da terapia de Tohru é se adaptar ao comportamento do traumatizado e mostrar a ele que não tem problema ele estar deprimido, furioso ou qualquer outro adjetivo que sua individualidade escolheu para se defender da opressão; ela teimosamente faz-lhe gentilezas, até convencê-lo de que algumas pessoas no mundo jamais desistem da bondade e aceitam as pessoas do jeito que são, não importa quantas vezes sejam discriminadas ou mal-interpretadas por isso. A personagem que poderia ser mais um clichê de “protagonista meiga apenas em situações favoráveis” e cuja única função é usar vestidos de renda e ser o motivo da vingança de um protagonista revoltado-sem-causa, como costuma ocorrer nos shojo, se torna aqui uma garota fortíssima, da qual depende todo o elenco masculino, cuja bondade não é resultado de uma vida mimada, e sim da nobreza de seu caráter, resistente às mais terríveis adversidades físicas e psicológicas. O mais genial da obra em se tratando do feminino é para mim a figura de Akito. O tempo todo acreditamos que ela é um homem, o temido patriarca da família Souma, encarnador de Deus no mito dos animais, representante do terror da figura do Pai, contra a figura meiga da Mãe, representada por Tohru, que o enfrenta toda vez que ele critica Yuki, Kyo e os jovens da família Souma. Enquanto Tohru os incentiva a vencer seus defeitos, Akito os desestimula, dizendo “vocês são assim, por que acham que vão conseguir mudar?”. No entanto, Akito é uma mulher criada como homem, enganada pela família obediente a sua mãe insana. Ou seja, a autora não vilaniza os homens biologicamente, e sim o papel que eles são forçados a desempenhar. A mãe de Akito, Ren, invejava a beleza e juventude da filha e só aceitou engravidar porque precisava disso para casar-se com o patriarca. Embora considerada de origem vulgar, já que a família Souma é de tradição nobre e mantém-se isolada no tempo, Ren é escolhida como esposa porque o patriarca a acha muito bela e carinhosa. Ele morre cedo(tinha a saúde frágil; metáfora da autora ao enfraquecimento do homem antigo, que seguia o rígido modelo patriarcal) e chama pela filha ao morrer; doentia, Ren ordena a todos que ela seja criada como homem, mesmo o patriarca dizendo que não há mal algum em se ter uma líder mulher entre os Souma. Akito acha que foi criada como homem porque a tradição exigia. Mas ela não resiste à paixão por Shigure, primo de Yuki e adulto responsável pelo trio principal – Tohru, Yuki e Kyo – na casa em que moram, e dorme com ele; mas ela se aproveita do privilégio de ser patriarca para dormir com Kureno, outro rapaz da família, sem falar disso a Shigure, que se vinga dormindo com Ren quando descobre. Isso deixa Akito furiosa, mas Shigure lhe diz algo para fazer as feministas masculinizadas pensarem: “Você diz que odeia as mulheres, mas se aproveita do fato de ser uma”. O que ele quer dizer é que Akito encarna o pai, mas sente prazer sexual com homens. Se se comportasse como patriarca, ela não imploraria o tempo todo pela atenção dos homens da família, imitando a mãe. Se fosse homem, Shigure e Kureno não dormiriam com ela e ela não dominaria a família pelo terror. A moral disso é que é possível sobreviver ao abandono paterno, mas quando a mãe maltrata o rebento, a situação é catastrófica e irreversível. Todos os personagens da história em menor ou maior grau têm traumas paternos, mas os mais psicologicamente abalados são os que têm problemas com as mães. Momiji e Kyo têm pais extremamente carinhosos – no caso de Kyo, o pai adotivo –, mas não 31

superam o trauma de terem sido rejeitados pelas mães. Takaya faz uma importante afirmação neste mangá: não importa o quanto o pai esteja presente, a ligação fisiológica inicial com a mãe é imprescindível para a saúde de uma criança. E por meio de sua protagonista Tohru Honda, a autora vai contra Freud, sem nunca o ter lido, mostrando que quando pequena a menina também sente raiva do pai e desejo pela mãe. Tohru passa a usar as expressões do pai quando pequena porque no enterro dele, as pessoas, que tinham preconceito da mãe de Tohru, delinquente juvenil e líder de uma gangue de motoqueiras violentas quando adolescente, disseram que ele deve ter morrido porque ela não cuidou bem dele, e que Tohru não parecia filha dele. Traumatizada, ela passa a falar como o pai porque pensa que a mãe fica deprimida por ela não se parecer com ele. Isso é uma rara abordagem da psique infantil feminina na mídia, no que concerne o ciúme feminino do pai. Akito temia perder o pai para a mãe, e Tohru temia perder a mãe para o pai. Assim elas se tornam as rivais da história, mas ficam amigas no final, entendendo seus traumas. Quem possibilita esse processo é Tohru, porque uma mulher que finge ser homem não é uma mulher normal. A causa do trauma de Akito foi a submissão paterna e a neurose de Ren por ter que concorrer com outras damas para poder casar com o homem que amava. O machismo nesse processo de escolha deixa Ren insegura e Akira, o antigo patriarca, prepotente. Ele diz à filha que “ela jamais vai sofrer sendo patriarca”, que ele a ama mais do que tudo; mimada, Akito, apesar de masculinizada, não pode ser contrariada porque tornou-se a líder da família com a morte do pai e ser líder nesta tradição antiga não é administrar os bens e cuidar de todos, e sim apenas ser louvada como um Deus. A autora aqui critica o patriarcado que permanece louvado mesmo sem razão alguma, já que o homem não tem mais um papel específico na sociedade atual. A mulher no entanto mantém seu papel materno. Temos aqui uma interessante visão sobre a falta de sacralidade no papel familiar masculino e como ele procura meios de criar algo que o diferencie da mulher para sentir-se útil. Há também a ousadia de se colocar a figura de Deus numa mulher fraca, que aterroriza os homens porque exige sua constante atenção. Deus é a mãe possessiva, vitimizadora e insegura, e também o pai ditador, violento e inflexível. É a família negativa, o enlace rancoroso e dependente, que Takaya chama de maldição, aquela que Tohru, a mãe absoluta, quer destruir para libertar seus filhos. Kyo torna-se o marido dela porque consegue, com o meigo pai adotivo, uma figura masculina exemplar. Kyo é salvo por Tohru não porque a vê como mãe, mas porque a vê como mulher: a mãe tinha vergonha dele porque ligava para o ciúme do pai, e se matou, abandonando-o e fazendo-o buscar um modelo diferente de maternidade. É o modelo de Tohru, criada por uma mãe solteira apaixonada pelo falecido marido, que não se casa de novo para mimá-la e ensiná-la a se virar sozinha. Há uma cena tocante em que Tohru sente-se culpada porque aos poucos, Kyo está substituindo a imagem de sua mãe como aquela que ela mais ama. Ela vai deixando de pensar nela com frequência e não consegue se perdoar por colocar um homem no lugar dela. É a primeira vez em um shojo que a protagonista enxerga a mãe de forma tão desprovida do costume patriarcal, que diria a Tohru, “ora essa, não é bom ter alguém para amar, que te distraia da falta da sua mãe?”. Mas a garota sente é culpa! “Eu prometi que ia amá-la para sempre e que sempre sentiria sua falta”, ela pensa. Mas Kyo ocupa sua mente. Por um tempo Tohru sente ódio dele por tirar da mãe o pódio de seu coração. Não é por ser maternal e feminina que Tohru tenha como sonho virar mãe e ter um marido “valentão”. Destaco, por fim, o professor que se apaixona Figura 8: Akito, personagem de Fruits Basket. 32

pela mãe de Tohru, seu pai, um homem gentil que não se cuidava e acaba morrendo de gripe quando viaja sozinho a trabalho. Ele ajuda a revoltada mãe de Tohru a superar o trauma dos pais, frios e mudos, que se preocupam o tempo todo com o que os vizinhos falam, deixando-a neurótica e agressiva. As gangues de motoqueiras femininas são comuns no Japão, onde as jovens que se sentem deslocadas e rejeitam a prostituição descontam sua revolta espancando gangues de meninas rivais e também homens que queiram estuprá-las em locais públicos e bares. Inspirada pela mãe de Tohru, a revoltada Arisa torna-se melhor amiga desta, após revoltar-se em ver a ídola “reduzida à mãe de uma menina sonsa”. O que a faz mudar de ideia é o carinho que sente na casa de Tohru e sua mãe, e que a faz deixar de ter ódio do pai alcóolatra que assiste TV o dia inteiro porque a esposa o abandonou com a filha, por outro homem. Arisa, ao ser condenada à morte pela sua gangue, que não deixa ninguém “sair”, é salva pela mãe de Tohru, que só de aparecer com seu casaco de borboleta escarlate, conhecido por todas, as faz correr. Arisa engole o orgulho e passa a gostar do jeito maternal das duas. Ela e Saki, outra amiga, prometem tomar conta de Tohru depois que a mãe dela morre. Saki Hanajima é uma menina quieta, muito amada pela família numerosa, que sofre maus-tratos dos colegas porque gosta de se vestir de preto e é séria o tempo todo. Quando um menino a força a comer uma lagartixa, porque acha que é isso que bruxas fazem, ela deseja que ele morra, e ele quase morre. Ela e sua família acreditam que ela tem poderes paranormais. Sentindo-se culpada, ela muda de escola, mas o preconceito e os boatos continuam. Tohru a trata bem e ela passa a fazer parte do “trio esquisito”. Quando as meninas comuns da sala, fãs do Yuki, ameaçam Tohru porque ela começa a ter amizade com o menino popular, Saki e Arisa apavoram-nas para proteger a protagonista, distraída e nunca entendendo a má intenção da falsidade alheia. Quando Kyo, inseguro, reluta em assumir seu amor por Tohru, suas amigas fiéis o pressionam pelo bem dela. Num mundo de mangás shojo que incentivam o consumismo, a prostituição, a rivalidade com meninas por motivos fúteis ou o romance impossível e exagerado de uma mocinha frágil por um rapaz rebelde e frio ou um cavalheiro irreal, Fruits Basket é uma pérola que valoriza o comportamento maternal e bem-intencionado de uma protagonista que não nasceu rodeada de roupas bonitinhas e jóias que soltam poderes mágicos ligados à beleza exterior e a algum vilão que quer forçá-la a se casar com ele ou simplesmente dominar o mundo.

Figura 9: Tohru, protagonista de Fruits Basket.

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Yu Yu Hakusho De Yoshihiro Togashi, Yu Yu Hakusho é um shonen inovador que surgiu em 1990 no Japão, quebrando a moda de “torneios de armaduras” que havia se criado no país com o sucesso estrondoso de Os Cavaleiros do Zodíaco(título original Saint Seiya), de Masami Kurumada. Embora ainda se trate de uma história sobre um grupo de amigos lutadores que se provam em torneios sangrentos, eles deixam de ser guerreiros que representem alguma mitologia antiga e passam a ter poderes espirituais. Destaco aqui este mangá por ele ser o que primeiro tirou a heroína dos mangás shonen da dicotomia deusa-vilã, com a personagem Mukuro, uma das mais marcantes na história das personagens femininas de entretenimento, a meu ver. Fora isso há a interessante história do personagem Hiei: Nascido na “terra das mulheres de gelo”, no Makai ou “terra dos demônios”, Hiei é expulso de lá por ser homem, ou seja, potencialmente pecador, na visão destas mulheres que se reproduzem por brotamento(elas engravidam sozinhas e sempre dão à luz a mulheres; mas se engravidadas, dão à luz a homens e sempre morrem no parto neste caso). Ao ser jogado de um precipício, leva consigo uma parte daquela pureza na jóia de lágrima da mãe: as mulheres desta terra, quando choram, formam jóias com suas lágrimas, e a mãe de Hiei, que é presa porque quer impedir que matem o filho, pede à melhor amiga que coloque no pescoço dele uma jóia sua como lembrança e proteção, antes de morrer. Nasce também Yukina, irmã gêmea de Hiei. Ele sofre muito pra recuperar sua origem pura, já que implanta o jagan, um terceiro olho demoníaco na testa, quando perde a jóia(o jagan lhe permite ver mais a fundo; ele sente-se mal quando longe da jóia. Por algum motivo ele sabe que foi a mãe que lhe deu; quando adotado por um bando de ladrões ao sobreviver à queda, ele mata todos os que tentam roubá-la de seu pescoço, mesmo ainda bebê). A história de Hiei é uma metáfora de redenção do japonês machista e violento que força as mulheres a serem puras, e depois abusa delas. Sua mãe Hina não resistiu ao amor por um homem e queria o filho, talvez pra provar às anciãs que se o criasse com amor, ele não se tornaria pecador. Hiei fica mesmo violento, mas por não ter tido chance, não se sabe se foi porque foi expulso ou porque nasceu violento mesmo. O pai de Hiei consegue ficar com a mãe dele por apenas uma noite e deve fugir para não ser morto pelas mulheres. O autor desta obra faz uma excelente crítica à mulher que, por rancor, considera o homem “de outra espécie”, mas não consegue controlar seu desejo por ele e não consegue “fugir” com ele de sua sociedade gélida e irracional. Mesmo com esse abandono e vida terríveis, Hiei apegou-se à jóia da mãe e respeitou a irmã, menina que foge de sua terra para procurá-lo(ele pede aos amigos que não conte a ela que são irmãos e mantém com ela uma relação de afastamento forçado, o que sugere que ele teme que ela goste dele; ele vê a mulher como de outra espécie assim como as de sua terra o viam). Mas ao retornar à sua terra, depois de crescido, porque ouviu dizer que tinha uma irmã, sua decepção com as mulheres que o rejeitaram é tão grande, que ele não quer nem se vingar delas. Ele as visita na terra gelada, e vê como são depressivas, mal-amadas e auto-depreciativas. Passa a querer conhecer a irmã, Yukina, pra ver se isso muda. Ela então lhe dá a sua jóia, e pede ajuda pra destruir a terra pela qual ele almejou tanto, e que o decepcionou no final. Ele fica desapontado e diz a ela para que destrua sozinha e deixe de pedir a algum homem pra fazer isso. Yukina é uma mulher que aos poucos se emancipa das tradições machistas de sua sociedade, mas que ainda não tem forças para enfrentá-la sozinha; Hiei lhe dá esse incentivo. Ele então passa a querer morrer: seu objetivo, voltar pra sua terra, foi destruído pelo rancor da irmã antes almejada. Não há para onde voltar. Escolhe morrer pelas mãos de quem respeita: Shigure, cirurgião demoníaco que lhe cobrou, como pagamento da implantação do jagan, apenas sua história de vida para operá-lo(o que combina com o perfil honrado de Hiei) e lhe ensinou esgrima para defender-se enquanto operado. Não é à toa que este personagem é um dos mais populares da série: sua história é arquetípica. Evoca o “paraíso perdido” narrado em todas as literaturas religiosas do mundo: o homem vivia no paraíso, mas pecou e caiu. Com uma lembrança deste paraíso(no caso, a jóia materna no pescoço de Hiei), ele sofre e busca voltar a esse lugar. O autor aqui subverte essa mitologia porque, apesar de voltar ao 34

paraíso, Hiei prefere voltar ao “mundo real”. Porque no paraíso não há a paixão ardente que fez seu pai desobedecer às “regras de sua espécie”, no caso de seu sexo, e possuir uma mulher “que engravida sozinha”, mas que ainda assim quis o amor dele. É uma crítica não só ao caráter sexualmente frio do casamento japonês, mas à hipocrisia das oprimidas mulheres excessivamente femininas, que passam a ter uma cultura separada e acreditam que é melhor engravidar por meios artificiais do que se dar ao trabalho de entender o agressivo ser macho. Por detestar esse tipo de mulher, Hiei se apaixona pela oprimida Mukuro, poderosa guerreira que, para fugir do pai que abusa sexualmente dela desde bebê e mantém presa, vendendo seu corpo a outros homens, jogou ácido no próprio corpo, perdendo metade de sua fulminante beleza(um lado do corpo dela é conservado, o outro é uma massa queimada disforme com anexos metálicos). Hiei logo se atrai pela atitude inconformista dela e é derrotado por ela em luta, o que muda sua postura de desesperança com o sexo feminino. Mukuro fica sabendo do poder de Hiei e o recruta para uma guerra. Para atraí-lo ela oferece a jóia da mãe dele, que encontrou por um acaso, desde que ele vença Shigure, aquele que o operou. Ele fica inconsciente após a violenta luta e ela lê sua mente através de uma máquina, vendo a pureza de seu jeito de ser homem, e revela seu corpo a ele, sentindo-se atraída. Ele se torna seu fiel subordinado até o fim do mangá(ela se torna imperatriz de uma área do Makai). Hiei não suportaria uma mulher comum, do jeito que penou pra encontrar a irmã e provar às céticas mulheres do gelo que um homem pode prestar(elas banem homens porque eles costumavam estuprar as familiares; Hiei, apesar de abandonado, não se vinga delas e contém a atração que sente pela irmã). Nada como apaixonar-se por uma sofrida beldade, abusada e enganada pelo pai e enlouquecida pela falta de amor masculino. É a primeira vez na história dos shonen que um dos personagens mais bonitos e desejados da obra fica com uma mulher que não é fisicamente bela “o suficiente para ele” e que é considerada “suja” pela sociedade, por ter sido abusada. Aliás, geralmente os shonen omitem o desagradável fato de muitas japonesas serem abusadas, por exemplo, na escola. Assuntos femininos “pesados” costumam ser evitados em shonens, e por isso eu coloco aqui esta obra, que foge do estereótipo de mulher “mãe, irmã, prostituta ou namoradinha”. Mukuro é uma vilã traumatizada que consegue superar a dor com a ajuda de um personagem masculino que não a coloca na posição da mãe sacrificial e submissa, e que acima de tudo se atrai por ela justamente porque é a primeira mulher que o derrota em luta. Ela também não é sexualmente atraente, porque diz que ficou frígida com o abuso do pai e o ácido feriu parte de sua vagina e destruiu um de seus seios. O mangá incentiva os leitores a procurarem por mulheres que fujam do padrão patriarcal, e também os alerta contra a ideia japonesa de que o abuso sexual é um problema feminino e que ela deve superá-lo sozinha. Fora isso, Yuusuke, o protagonista, tem uma mãe bêbada e deprimida que não lhe dá atenção e o faz trabalhar para sustentá-la desde pequeno. Geralmente, quando uma mãe é irresponsável, ela é criticada, inclusive a tendência nos mangás é o personagem culpá-la por seus tormentos; mas Yuusuke entende a tristeza dela por ter sido deixada pelo pai e o culpa por tê-la abandonado porque engravidou. Ele cozinha para a mãe e tenta cuidar de seu vício, postura vista como fraca em outros mangás e pouco valorizada na sociedade em geral.

Figura 10: Hiei, com Mukuro e Yukina mais atrás.

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NANA De Ai Yazawa, NANA é o mangá shojo mais vendido no mundo e no Japão, segundo os editores brasileiros(aliás, segundo o ranking Oricon, que mede vendas semanais de mangá, no Japão NANA #19 superou quase em dobro as vendas do mangá shonen do momento, Naruto #42, batendo um recorde semanal e deixando os editores de mangás masculinos surpresos, já que isso mostra que mangás shojo, ou seja, de relacionamentos em detrimento de lutas e piadas superficiais, têm sido preferidos pelos jovens japoneses, o que mostra uma importante mudança de mentalidade. Uma superação dessas nunca tinha ocorrido na história dos mangás no país). A obra fala da amizade de duas jovens adultas japonesas de personalidades totalmente opostas, mas que têm em comum a busca pelo amor. Embora fale brilhantemente sobre questões feministas e relacionamentos, o mangá é uma grande crítica da monogamia e do romantismo como co-responsáveis da alienação feminina não só no Japão, mas mesmo entre as mais emancipadas mulheres do planeta. Este mangá é a primeira obra, incluindo livros de Literatura e entretenimento e teorias ocidentais, que vejo tratar da questão da gravidez de forma tão realista e inovadora, com exceção do filme Juno(2007, dirigido por Jason Reitman). A protagonista, promíscua, sonhadora, distraída e inconsequente, se envolve com dois homens ao mesmo tempo: um que toma todos os cuidados do mundo com ela, usando camisinha e sendo carinhoso, chamado Nobu; e outro, famoso artista de uma banda de rock, Takumi, que a trata como mulher emancipada e sequer pergunta se ela está tomando anticoncepcionais ou não, por exemplo(ele age como um homem feminista teoricamente deveria agir em nossas atuais mentes ocidentais, ou seja, partindo do princípio de que a mulher devia se cuidar, e se ela engravidar, problema dela; mas anticoncepcional não é algo que toda mulher consiga tomar e nem recomendável por muito tempo, ou seja, ele está sendo machista, sim, mas mais por ignorância do que maldade – fora que pílula anticoncepcional falha). A garota, uma das duas Nanas(elas têm o mesmo nome: esta é Nana Komatsu), fica sempre em conflito porque tem dificuldade de manter relacionamentos fixos por muito tempo, e apaixona-se facilmente; assim, quando engravida do cantor, o rapaz mais carinhoso fica apavorado e o pai do bebê, frio e pelo qual ela tem uma relação apenas sexual e de admiração distante e fanática, diz que vai assumir a criança e se casar com ela independente de quem foi o pai e de quem ela ama ou não. O mangá subverte o ingênuo pretexto, comum nesta mídia e em muitas outras, de que o homem machista e frio não é confiável, e que o romântico, cavalheiro e presente é o que estaria ao lado da mulher neste caso. O mangá já começa não só revolucionando o gênero shojo, mas também quebrando o tabu feminista de que “aquele pelo qual a mulher se apaixonar de verdade e mais a respeitar é o perfeito pai em potencial”. O rapaz com o qual Nana Komatsu fica mais à vontade é justamente aquele que não tem maturidade para apoiá-la em situações inesperadas ou que exijam um pouco mais de responsabilidade. O mangá quebra a noção de que “sexo seguro é responsabilidade”, pois não basta isso para se descobrir o que a pessoa amada faria no caso que os casais atuais menos querem pensar: a gravidez. A personagem que se torna a melhor amiga de Nana Komatsu, Nana Oosaki, tem uma beleza fulminante, cabelos curtos, usa maquiagem pesada, é magérrima e canta com uma voz rouca para uma banda de rock pesado. Ela usa o mesmo perfume e fuma os mesmos cigarros do namorado, Ren, que foi com quem perdeu a virgindade e o grande amor da vida dela. Ele é chamado por uma banda famosa e a namorada prefere que ele a deixe em sua cidade natal, já que ela sabe que se for com ele vai se contentar em ser sua esposa e esquecer-se do sonho de virar cantora. Assim, enquanto Oosaki prioriza a carreira, porém tem um amor fiel, intenso e garantido, Komatsu trabalha em qualquer lugar, só para pagar o aluguel em Tóquio porque quer sair do interior; seus pais a sustentam, bem como seu consumismo, e ela é volúvel e ingênua com os homens, vendo-os como potenciais maridos e sem conseguir adaptar-se a uma vida sem que seu futuro seja tornar-se uma dona-de-casa. A princípio parece que vai ser mais um mangá tipicamente shojo: duas meninas rivais, ou vão se apaixonar porque os homens não prestam, ou vão brigar por um ou mais príncipes encantados idealizados que aparecerão na história. Mas NANA quebra o padrão machista dos shojo que sempre coloca 36

a amizade feminina como impossível e o relacionamento amoroso obsessivo como ideal, enquanto que nos shonen vemos os amigos homens em relações bastante gregas, que sugerem que a verdadeira ligação entre seres humanos é a dos homens com seus melhores amigos; as esposas e filhos são para propagar os valores da espécie e cultura e não se pode chegar a uma plena intimidade com elas e os pequenos. Em NANA, mais do que apenas espelhar este ideal trocando os sexos de lugar, vemos duas mulheres mantendo sua amizade e tentando ser felizes com profissão e amor, sem que a relação delas seja uma mera e deprimente cópia da dos shonen, como se dissesse “nossos maridos jamais entenderão nossa conexão”. As mulheres japonesas podem mais que isso, com seu histórico de sempre tentar compreender os frios homens nipônicos sem poder expressar revolta. Neste mangá, apesar do final triste, a autora consegue encontrar a verdadeira causa do sofrimento entre homens e mulheres: a visão masculina da mulher como santa, incapaz de sentir desejo sexual e de trair, por exemplo, e a monogamia romântica exagerada. A autora também critica muito a postura submissa e sacrificial da mãe do personagem Takumi, que não enfrenta o pai alcóolatra e violento, deixa-se abater pela depressão e faz a irmã mais velha do menino ter que trabalhar para sustentar a todos e ainda cuidar do pai bêbado mais tarde, já que a mãe morre de pura fraqueza e ao longo de anos. Takumi fica traumatizado, segurando a vontade de matar o pai e desprezando a mãe, tendo pena da irmã e idealizando a amiga de infância Reira, que sofre porque ele acha pecaminoso sentir desejo por ela e ela se apaixona por ele. As duas Nanas se encontram no trem indo para Tóquio; Komatsu vai encontrar-se com o primeiro namorado, Shouji, que passou no vestibular(ela presta o mesmo que ele e a melhor amiga para ficar com eles, mas não passa e precisa trabalhar no interior para poder alugar um lugar em Tóquio. Mostra-se o tempo todo que ter uma carreira não é interesse de Komatsu) – apesar dele ser o primeiro, ela havia tido várias paixões platônicas no colégio e um caso com um executivo, que se encontrava com ela por sexo; a firma dele é transferida e ele, casado, diz que não quer mais vê-la, mas que gostou muito do que tiveram. Ingênua, Komatsu fica um tanto traumatizada com isso por um tempo, já que queria perder a virgindade por amor e achou que fosse o caso. Sua melhor amiga, Junko, no entanto, bem mais realista que ela, a critica por ver os homens como meros “machos”, ou seja, sexual e economicamente. Komatsu então investe no relacionamento com o amigo de Junko, Shouji, que por fim se cansa dos excessos dela, que se envolve emocionalmente com outros em segredo e exige a atenção constante do namorado, e se apaixona por outra. Komatsu se mostra bem desagradável na vista das leitoras neste momento, quando Shouji trabalha sem parar para sustentá-la e ela, arranjando empregos fáceis e de meio período, só sabe reclamar de como sua chefe a critica, com razão, e quando se encontra com Shouji é para reclamar de coisas insignificantes em sua vida, geralmente ligadas a consumo. Além disso ela se imagina com todos os personagens homens da história, e inveja Oosaki, que faz amizade com homens facilmente, achando que ela está cheia de pretendentes. Arrasada com a traição de Shouji, que se atormenta para contar a ela, Komatsu o abandona, deixando claro que não o amava o suficiente para lutar por ele, postura comum da protagonista durante toda a obra. A outra Nana vai para Tóquio para visitar o amado Ren e investir na carreira de música. As duas se conhecem no trem porque apenas a poltrona ao lado de Oosaki está vaga, e Komatsu, quando o trem freia bruscamente por causa da neve, tropeça e cai em cima da outra, que estava dormindo com a guitarra do lado. Elas começam a conversar porque Komatsu fica impressionada com o ar de celebridade roqueira e a beleza do rosto de Oosaki. Há inclusive um desejo bastante sensual de Komatsu em relação a Oosaki, porque ela tende a se apaixonar por qualquer coisa com uma atitude masculina, mas despreza os homens; ela não tem o menor interesse pelo mundo deles(ela diz que não quer um homem, mas um cavalheiro que a proteja, e vê Nana como esse herói; ela prefere essa amizade do que a “canseira” de se relacionar com homens. Deste ponto de vista vemos que Komatsu, após dois namoros sexualmente intensos, contenta-se com uma paixão lésbica platônica por uns tempos, mas apenas porque Nana não a corresponde. A meu ver, Komatsu é bissexual e se pudesse seria totalmente promíscua e indulgente). Durante toda a viagem de cinco horas, Komatsu fala apenas de si mesma, e corre para abraçar Shouji na estação; Oosaki vai embora sem sequer esperar que ela a apresente, mostrando logo de cara como as duas são diferentes. No entanto, elas se encontram no apartamento que seus dois corretores apresentam coincidentemente ao mesmo tempo. O corretor de Komatsu convence Oosaki que elas devem alugar o aparta37

mento juntas, que além de mais barato é mais seguro e conveniente(Komatsu chora e implora para que Oosaki não alugue o apartamento porque chegou antes; esta se mostra logo bem mais fria e prática do que a outra, sempre esperneando e pedindo favores aos outros. Neste momento o corretor faz a proposta, bastante bondosa já que vai ganhar metade da comissão por ter diminuído o aluguel). Oosaki parece aceitar mais devido ao preço, enquanto que Komatsu, sempre com suas relações unilaterais e fantasiosas com os outros, e dependente a ponto de não decorar caminhos quando anda com as pessoas, fica encantada de ficar com a bela e misteriosa cantora. Oosaki passa a chamar Komatsu de Hachi, devido ao fato dela comportar-se como um cachorrinho(e isso mostra como no fundo ela despreza Komatsu no início, que não liga ou não repara nisso). Isso é porque Hachiko era o nome de um cão que virou lenda no Japão por visitar o túmulo de seu dono até morrer, e assim ganhou uma estátua num parque, em sua homenagem. Nana e Hachi(que também significam respectivamente “sete”, número da sorte no Japão, e “oito”) passam a ter uma amizade bastante intensa, já que Nana, que cresceu solitária com a rígida e falecida avó, sem conhecer o pai e abandonada pela mãe aos quatro anos, fica curiosa com a emotividade, falta de organização e meiguice de Hachi, enquanto esta vê em Nana não a substituta de Junko, que suportava suas carências e a dava broncas atenciosas e maternais, e sim uma amiga de verdade que a deixa ser como é, mas não segura suas opiniões ferinas, embora brincalhonas. Quando descobre que Nana tem um caso com o famoso e lindo Ren, Hachi fica feliz e com um pouco de inveja. Como a banda de Ren e a de Nana são de conhecidos e amigos, eles frequentam o apartamento 707, e como presente a Hachi, Nana convida o baixista da banda de Ren, Takumi, porque Hachi tem uma grande queda de fã por ele. No entanto, ela se imagina com o guitarrista da banda de Nana, Nobu, que se declara pra ela depois dela dormir com Takumi sem que ninguém saiba, achando ser apenas mais um caso de sexo que vai passar, como foi com o executivo que tirou sua virgindade. Hachi teme contar principalmente a Nana, porque acha que a amiga vai desprezá-la por “se deixar levar pelo momento como uma tiete”, e também porque Nana é extremamente monogâmica, apesar de parecer liberal(ela diz não dar a mínima para a fidelidade de Ren, mas os membros da banda o vigiam pra ela). Conforme vê todos lutando por seus sonhos, a pobre Hachi, cujo sonho é ser noiva e mãe, sente-se ficar pra trás, numa vida que considera tediosa e inútil, trabalhando em lojas e supermercados, sendo despedida do emprego de assistente editorial devido à falta de responsabilidade e habilidade, e fazendo amizade apenas com as pessoas que Junko e Nana conhecem, sem iniciar nada por conta própria; ela sente que só é valorizada por eles porque cozinha para todos e é amiga de Nana. Ela chega a discutir com Nana por ter ciúmes da fã de carteirinha desta, Misato, que deixa a terra natal e se prejudica na escola para organizar o fã-clube da banda de Nana, Blast, e assim conseguir um dia frequentar seu apartamento. Hachi sente inveja de Misato, que abandona tudo por seu sonho e ganha a confiança de Nana, e Junko não pode mais mimá-la porque mora com o namorado e progride em sua carreira e estudos de artista plástica. Neste aspecto Hachi sente o que a maioria das mulheres do mundo sente: mesmo sem querer ter filhos ou ser noivas, a maioria de nós não tem vez no mundo capitalista, ao menos no início de carreira, e vagamos em empregos e relacionamentos superficiais, a maioria sem chance se tem algum sonho profissional grandioso. E se queremos ser “apenas” esposas, não fica mais fácil. Hachi diz a Nana que sente muito por Nobu, amigo de Nana, gostar dela Figura 11: Nana Oosaki e Nana Komatsu, de NANA. 38

sem ser correspondido, e Nana diz que é um absurdo dizer isso, já que ela gosta é do Takumi. O jeito monogâmico de Nana pensar, curiosamente, é muito mais tradicional que o de Hachi; o problema é que esta, ao invés de assumir gostar de dois homens ao mesmo tempo ou algo assim, simplesmente se apaixona por qualquer um que a mime, e não é capaz de recusar nenhuma investida deles, nem de lutar por aqueles que percam o interesse nela. Ela não se altera, não tenta ser uma pessoa melhor, não se molda aos relacionamentos, enquanto que os homens se esforçam para agradá-la. Isso mostra algo curioso: se a mulher japonesa comum é assim, segundo a autora, os homens japoneses são bem menos inflexíveis do que parecem, e entendemos por que ao longo da obra, Hachi pensa “como temos sorte de sermos mulheres, não é, Nana?”. Quando descobre que está grávida, Hachi entra em pânico e não conta pra ninguém(ela estava depressiva quando ocorreu, o que prova que não estava normal quando deixou de tomar pílulas e não pediu a Takumi que usasse camisinha) . Começa a passar mal e embora a ocupada Nana(com os ensaios da banda) não note, Misato, que fica com frequência no apartamento 707, percebe e pede para Nana tentar voltar quando puder para ajudar Hachi. A princípio a protagonista torna-se alvo do desprezo e ódio das leitoras, por seu comportamento acomodado e falta de cuidado consigo mesma, e seu contraste com a radiante Nana Oosaki. Porém, a autora do mangá disse que fez Komatsu como alguém com a qual a leitora japonesa se identificaria(ou seja, depressiva, submissa, servil, idealizadora, temperalmental e ingênua) e Oosaki como alguém que a leitora admiraria. Parece que é porque esta vai atrás do sonho de ser cantora, mas precisamos lembrar que isso não faz uma mulher mais admirável que outra, ainda mais no mundo atual, cheio de cantoras produzidas. O que atrai em Oosaki na verdade é sua capacidade de fazer amizade com os homens, algo ainda difícil para as japonesas (representado pelo comportamento de Komatsu), e portanto sua facilidade em envolver-se profundamente com um deles, tomando pílulas contra a vontade dele e mantendo acesa a relação por dividir com ele os interesses e o passado trágico(Ren foi abandonado num armazém de porto e criado num orfanato; ambos são portanto escórias na sociedade japonesa, irreverentes e arredios). O interessante é que Ren vive dizendo que quer ter filhos com Nana e que quer sustentá-la se necessário, mas ela se recusa e toma pílulas, inclusive tornando-se irritadiça, porque é orgulhosa demais. Na verdade descobrimos aos poucos que Nana despreza a maternidade porque foi abandonada pela mãe. O rapaz que entra no Blast para substituir Ren na guitarra, Shin, é um garoto de programa de 15 anos de idade. Maltratado pela escola e o pai por ser filho do amante estrangeiro da mãe, ele vive nas ruas e acaba sendo colocado na prostituição por uma mulher que tem com ele uma relação sexual e maternal ao mesmo tempo. Sentindo-se culpada, a mãe de Shin havia se matado, e Hachi então fica incomodada com a gravidez, quando Nana, referindo-se ao comportamento inconsequente de Shin(que fuma, bebe e usa drogas), diz que “há mães irresponsáveis demais nesse mundo”. Hachi tenta dizer que talvez exista um instinto materno que faz a mãe não conseguir abortar, mesmo sabendo que seus filhos sofrerão por algum motivo; Nana, ao ir na genicologista, pergunta a ela se o instinto materno é natural. A médica diz que toda mulher tem, mas que é algo que desperta conforme a situação e a necessidade. Isso é uma definição de instinto materno extremamente libertária, original e inédita, a meu ver: por um lado, todas as mulheres possuem; mas por outro, não é obrigatório que todas devam manifestá-lo. É interessante ver como Hachi, insatisfeita com sua vida, desperta um instinto materno por necessidade, e Nana, que quer ter filhos com Ren quando superar seu trauma, vê o instinto materno como situacional. Nessa parte do mangá a minha sensação é que por meio das duas personagens, a autora faz alegorias dos feminismos predominantes atualmente: um deles, valorizando a feminilidade e a maternidade e contra o aborto, mas não necessariamente a favor da monogamia, seria o encarnado por Nana Komatsu ou Hachi, que sente-se feliz por cuidar do lar de Takumi e ser sua “mulher oficial”, aceitando-o como é porque ele a aceita como é, “uma mulher vazia”, segundo ela mesma(notamos a angústia de uma mulher que não quer ter carreira e cujas habilidades domésticas e maternais são desprezadas pelos valores capitalistas, por não serem coisas rentáveis; ela também é oprimida pelo senso comum de que “não é certo se apaixonar por vários homens ao mesmo tempo”. Talvez Komatsu fosse feliz se optasse pela prostituição; ao menos ela faria o que gosta sem sentir-se um fardo econômico para ninguém. Mas ela é muito sentimental pra isso). O outro, que defende a mulher masculina, repudia 39

a maternidade e valoriza uma paixão única, intensa, sexual e possessiva, seria encarnado em Nana Oosaki, que dá de presente ao namorado uma corrente com um cadeado, do qual ela tem a chave(é uma famosa jóia de Vivienne Westwood, estilista favorita da autora e de muitas japonesas rebeldes). Notemos como a autora trata ambos feminismos com dignidade: Komatsu tem dificuldade com homens porque quer ser mãe e não acredita em paixões únicas e duradouras(ou seja, ela não é feminina por ser ingênua, como geralmente se representa esse tipo de mulher na mídia). Ela precisa do marido como pai de seus filhos, ou seja, ela vê o homem de forma mais prática e racional que Nana, embora seja mais atrapalhada e inconsequente que esta. Oosaki, embora independente e apaixonada, exige uma exclusividade doentia de Ren e se recusa a ter filhos por ele, por mais que ele se adeque a suas exigências. Há um interessante diálogo entre os dois após o sexo, no qual Nana diz que vai tomar a pílula e reclama que ele deveria usar camisinha; ele diz que não é obrigado, porque quer filhos com ela e não tem nenhuma doença sexualmente transmissível, mas nas próximas vezes ele usa para aliviá-la. Embora no início, devido ao casal ser muito jovem(apesar de trabalharem desde pequenos e terem poupança), entendamos a precaução de Nana, conforme a história avança percebemos que ela coloca a carreira acima de Ren e na verdade não o perdoa por cantar numa banda diferente. Percebemos o lado egoísta e frio de Nana e sua incapacidade de superar o abandono da mãe; no triste e inesperado fim da obra, usando drogas e atormentado com a insatisfação frequente de sua amada, Ren bate o carro, perseguido por papparazzi, ao ver uma imagem ilusória de Nana indo embora ao vê-lo. Ele confunde a imagem de um gato preto com esta imagem dela, que parece nos dizer que além de estar drogado, ele associa a imagem da namorada indo embora a um mau agouro. Na cena, Ren apavora-se ao ver isso, o que sugere que ele morre de medo de perdê-la e não consegue ajudá-la. Aqui sinto como se o namorado se visse muito pequeno para preencher o vazio da mãe da namorada, ao mesmo tempo que teme confrontá-la sobre o trauma. Da forma que se narra esta parte da obra, a sensação é a de que Ren se mata porque sente que Nana, aos poucos, está se emancipando da paixão por ele, devido ao excesso de rancor, orgulho e temor irracional de ter família. Ou então ele não consegue traí-la, porque sabe que no fundo, apesar de dizer que não liga, ela ficaria muito magoada. Ironicamente, sentimos que Nana, que critica Hachi por não lutar por Shouji quando ele trai esta, tem muito mais pavor de traição do que a amiga. Sobre as feministas pró-vida ou anti-aborto, coloco aqui a definição de Sidney Callahan em seu artigo Abortion and the sexual agenda, tradução própria: (...) Feministas pró-vida buscam expandir e aprofundar os elementos mais comunitários, maternais do feminismo – e mover a sociedade de seu curso orientado pelo macho. Primeiramente, as mulheres devem insistir sobre uma aproximação diferente, centrada na mulher, a sexo e reprodução. Enquanto Margaret Mead falou da “inveja do útero” que homens possuem em outras sociedades, ela foi mais ou menos reprimida no nosso. Em nosso mundo dominado pelo macho, o que os homens não conseguem fazer, não conta. Gravidez, nascimento, babá, têm sido caracterizados como passivos, animalizados. O modelo da gravidez como doença foi incorporado. Essa doença ou incapacitação feminina, considerada um “problema de mulher”, naturalmente incapacita a mulher no mundo “real” de caça, guerra, e velocidade corporativa. Muitas feministas pró-aborto, deliberadamente sem filhos, adotam a perspectiva masculina quando citam a “injustiça básica de que as mulheres devem incubar os bebês”, ao invés de ver a injustiça no fato de que os homens não podem. A capacidade biologicamente única e privilégio da mulher tem sido negada, desprezada, e oprimida sob a dominação masculina; infelizmente, muitas mulheres caíram pela falácia fálica.(1997, p.160-161)

Figura 12: Ren, amado de Oosaki e genial na guitarra

Esta autora continua sua teoria falando sobre como os homens têm sido sexualmente mais agressivos, e as mulheres, por saberem do risco da gravidez, têm um tipo de sexualidade que exige mais 40

riscos, e que portanto não pode ser inconsequente como a masculina, ainda mais num mundo em que os recursos para se educar crianças socialmente aceitáveis é cada vez mais alto. A mulher grávida, que tende a passar mal nos últimos meses, tem dificuldade de trabalhar e se não tiver familiares por perto, depende da ajuda do marido, que atualmente trabalha cada vez mais devido à injusta competição capitalista. Há uma cena em NANA que mostra a injustiça de se jogar nas costas femininas todo o peso da gravidez: contando a Junko que pensava em trabalhar para criar o filho sozinha, Hachi fala de como desesperou-se porque não conseguia sair pra trabalhar de tanto enjôo e mal-estar, e por não conseguir comer normalmente. Por isso quando Takumi, mulherengo e frio(para uma mulher que gosta de mimos; a meu ver, ele é um homem prático e realista), diz que vai assumir a criança não importando quem seja o pai, Hachi o escolhe, ao invés do indeciso e inseguro Nobu, que é mais carinhoso, mas não consegue tomar uma atitude ao saber da notícia fulminante. Pior: ao visitá-la, enquanto ela chora, a única coisa que ele diz é, “Mas você não tinha terminado com o Takumi?”, deixando a pobre gestante sem palavras sequer para confirmar o fato. Como ocidentais, nos perguntamos, por que Hachi não conta aos pais que está grávida? Sentimos uma crítica da autora à frieza dos pais japoneses, quando a protagonista deixa uma carta em casa dizendo que vai para Tóquio e eles sequer a procuram. A menina pensa, “devem ter ficado feliz porque só tem meninas em casa, então era uma barulhenta a menos”. Quando Hachi liga para casa dizendo que vai se casar porque engravidou, embora confusa e insegura com o dominador Takumi, a mãe diz apenas “é mesmo? Bom trabalho, filha! Não me volte pra casa divorciada, pra dar mais trabalho do que já deu”. O mangá conta essas coisas de forma bem-humorada, mas é óbvio que há consequências negativas na psique de Hachi, deprimida e isolada na cidade, recorrendo desde pequena à amiga Junko, que vê como mais mãe que a verdadeira. Com a morte de Ren, Nana foge para a Inglaterra, e canta num bar para sobreviver. Um repórter que se sente culpado por pressionar a cantora quando famosa resolve enviar fotos dela para Hachi, em segredo, para que elas possam se rever; ele esconde do editor que o contrata, que quer ir atrás de Nana para faturar na mídia. No entanto, Hachi tem medo que a orgulhosa Nana recuse sua ajuda e não vai ao bar das fotos. Isso é bastante injusto por parte de Hachi, mas ao lermos o mangá e vermos como Nana se comporta querendo ser feliz e poderosa sem a ajuda de ninguém, embora isso faça com que ela tenha de ser salva por seus amigos e Hachi o tempo todo, entendemos a postura desta. Hachi está ocupada com o escândalo de seu marido estar envolvido com Reira, a vocalista da banda de Ren, que desde pequena é protegida do bullying escolar pelo agressivo Takumi por ela ter cabelos loiros ondulados(no Japão há muito preconceito de mestiços e ocidentais). Ou seja, ocupada com a família, Hachi acredita na postura forte que Nana fingia ter, e temos a impressão de que Nana se mata no final e Hachi se arrepende de não ter ouvido seus instintos, pois ao longo da história, em uma narrativa externa, os pensamentos de Nana sobre querer voltar para Tóquio para vê-la e não conseguir vão sendo contados, com a culpa que sente por ter deixado Ren, drogado e carente, de lado, e sua vontade de se atirar no mar. O que fez Ren morrer na verdade foi a frieza de Takumi, que também fica deprimido, porque ele sabia do uso de drogas do amigo mas temia o que os papparazzi descobririam se eles parassem de tocar para que ele se recuperasse, destruindo a banda. Reira então foge e diz que se Ren não for tratado ela vai parar de cantar. Ao invés de ir atrás dela, Takumi entra em conflito com seus sentimentos por ela e deixa que o esgotado Ren vá buscá-la e bata o carro. Há o caso da personagem Misato, meia-irmã de Nana, adolescente que se torna fã da cantora sem saber que é parente dela. Isso ocorre porque a mãe de Nana a abandona para ficar com um homem que não gosta de crianças, mas depois não suporta a frieza dele e casa-se com um terceiro, com o qual tem um filho e Misato. A mídia publica tudo para vender a imagem de Nana como injustiçada e forte, devido ao passado que tem. Quando Misato descobre, fica com raiva da mãe e foge de casa; esta vai buscá-la, pressionada pelo filho mais velho, e se desculpa por ter tido vergonha de contar a eles. O verdadeiro motivo dela ter abandonado Nana permanece um mistério, porque a impressão que temos é a de que ela mente para o repórter quando ele pergunta se ela abandonou Nana para protegê-la de um pai ou padrasto violento(a autora a desenha tensa e olhando para o lado enquanto fala). Além disso, Ren diz que não aguenta mais satisfazer os caprichos orgulhosos de Nana, mas não consegue abandoná-la, talvez por enxergar sua fraqueza; mas na narrativa externa, que parece a de Nana escre41

vendo uma longa carta de suicídio a Hachi, Nana diz que “sonhava em voltar para o galpão de porto junto com o Ren”. Isso é incoerente com as memórias dela de quando pequena. Parece que ela ficou com algum trauma e apenas lembra da mãe a deixando na casa da avó, aos 4 anos; mas foi a avó que contou essa história a um cliente de seu restaurante. Nana não lembra de nada da infância, o que é complicado porque a impressão que temos é a de que ela e Ren estavam juntos há mais tempo do que ela se lembra. Há um momento também em que Ren diz que quer sair da banda porque vai prejudicá-la com notícias que os papparazzi podem descobrir. Takumi acha que ele está falando de seu vício em drogas, mas Ren faz cara de que era outra coisa. Poderia ser alguma informação sobre ele e Nana que vai contra o que é socialmente aceito? De qualquer maneira, Misato diz que a razão mais forte de ter fugido de casa é porque quer casar com o irmão mais velho e se acha esquisita. Essa informação é irrelevante para a história se não a relacionarmos ao mistério Nana e Ren, vistos por Hachi como “um só ser”, usando o mesmo tipo de roupa e até o mesmo perfume. Quando vão preencher um registro civil para se casarem, notamos que, apesar de Nana dizer que se lembra da mãe deixando-a com a avó na cidade do interior, onde achava que nasceu, ela nasceu em Tóquio, de acordo com o registro. Ela também acha que na verdade a mulher que a deixou, que usava sapatos vermelhos de salto alto, não podia correr na neve com eles, embora ela se lembre da mãe correndo. Pela expressão enigmática no rosto de Ren nesta cena, tenho a estranha sensação de que ele sabe mais do passado dela do que ela mesma. O foco do mangá de qualquer maneira é a crítica ao romance exagerado(Ren não consegue abandonar Nana porque é o primeiro namorado dela, que não consegue traí-lo e nem ter filhos por ele), ao abandono dos pais e à idealização feminina do entretenimento, que as força a trabalhar exaustivamente para satisfazer o público e terem suas vidas dissecadas pela mídia sem terem tempo de digerir o que isso faz com suas mentes e emoções. Uma coisa que contribui pro afastamento de Nana é a melhor crítica da autora ao patriarcado: Ren e Yasu, o baterista e fundador da banda de Nana, são amigos de infância, criados no mesmo orfanato. Yasu, dois anos mais velho, é adotado por um velho casal infértil porque tem um comportamento exemplar e notas altas; já Ren é deliquente, e Yasu, que sente por ele um afeto paternal, funda uma banda e usa sua influência na escola para proteger o bagunceiro. Ele convence os professores de que a banda será uma boa maneira de controlar os piores encrenqueiros da escola, Ren e Takumi. Este cria outra banda porque quer Reira, sua amiga de infância, como vocalista; Yasu então passa a cuidar do Blast por afeto a Nana e Ren. Embora sempre tenha sentido atração por Nana, Yasu deixa Ren ficar com ela, como sempre lhe cede tudo, por pena de sua incapacidade de se adequar à sociedade, mesmo para pelo menos ter uma vida estável. Nana percebe isso e fica chateada; enquanto Yasu cuida dela, sem jamais abusar dela quando está carente ou bêbada, mesmo quando Nana quer ficar com ele, Ren está seguro longe, sabendo que Yasu não vai encostar na “garota do Ren”. Mais tarde na obra Ren diz que não quer desistir de Nana porque ela é a única coisa que Yasu não conquistou antes dele. Percebemos que por mais que amem mulheres, os homens têm um código de honra entre si que ultrapassa a vontade delas. O que mais destaco neste shojo é sua quebra em retratar o romance idealizado e meloso das meninas como algo saudável. Aqui, temos uma garota sonhadora que escolhe o homem que assumiu a responsabilidade por sua gravidez; uma outra que luta por seus sonhos e tenta compensar a falta da mãe com o sucesso e o carinho do namorado; temos a melhor amiga de Hachi, uma mulher que cuida dela como uma verdadeira amiga, sendo sincera e atenciosa; a autora nos apresenta uma atriz pornô que apesar de bem- Figura 13: Takumi, workaholic mulherengo, assume o bebê de Hachi. 42

-resolvida, sofre porque os namorados não ficam confortáveis com sua profissão e ela não consegue ser outro tipo de atriz em seu país; uma outra personagem ainda não citada, Miu, é uma virgem de 27 anos, inteligente e independente, que se entrega apenas ao homem mais nobre da história, Yasu, porque não confia nos homens que encontra. Há a importante exploração da questão da prostituição masculina e vários personagens masculinos interessantes, como o garoto de programa Shin, o ingênuo Nobu, o meigo Ren, o paternal Yasu e o autoritário e sedutor Takumi. Enfim, é um mangá para garotas que critica o estrelato e as fofocas de mídia e apresenta uma visão de romance bem explorada nos relacionamentos das personagens, enfatizando que sem comunicação não há relação que dure, e que não adianta a mulher profissional se fazer de forte se isso a deixar ansiosa e infeliz. A atitude responsável de Takumi ao assumir a criança e o crescimento de Hachi, que de garota atrapalhada se torna uma esposa exigente e mãe carinhosa, dão novo fôlego à desgastada imagem da família tradicional, principalmente no Japão, onde ela é rejeitada com tanta força atualmente que os jovens ficam bastante desorientados e as mulheres acabam perdendo, como vimos no capítulo sobre as frustrações do feminismo no país: o número de abortos é grande demais. Por meio do drama de Hachi, o mangá incentiva a insegura garota japonesa a exigir que o homem use camisinha e se envolva mais no relacionamento, abandonando a desinteressante postura submissa que faz com que os homens as vejam como meras bonecas sexuais.

Figura 14: Oosaki à esquerda e Shin, à direita.

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Berserk O mangá, lançado oficialmente em 1990 por Kentaro Miura e ainda em publicação, é de fantasia medieval. O protagonista é um homem mais alto e forte que a média, Guts, que teve uma vida sofrida: caiu do ventre de sua mãe, que já estava morta, enforcada numa árvore com outras vítimas de guerra, quando ele nasceu. Foi encontrado por um bando de mercenários com uma mulher perturbada por ter abortado naturalmente o filho; e é bem possível que essa mulher fosse louca, por ter um marido violento e orgulhoso, que pode tê-la forçado a ficar com ele. Apesar disso, a moça cria Guts com carinho, mas morre de peste, quando ele ainda era muito novo. Ele passa a ter de aturar então a educação do pai adotivo, que o força a aprender a lutar desde cedo nas guerras e a dar o dinheiro que ganha como mercenário a ele. Frio e totalmente inapto ao papel de pai, ele deixa o menino traumatizado pra sempre, buscando no mundo a mãe perdida e vendo em todo homem um inimigo mortal que o ameaça, com exceção do afeminado e sério Griffith, que apesar de delicado o vence em duelo. Se Griffith é o Ideal, o Universal e a Moral, Guts é, como diz seu nome em (inglês, guts significa tripas ou coragem, estômago), a Matéria, o Individual e o Instinto. Curiosamente, essa oposição entre os dois coloca Guts com o princípio masculino e moreno, e Griffith, com o caucasiano e feminino. Sim, os brancos sempre dominaram, mas a feminilidade de Griffith, com o Ideal, no lugar do usual papel reprodutor dado à mulher(mais visceral, como o nome de Guts significa), essa é nova nos mangás. E, mais curiosamente ainda, temos Kyaska como a morena e plebéia, cuja personalidade é um misto dos dois princípios. Ela é o elemento que tenta equilibrar extremos; não é a toa que se apaixona pelos dois. Podemos comparar, embora bem superficialmente, o trio de Berserk ao de Naruto, shonen inovador por colocar uma menina nos times guerreiros(em Cavaleiros do Zodíaco e afins, a mulher era dita poderosa, mas tinha de ser defendida; em outros shonen, havia sempre a mocinha passiva e a vilã submissa a um vilão). Sakura, de Naruto, como Kyaska, era fascinada pelo silencioso, belo e sombrio(Sasuke), e, pela convivência, passa a se atrair também pelo espontâneo, ingênuo e acessível(Naruto). Como o primeiro é sempre imune a mulheres, podemos dizer que a angústia da mulher no shonen é aceitar um companheiro considerado inferior por ela, porque seu alvo é assexuado ou homossexual. Nota-se portanto uma ponte entre o shonen e o shojo, cuja diferença é esses homens delicados e irreais desejados pelas heroínas serem conquistados por elas. O shonen empurra a mocinha para um heterossexual atrapalhado, mas esta primeiro se apaixona por um homem misterioso e inteligente que esconde ou não tem atração por mulheres. Embora pareça uma postura irracional, é porque a mocinha se sente mais respeitada pelo misterioso, porque o outro sempre a escolhe por sua aparência e porque acha que ela precisa ser apropriada e defendida o tempo todo. O rival do protagonista atrapalhado, pelo contrário, sugere com sua frieza que a mocinha deve se tornar independente para conquistá-lo. O único mangá que não transformou esse rival misterioso em homo ou assexuado, ou apaixonado pelo protagonista ou algum vilão afeminado, é Vagabond, de Takehiko Inoue: nele, o atrapalhado é o melhor amigo do protagonista, mas não consegue alcançá-lo nas habilidades samurai e na coragem. A mocinha, ao invés de relegada a um papel secundário, como geralmente acontece nos shonen, torna-se a única amiga do protagonista, que assusta a todos, menos a ela, por sua sede de violência e comportamento arredio. Berserk surpreende pela grande sacada de Miura em fazer seu protagonista sentir na pele o maior problema em ser mulher num mundo machista(o protagonista é estuprado por um mercenário do bando do pai adotivo quando pequeno, porque seu pai o vende em segredo; o menino então mata o cliente quando eles saem para assaltar uma fortaleza, e mais tarde mata o pai adotivo, que tenta matá-lo bêbado) e assim dar uma verossimilhança extremamente inteligente e original a ele. Conhecendo o passado do protagonista, fica fácil entender por que ele, ao contrário da maioria dos homens de sua idade e meio, não “cai na gandaia” e trata fadas, crianças, homens afeminados e mulheres de uma forma que um “brutamontes”(coloco em aspas porque Guts só é isso à primeira vista) não deveria, ou melhor, não se espera que um cara como ele aceite ser seguido por uma fadinha inocente, seja fiel à primeira namorada por anos a fio e não saia correndo ao menor sinal de carinho de um chefe de cujos traços as próprias moças da série têm...inveja. Tudo isso sem perder seu jeito de macho grosseiro, corajoso e introvertido. 44

Miura inverte totalmente os papéis sexuais colocando Kyaska como a única capaz de controlar os sentimenos e agir sempre racionalmente, sem confundir seu ciúme de Guts(que se torna o favorito de Griffith e rouba o lugar dela) com a percepção astuta da incompetência dele. E como mulher, ela entende muito mais de diálogo e comunicação. Sua recomendação para que os dois conversassem ao invés de lutar, quando Guts resolve deixar o bando, teria evitado todas as catástrofes seguintes. O próprio Griffith reconhece isso quando mais tarde fica sabendo que Guts foi embora por amor a ele(para buscar um ideal e ser digno de sua amizade). Nunca vi em obra alguma, com essa força, o retrato de uma mulher dando conselhos na história, que sempre estão certos, e a desgraça que acomete os homens em não ouvi-la(o avesso da demonização de Eva e da punição de Adão por aceitar sua maçã). Após voltar pro bando e acompanhá-lo no resgate de Griffith, Guts diz a Kyaska que irá embora. Revoltada, principalmente porque ele diz isso logo depois de fazer sexo com ela, a moça chora e grita que os homens são todos iguais, só querendo sair balançando a espada por aí(em todos os sentidos). O que poderia ser mais um infantil e irritante clichê shonen de homens gozando por lutinhas e armas enquanto as garotas esperneiam inutilmente por sexo se transforma em obra-prima quando ele diz que quer levá-la com ele, não porque ela é sua alma gêmea ou qualquer coisa que fuja da caracterização do sofrido protagonista, mas porque quer muito “fazer amor” com ela de novo. Prática, Kyaska gosta dessa declaração, mas não consegue deixar o ferido Griffith; o comandante foi raptado porque perdeu a razão quando Guts foi embora do bando, sem explicar por quê. Logo após a partida dele, Griffith sente uma angústia que o faz entrar nos aposentos proibidos da princesa Charlotte, do reino para o qual seu bando de mercenários trabalha(e que lhe oferece a posição de capitão real), e fazer sexo com ela numa cena extremamente bem narrada, na qual o Falcão Branco, enquanto possui a ingênua e apaixonada mocinha, se lembra de Guts indo embora, e chora com os olhos arregalados, sozinho no escuro, depois que a princesa adormece feliz. Charlotte, a princesinha da história, também é formidável: ela recusa-se a aceitar um pretendente imposto, perseguindo Griffith contra a vontade dos pais, e até quando o rei o prende num calabouço por ter tirado sua virgindade; e se arrisca fenomenalmente por ele em uma parte do mangá, utilizando sua posição social para salvar o amado. Mimada e inocente, ela suporta, pelo amor louvável e incomum que sente, o inesperado assédio sexual do próprio pai. Mesmo ao fazer uma personagem delicada, o autor a respeita. No momento mais tenso da série, quem lidera o desnorteado e aterrorizado bando de machos do Falcão contra um exército de monstros não é o grande Guts, e sim a pequena Kyaska. Ele mesmo admite em pensamento o quanto ela é impressionante. Sua única perda é ser submetida ao que mais abomina por aquele em que mais confiava: derrotando demônios que rodeiam Griffith, enlouquecido por ter sido torturado a ponto de virar um monstro disforme e frágil, Kyaska acaba sendo estuprada por ele, que o faz na frente de Guts porque quer ser odiado. Ele faz um pacto com um grupo de demônios chamado “as mãos de Deus” através de um artefato mágico, para voltar a ter seu corpo e em troca dar aos demônios oferendas vivas, que no caso devem ser seu exército. E pra quem acha que essa cena é machista, é preciso mais atenção: Kyaska está claramente dividida entre o horror e o prazer, metáfora perfeita da confusão da mulher pela humilhação e o orgulho de sentir-se desejada pelo homem que mais amava. Segurado por monstros, Guts perde um olho e um braço tentando salvá-la. Mais pra frente, duas meninas se envolvem na trama de Guts – e vemos ali a dificuldade da pobreza, da pouca idade e da feminilidade no mundo. Abusada pelos amigos bêbados do pai e desamparada pela mãe impotente, Jill sente-se presa em sua pequena vila, e sua amiga Rosine acha um meio cruel de fugir(fazendo um pacto com fadas malvadas que lhe dão um corpo que voa e rasga), que mostra o lado demoníaco de toda criança, desde que, claro, ela seja maltratada, como qualquer adulto. A heroína Kyaska desperta simpatia por ter escolhido o modo mais nobre, e talvez por isso mais difícil, de se igualar a seu amado Griffith: fazendo parte de sua jornada, inserindo-se a seu meio, provando-se mesmo quando em condições fisiológicas desfavoráveis, jamais cedendo à tentação de obter o conforto material e a atenção masculina de maneira bem mais fácil e rápida: prostituição ou casamento. Numa cena crucial, ela morre de cólicas em meio a uma luta de espada com um inimigo machista, e lamenta-se por ser tão fraca frente ao brutamontes e em relação a seu mal-estar. Guts a encontra desmaiada e com febre após ela conseguir derrotar o inimigo. Numa postura que faz qual45

quer leitora se apaixonar por ele, e inédita em qualquer mangá, o herói a leva para uma caverna e tira suas roupas, que molharam com a chuva. Ele lava o sangue dela e pensa, “deve ser duro ser mulher”, envolvendo-a nos braços enquanto espera a chuva passar. Kyaska acorda nua e pensa que ele pode ter abusado dela; furiosa, ela chora e bate nele, e ele jura que não fez nada e a consola. Os dois se recuperam e voltam para a luta, derrotando centenas de homens e passando a se entender melhor que antes, já que o ingênuo Guts achava que ser mulher não implicava em desconfortos que justificassem suas fraquezas. Kyaska busca a fraternidade entre homem e mulher ao juntar-se ao rapaz que a salvou de um estupro, o que expõe seus valores(se Griffith fosse machista, não daria atenção ao ataque do nobre à menina, mesmo não custando nada ele tê-lo parado naquele momento). Kyaska prefere os perigos da vida de mercenária à opressão, humilhação, violência e tristeza a que seria submetida por ser uma camponesa num mundo patriarcal e hierarquizado como o da Idade Média. O mangá Berserk, embora feito para meninos japoneses, mostra a “busca de um novo Pai” num país tradicionalmente machista. Depois de traumatizada com o estupro de Griffith, Kyaska aborta um bebê deficiente, que não sabemos se é daquele ou de Guts. O protagonista se irrita com o medo que ela passa a ter dele e com sua redução de heroica a uma mulher louca e fraca, mas segura seus impulsos e não tenta relacionar-se sexualmente com ela(Kyaska não o reconhece e corre de todos os homens que vê depois do acontecido). Guts passa a procurar Griffith por vingança e para descobrir o que são os “mãos divinas” e por que, depois que Griffith tornou-se líder deles, o mundo se povoa de monstros cada vez mais pavorosos. Enquanto protege as cidades e ouve notíciais sobre a ressurreição do angelical Falcão Branco(não sabemos se Griffith comanda hordas de monstros para pacificar ou piorar o mundo), Guts cuida de Kyaska, de uma forma que poucos homens suportariam. Ele vai aos poucos ganhando a confiança dela de novo e percebemos que o motivo dela estar desse jeito é porque sente culpa por ter sentido prazer com Griffith na frente dele. Afinal, Kyaska é uma personagem de fibra, que não teme estupros quando em luta; só podemos concluir que, além de ferida emocionalmente por Griffith, aquele em que ela mais confiava, ela é atormentada por ter que escolher um dos homens que ama, que se tornaram inimigos mortais e que antes pareciam tão íntimos que ela se sentia excluída. É uma observação minuciosa da maneira com que a mulher é tratada nos mangás e na sociedade japonesa: com ciúmes dos amigos homens e presa pela monogamia imposta mais a ela do que a ele, embora sem base cultural nem religiosa. Kentaro Miura, além de criar uma personagem feminina carismática e que passa por todos os traumas da fêmea que os shonen preferem ignorar, nos presenteia com um herói que assume seu papel de mais alto, mais forte e mais livre: ele defende a mocinha de monstros e busca entender o que fez o melhor amigo não pedir para que ele ficasse, deixando-se capturar pela guarda real de forma suicida porque seu subcomandante foi embora. É um herói mente aberta, maduro e completo, que conheceu a dor do abuso sexual, sobreviveu à maldade do pai e vai aos poucos vencendo sua sociopatia e formando uma família de amigos para salvar os oprimidos e entender por que alguns homens chegam ao ponto de fazer pactos com demônios para terem seus desejos realizados. Ele não sai por aí rasgando tripas para se provar a alguém, e não consegue abandonar a imponente guerreira que enlouqueceu sem ser por culpa dele. Trata-se de um raro herói de mangá que escolhe a mulher que vence as adversidades impostas a seu sexo, e que não a abandona mesmo quando ela se torna um fardo. Figura 15: Kyaska, heroína de Berserk.

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O PROJETO FANZINE DOKUFU O fanzine Dokufu é um projeto que analisa mangás que apresentem personagens femininas ou discussões sobre o feminino de maneira consistente, no caso, que vá contra o papel ilustrativo que frequentemente se dá à mulher nesta mídia. O yaoi aqui também ganha destaque por ser um estilo de mangá criado por mulheres. O nome escolhido para o fanzine é um termo usado pelos japoneses para designar mulheres que desviam do padrão. O termo significa “mulher veneno”. Busco assim conceituar o fanzine como um espaço para se discutir a feminilidade que busca expressões além das impostas pelo patriarcado, que no caso do Japão tem sido expressa com mais liberdade e frequência nos mangás. A diagramação é limpa e ortogonal para valorizar o texto e ir contra a tendência das revistas de desenho japonês e fanzines de mangá brasileiros, que priorizam o excesso de imagens e a diagonalidade, tornando a leitura incômoda. Acredito que escolher algumas ilustrações e apresentá-las ao longo do texto de forma mais isolada as valorize melhor. Na abertura de cada matéria, uma ilustração do mangá de que se fala é apresentado ocupando toda a página da esquerda, e o texto começa na direita numa só coluna. O título fica numa fonte que transmita o conceito do mangá(fontes caligráficas para mangás mais subjetivos, fontes gregas para mangás de luta, fontes rebuscadas para mangás de fantasia, por exemplo) e o subtítulo é sempre numa fonte gótica, no caso a Old London, para caracterizar a tensão típica dos mangás entre a clareza e dinamismo(na fonte de texto Times New Roman, legível e clássica) e a constante contenção subliminar causada por alguma tradição pouco definida, porém absoluta. Sem ser na página de abertura, o grid varia entre duas e três colunas de texto, e as imagens variam entre quatro, três e duas por página, para se alinharem bem às colunas, dentro de caixas retangulares mais altas que largas, ou quadradas. Para valorizar as imagens, coloca-se uma caixa de cor de fundo; essa cor varia conforme se combina com as cores predominantes das imagens, de forma a equilibrá-las ao olhar, e também simbolizando aspectos do mangá tratado. Por exemplo, Death Note é uma obra sobre a lei, ou seja, as caixas de cor usadas são pretas. Berserk é sensual e sombrio, assim usa-se preto e vinho escuro, denso; Naruto é o primeiro shonen a ter uma crítica ao militarismo japonês e tem um roteiro progressivo e eficiente com uma requintada tensão sexual sutil entre os protagonistas; assim, suas cores são o reflexivo azul, o sedutor vinho e o aventuroso verde. Quando o mangá ou assunto da matéria é extravagante, usa-se o roxo, e assim por diante. Conforme fiz este trabalho, percebi que é extremamente difícil encontrar uma linguagem visual que seja associada à imagem feminina no sentido de buscar alternativas para ela. A proposta é juntar conceitos como “mulher japonesa”, “mangá” e “alteração de imagem”, que embora bem claros no logotipo Dokufu, são de ligação complexa entre si para serem aplicados visualmente à diagramação do fanzine. As referências imagéticas para “alteração de imagem” são extremamente abstratas, e simplesmente colocar no fanzine elementos considerados femininos no Japão ou associados à estética do mangá não sugerem o conceito do trabalho, que é justamente ultrapassar ou subverter estes mesmos elementos. Por exemplo, ao procurar sobre “dokufu” na categoria “Imagens” do Google, as primeiras imagens eram de aranhas. Este animal é comumente associado ao “lado negativo da feminilidade” em muitas culturas, notavelmente no caso da viúva negra; mas as personagens que analiso buscam uma relação saudável com o homem, não eliminá-lo(embora algumas o manipulem para isso, como Misa Amane, em Death Note). Além disso, poucas delas conseguem manter os homens como numa teia pegajosa, ou em qualquer situação relacionada a este animal ou a outro ligado à mulher no mundo todo, a cobra, talvez por ser um símbolo fálico. Fora que usar símbolos antigos para representar a feminilidade vai contra a proposta do fanzine de se buscar novas expressões do feminino na mídia e tentar por meio delas entender a sociedade produtora desta mídia.

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O que é fanzine Segundo Henrique Magalhães (1993, p.09), Embora os fanzines tenham surgido na década de 30, nos Estados Unidos, com as publicações de ficção científica, esta denominação só foi criada em 1941, por Russ Chauvenet. O termo fanzine é um neologismo formado pela contração dos termos ingleses fanatic e magazine, que viria a significar “magazine do fã”. O fanzine é uma publicação alternativa e amadora, geralmente de pequena tiragem e impressa artesanalmente. É editado e produzido por indivíduos, grupos ou fã-clubes de determinada arte, personagem, personalidade, hobby ou gênero de expressão artística, para um público dirigido e abordando, quase sempre, um único tema. (...) Os fanzines são veículos amplamente livres de censura. Nele seus autores divulgam o que querem, pois não estão preocupados com grandes tiragens nem com lucro; portanto, sem as amarras do mercado editorial e de vendagens crescentes.

Esse último parágrafo tem menos impacto no caso dos fanzines de mangá no Brasil, já que a maioria deles, infelizmente, apenas reproduz o modelo japonês de fanzine, o chamado doujinshi. Este sim se encaixa na falta de censura porque em mídias comerciais japonesas o sexo explícito de qualquer tipo, a mostra de pêlos pubianos, o incesto declarado e intencional, a pedofilia exagerada, a contestação filosófica e política minoritária, o ódio aos valores nipônicos e a violência excessiva e/ou sexual são proibidos e tudo isso representa a maioria temática dos fanzines. Magalhães destaca a confusão atual entre fanzine e revista alternativa (1993, p.14): É evidente que o fanzine deve ser considerado como imprensa alternativa.(...) O maior problema é definir fanzine como gênero ou categoria de publicação. O fanzine, por vezes, confunde-se com as próprias revistas alternativas pela forma de produção, veiculação e apresentação. Mas diferencia-se destas por seu conteúdo publicado. O fanzine apresenta-se como um boletim, veículo essencialmente informativo, órgão de fã-clubes ou de aficionados. Ou seja, a matéria-prima do fanzine é a informação, como artigo, entrevista, matéria jornalística. Na revista alternativa encontra-se a produção artística propriamente dita: contos, poesias, ilustrações, quadrinhos etc. A partir dessa concepção a revista alternativa é veículo/porta-fólio que abre espaço para novos artistas e novas propostas de linguagem que não encontram guarida nos veículos comerciais.

Notamos que a definição acima não inclui os fanzines brasileiros de mangá e a maioria dos doujinshi na categoria de fanzine, já que estes apresentam apenas produção artística, geralmente nenhuma informação. Usarei como definição de fanzine, portanto, a de que ele faz parte da imprensa alternativa e tem como principal característica ou característica definitiva a predominância dos editores em todo o processo de produção, ou seja, com exceção da reprodução gráfica da matriz. No Brasil, Magalhães considera os anos 80 como a crise dos fanzines, ignorando que nesta época começaram a surgir os fanzines de mangá feitos pelos descendentes japoneses no país. Como este livro é de 1993 não houve tempo para este escritor observar a febre de fanzines de mangá feitos pelos fãs, que chegaram a lotar estandes de eventos e permitir que seus melhores autores destacassem-se no exterior e no mercado editorial brasileiro. Por fim, destaco o que Magalhães fala do maior ponto fraco do fanzine (1993, p.11): (...)Não existem regras para sua edição, pois dependem da disponibilidade, do orçamento e do interesse de cada editor. Como os fanzines circulam mediante um sistema de troca de publicações ou venda por via postal, não é raro que eles cheguem não só a todas as partes do país, mas também atinjam outros lugares do mundo. É justamente essa mobilidade uma grande virtude e um dos maiores problemas dos fanzines. Quase sempre sem peridiocidade, os fanzines são publicações efêmeras, não conseguem sedimentar uma concepção editorial que lhes proporcione o fortalecimento e amadurecimento da publicação.

Atualmente, algo que muito ajudou na divulgação e estudos conceituais dos fanzines são a internet e as feiras especializadas. Étienne Barral, em seu livro Otaku – os filhos do virtual, descreve a grande va48

lorização das feiras de fanzine no Japão em contraste com as do resto do mundo: (...)As imediações do Parque de Exposições de Ariake estão cheias de gente. Zoom para diante: entramos no santuário – milhares de jovens entre 14 e 30 anos.(...) Alguns chegaram na véspera e acamparam no lugar para serem os primeiros a entrar. Às 6h30 da madrugada, todo o bairro já estava agitado, e aqueles que chegaram às 9h00 demoraram quatro horas para transpor a porta de entrada. Apesar de seu tamanho imponente, tão grande quanto o Parque de Exposições da Porta de Versalhes, em Paris, o complexo de Ariake e seus oito salões imensos mal poderão conter a multidão de 500 mil jovens que acorrem a sua Terra Prometida, seu Eldorado. Eles são esperados pelos 34 mil resolutos desenhistas expositores, cada um sentado atrás do arremedo de carteira escolar que lhe é destinado. Uma ao lado da outra, alinhadas como para um desfile, essa fileira de mesas se estende a perder de vista.(...) (...) Em três dias, terão sido vendidos 5 milhões de fanzines, gerando 150 milhões de francos em volume de negócios, e 500 mil jovens de todo o país terão ido ao Parque de Exposições de Ariake para participar do Comiket. (BARRAL, 2000, p.131)

Inesperadamente, no entanto, todo esse capital, por um bom tempo, não teve interferência do mercado e circulou apenas entre artistas e fãs. Digo inesperadamente porque parece a nós, ocidentais, natural que logo as grandes editoras se interessem por tal movimentação financeira e apóiem novos artistas; mas o Japão vê o Comiket como um reduto de malucos e pervertidos, já que a maioria das obras expostas e vendidas é de pornografia pesada e/ou infantil, algo repudiado pelos japoneses tradicionais e associações políticas. Os artistas desta feira consideram os mangás comerciais ruins em geral e portanto muito caros, embora esse “ruim” nem sempre signifique “não tem pornografia o suficiente”(é destas feiras que artistas de sucesso buscam inspiração para subverter os modelos comerciais sem perder público): (...)As somas gastas no Comiket, mesmo que enormes, vão para o bolso dos amantes de mangás. Ao recusar os editores comerciais, os organizadores do Comiket, em contrapartida, não se beneficiam de quase nenhuma cobertura da mídia nacional. Qualquer pequena manifestação patrocinada é notada, torna-se até objeto de reportagem, enquanto o Comiket, que reúne 500 mil jovens em três dias, duas vezes por ano, é ignorado pela grande imprensa. Isso explica por que grande parte dos japoneses nem sabe de sua existência.(BARRAL, 2000, p.134)

Barral, em seu estudo sobre os fanzines japoneses, nos dá importantes dados para que notemos um foco de misoginia ocultado pela sociedade japonesa, mas que parece servir como denunciador social ao olhar ocidental e válvula de escape para os reprimidos otakus(jovens que se assemelham aos nerds de nossas sociedades, mas que têm como característica japonesa única ficarem trancados em casa, pedindo tudo por delivery ou andando em bandos em convenções específicas, e transferir a sexualidade real para a virtual, tendo como padrão a sociopatia, o consumismo de peças de design e a facilidade em lidar com ciências exatas e novas tecnologias): Para tentar racionalizar um pouco esta fusão de gêneros, os organizadores do Comiket dividiram o evento em três dias distintos. No primeiro dia, os fanzines que têm como eixo os videogames ou o show business têm a primazia, com 60% de meninas. No segundo dia, o lugar é das paródias de desenhos animados, e ainda os círculos de meninas são majoritários, 70%. Paradoxalmente, os temas são ‘masculinos’: paródias de histórias em quadrinhos de aventuras ou esportes, acomodadas segundo o gosto feminino, e histórias de amor homossexual entre homens, que são chamados mangás yaoi. E, finalmente, no terceiro dia é a vez das histórias originais, dando lugar aos meninos, com os temas mais ‘viris’, se podemos dizer assim, uma vez que a maior parte dos heróis são heroínas, frequentemente nuas, muitas vezes maltratadas. Assim anda o mundo do Comiket. Nos fanzines, as heroínas de desenhos animados veiculados na televisão em horas de grande audiência são metamorfoseadas, com amor, em bonecas submissas, humilhadas, amarradas, esquartejadas, cortadas, violentadas. Atrás de seu arremedo de mesa, um aprendiz de desenhista contempla com prazer o olhar suplicante e cheio de lágrimas daquela que ele próprio havia desenhado, como se, depois de ter humilhado sua mulher de papel, estivesse em posição de protegê-la.

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(...)O gosto tão pronunciado dos autores/leitores de mangás eróticos pela bondage e pela representação de adolescentes submetidas à vontade sádica do herói da história não nos remete, como nos ensinou Freud, ao ódio inconsciente pela mãe, como descobrem, como qualquer humano, que não são tudo para ela? É preciso lembrar que a excessiva importância da mãe na célula familiar tem uma importância fundamental na psicologia dos jovens japoneses. Não seria dessa mãe, indispensável, onipresente, mas ao final castradora, que os otaku tentam liberar-se com suas heroínas de papel?(BARRAL, 2000, p. 138)

Barral chega bem perto da resposta a esta questão, já que um problema frequente na sociedade japonesa, visto através dos mangás em geral, é a ausência do pai e sua frieza em casa e a falta de compensação emocional da mãe, que responde ao machismo sendo mais fria ainda. Com o pai ausente, ela não se reprime ao perder a paciência com as crianças e logo as coloca no excesso de atividades acadêmicas exigido pelo sistema japonês. São frequentes, nos mangás para meninos, discussões que chegam à violência entre um filho que culpa a falta de personalidade da mãe pela ausência do pai e a mãe que culpa o sistema por não ser valorizada por sua profissão sem casar-se ou pela frieza dos homens japoneses em geral. Não é só pela mãe castradora que os desenhistas de mangá exprimem seu ódio; é comum vermos em mangás eróticos misóginos a intensidade dos maus-tratos aumentar quando a personagem é romântica, infantilizada e ingênua, postura de muitas meninas japonesas até pouco tempo atrás, quando a maioria dos colégios no país ainda não era misto, e da maioria das heroínas dos mangás shojo, o que talvez irrite os meninos, ansiosos por uma sexualidade menos idealizada e carentes de moças mais maduras e que não falem fininho o tempo todo(no anexo de Matt Thorn neste TCC, vemos também como as colegiais japonesas preferem perder a virgindade com homens mais velhos, experimentados na prostituição oficial e mais cavalheiros, para terem dinheiro para compras caras, o que deixa os garotos japoneses mais afastados ainda). Isso se liga, claro, à ocidentalização da sociedade japonesa, já que, como diz Barral, a maioria dos visitantes e expositores do Comiket são do sexo feminino. Isso obviamente cria uma rivalidade com os socialmente desastrados e rancorosos otakus, que logo compensam seu nervosismo em ver até esta área tipicamente masculina sendo dominada pelas mulheres, cada vez mais livres no país, colocando-as em posições humilhantes em seus mangás, talvez como única forma legal de tentar assustá-las. Afinal, mangás pornográficos violentos demais ou infantilizados são recusados pela censura japonesa e pelo público, atualmente adaptando-se à liberdade sexual feminina. Claro que apenas isso não justifica a misoginia, principalmente porque mesmo no Ocidente ainda se confunde pornografia com a imagem de uma mulher nua. O mercado pornográfico, infelizmente, não provou sua neutralidade ideológica, visto que não vemos a imagem masculina ser usada de forma tão ampla na mídia como a imagem feminina é, mesmo havendo interesse comercial das mulheres, que viram tietes histéricas de homens bonitos que “ousam” tirar a camisa em raros ensaios fotográficos para elas, como numa urgente compensação de vê-los sempre mais vestidos que elas. Retomando Foster(2005, p.116), (...) a autorização masculina para o uso “alternativo” do corpo da mulher é bastante generosa – quer dizer, não há limites claros que separem o normal do perverso. A percepção que conduz a conjectura feminista de que a fotografia e a violação, teoria e prática do abuso contra a mulher, supostamente não santificado pelo patriarcado heteronormativo, são conclusões inevitáveis do poder que se outorga ao homem sobre o corpo das mulheres.

No Brasil, foram os mangás que deram impulso ao mercado nacional de fanzines. Segundo Luyten(2002), em janeiro de 1985 nascia o primeiro fanzine brasileiro de mangá, o Clube do Mangá, financiado pela ABRADEMI (Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações). Foi com a febre dos Cavaleiros do Zodíaco no mundo todo que a produção de fanzines sobre mangás no Brasil aumentou muito, e foi esta série animada exibida nos anos 90 pela TV Manchete que provou ao mundo que algo sobre este estilo de animação, apesar de ultraviolenta, atraía as crianças com muito mais força do que os desenhos animados tradicionais, presos na época numa era de estagnação criativa. Há várias tendências em comum nas publicações de fanzines brasileiros de mangá. De início, os temas estavam mais voltados para o Japão, principalmente ligados à ficção científica. Atualmente os 50

fanzineiros de mangá brasileiros e americanos esforçam-se para lançar mangás originais e misturados à cultura local, sem sucesso significativo. Como imitam as estruturas de mangás japoneses, embora com um toque de humor brasileiro(com personagens mais sociáveis e heroínas menos submissas, além de uma menor tensão sexual entre rivais do sexo masculino e mais sensualidade e amizade entre heróis e mocinhas), os fanzines brasileiros de maior sucesso de vendas são aqueles cujo traço é considerado mais impressionante. Também é típico do fanzineiro brasileiro tirar sarro de clichês de anime, alguns muito bons a ponto de serem publicados em revistas oficiais. São as mulheres que se destacam no desenho de mangá no Brasil, todas começando como fanzineiras: Erika Awano, com Holy Avenger, primeira HQ brasileira a sobreviver nas bancas e ganhar um prêmio nacional de qualidade na história do país; Elza Keiko em Mangá Tropical; e Denise Akemi que saltou do fanzine Tsunami para a publicação de uma revista de mesmo nome da Editora Brainstore, que não vingou. Erika Horita e Gislene Mayumi Matsui são lendas entre os fanzineiros brasileiros, campeãs de venda com seus traços impressionantes, e conseguiram, por descenderem de japoneses, trabalhar profissionalmente no Japão, atualmente sem precisar ‘fanzinar’ e mantendo fãs pela internet, sustentando-se com as vendas de seus fanzines no Comiket e seus trabalhos ocasionais para editoras japonesas de mangá e ilustração, algo impossível aqui. A grande surpresa vem da mídia digital onde a história Combo Rangers, de Fábio Yabu, fez tanto sucesso na tela do computador que passou para a mídia impressa em edições da JBC e da Panini. Atualmente os desenhistas que fizeram sucesso entre os fãs de anime brasileiros trabalham no exterior(e também os fanzineiros em estilo original de HQ, Fábio Moon e Gabriel Bá, que cultuados nos EUA, só foram reconhecidos pela mídia brasileira ao serem contratados para tirinhas filosóficas de pouca expressão na revista Época; em geral, desenhistas de histórias em quadrinhos não são valorizados no país, embora as HQs internacionais vendam o suficiente. Mais uma vez, parece complexo de inferioridade ou visão do desenho como um dom artístico que não exige esforço portanto nem remuneração decente), onde são mais reconhecidos e financeiramente recompensados do que os desenhistas que optam em trabalhar no Brasil ou que não têm a opção de sair. Neste último caso o desenho torna-se um triste hobby, o que mostra a incapacidade do mercado editorial brasileiro perceber o enorme potencial destes artistas, fazendo carreira no Japão e nos EUA.

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ESTUDOS DE IMAGEM, ESTILO E TRAÇO

Uma coisa que salta aos olhos de qualquer um que examine uma quantidade mínima de mangás shonen e shojo é a grande diferença de estilo de traço presente neles, bem como a diagramação, além dos já citados temática e desenvolvimento emocional de personagens. Em geral, notamos como o traço shonen prioriza a verossimilhança e o shojo exagera os olhos dos personagens e simplifica exageradamente a anatomia e os cenários. As raras exceções são de autoras como Rumiko Takahashi, que usa um traço shonen porque só faz obras shonen, e do grupo CLAMP, de mulheres desenhistas de shojo e shonen que, apesar de simplificar a anatomia, desenham de forma habilidosa robôs, armas e cenários. Considerei interessante para este projeto uma análise desta fortemente predominante diferença de traço entre os estilos e entre desenhistas homens e mulheres no Japão, para tentar compreender melhor o que gera isso na sociedade japonesa, como a arte dos mangás pode nos dar pistas sobre o abismo entre os sexos e que consequências expressivas advêm destas diferenças gráficas.

O traço realista e confiante dos shonen Os mangás shonen primam pela exuberância gráfica e pelo respeito à anatomia dos personagens, embora exagere os seios e comprimento das pernas das personagens femininas com frequência. Estão sempre repletos de armas, objetos variados, cenários, veículos, roupas, cabelos arrojados e movimentos complexos. As páginas costumam ser diagramadas na vertical, cheias de onomatopéias que se entrelaçam aos desenhos, para dar sensação de agilidade e tensão. O cenário é valorizado, com exceção de momentos em que há um intenso fluxo de consciência ou emoções dos personagens. Há maior alteração de pontos de vista e perspectiva que nos shojo. Coloco na página a seguir variados exemplos de páginas de mangás shonen para que notemos como eles todos prezam a verossimilhança em geral e a caracterização diferenciada dos personagens.

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Figura 16: Mangá shonen Vagabond, de Takehiko Inoue.

Figura 17: Mangá shonen Dragonball, de Akira Toriyama.

Figura 18: Mangá Naruto, de Masashi Kishimoto.

Figura 19: Mangá Berserk, de Kentaro Miura.

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O traço estilizado e etéreo dos shojo Os mangás shojo tendem a desprezar cenários e verossimilhança anatômica. Há também uma intensa infantilização do corpo das personagens e um maior exagero no tamanho dos olhos em relação ao resto do rosto, tanto no caso de personagens masculinos como femininos, mas com extremo exagero na protagonista feminina. Há um excesso de recursos ilustrativos e artísticos, como estampas, brilhos, pétalas de flores e manchas que simbolizam o estado emocional dos personagens ou acontecimentos misteriosos. Há também uma tendência a se desenhar animais reais e imaginários estilizados de forma a parecerem “fofinhos” e um grande capricho nas roupas das personagens, embora seus corpos não tenham volume. Também há maior exagero nas expressões faciais, maior frequência de closes de rostos em comparação a visualizações de corpos em planos de corpo inteiro e maior inventividade de estilizações e deformações de modo a expressar personalidades e estados de espírito. Também há mais diálogos, mais balões que expressam pensamentos, e os personagens masculinos, ao contrário do que ocorre nos shonen, não são muito diferenciados dos femininos. A androginia só não ocorre quando se desenha personagens idosos, gordos ou musculosos, considerados pouco atraentes. Nas páginas de mangás shojo a seguir, coloco imagens que mostram como se destacam os efeitos gráficos, a falta ou simplificação de cenários e anatomia e o exagero no olhar dos personagens.

Figura 20: Mangá shojo Karekano, de Masami Tsuda.

Figura 21: Mangá shojo Fruits Basket, de Natsuki Takaya.

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Figura 22: Mangá shojo Peach Girl, de Miwa Ueda.

Figura 23 Mangá shojo X 1999, do grupo CLAMP.

O que o traço pode dizer? Não pude encontrar autores que afirmem com toda certeza que a diferença entre os estilos de traço dos mangás shonen e shojo denunciem uma forte separação entre os sexos no Japão, no sentido de seu modo de ver o mundo. Mas acredito que o desprezo do cenário e a deformação dos personagens nos mangás shojo, bem como o caráter frágil e etéreo de seus corpos, possa indicar uma sensação de presença pouco tangível no mundo, e/ou o desprezo pelo mundo criado pelos homens. Prédios, veículos, até móveis são desenhados de forma simples, às vezes até substituídos por imagens de fotografias tratadas ou vetorizadas, mostrando que o foco destes mangás é extremamente desconectado do mundo exterior. O corpo dos personagens é simplificado, infantilizado e afeminado, e apenas o rosto, cabelos e roupas são desenhados com capricho ou mais destacados devido ao uso de preenchimentos em gradiente, retículas e mais traços que o resto do desenho. Mesmo no caso de autoras que caprichem mais na anatomia e cenários, a personagem feminina, mesmo quando de mesma idade que os masculinos, ou pouco mais velha, é desenhada de forma a sempre parecer mais nova e excessivamente infantilizada aos olhos de qualquer ocidental. As heroínas dos shojo costumam ter seios e quadris pequenos e pouca massa muscular, enquanto que os shonen valorizam o exato oposto, como que compensando, talvez, a obsessão das japonesas pelo corpo infantil. Isso pode ser um indício de que as japonesas não se sintam jamais adultas? Ou talvez elas usem essa imagem infantil para, aproveitando o desprezo masculino, não se mutilarem na desumana competitividade do capitalismo japonês e justificar ao frio homem japonês seu comportamento mais emotivo? É um campo de estudo ainda a se desvendar. 55

CONSIDERAÇÕES FINAIS Vimos neste trabalho como o mangá é um grande fenômeno mundial que não deve ser ignorado, Na internet, ferramenta tecnológica em constante expansão, o mangá é um dos conteúdos mais acessados e merece atenção não apenas de seus fãs, mas também dos estudiosos de comunicação. Para analisar como a mulher é retratada nas obras escolhidas, foi importante mergulhar no contexto de constituição do mangá e na história das mulheres. No que se refere ao Japão, percebe-se que a mulher tem superado preconceitos no mercado de trabalho e que isso se manifesta nas personagens femininas do mangá. Elas têm sido retratadas de forma mais concreta e menos idealizada, embora ainda exista uma agressiva misoginia nos mangás eróticos. Também ainda se encontra presente a idéia de que a mulher japonesa não rejeita a exploração do estupro no cinema. Para saber se poderia-se falar de feminismo nos mangás, estudamos algumas visões sobre o movimento, que apesar de ter dado à mulher mais liberdade em campos importantes, como o profissional e o sexual, ainda não conseguiu livrá-la de salários mais baixos, obsessão com a aparência e excesso de responsabilidades. Mostrou-se bastante difícil a busca de uma fala feminista nos mangás analisados. Esta busca, entretanto, resultou na percepção de que está ocorrendo um apaziguamento da divisão sexual de estilos shounen e shoujo, o que acompanha um movimento da juventude japonesa contra rígidos valores tradicionais que resultam em taxas cada vez mais altas de suicídio, insatisfação sexual e alcoolismo. Também reparamos como o yaoi se apresenta de forma curiosa na sociedade japonesa. Este gênero se tornou um sucesso de exportação para meninas ocidentais pelo fascínio com uma nova possibilidade de fantasia com o corpo masculino. Uma vez que no Ocidente é comum vermos material pornográfico com exploração do universo lésbico para o público masculino, o yaoi apresenta uma subversão na medida em que o público feminino entra em contato com a exploração do homossexualismo masculino. Conclui-se que a arte, a mídia, a indústria cultural e o entretenimento podem ser ferramentas que nos possibilitam acompanhar mudanças sociais, e como no caso yaoi, nos surpreender com uma faceta de um povo que não parecia existir, que não tinha como manifestar-se em outro lugar.

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LISTA DE IMAGENS Figura 1: Exemplo de Hokusai Manga. Disponível em: < http://fr.academic.ru/pictures/frwiki/72/ Hokusai_manga_vol.8.jpg>, acessado em 23/09/2010 às 15:16 Figura 2: Exemplo de mangá shogaku. Disponível em: < http://www.interney.net/blogs/ maximumcosmo/?cat=3231>, acessado em 23/09/2010 às 14:56 Figura 3: Capa da revista Margaret. Disponível em: < http://www.fanboy.com/2010/08/controller-prince-a-new-manga-aimed-at-geek-girl-gamers.html>, acessado em 23/09/2010 às 15:00 Figura 4: Capa da revista Shonen Jump. Disponível em: < http://www.animepaper.net/gallery/scans/ latest/item191329/>, acessado em 23/09/2010 às 15:08 Figura 5: Capa da revista yaoi japonesa BeBoy. Disponível em: < http://ichigo-garden.blogspot. com/2009/12/bexboy-gold-cough-coughchokes.html?zx=7ab53a8638338e75>, acessado em 23/09/2010 às 15:33 Figura 6: Capa de DVD de Death Note, pelo estúdio Madhouse. Arquivo pessoal. Figura 7: Ilustração do mangá Naruto, de Masashi Kishimoto. Arquivo Pessoal. Figura 8: Ilustração de Akito, personagem de Fruits Basket, por Natsuki Takaya. Arquivo Pessoal. Figura 9: Ilustração de Tohru, protagonista de Fruits Basket, por Natsuki Takaya. Arquivo Pessoal. Figura 10: Ilustração do anime Yu Yu Hakusho, pelo Studio Pierrot. Arquivo Pessoal. Figura 11: Nana Oosaki e Nana Komatsu, personagens de NANA, de Ai Yazawa. Arquivo Pessoal. Figura 12: Ren, personagem de NANA, de Ai Yazawa. Arquivo Pessoal. Figura 13: Takumi, personagem de NANA, de Ai Yazawa. Arquivo Pessoal. Figura 14: Ilustração do mangá NANA, de Ai Yazawa. Arquivo Pessoal.. Figura 15: Kyaska, heroína de Berserk, mangá de Kentaro Miura. Arquivo Pessoal. Figura 16: Página do mangá shonen Vagabond, de Takehiko Inoue. Disponível em: < http://shaenon. livejournal.com/25049.html>, acesso em 23/09/2010`as 19:02 Figura 17: Página do mangá shonen Dragon Ball, de Akira Toriyama. Disponível em: < http://shaenon. livejournal.com/25049.html>, acesso em 23/09/2010`as 19:05 Figura 18: Página do mangá shonen Naruto, de Masashi Kishimoto. Disponível em: < http://faisalardhy.blogspot.com/2008/05/manga-naruto-comic-indo-chapter-450.html>, acesso em 23/09/2010 às 19:21 Figura 19: Página do mangá shonen Berserk, de Kentaro Miura. Disponível em: < http://www.mangareader.net/96-1153-1/berserk/chapter-33.html>, acesso em 23/09/2010 às 19:28 59

Figura 20: Página do mangá shojo Karekano, de Masami Tsuda. Disponível em: < http://elzr.com/ images/blog/comics/karekano2.jpg>, acesso em 24/09/2010 às 17:32 Figura 21: Página do mangá shojo Fruits Basket, de Natsuki Takaya. Disponível em: < http://www.gamespot.com/pages/unions/forums/show_msgs.php?topic_id=25604645&union_id=12024, acesso em 24/09/2010 às 17:44 Figura 22: Página do mangá shojo Peach Girl, de Miwa Ueda. Disponível em: > http://www.sfolse.net/ manga_analysis/shoujo/peach-girl-coh-1-16.jpg>, acesso em 24/09/2010 às 17:49 Figura 23: Página do mangá shojo X 1999, do grupo CLAMP. Arquivo pessoal.

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ANEXO

Exploradores inesperados: Narrativas Alternativas de Sexo, Amor, Gênero e Amizade nos “Quadrinhos Japoneses para Meninas” Tradução própria resumida do antropologista cultural, professor associado da Faculdade de Mangá(HQ japonesa) e da Escola de Produção de Mangá da Universidade de Seika, em Kyoto, Japão. O americano Matthew Thorn, do departamento de antropologia da Universidade de Columbia, nos EUA, publicou na internet, em 1993, um texto, impresso e guardado por mim desde 2004, que lhe rendeu a indicação para a instituição japonesa, no qual apresenta um rascunho de sua conferência de Estudos Asiáticos de Nova Iorque, em New Palz, NY, 16 outubro de 1993: O contato do estrangeiro com as adolescentes japonesas geralmente se resume a vistas em metrôs e shopping centers. Podem ser notadas rindo em grupos de três ou quatro; uniformes escolares em preto, cinza ou azul marinho impecavelmente lisos; faixas de pulso decoradas com personagens fofos e pulseiras coloridas em um braço; cabelo adequado ao estilo exigido pela escola, oriental e discreto. Apresentam uma imagem de ingenuidade e intocada inocência. Frequentemente, elas mesmas policiam esta imagem. As mesmas meninas podem ser vistas sentadas sozinhas nos trens, debruçadas sobre uma edição mensal da revista Bessatsu Maagaretto(“Margaret Especial”) ou Gekkan LaLa(“LaLa Mensal”), duas populares shoujo manga, ou “revistas em quadrinhos femininas”. Espiando pelo ombro de uma dessas meninas, o estrangeiro, ou estranho, não costuma contestar a imagem do parágrafo acima: personagens vestidos de forma ditada pelas últimas tendências da moda encaram-se em chuvas de pétalas de flores, com os grandes olhos brilhantes exagerados em relação a seus frágeis corpos. Mas se você não tiver algo pra ler e continuar espiando por tempo suficiente, chegará a uma curiosa percepção: você não consegue sempre diferenciar qual dos personagens é masculino e qual feminino. Você acaba de tocar a superfície de um fenômeno extraordinário tão desprezado pelos leitores de shoujo manga que parece ser desconhecido por eles, e tão contrário à expectativa dos não-leitores que eles jamais imaginariam tal coisa. Mas leitores intelectuais dos shoujo manga estão muito cientes do que chamo de “ambiguidade sexual” nesta mídia textográfica criada e lida por mulheres. Personagens andróginos são apenas a expressão mais óbvia do fenômeno. Lendo as revistas que citei no trem japonês, você encontrará várias edições que tratam generosamente de travestis e homossexualidade, e talvez um tanto de transexualidade e hermafroditismo. A ambiguidade sexual é sem dúvida o tema central desses materiais(que é inegavelmente o romance heterossexual, e relacionamentos interpessoais num senso mais amplo), mas parece, por motivo algum, como um secundário ou terciário subplot(subtema ou sub-trama) em muitas histórias nas quais o tema primário é completamente discrepante. É fácil notar porque os leitores desprezam o fenômeno. Para entender o shoujo manga, é preciso encaixá-lo no largo contexto do manga(mangá, quadrinhos japoneses no Brasil) em geral e na sociedade japonesa como um todo; nos EUA eles não possuem versões de qualquer tipo nesta mídia, então pode parecer a um leitor estadunidense ou ocidental que faço muito escândalo por um fenômeno de poucas consequências. Nos EUA, “quadrinhos” ou comic books são histórias de super-heróis de músculos apertados em uniformes coloridos, e geralmente lidos por meninos e uma pequena mas dedicada parcela de homens adultos. Apenas uma minoria de mulheres lê quadrinhos, e um exame da questão explica o fato: quadrinhos são decididamente masculinistas, a despeito do esforço de alguns autores em trazer a “costela feminina” ao universo dos X-Men(que não são todos homens), Batman, e todos os outros alguma-coisa-homem/man/men. Contraste isso com o Japão, no qual um terço de todas as publicações é algum tipo de mangá; onde a revista de mangá mais vendida, que é de longe a mais bem vendida de qualquer tipo no Japão, tem circulação de cerca de seis milhões de exemplares; onde um terço dos japoneses e japonesas de trinta 61

anos, metade destes em seus vinte, e quase setenta por cento(!) daqueles entre dezesseis e dezenove anos dizem gostar de mangá; onde quarenta por cento de todos os japoneses e japonesas de dezesseis anos ou mais lê mangá; e onde o tema dos mesmos vai de ficção científica e histórica para cozinha gourmet e golf. Um mangá japonês é a criação de um, ocasionalmente dois artistas, e primeiro aparece em forma seriada numa revista de mangás, junto com mangás de doze ou mais artistas, entre estreantes e consagrados. Episódios de um mangá bem-sucedido são coletados e lançados em papel-jornal, com um título que vai de dezenas de páginas a dezenas de volumes. Ao contrário dos comic books americanos, a maioria dos mangás tem um roteiro programado e uma conclusão previsível. O que difere os shoujo manga dos shounen, ou “mangás para meninos”, é a ênfase de relacionamentos em detrimento da ação. Até os shoujo manga que tratam de ficção científica, fantasia ou peças históricas primeiramente focam nas complexidades do relacionamento interpessoal, romances ou outros. Até os anos 60, eles eram escritos majoritariamente por homens(!), para um mercado de garotas adolescentes. Com a chegada dos anos 70, no entanto, uma revolução de gênero espalhou-se pela indústria. Uma nova geração de mulheres artistas tomou o controle, criando histórias mais atraentes às meninas do que os romances simplistas que os homens lhes ofereciam. Este grupo de mulheres ficou conhecido como Niijuyo Gumi, ou “49º ano”, porque muitas delas nasceram em 1949, ou o 24º ano da Era Showa. Foram elas que desenvolveram a ambiguidade sexual como tema central do mangá shoujo, embora o assunto tenha sido primeiramente sugerido pelo fundador do mangá japonês, Osamu Tezuka, num mangá para meninas intitulado Ribon no kishi, ou “Cavaleiro do Laço”. O trabalho que deslanchou a explosão dos mangás shoujo, em 1972, foi o de Ikeda Riyoko, “A Rosa de Versalhes”(Berusaiyu no bara”). Ela deu o tom quando escolheu como protagonista uma mulher que foi criada de forma a sempre agir e vestir-se como homem. Capitã do exército francês, esta mulher atrai o interesse romântico de um homem que ela comanda e de Marie Antoinette, cuja guarda-costas pessoal ela se torna. Em 1974, Hagio Moto escreve Tooma no shinzou, “O Coração de Thomas”, uma história de amor entre dois garotos numa vaga Europa, numa vaga escola para meninos dos anos 20. O mangá começa com o suicídio de Thomas aos quatorze anos, cujo amor por um menino mais velho, Yuri, é rejeitado. Em sua carta final a Yuri, Thomas escreve: A Yuri, uma última vez, este é meu amor. Este é o som do meu coração. Certamente você entenderá. No mesmo dia que a notícia chega à escola, um novo estudante aparece: Eric, que é quase idêntico a Thomas. Eric se torna o meio pelo qual Yuri desabafa sua dor e culpa. No fim descobrimos que Yuri estava apaixonado por Thomas, mas sentiu não merecer o amor do menino por que aparentemente foi estuprado por uma gangue quando era calouro. Yuri resolve o problema, que parece ter sido causado pelo suicídio de Thomas, virando padre, o que no Japão é cosmologicamente tornar-se uma parte de Buda ou “kami”, palavra japonesa para “divindade” ou “deus”. Casando-se com Deus, Yuri está na verdade consumando seu amor por Thomas. Em 1976, Keiko Takemiya choca o país por mostrar explicitamente o que Hagio apenas sugeriu: relações sexuais entre meninos. Sem perder tempo, ela vai para o centro da questão com sua famosa primeira cena de Kaze to ki no uta, “A canção do vento e das árvores”. Também na Europa, desta vez uma escola francesa de meninos em 1880, ela lida com o tórrido romance do puro e meigo Serge e o sangue-frio Gilbert. Este é o prostituto da escola, deixando os garotos mais velhos decadentes se aproveitarem do seu corpo por um preço. O tema central do mangá, o que era típico nas histórias escritas nos anos 70, era que enquanto o “amor puro entre garotos” era algo belo, expresso ou não fisicamente, o sexo pela luxúria era degenerado, sujo, geralmente iniciado pelos “meninos mais velhos”. A diferença, portanto, entre homossexualidade e sodomia, era mental, emocional. O desafio de Serge é fazer Gilbert perceber isso. As sucessoras das Niijuyo Gumi continuaram lidando com o tema da ambiguidade sexual, que na escala dos mangás foi de menos mítica a mais presente na realidade cotidiana. Trabalhos como os de 62

Akisato Wakuni, Nemureru mori no binan(“O belo adormecido”) retratam a vida gay como realmente praticada, e até trazem a questão da AIDS pela primeira vez nas revistas japonesas em quadrinhos. A forma mais fascinante de manifestação da ambiguidade sexual nos mangás shoujo contemporâneos, no entanto, não é encontrada nas revistas comerciais, mas nos doujinshi, mangás criados por desenhistas amadores com seus próprios recursos e vendidos nos “comic markets” ou komikku maaketto. O tipo de material de que falo aqui é comumente conhecido como Captain Tsubasa, um famoso mangá comercial de longo sucesso e publicação sobre futebol no colegial. O gênero homônimo surgiu quando as fãs do desenho criaram seus próprios quadrinhos sobre os personagens principais, o protagonista e seu rival, mas com um twist: os dois seriam amantes. Os personagens originais ficaram irreconhecíveis, como se pode notar, e o gênero passou a incluir outros rivais da mesma série ou personagens secundários, mas sempre retratados como amantes. Estes mercados passaram a atrair cerca de vinte mil visitantes e milhares de artistas, a maioria meninas ou mulheres entre a puberdade e os vinte anos. Neste verão fui a um “comiket” em Osaka no qual os meninos de Captain Tsubasa eram os mais repetidos nos trabalhos vendidos. Bem, e então? Eu não quero dar a impressão que a homossexualidade masculina é a manifestação primária dessa ambiguidade sexual da qual falo, que seria androginia num sentido mais amplo. É notável, no entanto, como o lesbianismo é raro neste tipo de mangá. Nos trabalhos que analisei, se há uma personagem lésbica, na maioria das vezes ela não é principal. A lésbica geralmente é retratada de forma trágica e perigosa. Ela é frequentemente selvagem e sagaz, tentando seduzir alguma garotinha inocente. Assim como no caso da homossexualidade masculina, é perfeitamente aceitável que uma jovem desenvolva um amor platônico por uma colega mais velha, mas o retrato disso nos mangás shoujo é muito menos atraente do que o do amor entre meninos. Este é um dos problemas fascinantes que esses mangás colocam. Por que meninas se interessariam tanto em ler sobre romances entre homens e não entre mulheres? Mas obviamente a questão maior é a seguinte, qual é a dessa ambiguidade sexual? Por que ela fascina tantas mulheres da geração pós-guerra? Por que este fenômeno e não outro? Por que no Japão e em nenhum outro país desta forma? Há duas explicações populares da ambiguidade sexual nos mangás shoujo. A primeira é a de que o travestimento nesses materiais possibilita à leitora experimentar privilégios masculinos que lhe são negados como mulher. A explicação é politizada, mas superficial. Pode ter feito sentido para os leitores nos anos setenta, nos quais a protagonista geralmente é nascida mulher e criada, por algum motivo, como homem. Mas como, então, poderemos entender que todos os personagens nesse tipo de mangá são desenhados de forma a parecer do sexo feminino? E, claramente, esta explicação não explica a homossexualidade. Outra interpretação popular dessas histórias é a de que personagens andróginos não são realmente bissexuais, no sentido de terem duas sexualidades, mas simplesmente assexuados. Meninas, como sugere esta teoria, têm medo do sexo e querem se distanciar dele, portanto os heróis e heroínas nos mangás devem ser assim também. Mas temam ou não a sexualidade, é inegável que os mangás que estas meninas lêem estão cheios dela. Eu sugeriria, ao contrário, que as meninas temem o sexo mas são fascinadas por ele e querem confrontá-lo nesses mangás. Tenho estudado os shoujo manga deste 1988 e desenvolvi ao longo do tempo uma tentativa de teorizar o tema da ambiguidade sexual, que segue assim: Como eu disse no início do artigo, garotas japonesas parecem mais imaturas e inocentes se comparadas a meninas ocidentais da mesma idade. É uma surpresa, porém, descobrir que as japonesas são muito ativas sexualmente – mais, inclusive, do que os japoneses. Aparentemente, elas devem relacionar-se então com homens mais velhos. Mas as meninas não fazem alarde disso. Parecem ambivalentes. Talvez, então, o mangá shoujo ofereça um mundo seguro e dominado pelo feminino onde se explora uma vasta gama de possibilidades sobre a sexualidade humana. O sexo entre homens é ideal por três motivos. Primeiro, possibilita à leitora projetar sentimentos sem voz no “outro homem”. Curiosamente, quando Tooma no shinzou foi transformado em um filme, todos os personagens masculinos foram interpretados por mulheres. Isso tornou explícito o que eu achava desde o começo: que Thomas, Yuri, Eric e seus amigos são todos garotas travestidas, explorando o tema da homossexualidade sem assumir responsabilidades pesadas. A homossexualidade masculina nos mangás shoujo também expõe as garotas a uma sexualidade 63

masculina não-ameaçadora. Como disse o crítico e novelista Hashimoto Osamu(que por um acaso é gay) em um de seus livros sobre o assunto, um homem gay, diferentemente de um heterossexual ou uma lésbica, não representa perigo para uma menina que ainda não está confortável com a própria sexualidade. Um terceiro propósito do amor entre personagens masculinos é ajudar as meninas a entender o misterioso animal homem encaixando-o em termos que ela possa compreender, femininizando-o e tornando-o mais interessado em relacionamentos do que, digamos, futebol. Talvez o que estejamos vendo nestes trabalhos seja um esforço contínuo das leitoras(e talvez artistas, também) em se ajustar a uma sexualidade efervescente que traz profundas implicações em suas vidas na fina arena da reprodução. O fato desses mangás continuarem populares entre mulheres adultas, e até atrair leitores homens, prova que a questão que eles levantam sobre sexualidade e gênero humanos continua nos intrigando até a idade adulta. Esta foi minha formulação básica, mas eu nunca fiquei satisfeito com ela. Sempre senti que devia haver alguma resposta perfeita, alguma chave que destrancasse os mistérios dos shoujo manga, uma chave de mim escondida mas que eu descobriria em tempo. Este verão, no entanto, quando eu fazia uma pesquisa de dissertação em Kobe, no Japão, tive uma experiência que descreveria como anti-epifania. Começou inocentemente quando comecei a conversar com uma funcionária da loja de mangás onde eu fazia minha pesquisa. Eu sabia que ela era fã dos mangás gays de Captain Tsubasa, e mostrei a ela um artigo de Takemiya Keiko que sugeria que o fascínio das mulheres japonesas pelo romance masculino gay era um primeiro passo a caminho do verdadeiro feminismo. A funcionária, senhora Sato, comentou sobre a teoria, demonstrando concordância e reserva. Outra moça que trabalhava na loja, senhorita Kawachi, entrou na conversa, que começou a ir por caminhos que eu não esperava: peguei meu caderninho e comecei a anotar. As duas concordaram com Takemiya sobre o fato de mulheres fantasiarem em serem homens. Sato sugeriu que era precisamente porque uma mulher jamais poderia ser tornar homem que ela era fascinada pelo assunto. A outra sugeriu que meninas preferiam ver um menino que elas amavam à distância com outro garoto, do que vê-lo roubado por uma menina. Era uma expressão de evitar a realidade adulta. Logo as duas discutiam quase todo assunto possível de se relacionar a gênero e sexualidade, de menstruação a estupro. As duas disseram ser desanimadas por manifestações de amadurecimento no corpo dos homens, como pêlos e barba. É injusto que homens não devam enfrentar os desafios biológicos das mulheres. Mulheres sentem prazer ao ver homens sofrerem por estarem em relacionamentos que a sociedade não aceita. Mas ambas funcionárias expressaram nojo quanto a relações homossexuais, particularmente entre mulheres. Eu finalmente lembrei que tinha meu gravador na mochila e rapidamente o liguei, mas foi tarde demais. A conversa morreu, as meninas voltaram ao trabalho. Eu fiquei com muita coisa pra pensar, estupefato. A anti-epifania que experimentei naquele dia me fez perceber que a procura pela chave mágica estava errada; o fenômeno que encontrei era de uma complexidade absurda, que resiste a formulações fáceis. Há razões diferentes para japonesas se sentirem atraídas pela ambiguidade sexual nos mangás shoujo, mas ainda há algo ali, sem dúvida. Algo no Ribon no kishi de Tezuka deve ter tocado algo nessas meninas que logo se tornariam as Nijuuyo-nen Gumi, algo que elas trouxeram para seus trabalhos e desenvolveram em direções diferentes, Hagio na dela, Takemiya na sua, e outras artistas, como Ohshima Yumiko e Yamagishi Ryoko, em mais. Os temas que elas criaram foram pegos e reinterpretados por uma nova geração de artistas. E mulheres e meninas japonesas – e uma porção de homens, também – continuam a responder. Nesta altura eu sinto que se uma chave de ouro, mesmo que hipotética, fosse a mim oferecida, eu poderia recusá-la. Talvez por medo de dissolver qualquer magia que torna esta mídia tão poderosa e tão atraente para tantos leitores de mangá shoujo, eu incluso entre eles.

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