Fenomenologia e Mímesis (rascunho inacabado)

June 9, 2017 | Autor: Fernando Garcia | Categoria: Narrative, Phenomenology, Hermeneutics and Narrative, Fenomenología, Fenomenologia
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Fenomenologia e Mímesis: apontamentos sobre a relação entre mundo-da-vida e mundo-dotexto

Fernando Gomes Garcia "... like heroes of a novel, says Roquentin: 'they washed themselves of the sin of existing'. They created artificial beginning and end, a duration minute but human in wich all, between those points, is ordered, and so in a fiction challenges and negates the pure being of the world." (KERMODE 2000 [1965], pp.133-134) "It is not the case, as Mink seems to suggest, that we first live and act and then afterward, seated around the fire as it were, tell about what we have done, thereby creating something entirely new thanks to a new perspective." (CARR 1991, p.61)

I As relações entre tempo e narrativa; entre a experiência vivida e a sua posterior configuração em texto – eis o tópico sobre o qual desenvolverei algumas idéias. Algumas idéias, apenas. Complexo como é, certamente este tema poderia ser motivo de um trabalho inteiro de mestrado ou doutorado – como espero que, de fato, ocorra -, exigindo, portanto, para ser tratado nos breves limite que um artigo impõe, um prudente redimensionamento dos problemas a serem tratados, de modo que se possa desenvolvê-los com prudente brevidade, sem que isso implique em análises simplórias e insuficientes. Da mesma forma como Ricoeur desenvolveu o mesmo problema num curto artigo de onze páginas, preludiando uma fantástica obra de grandiosos três volumes, espero seguir o exemplo na feitura deste trabalho. Procedendo desta forma, na melhor das hipóteses, corre-se o risco de ser um tanto esquemático, sendo as idéias desenvolvidas aqui comparável a um projeto ou programa de pesquisas a serem desenvolvidas futuramente. De qualquer forma assumo este risco, posto que se este programa for construído com método, demonstrando todas as dificuldades que circundam o problema eleito, e ainda apontando algumas possíveis resoluções, já será um feito de suficiente mérito. Mais especificamente, quero tratar quais as implicações que as experiências reais vividas pelos homens e sociedades são determinantes, ou não, na escrita que o historiador faz do passado. Recorro, desta maneira, à clássica separação entre os discursos ficcionais e historiográficos, tomando como pressuposto que o segundo, a despeito de configurar o tempo da mesma maneira como o primeiro – ou seja, de fornecer um sentido ao tempo vivido, arranjando início, meio e fim num todo narrativo e sintetizando identidades -, é

fundamentalmente diferente das ficções, uma vez que tem como pressuposto o passado tal como foi vivido (ou, para usar a consagrada e repleta de mal-entendidos expressão de Ranke, wie es eingentlich gewesen ist). Assumindo este pressuposto, diferenciando as narrativas ficcionais das históricas, o problema ganha uma feição mais concreta. As narrativas ficcionais, da mesma maneira que as históricas, referem-se ao mundo-da-vida (lebenswelt), sendo, a despeito da liberdade criativa em relação a facticidade dos fatos narrados,1 mimética, tal como a História.2 Especificamente, a mímesis operada pela historiografia refere-se a uma configuração específica do tempo, que é o passado, e sua atividade serve para forjar uma identidade temporal para os homens. Fica assim claro, que o empreendimento da História e da Ficção são mimética e fundamentalmente distintas, apesar de ambas emergirem do mesmo lugar – o mundo-da-vida – e valerem-se das mesmas estratégias para configurar os elementos da narrativa. Essa estratégia é o que podemos chamar de elaboração do enredo, onde os dados da experiência são entrelaçados entre início-meio-fim, ou mais especificamente, entre passado-presente-futuro, e cada acontecimento, por mais ínfimo que seja, faz parte da História, ou seja, não é aleatório nem acidental. Nas palavras de Ricoeur, o que a forma narrativa realiza é a síntese do heterogêneo. Nas palavras de Kermode, é a tomada de controle do tempo pelo homem, com algum exagero, sua superação, onde não há inícios que não sejam redimidos no fim, onde todas as expectativas são concretizadas no final, e a sucessão infinita do tempo cronológico é substituída por um tempo kairológico, capaz de demonstrar que todos os acontecimentos possuem uma relação com outros, esteja ele à frente ou atrás, temporalmente. O uso do mesmo recurso narrativo pela História e pela Ficção para fornecer sentido para operações miméticas essencialmente distintas coloca um problema – o da possibilidade da representação histórica. Se nossas experiências ativas e passivas não possuem uma forma em si mesmas, sendo esta uma doação estética feita pelo historiador que, a posteriori, a configura em uma narrativa, a historiografia não estaria condenada ao fracasso, a uma injustiça com o passado, contando, ao invés, aquilo que não aconteceu? Mink formula o problema da narrativa em História da seguinte forma: "as historical it claims to represent, through its forms, part of the real complexity of the past, but as narrative it is a product of imaginative constrution wich cannot defend its claim to truth by any accepted procedure of argument or authentication" 1

Utilizo o termo facticidade em preferência à realidade, uma vez que acredito que as ficções possuem suas próprias regras, engendrando, à medida em que segue o curso de sua narrativa, realidades específicas, distintas, porém, das que tomam lugar na história. 2 É proveitoso esclarecer em nota a grafia da palavra História, com maiúscula, e história, com minúscula. A primeira refere-se tanto à disciplina científica e acadêmica quanto à forma escrita que é o fim das pesquisas históricas. Já em minúscula, história se refere ao mundo-da-vida, onde as ações e paixões humanas ocorrem.

(CARR 1991, p.10). Ainda formula, paradigmaticamente: "...stories are not lived but told. Life has no beginnings, middle and ends... Narrative qualities are transferred from art to life" (CARR 1991, p.10). Segundo Carr, Hayden White tem quase a mesma perspectiva a respeito da vida e da História, com apenas uma diferença; enquanto Mink credita a forma configurada do tempo à criatividade do autor, White a poria na conta da cultura. Uma diferença importante; não seria o gênio criativo do artista que imporia forma ao informe, mas sim uma determinação cultural, ou seja, definida tanto pelo passado quanto pelo presente, sem necessariamente o historiador estar consciente dessas forças que agem sobre ele, que inclusive pode ter a impressão de escrever unicamente com base nas fontes que analisou, por um esforço quase demiúrgico. No entanto isto são consequências daquilo que White argumenta, sem que a influência do passado e do presente na escrita esteja formulado explicitamente em seu trabalho. Talvez, onde isso apareça com mais clareza, são os momentos onde ele fala, para além dos modos de explicações presentes na elaboração do enredo, também dos diferentes tipos ideológicos que conformam uma narrativa. Mas não vou me alongar sobre isso, ao menos por enquanto. O mais importante a se reter agora é a conclusão que o próprio Carr chega em defesa de sua teoria – que ainda terei a oportunidade de expôr com mais clareza e desenvolver minhas críticas relativas a diferenças de concepções e, inclusive, algumas falhas de seu projeto, que também serão indicadas ao longo deste trabalho. No intuito de desenhar uma proximidade íntima entre a experiência e narrativa, Carr propõe que o historiador, ao falar em nome de um Nós coletivo, está sujeito a determinações que o seu lugar de fala impõe: Needless to say it is abstract to portray such a historian, as some epistemological approaches, as if he or she were to reconstruct the past ex nihilo by applying rule of evidence to a heap of documents or ruins. Such a historian always functions in a context in wich na account already exists before he or she begins. I refer not merely to the account generally accpeted by academic establishments in wich the historian is trained. It is true enough that such na establishment usually exists and dominates a discipline such as history at any given time. I am referring rather to the generalized popular account wich exists outside the discipline and wich provides the social context in wich historians' dicipline is found. This account is pre-thematic in the sense that it is prior to the historians' thematization of it (CARR 1991, pp.169-170)

Disso podemos extrair o óbvio, mas que, não obstante, é ignorado até mesmo por historiadores experientes, ainda mais naqueles que não dedicam suficiente atenção à teoria que rege o seu ofício – de que o passado existe independentemente do trabalho do historiador. Que não somos nós, como nosso método de analisar os documentos, e depois, com nossa

pena, que decidimos o que existiu e o que não existiu, ao escrever ou omitir determinados fatos. O passado existe antes da "operação historiográfica" (para usar a terminologia de Michel de Certeau); antes da pesquisa e da escrita da História. Antes da elaboração científica, não só o historiador, mas todos os homens estão submetidos à força do passado, que ao mesmo tempo permite sua tematização e determina como ele será escrito. Novamente, seguindo David Carr, isso não é uma afirmação que poderia ser feita por um determinista histórico, "who calls the individual a "product" of history or inevitable result of historical forces. Instead it is a phenomenological assertion about what the individual is "for himself". (CARR 1991, p.115) . O que também contraria uma sensação construtivista que domina nosso campo atualmente, levada a cabo muito pelas pessoas que não entendem de teoria, mas que se iludem do contrário; uma tendência que constantemente afirma que não existe verdade em História e que o passado e tradição são coisas construídas. Por certo, por mais que quem defenda esses pontos acreditem piamente no que digam, no desenvolver de suas pesquisas, nunca aplicam e nem poderiam aplicar suas convicções infantis. Felizmente, o que muito se observa é que os historiadores ditos "empíricos" apenas esboçam alguns conceitos e premissas "teóricas" no início de seus trabalhos para dar a imagem de profundidade, que não são levados a sérios e tão logo são abandonados. Creio que as considerações acima permitem uma nova reelaboração do problema, desta feita com mais clareza e especificidade. Analisar as concordâncias e conflitos existentes entre tempo e narrativa, em certo sentido, significa juntar uma fenomenologia do tempo e da ação com uma filosofia analítica da linguagem. Apesar de ser uma antiga preocupação na História de nosso ofício, a questão da narrativa como surge como problema em dois momentos específicos: um deles é com o surgimento da Escola dos Annales, cujos males são tão mais perigosos quanto maior é o prestígio que possuem entre nós, historiadores de tradição francófila, a qual negava a narrativa (como se isso fosse possível!); e, mais seriamente, com o surgimento da filosofia analítica da história. A ingerência da Filosofia no campo da História costuma não ser muito bem vista pelos historiadores, em especial a filosofia especulativa de Hegel, acusada de apriorística. E quando já estávamos tranquilos em relação aos filósofo, surge uma nova forma de analisar a cientificidade da disciplina histórica em moldes da filosofia da linguagem. Nomes como Artur Danto, Willian Dray, Hempel, Nagel são de importância para essa nova relação entre História e Filosofia. Os estruturalistas franceses e eslavos também possuem produções relevantes para se pensar a narrativa da História, como Barthes, Jackobson, Todorov e outros. A relação entre narrativa e experiência ainda poderia ser estudada pelas proximidades que a filosofia do segundo Wittgenstein e de

Heidegger possuem. Mas não o caminho da análise que empreendo aqui não é este. Creio que a tematização da relação entre tempo e narrativa pode ser feito de duas formas, à exceção de uma História Intelectual que analise as influências dos autores citados acima entre si e suas implicações no campo da Teoria da História; uma delas seria perseguir o aspecto pré-temático da História, isto é, compreender a disciplina histórica como apenas um modo da consciência histórica que se densenvolve no mundo-da-vida. Só fazemos História porque agimos historicamente. E o que possibilita a escrita da História é o papel da tradição, como uma préhistória; é a presença do passado em todos nós. Mas não será esta a abordagem que seguirei.3 A outra forma possível seria seguir o caminho de White e Kermode, que observam como a narrativa resolve uma ansiedade do homem em relação ao tempo, controlando-o e humanizando-o ao narrá-lo – que é também a tese de Ricoeur -, ao configurar início, meio e fim num todo com sentido e atendendo às expectativas do homem. Para usar as palavras de Dilthey, como a narração exerce uma Zusammehang des Lebens. Ou seja, como a História, enquanto narrativa, dá sentido à experiência humana do passado ao forjar uma identidade e integridade ao homem e à sociedade.

II Tentarei, em seguida, senão responder, ao menos indicar um caminho que possa dar conta das questões: a História, ao elaborar o passado em narrativa, está condenado a representá-lo de maneira distorcida? Há uma continuidade ou ruptura entre as experiências, o mundo-da-vida, e a narração histórica? Acima foi dito que o passado determina como a História deve ser escrita, mas também foi descartado que este será, essencialmente, o problema deste trabalho. Ainda assim, isto será um problema, na medida em que se busca 3

Atualmente estou trabalhando em um artigo que pretende desenvolver estes aspectos. Levando em consideração as três mímesis de Ricoeur, o conceito de tradição em Rüsen, de historicidade em Heidegger e Husserl, e de preconceito de Gadamer, pretendo analisar como o passado determina a escrita presente da História, em um combate ao sentimento ridiculamente construtivista que ronda a práxis do historiador. O argumento é que a escrita da História é um desvelamento (alétheia) da tradição, respondendo também às críticas de Habermas à Gadamer, de que a hermenêutica é essencialmente conservadora. O papel da historiografia seria aumentar a autoridade do passado em relação a nós, tornando-o claro e conhecido, permitindo, dessa forma, que a experiência presente acresça-lhe em valor. A tradição e o valor do passado seriam aumentado não por sua continuidade cega; as próprias tentativas de alterar seu próprio destino levaria o homem a aumentar esta tradição, ao incluir nela aspectos novos. O passado não pode ser rompido e deixado de lado, em tudo que fazemos lá está ele, com sua vigência, inclusive quando o contrariamos. Ao desvelar essa tradição, o homem poderia buscar novos caminhos. Assim a escrita da História orientaria a ação, permitindo que o futuro sedimente o passado da mesma maneira como a aplicação de uma lei altera a jurisprudência e o emprego de uma palavra em certo contexto altera e amplia seu significado denotativo. A tradição deveria acomodar os novos rumos que o homem toma. Assim como a tradução de um idioma para o outro enriquece os limites do idioma para o qual se traduz, o passado traduzido para o presente, hospitalizado por ele, amplia-se igualmente. Também é interesse desse trabalho contrapor a situação hermenêutica do presente como empecilho para se entender o passado e o preconceito como aquilo que possibilita a compreensão deste.

uma resposta entre vida e narrativa. As epígrafes que utilizamos representam duas visões distintas, a de Frank Kermode, crítico literário, e a de David Carr, fenomenólogo. A primeira indica que o mundo real, em oposição o mundo da ficção, é puramente cronológico, com as experiências sucedendo umas às outras, sem que apresentem a conexão existente nos textos, mundo do como se, com sujeitos protagonistas, eventos que estão interligados, e ações que culminam num resultado. No quinto capítulo de The sense of and ending, especialmente, Kermode analisa como o paradigma narrativo atualmente – isto é, em 1966, quando o conjunto de conferências proferidas foram recolhidos neste brilhante e influente livro – vem sendo desafiado. O desafio consiste justamente no constante questionamento da rigidez literária que concorda de maneira por demais ingênuo início, meio e fim, e na busca de incorporar cada vez mais a contingência, o inesperado, a liberdade humana dentro das narrativas. Analisando tanto a filosofia quanto a literatura de Sartre, Kermode conclui que é impossível a ruptura total com o paradigma; do contrário, as histórias não teriam nem início, nem meio e nem fim, não sendo, portando, possível reconhecê-las como histórias. Ao mesmo tempo, conclui também que a História da Literatura é exatamente a constante reelaboração do paradigma, de forma que ele ainda seja capaz de fornecer a concordância que o final é capaz de nos fornecer, sem que, contudo, isto seja obtido ingenuamente. O final e a concordância passam a ser uma conquista, uma vez que não são facilmente obtidos, isso em função do ceticismo dos letrados (clerky). Na base desse ceticismo está a desconfiança em relação aos finais fáceis, que são por demais diferentes da realidade vivida. O leitor letrado precisa da peripeteia¸ uma espécie de ironia que nega as expectativas do leitor, ao ver o fim mais facilmente imaginado ser negado constantemente, postergando o final da história, que deve ser surpreendente. Sem a peripeteia, a ficção degeneraria em mito, que é justamente a ficção sem a consciência de que ela é falsa. A consciência da falsidade da ficção estabelece uma dialética entre ela e a realidade, uma vez que o homem necessita constantemente dominar o tempo e ordená-lo em fases significativas, que apontam para um fim – esta seria a redenção do pecado de viver -, e a constatação de que o mundo não é como as histórias. Não vivemos em ficções concordantes. Em nossa vida o contingente e o inesperado predominam, assim como não há uma ligação direta e necessária entre início, meio e fim. Towards the beginning of his novel The Man Without Qualities, Robert Musil announces that 'no serious attempt will be made to... enter into competition with reality.' And yet it is an element in the situations he cannot ignore. How good it would be, he suggests, if one could find in life the simplicity inherent in narrative order. 'This is the simple order that consistis in being able to say "When that had happened, then this happened." (KERMODE 2000 [1965], p. 126)

A sucessão narrativa de uma história (story) é explicativa; o que acontece depois de alguma coisa, teve esta coisa como causa. Ordem esta, segundo Kermode, que não se pode observar na vida. De acordo com o crítico britânico, a ansiedade pelo fim sempre esteve presente na vida humana, e o desejo de ordenar a experiência, de controlar e humanizar o tempo, é um universal. O paradigma bíblico do apocalipse é um exemplo da nossa expectativa pelo fim. Quando uma previsão fracassa, ao invés de desacredita a profecia, se imagina que o cálculo foi errado, e a certeza do fim próximo aumenta. E para cada cálculo e profecia que se faça, há sempre algo para sustentá-la. Durante o medievo, especialmente levando-se em conta a teoria milenarista joaquinista, dos três impérios, imaginava-se que o tempo vivido era o do meio, entre a encarnação de cristo4 e o Apocalipse. Porém, decaída esta maneira de conceber o tempo, as narrativas não mais correspondiam à forma ritualizada de vivência; a mímesis moderna passou a ser a da farsa e do engano. O sentido do fim permaneceu vivo, mas as maneiras apocalípticas foram mais sofisticadamente elaboradas, como é exemplo a Filosofia da História de Hegel, a redenção da luta de classes em certos Marxismos, ou mesmo a nossa própria forma de conceber a história, separando-a em diferentes idades significativas que tem nossa própria época como padrão, ou ainda as banais comemorações de fim de ano ou de eras, entendidas como fins e recomeços, épocas de renovação. O fim passa a encarnar o "tempo de crise em que vivemos", a sua própria morte, ou a mudança de períodos históricos. A ansiedade permanece. Assim, continuamos criando ficções sobre o tempo para sermos capaz de sobrevivermos; mas se essa ficção quer ser efetiva e saudável, não pode recair no mito, e a fim da concordância do final atender às nossas expectativas, ela não pode ser ingênua; precisa voltar à realidade e incorporar os elementos de contingência na própria organização narrativa. Assim, constantemente as narrativas são organizadas, necessariamente, devido à nossa necessidade da concordância e ordem. O processo mimético, antes, uma imitação da organização temporal entre a Encarnação e o Apocalipse, passa a ser uma falsificação do mundo sem ordenamento. Constantemente colocamos um ponto final, mas ele é apenas provisório. O mundo continua, mesmo com a radicalidade da nossa morte. O que caracteriza o homem é ele estar jogado no meio do tempo, sem acesso ao seu início e a seu fim – tentar unir as pontas, eis a tarefa do poeta e do historiador. O mundo pode ser visto como o aevum, o tempo dos anjos, entre o divino e o humano. É infinito, mas não eterno. As coisas morrem, mas suas essências permanecem vivas. Dada essa continuidade e a impossibilidade de prever

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Propositalmente em minúsculas.

o final, da concordância total, só possível pela divindade, há sempre ponto finais intermediários que atendem a agonia da impossibilidade de prever o futuro e uni-lo ao agora. O trabalho de Kermode é genial e para fazer jus a sua profundidade, seria necessário um trabalho inteiro dedicado a comentar seus seis capítulos, e os breves comentários acima não podem ser mais do que uma retenção do que julgo fundamental para a argumentação seguinte. A teoria de Kermode pode ser associada com a de Mink, citada acima, opondo radicalmente a realidade, o mundo-da-vida, do mundo-do-texto. Um não possui qualquer ordem, enquanto apenas o outro é capaz de dar-lhe forma e sentido. Seria mesmo essa distinção válida? Por mais diferente que a factualidade e a narrativa possam ser, não seria precipitado dizer que a primeira não possui qualquer forma? Então, essa mímesis, não seria uma falsificação do tempo, e na História, do passado?

III A questão acima leva diretamente ao problema de Carr, que requeria uma devida exposição. Ao buscar um passado pré-temático à tarefa do historiador, em verdade, ele não está em busca da tradição que determina o que o historiador pode escrever ou não. Antes, ele quer afirmar que não há uma descontinuidade entre tempo e narrativa, que a experiência e ação humana são configuradas de acordo com os mesmos princípios que a narrativa, e que não precisam ser narrados para tomarem forma. As we have seen, this structure belongs just as surely ti the human events – experiences and actoins – about wich stories are told, and, more important, it belongs to them wheter or not a story, in the sense of a literary text, is told about them at all. What is more, if we are right, this structure belongs essentially to such events; they could not exist without it. Just as the beginning-middle-end structure requires a temporal sequence in order genuinely to be what it is, so the temporal sequence requires this sort of closure; insofar, that is, as it is a human sequence, onde whose phases and elements are the stuff of human experience and actions. (CARR 1991, pp. 51-52)

Essa é uma afirmação repetida diversas vezes por Carr ao longo de sua obra, em diversas maneiras, afirmando que a narrativa não é uma imposição, e sua ordem não é algo alheio à ação, mas sim uma continuidade mais sofisticada da própria configuração temporal que a ação traz em si. Que a narrativa só é possível de ser configurada porque a própria experiência de que ela fala também é configurada; e que os teóricos que alegam a descontinuidade entre tempo e narrativa, e que portanto o passado só pode ser representado pela distorção, estão equivocados. Apesar de Carr não conseguir, como veremos, rebater por completo os teóricos a quem critica, seu esforço por demonstrar como a experiência é

configurada durante seu próprio desenrolar é louvável – e demonstrar o procedimento por que o faz será o próximo passo a ser seguido. Uma maneira de se dividir o livro Time, Narrative, and History, que o próprio autor reconhece (CARR 1991, p.149), é uma primeira tentativa de mostrar como as nossas mais simples experiências no tempo são configuradas em passado-presente-futuro. Um segundo momento é ver se esta configuração permanece quando tomamos ações mais complexas e que são atravessadas por outras ações e experiências, nossas ou dos outros, concorrentes ou paralelas. Sua fenomenologia, seguindo Husserl, Dilthey, Heidegger, e dialogando intensamente com Schapp e McIntyre, posso julgar como bem sucedida. Mas para que se esfoço não se mostrasse vão, mais um passo deveria ser cumprido – mostrar como as experiências, não de indivíduos, mas de grupos, também são configuradas. Afinal, a história é feita de atos coletivos, sociais, e o indivíduo só importa quando está em relação com um contexto mais amplo, que é a sociedade em que vive. Neste último momento de sua obra, a que se dedicam os últimos dois capítulos, um grande esforço é feito para construir uma fenomenologia que considere um sujeito coletivo, para além do sujeito individual, mas que não fosse apenas uma metáfora ou uma simples substituição de uma entidade por outra. Deveria, portanto, deslindar as relações do indivíduo com a coletividade e mostrar com, os assim constituídos sujeitos-coletivos, agem e sofrem – e como sua experiência temporal é configurada. O esforço do primeiro momento evoca uma passagem de Husserl, onde se faz uma analogia entre percepção temporal e espacial. O exemplo tomado é o ouvir de uma melodia. Quem escuta uma nota, não escuta apenas a nota que está tocando, mas já prefigura as notas seguintes e as anteriores, ouvindo, portanto, uma canção inteira, todas as notas a um só tempo. Claro que a expectativa da próxima nota pode ser frustrada, ouvindo-se outra, mas isto não é suficiente para derrubar a idéia de que uma nota não é ouvida isoladamente, mas em conjunto com todas as demais. Apenas disso resulta que a música que se ouve é diferente. Um exemplo semelhante ao de Agostinho de Hipona, que fala do passado-presente, presente-presente e futuro-presente durante a recitação de um salmo. Carr, porém, rejeita a semelhança, afirmando que o triplo presente de Agostinho é uma negação da passagem do tempo – o que, a meu ver, está equivocado; pois é justamente a não-ontologia do tempo, ou seja, a não extensão do presente e a inexistência do passado que já foi e do futuro que ainda não é que aflige o filósofo. Não é o caso comparar as duas noções aqui, nem criticar a leitura de Carr, mas enfatizar como o presente não está isolado de um passado e um futuro, nem que o passado afigura-se apenas como memória e o futuro como projeção. Eles coexistem. A

comparação com uma paisagem é eficaz. Assim como a condição de o "aqui" ser percebido é a sua situação em um todo mais amplo, em uma paisagem que marca o que o cerca, um primeiro plano e um segundo plano, sendo o "aqui" a situação entre o que se destaca e o que compõe a paisagem – também é assim com o tempo. Nossa experiência, seja ela ativa ou passiva, leva em conta um passado e um futuro, não como mera expectativa ou lembrança, mas como uma protenção e uma retenção. O agora, portanto, está sempre composto de um passado que é imediatamente evocado pela experiência e de um futuro, que lhe é dissociável. Isso tanto na melodia que se escuta, ou em uma ação que se executa, por exemplo, um saque num jogo de tênis. Ao invés de se considerar cada movimento do corpo como uma ação simples separada, todas elas são vistas como integrantes de uma mesma ação, um meio para se alcançar um fim. De maneira que tudo que se faz para alcançá-lo é retido, bem como o fim a ser alcançado figura como uma quase-retrospectiva daquilo que ainda não aconteceu, mas espera-se que aconteça. Há uma continuidade psicológica e fisiológica entre o levantar o braço, atirar a bola ao alto e acertá-la no campo adversário. Que naturalmente, também pode ser mostrar equivocada, por exemplo, ao errar a bola, quebrar a raquete ou errar o ponto de qualquer outra maneira. Assim, todo o agir humano tem uma espécie de retenção-protenção, que é o mesmo de uma conexão essencial entre o passado-presente-futuro. Configuração, portanto, não exclusiva da narrativa. "The bedrock of human events, then, is not sequence but configured sequences". (CARR 1991, p.44). E afirma ainda mais categoricamente, assegurando a continuidade entre tempo e narrativa: Human existence and action as we have described them consist not in overcoming time, not in escaping it or arresting its flow, but in shaping and forming it. Human time in our sense is configured time [grifo meu]. The narrative grasp of the story-teller isnt a leap beyond time but a way of being in time. It is no more alien to time than the curving banks are alien to the river, or the potter's hands to the clay. (CARR 1991, p. 89)

Um passo adiante foi dado para demonstrar que a vida de um indivíduo, composta por várias ações, também possuem essa conexão temporal entre passado-presente-futuro, uma estrutura, por assim dizer, de protenção-retenção. São experiências e ações que necessitam mais reflexão, tanto sobre o passado quanto sobre o futuro, desta vez sim em formato de memória e expectativa. Fundamental neste ponto são os conceitos de Besinnung, que significa uma criação de sentido quando ele é perdido; e de Zusammehang des Lebens, que seria criar uma concordância para a vida a partir de todos os eventos passados, no presente, para uma projeção de um futuro. Aqui a estrutura narrativa da ação fica mais evidente, uma vez que as conexões com o antes e com o depois não são imediatas – dependem da reflexão. Quando

uma ação ou experiência é abandonada e depois retomada, como por exemplo a leitura de um livro, a escrita de um trabalho, a retomada de alguma atividade após um repouso, ou mesmo a continuidade de nossa existência após o sono, necessita de uma operação mental que seja capaz de situar o homem no presente da ação. Podemos nos pegar no meio de alguma atividade sem lembrarmos o propósito ou fim dela, assim faz-se necessário lembrar dos passos antes dados e das intenções que se quer concluir. A isto chama-se Besinnung. E como a vida de um indivíduo é feita de ações paralelas e concorrentes, e entra em conflito ou concordância com a ação de outros indivíduos, para que a se garanta a identidade do próprio, é necessário conjugar aquilo que realmente importa do ruído, do contingente – e isto é essencialmente narrativo. Seguindo a afirmação de Schapp em seu In Geschichte Vestrick,5 "Die Geschichte steht fur den Mann", significando que a identidade de alguém não é mais que a sua história. Assim, para falar quem é alguém, conta-se uma História sobre essa pessoa. E, considerando a existência como um conjunto de ações e experiências, pessoais e coletivas, cada uma com seu próprio telos, como definir a História a ser contada? Carr introduz aqui um conceito caro aos teóricos da literatura, identifica os diferentes envolvidos em uma História: o narrador, os personagens e a audiência. Ao viver a própria vida, o homem conta para si mesmo a sua História, servindo de narrado, personagem e audiência, e o acordo narrativo oriundo daí é a sua própria identidade. Mas, permanece, dentre tantas histórias, como montar a História da vida de um indivíduo? É necessário eliminar os ruídos, considerar apenas as histórias que importam para a constituição da identidade. Se as ações simples possuem uma teleologia, as ações compostas, por serem várias, possuem inúmeras teleologias. Quais delas são importantes para o indivíduo? Para facilitar, podemos considerar o alvo de todas as ações a existência feliz do homem, mas isso basta? Não há critérios para se definir a composição narrativa de uma História pessoal, e ainda que houvesse, ela estaria sujeita a rearranjos, uma vez à medida que o tempo passa, há uma necessidade de realocação dessas histórias. "This means that the whole can very well change, and the parts change not in themselves but in their relation to other parts os the whole they make up" (CARR 1991, p.99) A última parte do livro de Carr é importantíssima, mas para os propósitos da nossa crítica e os limites deste trabalho, seremos forçados a ocultá-la. Deixamos como questão para o desenvolvimento seguinte, mais uma vez, a relação entre tempo e narrativa. Carr condena teóricos como White, Mink, Ricoeur e Kermode, acertadamente ou não, considerando que eles vêem uma descontinuidade entre a experiência informe e a narrativa ordenadora. Se seus 5

Parece haver uma tradução dessa obra para o português, com o nome de Envolvido em histórias, a qual ainda não obtive acesso. Portanto, as referências feitas a ela, seguirão assim como postas por Carr.

opositores estiverem corretos, como a História pode representar o passado, se as conexões que ela estabelece são configurações diacrônicas impostas aos fatos? Para resolver este problema, o filósofo propõe uma continuidade entre tempo e narrativa, entre experiência vivida e experiência narrada. Porém, se as ações são narradas in locu, para que narrá-las depois? Carr não nega a importância da narrativa histórica, mas atribui a ela apenas a vantagem de um ponto de vista posterior, capaz de reorganizar as narrativas da ação de maneira diferente. Mas há pontos que ele desconsidera ou não dá a atenção devida. Vejamos quais são eles.

IV Ao tentar explicar como funciona e qual é a importância da Besinnung para constituição da experiência, David Carr descreve-a como fundamentalmente narrativa. Não estaria ele dizendo o mesmo que Ricoeur, ao propor histórias ainda não narradas?6 Ela é sugerida pelo fato mais ordinário de que não existe experiência humana que não seja mediada por sistemas simbólicos, e entre eles pelas narrativas. Como falaremos da qualidade narrativa da experiência, como poderemos falar dela como uma história em estado nascente, se nós não temos acesso as dramas temporais da vida humana fora das histórias contadas a seu respeito pelos outros ou por nós mesmos? Entretanto, a objeção não faz justiça a um fenômeno fortemente intrigante que, a meu ver, nos obriga a conceder à experiência como tal uma narratividade incoativa. Não somos inclinados a ver em certo episódio de nossa vida as histórias "ainda não narradas", as histórias que pedem para ser narradas, as histórias que oferecem os pontos de ancoragem à narração? Não ignoro o quanto é incongruente a expressão "história (ainda) não narrada". As próprias histórias não são narradas por definição? Isso não é discutível se falarmos de histórias efetivas. Mas a noção de História potencial é inaceitável? (RICOEUR 2012, p. 308).

Em seguida Ricoeur compara essas histórias não narradas com um paciente que vai a um psiquiatra/psicanalista, a fim de reorganizar os "pedaços de história" que ele leva e, compor assim, uma história completa, finalmente. O homem que narra para si mesmo a própria história é o paciente antes ou depois de consultar o psicanalista? Se a narrativa da está presente já durante a própria ação, o que restaria para o historiador além de recolher as narrativas e respaldar o que já estava dito? Para Carr, a experiência humana é uma experiência configurada em formato narrativo. Isso não significaria que, para tornar a experiência humana é, antes, preciso narrá-la? O esforço de Carr para demonstrar como o mundo-da-vida se organiza temporalmente, à semelhança das próprias narrativas, é louvável, e em vários 6

Estou trabalhando em outro artigo, em conjunto, que deve ponderar as críticas de Carr a Ricoeur, buscado localizar o papel da narrativa em ambos e como cada um a relaciona com o mundo-da-vida.

sentidos, bem sucedido. Mas ao dizer que a experiência humana é configurada à semelhança das narrativas, não estaria ele concordando com Kermode com a nossa necessidade de formular ficções para humanizar nosso tempo? "Let us take a very simple example, the ticking of a clock. We ask waht it says: and we agree that it says tick-tock. By this fiction we humanize it, make it talk our language" (KERMODE 2000 [1965], p.44). O tic seria o início, o tac seria o fim. Entre o som de um e outro está o nosso tempo, o do meio, desconectado do início e do fim, clamando para estabelecê-la – é neste espaço que formulamos enredos, simples como o soar de um relógio, ou complicado como o de Ulysses. Ao final de seu livro, Carr começa a discutir se a narrativa é universal ou um atributo de nossa cultura. Creio que esta seja a parte mais infeliz do livro. Ao considerar a particularidade da narrativa, ele, enfim, está negando todo o argumento do livro; tenta salvá-lo, mas aos meus olhos, falha. Porém é meritoso o próprio reconhecimento desse risco, seguido de uma consideração interessante: It may be thought that by admitting the possibility that narrative structure is culturally bound, we are undercutting na important part of our thesis. If is true that the narrative organization of time is proper to a particular culture and tradition, does this not mean that its origin in literary after all? (CARR 1991, p.184)

Acredito que sim. Kermode, em seu livro, usa a seguinte epígrafe de um poema de Stevens, "a more severe,/ more harassing master would extemporize/ Subtler, more urgent proof that the theory/ Of poetry is the theory of life...". Como a teoria da literatura poderia, ao mesmo tempo, ser a teoria da vida, sendo que há uma descontinuidade entre experiência e narrativa? Entre o mundo desordenado e o mundo estruturado e significativo? Simplesmente porque a ficção não significa a escrita, mas tão-somente a maneira de configurar o tempo entre início-meio-fim. Essa é a experiência humana, não qualquer experiência. E o homem não pode viver sem formular tais ficções, sem antever um fim a que possa se programar e medir o tempo, como o caso de Christopher Burney, autor de Solitary Confinement. 'One does not suffer the passing of empty time, but rather the slowness of the expected event wich is to end it.' If time cannot be felt as successive, this end ceases to have effect; without the sense of passing time one is virtually ceasing to live, one loses 'contact with reality'. (...) Time cannot be faced as coarse and actual, as a repository of the contingent; one humanizes it by fictions of ordely succession and end" (KERMODE 2000 [1965], p.159)

Viver significa engendrar narrativas. A estrutura temporal da experiência humana é emprestada da estrutura temporal das ficções. A historiografia mimetiza essa experiência, já ordenada. Mas esse ordenamento está sujeito a narrativas concorrentes. Uma pergunta que um

historiador pode legitimamente se fazer é sobre sua liberdade para escrever sobre o passado. De acordo como creio, que a tradição informa a História, aparentemente não teríamos possibilidades de narrativas concorrentes. Mas, - e aqui recorro a parte obliterada da argumentação de Carr, justamente a terceira parte de seu argumento, onde analisa a configuração temporal das narrativas de um sujeito-coletivo – a própria experiência comporta diferentes versões sobre aquilo que está sendo experimentado. Na medida em que participar de um grupo é concordar com a narrativa que faz o elo entre seu passado, presente e futuro; e na medida que um grupo – de acordo com o uso da dialética do senhor e do escravo, tomada de Hegel por Carr, é formado por pessoas desejosas do reconhecimento uma da outra, e que esse reconhecimento mútuo depende da escolha livre de evitar o conflito e submeter o outro – sempre restará a possibilidade de ainda existir o conflito e a duração dessa comunidade se encerrar. Portanto, o mundo-da-vida comporta narrativas concorrentes as quais podem fornecer, através da tradição, maneiras distintas do historiador escrever o passado. Mais outra questão relevante na qual a atenção dedicada por Carr é deficitária, corresponde à própria noção da composição narrativa das ações compostas. Admitindo, como fizemos, que as narrativas se modificam ao longo do tempo, isso se deve à imprevisibilidade e inexperimentabilidade da nossa própria morte. A cada dia que passa os eventos do passados podem se mostrar mais ou menos relevantes, ou conectados ou não a outros eventos. A narrativa na própria experiência carece do início e do fim. E este, mais do que o sentido do fim, ou da ausência de organização temporal do mundo, é o ponto mais importante para Kermode. O homem formula enredos porque está localizado no meio expandido, com o fim e o início intangíveis. Desta forma, a teoria de Carr é concordante com a de Kermode, devendose aperfeiçoar a relação estabelecida entre vida e narrativa levando-se em conta essa questão. Ainda sobre a intangibilidade do fim, Carr utiliza a ontologia de Heidegger, onde a existência do Dasein é colocada como problema, quando no modo da propriedade (traduzida por Carr como autenticidade, em oposição à inautenticidade). Quando no modo inautêntico, o homem viveria aquela experiência onde tudo é mera sequência e a vida não faz sentido. O presente não consegue se conectar com as experiências do passado, nem mobilizar um futuro. É a experiência do tédio e da angústia, que para Carr, no entanto, não é primária. It is true that some literary narratives have something definitive about hem that life never has. They do not just end; they give us what Kermode calls "the sense of na ending" in wich, happily or sadly, all the threads of the plot are neatly tied up and everything is explained. Life, to be sure, is not like that. But we are justified in concluding that, since the events of our lives do not fit together as neatly as those of a good story, they occur in randomly, simply one after the other? Or that

our lives are scrambled messages, a hubbub of tatic and noise? Because we experience no neat, absolute beginnings, na no ultimatly satisfying and all-explanatory endings, is it correct to say that we have none at all? When we stress the role of narrative structure and narrative coherence in everyday experience (...) This is simply to admit the banal truth that for most of us, most of time, things do,, after all, make sense, hang together. (CARR 1991, p.89-90)

Para Carr, o tédio é algo da "inautenticidade", enquanto o indivíduo que assume responsabilidade por sua vida, o "autêntico", ele se responsabiliza por juntar as partes da vida em conjunto, e delas fazer um todo coerente (quando o narrador esforça-se para ser autor). Mas a interpretação que Carr faz de Heidegger é por demais sartreana, e isso de forma alguma pode ser motivo para aplausos. Se uma interpretação mais coerente de Ser e Tempo fosse empreendida, não teríamos tantos problemas em entender a historicidade como a integração do indivíduo com a sociedade, tanto com os que se foram, como os que são contemporâneos, e com as gerações futuras. E poderíamos entender a experiência da falta de sentido como um niilismo existencial, fundamental, não como uma patologia. Assim a diferença da narrativa histórica para a narrativa da experiência in locu não seria apenas de ponto de vista, de distância temporal, de onisciência, e a falta de sentido poderia ocupar um papel mais central; assim, a diferença da História para os Anais, como aponta White, poderia ser melhor estudada. O problema de como a História pode representar o passado está longe de ser resolvida, e esses breves apontamentos, espero, possam servir para futuros desenvolvimentos na questão, servindo de um projeto de pesquisas a ainda serem realizadas. Afinal, a análise de Hayden White sobre o realismo dos Anais sobre a historiografia moderna, é uma piada, porém séria. Consequências da relação entre fenomenologia e filosofia analítica, em específico, a narratologia, podem trazer importantes reflexões sobre o trabalho do historiador.

Bibliografia CARR, David. Time, Narrative, and History. Bloomington: Indiana, 1991. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2011. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução: Fausto Castilho. Campinas e Petrópolis: Unicamp e Vozes, 2012. HUSSERL, Edmund. A Crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

—. Idéias para uma fenomenologia pura e para um filosofia fenomenológica. Aparecida: Idéias&Letras, 2006. KERMODE, Frank. The sens of an ending: studies in the theory f fiction. New York: Oxford University, 2000 [1965]. PARTNER, Nancy. “Hayden White: The Form of the Content.” History and Theory, May de 1998: 162-172. RICOEUR, Paul. “Entre tempo e narrativa: concordancia/discordância.” Kriterion, Junho de 2012: 299-310. WHITE, Hayden. “The Value of Narrativity in the Representation of Reality [1980].” In: The Content of the Form, por Hayden WHITE, 1-25. Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 1990.

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