Fendas poéticas no espaço público – uma aproximação a partir de Banksy e ± (i.e. Miguel Januário)

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Burghard Baltrusch: “Fendas poéticas no espaço público” | Colóquio “Ofício Múltiplo” | Universidade do Porto | 2015

Fendas poéticas no espaço público – uma aproximação a partir de Banksy e

± (i.e. Miguel Januário)

(Burghard Baltrusch, Universidade de Vigo)1

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Resumo: Esta abordagem de algumas questões relacionadas com o poético e a poeticidade no espaço público parte, fundamentalmente, de exemplos de formas poéticas efémeras do século XXI (graffiti e performance). A partir das coordenadas metodológicas da poesia não-lírica (no contexto ontológico), da hermenêutica da poesia como tradução e da relação política entre o espaço público e a tradução, pretendo analisar alguns exemplos seleccionados dos dois artistas em questão. Trata-se de observar, dentro do diálogo interartístico e interdiscursivo que estas obras representam, uma série de processos híbridos a partir do conceito do trânsito-tradução. A definição destes processos permitiria observar e estudar como se realizam na acção poético-artística actual (e em outras formas poéticas), por exemplo, certas formas de regresso do excluído, de apoderamento e de emancipação, de questionamento e subversão do sistema de géneros, etc. Argumentar-se-á que o espaço público é hoje menos um lugar de mudança política do que de subversão cultural, no qual muitos fenómenos poéticos (sejam estes materiais ou digitais) estão relacionados com processos de tradução cultural. Se o poético pode ser restringido a questões de recepção e a poeticidade a processos discursivos e normativizadores do poético, certas expressões do poético no espaço público representariam uma ruptura ou uma fenda que altera a concepção poética tradicional.

Introdução

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Palavras-chave: Poesia como tradução, tradução interartística, poesia não-lírica, espaço público, Banksy, ± [Miguel Januário].

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A língua, a poesia e a arte são, naturalmente, formas de estar no mundo. Quando certas

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expressões da street art, que utilizam diferentes sistemas semióticos, chegam a ter algum impacto no espaço público e questionam a autoridade dos discursos normativizadores, podem tornar visível uma diferença ontológica entre a realidade na que vivemos e a forma

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como esta é institucionalizada. [DIA 2] Ou, como dizia Hazard Adams, “o carácter intrinsecamente ofensivo da poesia devia ser defendido”, uma vez que a sua ética não pode ser reduzida “a um conjunto de princípios morais”. A poesia ofende porque questiona a ideia tradicional da função principalmente comunicativa da língua, mas também pode desafiar os hábitos culturais e discursivos estabelecidos de um sujeito leitor/observador que acaba por ser confrontado consigo mesmo. Podíamos dizer que a poesia presente na street art intensificou este desafio. Adaptando a Walter Benjamin, até

Esta intervenção no Colóquio “Ofício Múltiplo” (Porto, 22-24.10.2015), a convite do Instituto Literatura Comparada Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tem sido realizado dentro do projecto de investigação “Poesía contemporánea en el espacio público: intervención, transferencia y performatividad” (FFI2012-33589, 2012-2015), financiado pelo Ministerio de Economía y Competetivad (Espanha). 1

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diria que a sua transmedialidade e intermaterialidade representa um “continuum de traduções”. Neste sentido, gostava de apresentar aqui algumas reflexões em torno ao poético e à poeticidade de certos aspectos do graffiti e da performance, dentro do espaço público. [DIA 3] Centrar-me-ei em dois exemplos nos quais os ofícios múltiplos (palavra, imagem, acção artística/poética) ficam evidentes: o britânico Banksy (activo desde os anos 90) e o portuense Miguel Januário (que desenvolveu ao longo da última década o projecto de intervenção ±). Embora queira também mostrar alguns exemplos, e analisar 2 em concreto, o que me

 

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interessa principalmente são duas questões teóricas: Como podemos descrever o carácter poético e de poeticidade destes fenómenos? O que é que resulta destas intervenções no chamado espaço público em termos

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tradutológicos?

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Nos contextos urbanos assistimos, hoje em dia, a uma espécie de hiper-institucionalização das artes (Paul Willis 1990) em museus, galerias, na arquitectura urbena, etc.. A própria

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cidade e a street art acabaram por formar um tecido de actos, imagens, textos e discursos que requerem uma tradução intersemiótica, ou melhor dito, trans-semiótica. Mas o graffiti

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e a performance também são bons exemplos do conflito actual entre concepções de uso do espaço público urbano, dos discursos de poder e das identidades que nele se manifestam. Além disso, exemplificam como a tradicional ideia de associar o poético

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exclusivamente à palavra tem vindo a ser transformada por uma sociedade cada vez mais dependente de técnicas e tecnologias visuais e audiovisuais.

A natureza crítica das acções de Banksy e ± coloca-nos, também, a questão da diferença ontológica em geral e a da diferença hermenêutica em especial. A dissidência e subversão que se manifestam através das suas intervenções questionam as gramáticas discursivas e visuais colectivamente fabricadas (cf. Martine Joly 2001: 38) que nos governam e condicionam. No espaço público pós-moderno, caracterizado pela crítica da história e o questionamento dos valores fundacionais, o sujeito tem vindo a perder a posição de centralidade que ocupava, ao terem desaparecido as noções de lógica universal, identidade uniforme, metanarrativas, etc. Também se debilitaram as condições deste espaço público como lugar 2

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privilegiado de uma emancipação universal ou de mudança sócio-política, sempre ameaçados por uma relativização que pode surgir tanto desde a reflexão crítica da margem como também desde os discursos institucionalizados do poder político-económico. [DIA 4] Porém, muitos críticos consideram que se mantém intacta a idoneidade deste espaço público para a subversão e a tradução cultural, a sua disponibilidade como terceiro espaço do hibridismo e da transgressão, no qual se articula uma diferença cultural e onde o sujeito pode retomar o seu lugar como agente de uma mudança sócio-política (cf. Bhabbha 1994). Na minha perspectiva, em parte adaptada de Walter Benjamin, Homi K. Bhabbha e Boris Buden, a ideia da tradução (cultural, inter-semiótica, etc.) adquire uma certa utilidade para descrever as formas poéticas mestiças da actualidade, como seriam as

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do graffiti e das variantes performáticas.i Assim, no espaço público actual existe uma grande variedade de expressões poéticas de

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carácter intervencionista, transmedial, intermaterial, etc. e que não se limitam à expressão oral ou escrita. Há diferentes níveis não só de verbivocovisualidade, como diziam os

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concretistas brasileiros, mas também entram em jogo, cada vez mais, o contexto digital e da reproduzibilidade audiovisual, entre outros. A sua qualidade poética já não se

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caracteriza, na grande maioria dos casos por valores e elementos de origem romântica mas por uma variedade de características que podemos definir como não-líricas,

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colocando-os fora do sistema de géneros tradicional. Com o conceito do não-lírico tratase de circunscrever a interacção de discursos formais, estéticos, mediáticos, teóricos, ideológicos, etc. que originam diferentes processos de desestabilização, subversão e

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desconstrução. (cf. Baltrusch y Lourido, 2012: 10-14 e Casas, 2015). Banksy

[DIA 5] A obra de Banksy, que começou a sua actividade a princípios dos anos 90 em Bristol, é já conhecida. A sua crítica do consumo, da sociedade e do sistema do mercado de arte tornou-se uma referência, ainda que ele mesmo também se esteja a servir das possibilidades que ofrecem o próprio sistema e o mercado de arte. Neste sentido, a sua actividade pode ser comparada com (e diferenciada da) de um Damian Hirst, por exemplo [DIA 6], que tem vindo a exemplificar como o simbólico e o espectatular e sensacionalista acabam por ser indiferenciáveis numa sociedade de consumo (cf. Baudrillard 1978). Ao contrário de Hirst, Banksy 3

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destaca sempre a relação ambígua entre arte e produto, o carácter efémero e não o objecto comercial e supostamente eterno. [DIA 7] Os seus motivos privilegiam a ideia documentada numa realidade, muitas vezes política, que lhe pretende conferir autenticidade através de uma impressão chocante mas sempre controlada. Estas caracterizações são facilmente transponíveis ao caso de ± ou Miguel Januário.ii MaisMenos / ± [DIA 8] Miguel Januário também entende a street art como uma actividade política. Tirou um curso de Design mas desde 2005 desenvolve um projecto artístico de intervenção denominado ‘maismenos’, ao qual se foi dedicando quase em exclusivo, tornando-o uma

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referência na área. Em paralelo levou as suas intervenções à internet que define como “rua virtual”, na qual pretende prolongar a street art com outros meios. Autodefine a sua actividade como um projecto de intervenção que reflexiona sobre a organização política,

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social e económica da nossa sociedade ocidental através de uma expressão programática simplificada de dicotomias como mais/menos, positivo/negativo, branco/preto, etc. [DIA

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9] Criou diferentes neologismos para as suas intervenções como quotactions, objections o streetments. As suas performances em Guimarães 2012, como o esfaqueamento da

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estátua de Afonso Henriques ou o enterro simbólico de Portugal, as suas transfigurações das letras de “Grândola, vila morena” ou do hino nacional de Portugal, suscitaram

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polémicas. Mas como projectos poético-políticos com uma estratégia de actuação no espaço público, tanto ± como Banksy já passaram, hoje em dia, ao circuito das galerias e do mercado de arte, tanto em termos subversivos como para obter financiamento para as

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suas actividades. [DIA 10]

Ambos casos exemplificam a tensão que existe na arte moderna entre o objecto de consumo e o original com aspiração ao atemporal. Qualquer que seja a crítica sistémica, à publicidade ou ao poder que Realizam Banksy ou ±, esta também acaba por ser, em última instância, uma certa publicidade para as marcas que criaram (um facto que o próprio Banksy também tem vindo a aproveitar ironicamente como um dos temas da sua actividade). Embora ambos o façam de forma crítico-irónica, também é evidente que procuram subsistir no sistema capitalista, o que os obriga a transformar a sua arte, ainda que seja só em certa medida, em produto de consumo. A questão da credibilidade que se deriva desta 4

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circunstância sempre dependerá do grau de diferenciação que queiramos fazer entre as pessoas e os artistas. Contudo, a resposta dificilmente chegará a ser conclusiva. Por muito que uma obra de arte pondere criticamente a cultura de consumo e os sistemas de poder institucionalizados, sempre acabará por se confundir com esta mesma cultura, acabará por ser instrumentalizada por ela. Em relação à presença paralela das duas obras na internet, é preciso ter em conta que esta substitui uma experiência de conhecê-las na situação de origem, torna-as reproduzíveis com a consequente perda da sua aura, embora ganhem através deste processo tradutivo também uma pervivência (Benjamin) na História. Quando o graffiti e a performance saem do contexto ilegal e subversivo que eram a rua e o muro e entra no contexto legal e oficial

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do museu, da galeria ou do site na internet, perdem a sua condição inicial de street art e transformam-se em arte convencional. Também o crescente reconhecimento por parte de um público pode chegar a traduzir o fenómeno poético-artístico em espectáculo, um

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espectáculo que é também, em última instância, a negação da vida e do real (cf. Debord 1997: 16).

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Porém, em ambos casos, tanto a street art como a gallery art dela derivada, perturbam as

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relações dos signos e do poder estabelecidas: tanto no âmbito urbano dominado pelas grandes empresas e os seus espaços publicitários como na galeria e no museu, [DIA 11]

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onde o mercado de arte emula a cultura do consumo institucionalizado, cuja legitimidade é questionada (“So much power of an image comes from where and when you see it”, diz Banksy). É um exemplo da diferença ontológica, na qual incide este tipo de perspectiva:

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Sempre pressupomos a existência de um contexto significativo e só neste contexto a ideia de um todo adquire sentido. Segundo Heidegger, o todo não só se define pela suma das suas partes, mas o ser do ente é precisamente o seu contexto situativo-significativo. [DIA 12] Onde o espaço publico se tranformou num espaço de trânsito comercial, Banksy e ± tentam reconquistá-lo para o sujeito transeunte, ao transformá-lo, de forma às vezes ilegal, com um gesto anticonsumista e autodeterminado. Embora algumas atitudes dos dois em relação à street art sejam complementarias ou, até, intercambiáveis,iii há também outras que não o são. Um exemplo seria o anonimato de Banksy que desencadeou o crescente interesse comercial na sua obra. Em consequência, a tentativa da crítica e dos meios de comunicação social de lhe construir uma identidade começou a formar parte do 5

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próprio processo de criação artístico (um exemplo de como a cultura é também um modo performativo da memória, cf. Rui Torres). O primeiro exemplo que gostava de observar com mais atenção, neste caso de ±, titula-se Exemplo ±: “Ego sum panis vivus” [DIA 13] No dia 23 de Março de 2011, no qual José Sócrates apresentou a sua demissão como primeiro-ministro, devido à rejeição do Programa de Estabilidade e Crescimento 2011-2014 (PEC), ± encenou uma performance nas escadas do Palácio de São Bento, vestido de jogador de golfe. Arremessou com um taco um pãozinho para dentro da Assembleia da República. Os guardas de honra primeiro não se aperceberam do que

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estava a acontecer e só passado algum tempo interromperam as suas poses para chamar um segurança. O filme de menos de 4 minutos que se produziu a partir desta performance é acompanhado pela música do moteto homónimo do compositor renascentista Giovanni

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Pierluigi Palestrina.

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A etimologia de moteto resulta interessante neste contexto, uma vez que pode vir ou do latim motus/movimento ou do francês mot/palavra. Neste moteto em concreto, cada secção contém um motivo original e uma frase textual, de maneira que a forma se revela

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totalmente determinada pelo texto, que é retirado do Evangelho de João (6:51 e

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seguintes): “Eu sou o pão vivo que desceu do céu; / se alguém comer deste pão, viverá para sempre; / e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne”. Comer e ser comido: a antropofagia metafórica da religião traduz-se antropofagicamente numa

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performance, na qual tudo se inverte: Não é o deus/governo que desce do céu e que se sacrifica para o bem do mundo/povo, mas é um representante do mundo/povo que sobe a ele e lhe arremessa o que o PEC/governo não lhe é capaz de fornecer. O vestuário e o tratamento aparentemente despectivo que recebe o tão simbólico pãozinho, entre outros aspectos, contrastam com o lirismo da música e da letra. Em comparação com as expressões poéticas tradicionais, também se produz aqui uma certa mudança na subjectivação, tendo em conta que a arte se concebe aqui como acontecimiento dentro do espaço público, o que requer uma disposição para a recepção diferente da habitual (cf. Casas, 2015: 7). Exemplo Banksy 6

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Outro exemplo de street art em termos de expressão não-lírica é este graffiti de Banksy, [DIA 14]: uma passadeira desce de uma parede e atravessa um carro abandonado. Passou primeiro a fotografia, depois a objecto de exposição (em 2002 em Los Angeles) e finalmente acabou dentro de um livro impresso, no qual a imagem agora dialoga com um comentário do artista. O graffiti da passadeira funciona sincrónica e diacronicamente como utopia e heterotopia (cf. Foucault, 1984) da ordem e do espaço públicos. Mas também atravessa e subverte outra utopia, a da mobilidade quase ilimitada e da sua heterotopia, o automóvel. O carro representa uma tecnologia e ideologia que têm vindo a condicionar a liberdade de movimento no espaço público e que, pela sua vez, acaba por ser questionada porque o próprio objecto está quebrado e abandonado.

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Comparação

[DIA 15] Na performance, a utopia da democracia e a sua heterotopia, o parlamento,

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também acabam por ser postas em causa e tanto no graffiti como na performance filmada presenciamos acontecimentos artísticos que são intervenções poéticas na ordem habitual

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das coisas nos espaços material e significativo. Ambos evocam intencionalmente questões ontológicas fundamentais, uma vez que os contextos do público e do urbano (da

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rua, da mobilidade ‘livre’, do parlamento ‘invadido’, etc.) remetem, nas palavras de Heidegger, a uma “proximidade da obra” que nos pode levar “bruscamente a um lugar

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distinto daquele que normalmente ocupamos”.iv

Esta proximidade e brusquidão definem os acontecimentos das acções poéticas e das suas sucessivas fases de documentação. Transformam o lugar do conhecido, fazem que o

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sujeito autor retroceda em relação à subjetividade do observador: no caso do graffiti vai das fases do transeunte inicial fotografado, até ao público observador da exposição (2002) ou do da fotografia impressa; enquanto na performance também tivemos este público involuntário da situação inicial que foi filmado, seguido pelos que visualizaram o vídeo ou as fotografias que foram extraídas para a Net. Mas também se estabelece, nos dois casos, uma relação política entre subjectivação, poesia, corpo e lugar (cf. Casas, 2015: 11-12). Em termos ontológicos, a intervenção poética começa como ente (Seiendes) que rapidamente desencadeia uma série de questões críticas que transformam o dado. A relação do acontecimento original com as reproduções derivadas (fotografía, vídeo, 7

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exposição, livro ou internet) aproxima-se daquela que caracteriza a tradução literária: por um lado conserva-se uma parte do original, pelo outro, este acaba por ser transfigurado. Para a descrição e análise destas expressões poéticas não-líricas, a concepção da ontologia como interpretação espácio-temporal (a partir de Heidegger, no sentido de energeia e acontecimento), poderia ter ainda outra relevância, uma vez que se trata de uma expressão poética não só no e para o espaço público mas também no e para o espaço político. Naturalmente, estas formas poéticas não só interpretam circunstâncias ontológicas, como também estão a traduzir discursos e valores ideológicos: apresentam a sua tradução do discurso como acontecimento. No caso do graffiti de Banksy, o acontecimento tem várias capas ou contextos espácio-temporais, materiais e epistemológicos: o momento/contexto

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no qual se realizou o graffiti; o dos primeiros transeuntes que se aperceberam dele; o do momento da fotografia; o da sua posterior exposição dirigida a outro tipo de ‘transeuntes’ (o público observador); o do livro e do seu público leitor. São como instantâneas,

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diferentes momentos de pôr em discurso a mesma ideia mas também momentos de trânsito (em todos os sentidos do conceito) e de tradução a acontecerem em espaços

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públicos diferentes. Porém, as características poéticas têm um aspecto em comum: a procura de uma outra ‘verdade’, quer dizer, a ideia e reflexão crítica de uma outra suposta

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‘verdade’, também em termos irónicos, a partir de uma acção poética que, nas palavras de Heidegger “acontece de um único modo: estabelecendo-se nesse combate e espaço de

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jogo que se abre graças a [esta mesma verdade]” (1995: 44) .

Ambos exemplos não são precisamente os mais espectaculares no contexto da street art,

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porém, o meu interesse também é, como já referi, mais teórico e procura elementos comuns muito concretos. Por exemplo, estes transeuntes acidentais que aparecem nos dois casos. Localizam-se, de uma forma muito plástica e material num terceiro espaço: entre a tradução de uma suposta realidade, com a sua ânsia de sistematização (a passadeira,

que

é

deslocalizada,

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parlamento,

que

é

desvirtuado)

e

a

recepção/interpretação que é requerida à pessoa transeunte-interpretadora (e depois também aos diferentes públicos observadores/leitores da gallery art derivada). A função de ordem (passadeira, parlamento) mantém-se em parte dentro dos sistemas considerados habituais e reais (gravidade, movimento no caso da passadeira; representatividade, formalidade no da performance), mas em grande parte esta função já é outra. Assim, esta noção de tradução partilha com a poesia o facto de ambas 8

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representarem uma crítica e resistência a uma conceitualização essencialista da linguagem, dos discursos e das imagens como também, em última instância, à demanda de objetividade na filosofia tradicional. Até poderíamos dizer que nestes exemplos, pelo simples facto de serem declarações de intenções poéticas, também existe a procura de poeticidade, ou seja de um valor novo que ainda assim permanecerá sempre inacessível, intraduzível, inexponível. Pelo seu próprio carácter não-lírico, a declaração de intenções poéticas acontece tendo já em mente que no seu estrato mais profundo “todo sentido e toda a intenção” desvanecem, que sempre primará “o exterior, a desordem, o inestável”. Mas é precisamente com esta dupla vinculação que se abre um terceiro espaço que garante à acção tradutiva da intervenção

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artística a sua liberdade poética, a possibilidade de criar um outro discurso. De certa forma, também estaria aqui a ideia da “poesia libertada do sujeito que o sujeita” (cf. Esther Xargay/Margalida Pons).

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Ao se tratar de arte efémera, exemplifica-se também a falácia da ideia de ‘original’. Cada

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trânsito-tradução torna a situação mais complexa, como o ilustra, por exemplo, a sucessão de reproduções da intervenção de Banksy (graffiti, fotografia, exposição, publicação em

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livro, digitalização e circulação na Net). Cada passo confere uma dimensão material distinta à linguagem de partida, uma mudança que não se encontra dentro de nenhuma

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destas linguagens mas no espaço entre elas. Assim, como em toda tradução, o “verdadeiro trânsito é aquele que não tem volta atrás, […] porque cada vez que se avança, algo mudou” (Leyte, 2013: 229). Seja em relação à linguagem artística, ao significado ou aos

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contextos sincrónico e diacrónico. Mas também permanece sempre algo que é irrepetível, o fenómeno poético no seu momento sincrónico, aquilo que origina, designa e delimita o trânsito (cf. ibid.), sobretudo cuando este acontece num espaço público, seja este material ou virtual (cf. Casas, 2015: 12). Conclusão Contudo, o fenómeno poético não deve ser confundido com o seu significado. Há um gesto ou acto de designação do fenómeno que se considera poético, portador de poeticidade e que forma parte do processo de tradução entre o que se considera coisa, o real, o fenómeno poético por um lado e a norma institucionalizada, pelo outro. Ampliando o conhecido dictum de Walter Benjamin, a qualquer língua, a qualquer fenómeno a 9

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traduzibilidade já é inerente, tal como a intraduzibilidade ao fenómeno poético concreto. O poético querará aparecer, mas nunca o poderá fazer completamente (cf. Leyte, 2013: 229); tal como uma tradução só se aproxima do original, sem nunca atingir uma correspondência total com este.v Assim, o poético fica condicionado pela recepção, enquanto a poeticidade se refere tanto ao âmbito discursivo e normativizador do poético como também àquilo que este exclui, ao que aparece como intraduzível ou inexplorável no seu respectivo presente histórico. [DIA 16] Segundo W. Benjamin, as obras de arte são testemunhos da filosofia da história mas também são expressões das tendências metafísicas, políticas e económicas da sua época (1991: VI, 117 y 219). Podíamos acrescentar que nos nossos exemplos de acção

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poética, o acontecimento poético surge como uma fenda ou vibração que altera, embora seja só momentaneamente, a constelação espácio-temporal dos discursos de poder institucionalizados. As suas traduções do normativizado e a sua oposição às estruturas do

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poder e do conhecimento revelam este desejo de resignificar o real. O seu lugar não está completamente dentro nem totalmente fora do sistema, é um terceiro espaço

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transfigurador. Graffiti e performances como aquelas aqui analisadas encenam diferenças culturais e colocam a questão (ontológica e política) da representação através de uma

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linguagem concreta, cujos aspectos mais significativos poderiam ser resumidos nos seguintes processos de trânsito-tradução:

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1. Concepção de um projecto poético-político transmedial.

2. Diferentes processos artísticos de transições inter-mediais, intermateriais e

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intersubjectivas.

3. Criação intencional de um conflito entre a intervenção poética e as diferentes concepções do espaço público.

4. Uma tentativa de transferência do acontecimento poético-político para o âmbito comercial (parcialmente com uma intenção subversiva). [DIA 17] Muito obrigado.

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Burghard Baltrusch: “Fendas poéticas no espaço público” | Colóquio “Ofício Múltiplo” | Universidade do Porto | 2015

_____ ([1968] 1992b), Conocimiento e interés, trad. de Manuel Jiménez, José F. Ivars y Luis Martín Santos, rev. por José Vidal Beneyto, Madrid, Taurus. Heidegger, Martin ([1935/36] 1995), “El origen de la obra de arte”, in Caminos de bosque, trad. de Helena Cortés y Arturo Leyte, Madrid, Alianza, pp. 11-62. _____ ([1935/36] 1980), “Der Ursprung des Kunstwerks”, in Holzwege, Frankfurt/Main, Klostermann, pp. 1-72. Lehto, Leevi (2009), “In the beginning was translation“, in Marjorie Perloff y Craig Dworkin (eds.), The Sound of Poetry / The Poetry of Sound, Chicago, Chicago University Press, pp. 49-52. Leyte, Arturo (2013), “¿Hermenéutica del texto o hermenéutica de la cosa?”, in El paso imposible, Madrid, Plaza y Valdés, pp. 221-233. Luhmann, Niklas (1971), “Öffentliche Meinung”, in Politische Planung, Opladen, Westdeutscher Verlag, pp. 9-34. ±MaisMenos± [i.e. Miguel Januário], [consultado el 26/05/2015]. Neorrabioso, Batania [i.e. Alberto Basterretxea Martínez] (2012), Neorrabioso. Poemas y pintadas. Madrid, Ediciones La Baragaña. _____ (2014), La poesía ha vuelto y yo no tengo la culpa. Antología de caballos, s.l., [autoedición]. Seethaler, Helmut (1995), Das Pflückbuch Nr. 1, Viena, Verlag Der Apfel. Spivak, Gayatri (1987), In Other Worlds: Essays in Cultural Politics, Nueva York, Methuen.

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“Cultural translation desacralizes the transparent assumptions of cultural supremacy, and in that very act, demands a contextual specificity, a historical differentiation within minority positions.” (Bhabha, 1994: 228) ii Uma das diferenças reside maioritariamente no facto de a língua inglesa, o seu espaço e a atenção dos meios de comunicação anglófonos oferecerem mais facilidades de uma recepção universal. iii “Essa é a primeira vez que o mundo essencialmente burguês da arte está ao alcance do povo. Temos de fazer valer a oportunidade” (in Ellsworth-Jones 2013: 4) “A Arte que apreciamos é feita por uma selecta minoria. Um pequeno grupo cria, promove, compra e decide o sucesso da Arte. […] Quando você vai a uma galeria de arte, você é um simples turista na cabine de troféus de alguns milionários. (Banksy 2005: 170) iv (Der Ursprung des Kunstwerks 1935, 1995: 25) v Porém, o fenómeno (‘original’, ‘poético’) e a sua tradução costumam partilhar formas de linguagem (verbal, visual, etc.), o qual já representa em si mesmo uma forma de trânsito. i

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Fendas poéticas no espaço público – uma aproximação a partir de

Banksy e

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(i.e. Miguel Januário)

http://uvigo.academia.edu/BurghardBaltrusch

“The only possible way of a communication between [postmodern anti-essentialist theory and that of a parallel, old essentialist political practice] is a kind of translation. At that point I still see a need for the old political agency of the public space as a site of translation between […] an actual act of cultural subversion and old-fashioned power politics.” Boris Buden: “Public space as translation process”, 2003 http://eipcp.net/transversal/1203/buden/en/print

Miguel Januário (+/-) http://www.maismenos.net/copywrite.php http://www.maismenos.net/streetments/quotactions.php

“So much power of an image comes from where and when you see it” (Banksy)

”Quando você vai a uma galeria de arte, você é um simples turista na colecção de troféus de alguns milionários.” (Banksy 2005: 170)

”Essa é a primeira vez que o mundo essencialmente burguês da arte está ao alcance do povo. Temos de fazer valer a oportunidade.” (Banksy in Ellsworth-Jones 2013: 4)

± EGO SUM PANIS VIVUS ±

In: Banksy, Existencilism (2002))

Ego sum panis vivus, qui de cælo descendi. Si quis manducaverit ex hoc pane, vivet in æternum

±A GLOBALIENAÇÃO DO CAPITACLISMO±

http://uvigo.academia.edu/BurghardBaltrusch

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