Fernando Pessoa: autor de contos policiais

July 5, 2017 | Autor: Cristhiano Aguiar | Categoria: Fernando Pessoa, Literatura Portuguesa, Literatura Policial
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Fernando Pessoa, autor de contos policiais Cristhiano Aguiar

1. Literatura policial: conceito e história

Toda ficção contém uma busca. Mesmo naquelas obras em que personagens e enredo encontram-se ofuscados pela inventividade da linguagem – é o caso de obras como Avalovara, de Osman Lins, Ulisses, de Joyce, ou Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector – tomadas por aquilo que Julio Cortázar, no livro de ensaios Valise de Cronópio, chamou de “golpe estado da poesia”, há, ainda, uma procura, que é a reinvenção dos próprios limites do que pode ser dito através da palavra escrita. No âmbito das narrativas policiais, gênero que nos interessa nesse ensaio, o que se procura? A solução do enigma. Ao lermos uma história policial, podemos perceber dois temas marcantes: o enigma e o desencanto. Em alguns momentos, este enigma será o próprio núcleo da construção ficcional; em outros, um aspecto secundário, que nunca, porém, deixará de fazer parte das narrativas. Qual o crime? Quem cometeu? Como o fez? Por quê? Em quem recai a culpa? De acordo com o cineasta inglês Alfred Hitchcock: O romance policial distingue-se de todos os gêneros de ficção criminal pela sua insistência no normal. O acontecimento anormal – o roubo, o incêndio voluntário, o assassinato – encontra-se explicado em termos puramente materiais, naturais e lógicos. O crime é a pedra lançada no charco estagnado... O detetive faz um diagnóstico. O seu trabalho é estudar as rugas à superfície da água e descobrir a pedra que a perturbou. (Hitchcock apud Cauliez, 1959, p.23).

Ocorrem, na verdade, não um, porém dois trabalhos de investigação na literatura policial. O primeiro é aquele do qual fala Hitchcock. O outro é executado pelo leitor da história, pois há um convite implícito, em todo o gênero, de preenchimento dos espaços em branco. Esse potencial criativo das histórias policiais – em que o leitor é convidado a participar diretamente do jogo narrativo – é um dos seus maiores atrativos. Na verdade, poucos de nós são imunes à sedução de uma pergunta, qualquer que seja ela e esta sedução se intensificará se “pergunta” e “resposta” orbitarem ao redor do tema da transgressão. Quem nunca fez algo deixado em oculto? Quem nunca teve um impulso destrutivo? Por estarmos pressionados, todos os dias, entre o dever e o desejo, uma literatura que trate da transgressão deste dever em prol de um rude desejo nos é, sem sombra de dúvidas, bastante atraente. Ao refletir sobre ficção, em si, Umberto Eco afirma: Ler ficção significa jogar um jogo através do qual damos sentido à infinidade de coisas que aconteceram, estão acontecendo ou vão acontecer no mundo real. Ao lermos uma narrativa, fugimos da ansiedade que nos assalta quanto tentamos dizer algo de verdadeiro a respeito do mundo. Essa é a função consoladora da narrativa – a razão pela qual as pessoas contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da experiência humana (2002, p.93).

No mesmo ensaio, Eco defende a idéia de que os mundos ficcionais são parasitas do real (2002, p.89), pois a relação entre o leitor e a obra se pauta por um conhecimento do mundo real, que será o pano de fundo da obra ficcional. Nas histórias policiais, conforme veremos, a moldura de um real verossímil será imprescindível, pois o consenso acerca do real é uma condição necessária. Embora seja possível uma história policial fantástica, estes elementos são geralmente discretos, pois a própria idéia da investigação de um enigma seria implodida se o mundo ficcional não tivesse um mínimo de confiabilidade e estabilidade ontológica. A literatura policial é uma crítica ao tumulto violento do mundo. Sartre, ao escrever sobre Baudelaire, definia o mal como um “querer o que não se quer” (Sartre apud Bataille, 1989, p.29). Um romance, ou conto policial, cumprirá seus objetivos se conseguir envolver o leitor num jogo de fascinação pelo mal, em que se buscará a criação de um sentido à experiência do mal, que conduz ao desencanto com o homem. Toda história policial contém uma representação da capacidade humana de destruição, desvendando as entrelinhas de relações sociais pautadas pelo medo, pela mentira e pela morte: aqueles momentos, os momentos do crime, nos quais o semelhante é uma ameaça, ou uma caça. As narrativas policiais surgem a partir do século XIX vinculadas às transformações causadas pela Revolução Francesa, que consolidou a ascensão da burguesia, principal público consumidor deste tipo de literatura. Importantes, também, foram os efeitos da Revolução Industrial, por proporcionarem o desenvolvimento das grandes cidades industriais, da indústria cultural de massa e da imprensa moderna (Reimão, 1983, p.12-13). Foi a época do auge dos Estados Nacionais, criadores de uma nova força coercitiva: a força policial organizada, cuja existência transformará a figura do criminoso numa ameaça ao Estado e ao pacto social fundador deste. Através da imprensa, começarão a circular com maior intensidade notícias, muitas vezes, sensacionalistas, sobre crimes. Forma-se, portanto, no público leitor da época, um gosto e uma procura por histórias desta natureza. Tornaram-se muito famosos, por exemplo, relatos autobiográficos de policiais, ex-policiais ou ex-criminosos – na história da formação da polícia, muitos policiais foram ex-criminosos – que influenciaram as histórias policiais (Reimão, 1983, p.14). Importante, também, na formação desse novo gênero, foi a influência das idéias positivistas – com sua crença na razão e com o seu esforço de vincular as ciências exatas às ciências sociais – e das novas descobertas científicas na área de criminologia, psiquiatria, química, biologia, entre outras ciências, que servirão como fundamentação filosófica e científica das narrativas policiais (Sodré, 1988, p.30). O romantismo, no século XIX, e a tradição do romance gótico, no século XVIII, serão importantes para a literatura policial. Muitos temas da tradição romântica e gótica, ligados ao crime, à violência e ao fantástico, serão reaproveitados na literatura policial. Como exemplo, temos o romance O Cão de Baskervilles, escrito por Arthur Conan Doyle, protagonizado pelo famoso personagem Sherlock Holmes, cuja atmosfera sombria deve muito às narrativas fantásticas e góticas dos séculos XVIII e XIX. Não por acaso, Muniz Sodré (1988, p.31), Tzvetan Todorov (2004, p.55), Jorge Luis Borges (1996, p. 32) e Sandra Lúcia Reimão (1983, p.18) concordam em apontar o americano Edgar Allan Poe – cuja obra possuía muitas afinidades com a estética romântica – como o fundador das narrativas policiais. O marco zero do gênero, logo, seria o conto Os Assassinatos da Rua Morgue, publicado em 1840. Neste conto, Poe cita um daqueles famosos relatos sobre crime, aos quais fizemos referência no parágrafo anterior. Além desse conto, Poe escreveu outros dois, considerados importantes: O mistério de Maria Roget e A carta roubada. Além do escritor americano, destacamos, dentro os

precursores da literatura policial, os seguintes escritores e obras: na tradição do romance gótico, Mistérios de Udolfo, de Anne Radcliffe; O castelo de Otranto, de Horace Walpole; na tradição propriamente romântica, E.T.A. Hoffmann e Eugène Sue. 2. A literatura policial clássica Os principais representantes da narrativa policial clássica são: Edgar Allan Poe; Arthur Conan Doyle; Émile Gaboriau; Agatha Christie; G. K. Chesterton, que criaram personagens famosos: Auguste Dupin; Sherlock Holmes; Lecoq; Hercule Poirot; Padre Brown. A narrativa policial clássica se desenvolveu principalmente na Inglaterra e França, não obstante criada por um norte-americano. De forma geral, suas histórias possuem algumas características que se repetem. Nós propomos, aqui, um modelo, que não deve ser interpretado como uma camisa-de-força formal, mas como uma sistematização. A primeira característica consiste no modo como é contado o enredo: o narrador, geralmente em primeira pessoa, escreve após o crime acontecer. Este narrador é um indivíduo de inteligência mediana, cuja existência é justificada por duas necessidades do escritor de histórias policiais. Primeira necessidade: enfatizar o extraordinário intelecto do seu detetive através do contraste com o narrador mediano. A segunda: criação de um elo de identificação com o leitor. Tal elo não se forja porque o leitor queira sentir-se tão “inculto”, ou pouco “perspicaz”, quanto o narrador da história policial. A empatia entre narrador e leitor se forma a partir do momento em que este leitor compartilha com o primeiro a surpresa e o fascínio causados pelos feitos do detetive. O paradigma deste tipo de narrador pode ser encontrado no personagem Dr. Watson. Uma narrativa policial previsível é, por isso, o principal motivo de frustração dos propósitos do escritor deste gênero. O detetive é considerado uma “máquina de pensar”. Assexuado, pouco humano, resolve os enigmas utilizando seus conhecimentos específicos na área de criminologia e ciências afins, além da sua sobre-humana capacidade de dedução lógica. Aqui percebemos a influência do discurso positivista, com sua crença na reconstrução lógica dos fatos, na exaltação da ciência e na visão mecanicista do comportamento humano e social. Não se desconfia da linguagem, pelo contrário: ela pode apreender exatamente a verdade – considerada uma só, sempre – do real. Como falamos de tendências, cabe ressaltar que há diferentes nuanças na composição do personagem-detetive clássico. Se Auguste Dupin é o perfeito paradigma do detetive como “máquina de pensar”, Sherlock Holmes não hesitará em empregar métodos empíricos ao lado dos métodos dedutivos. Além disso, Arthur Conan Doyle se preocupa em humanizá-lo: Holmes gosta de tocar violino, aprecia a solidão e possui idiossincrasias, como é o caso do seu vício por ópio, ou de sua ignorância de conceitos básicos de literatura e astronomia. Ao final da história, a solução dada pelo detetive é inquestionável, pois ele realmente alcançou a verdade. Há também pouca violência explícita nestas narrativas e pouca ameaça à integridade física do detetive. Não poderia ser diferente, pois o detetive representa um modelo de inteligência ordenadora do real, que não deve ser colocado em cheque, por justificar uma mentalidade racionalista que defende paradigmas rígidos acerca da linguagem e do real. Não é por acaso que Armand-Jean Cauliez, ao comentar este gênero, tenha dito que “O romance policial clássico lembro o jogo de xadrez; no tabuleiro cruzam-se peões – não seres humanos.” (1959, p.28). 3.

Narrativa policial moderna - Thriller ou roman noir

Há muitos autores modernos e contemporâneos de narrativas policiais. É impossível elencar um rol exaustivo. Podemos destacar: Dashiell Hammett; Raymond Chandler; George Simenon; James Elroy; Patricia Highsmith; P.D. James, Andréa Camilleri, Patrícia Cornwell, Luiz Alfredo Garcia-Roza. Dentre os detetives marcantes criados por esta nova vertente policial, citamos: Sam Spade; Phillip Marlowe; Comissário Maigret e o brasileiro Espinosa. As narrativas policiais modernas trarão uma renovação na tradição da literatura policial. Esta mudança não acontecerá na Inglaterra, porém nos EUA. Dashiell Hammett e Raymond Chandler podem ser considerados os “clássicos” deste tipo de ficção. Borges, na sua conferência sobre o conto policial, lamenta a mudança de direção sofrida pelo gênero: “atualmente o gênero policial perdeu muito de sua importância nos Estados Unidos. (...) A origem intelectual do conto policial tem sido esquecida” (1996, p. 39). As características que apontaremos para essa guinada na literatura policial se referem mais às obras de Chandler e Hammett, pois os autores contemporâneos, como é o caso do brasileiro Garcia-Roza, cuja obra é uma das melhores do gênero hoje, no mundo, com freqüência misturam os dois modelos, o clássico e o noir. A primeira diferença entre a narrativa clássica e a moderna corresponde à linguagem: o narrador não precisa ser necessariamente uma testemunha do detetive, ou um narrador impessoal em terceira pessoa, mas o próprio detetive. Descarta-se a pretensão de criar um estilo erudito, apoiado em termos filosóficos e científicos, em favor de uma linguagem amolecida pela oralidade, pelas gírias e palavrões. A composição do personagem-detetive também muda. Ele não é mais uma máquina fria e dedutiva, mas um ser humano que caminha, muitas vezes, numa zona cinzenta e enevoada entre o crime e a lei. Obediente à idéia norte-americana do self made man, ele se impõe no mundo de modo violento, forçando-o a agir em seu favor. A estas duas novas concepções, uma em relação à linguagem, a outra, em relação ao personagem, se junta uma terceira, a necessidade da crítica social. Juntas, estas três inovações ruirão a “torre de marfim” na qual se escondia o detetive clássico. Em Chandler e Hammett, ocorre uma denúncia dos refugos e dos despojos do capitalismo, além da crítica ao american way of life. O enigma, conquanto ainda presente, perde espaço para a descrição do lado oculto da sociedade e da mente dos criminosos, como é o caso das histórias sobre serial killers. O sexo, escondido até então, aparecerá como um dos principais temas destas novas histórias. Detetive, vítima e vilão muitas vezes se envolverão num jogo de fascínio mútuo, que não exclui a tensão sexual. Não só a sexualidade se encontrará mais explícita, como também a violência. A integridade física do detetive, desta vez, até mesmo por ele ser um personagem que enfatiza a ação, não a dedução, será muitas vezes posta em perigo. Os desfechos nem sempre são conclusivos: embora o detetive possa acertar e resolver o crime, às vezes ele erra, às vezes a injustiça prevalece, ou o próprio detetive não deseja desvendar o problema. Os crimes não acontecem a posteriori, como geralmente ocorre no modelo clássico, porém à medida que a investigação se desenvolve. Estas novas formas de narrativas policiais são chamadas comumente de thriller, pelos americanos, ou de roman noir, pelos franceses. Não podemos esquecer que as narrativas policiais nos séculos XX e XXI não se desenvolvem apenas na literatura, mas principalmente no cinema. O roman noir inspirou muitos filmes interessantes, como, por exemplo, O falcão maltês, Janela Indiscreta, Rififi e Festim Diabólico. Já os thrillers são a forma preferida adotada pelos estúdios de Hollywood ao fabricarem narrativas policiais. Bons thrillers são O silêncio dos inocentes – este, muito devedor de recursos do terror e do horror, principalmente psicológico, que podemos encontrar nas

histórias de terror desde o Romantismo – e Seven. Recentemente, outro filme honrou diversos elementos do noir: é Dália Negra, dirigido por Brian de Palma, baseado num livro do James Elroy. Brasil e Portugal não possuem uma tradição tão forte no gênero policial, mas muitas obras interessantes existem. Conforme já foi dito anteriormente, destacamos Luis Alfredo Garcia-Roza. Na literatura portuguesa, podemos citar Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão com O mistério da estrada de Sintra e Fernando Pessoa com os textos O roubo na Quinta das Vinhas e A carta mágica. Na literatura brasileira, autores como Machado de Assis, Coelho Neto, Viriato Correa, Luís Lopes Coelho, Rubem Fonseca, Patrícia Melo, Jô Soares (com os livros O xangô de Baker Street e Assassinato na Academia Brasileira de Letras), Nelson Motta (com os romances Canto de Sereia e Bandidos e mocinhas) e Luis Fernando Veríssimo (com as paródicas histórias do detetive Ed Mort e com o interessante romance Borges e os orangotangos eternos, no qual Jorge Luis Borges é o investigador de um crime inexplicável). Além destes autores, destacam-se, no âmbito da literatura infanto-juvenil, os livros de Marcos Rey e de João Carlos Marinho. Outra boa referência para conhecer a literatura policial brasileira se encontra na antologia de contos Crime feito em casa, organizada por Flávio Moreira da Costa. 4. A literatura policial de Fernando Pessoa Após uma síntese da história e das principais características da literatura policial, podemos agora entender melhor de que forma Fernando Pessoa dialogou com este gênero. Pessoa nos deixou um conjunto de textos que tratam de um tema geral: o crime. Dentro desta literatura pessoana sobre o crime, há duas subdivisões: dois textos que chamaremos, devido ao clima, de contos de horror; e um conjunto de fragmentos que representarão a sua literatura policial propriamente dita. Os seus trabalhos de horror consistem no conto Um jantar muito original, escrito pelo heterônimo Alexander Search e no fragmento Czarkresko. Já os seus contos, ou melhor, seus fragmentos de temática policial, são: Prefácio a Quaresma, A Janela estreita, O Roubo na Quinta das Vinhas, A Carta Mágica, O Caso Vargas. Prefácio a Quaresma, Janela Estreita e O Caso Vargas não podem sequer ser chamados de esboços narrativos, pois são apenas exposição de idéias que provavelmente seriam utilizadas em textos futuros. Nestes dois casos, não identificamos nenhum fio narrativo, mesmo em Janela Estreita, estruturado sob a forma de diálogos. Tais diálogos não desempenham função narrativa, pois são meros suportes para a expressão das reflexões de Fernando Pessoa. Neles, Pessoa iniciará uma exposição acerca da inteligência humana, dos raciocínios humanos e da capacidade dedutiva humana. O Roubo na Quinta das Vinhas e a Carta Mágica, pelo contrário, podem ser chamados de contos inconclusos. Há um desenvolvimento do enredo e personagens. Sabemos qual o crime, quem é o detetive, o local do crime e os suspeitos. Existe também um desfecho, no qual se revela a identidade do criminoso. Analisaremos apenas um destes textos, O Roubo na Quinta das Vinhas, por se tratar do exemplo mais bem-acabado e por sintetizar todas as características da prosa criminal de Fernando Pessoa. Em Setembro de 1905, acontece, meia-noite, um arrombamento, causado por uma explosão, numa casa na Quinta das Vinhas. Estavam presentes a família do proprietário, José Mendes Borba, e dois amigos da família: Maria Elisa e o engenheiro

Augusto Claro. Do cofre, foram roubados cem títulos da Dívida Externa Portuguesa. Intrigada, a polícia desconfia da ação de uma quadrilha, ao mesmo tempo em que acredita, devido às circunstâncias do roubo, ter havido colaboração de pessoas próximas às vítimas. Desconfia-se do filho do dono da casa e do jardineiro, que acaba sendo preso. Para evitar uma injustiça, Augusto Claro procura o nosso protagonista, o médicodetetive Dr. Quaresma, para que auxilie na solução do caso. Percebemos que o enredo segue a tradição das narrativas policiais clássicas. Temos um roubo, que será reconstituído e solucionado pela inteligência do detetive, sempre mais hábil do que a polícia. O narrador não é Dr. Quaresma, mas o engenheiro Augusto Claro, o que aproxima esta história da técnica narrativa de Edgar Allan Poe e Arthur Conan Doyle. Não esqueçamos a natureza do crime: um arrombamento premeditado, planejado por uma inteligência calculista, que não deseja a deselegância do sangue e do assassínio. O conto, conforme já frisamos, não se encontra completo. Fernando Pessoa nos deixou cinco fragmentos razoavelmente delineados, que funcionam como cinco capítulos. No primeiro fragmento, somos apresentados ao Dr. Quaresma, que conversa com o narrador. Não há diálogos, apenas um desabafo de Claro: Apesar de me maçar, por antecipação, a idéia de ir contar ao Dr. Quaresma toda a história do roubo, não podia decentemente furtar-me a fazê-lo. (...) Dr. Quaresma ouviu-me com grande atenção, mas, se assim posso dizer, com uma atenção dividida. (...) o Dr. Quaresma parecia, sem deixar de me ouvir atentamente, estar todavia a seguir o decurso interior de uma outra coisa – raciocínio ou conjectura ligada – que não deixava de ter relação com o que eu ia narrando. (Pessoa, 1986, p.111-112)

É nítido o desconforto sentido por Claro. Há dois motivos para este desconforto: o principal só nos será revelado no desfecho. O segundo motivo consiste na artimanha narrativa de criar a empatia com o leitor, pois o intelecto extraordinário de Quaresma fascina, porém também incomoda. O engenheiro Claro e o leitor compartilham um misto de repúdio e atração pelo detetive. Terminado o relato dos acontecimentos, feito pelo engenheiro, o Dr. Quaresma passa a interrogá-lo. No 2ª. fragmento, há um diálogo inconcluso, cujo início não se encontra entre os manuscritos de Pessoa. Do contexto, percebe-se que ele faz referência ao pedido de Claro para que Quaresma inocente o jardineiro, chamado de José Algarvio: “- Eu salvo José Algarvio – disse. – Mas antes de o fazer, preciso estudar com muito cuidado como hei-de proceder no assunto. (p.113)”. No 3ª. fragmento, Dr. Quaresma revela que já conhece o criminoso, apenas a partir das informações colhidas através de Claro (p.113). O personagem Dr. Quaresma foi construído por Fernando Pessoa conforme o modelo da “máquina de pensar” da narrativa clássica. Seu paradigma não é Sherlock Holmes, ou Hercule Poirot, mas Auguste Dupin, criado por Edgar Allan Poe. A convergência entre Poe e Fernando Pessoa, no que diz respeito às narrativas pessoanas sobre o crime, se mostra clara. O conto de horror um Jantar muito original faz muitas referências ao conto Tu és o homem, de Poe. Da leitura destes exemplos e dos próximos, poderemos perceber uma outra convergência entre os dois autores: não apenas no que diz respeito ao enredo ou à construção dos personagens, porém ao próprio estilo das narrativas, pois O Roubo na quinta das vinhas lembra bastante o estilo de Edgar Allan Poe. O quarto fragmento consiste num discurso feito pelo Dr. Quaresma ao engenheiro Claro, para o qual aponta a solução do crime e a identidade do criminoso. Inicialmente, o detetive faz diversas considerações sobre métodos de investigação e de

raciocínio lógico (p.114). Dr. Quaresma se preocupa não somente em desvendar o crime, como também em depurar a forma como se pensa uma investigação criminal. Este é o momento preferido de Fernando Pessoa, pois é aquele que se encontra sempre melhor acabado em todas as suas tentativas de contos policiais. Pessoa certamente se interessava mais pelo debate de idéias acerca da criminologia, dos processos cognitivos e dedutivos humanos, do que pelo desenvolvimento das técnicas narrativas do conto policial. Por isso, deixa de lado o enredo e a construção dos personagens. Prestemos atenção nestes trechos: O critério de investigação que adopto, porque o acho o mais racional de todos, é o dividir a investigação preliminar em três tempos. O primeiro tempo é determinar quais são os factos inconstestáveis (...) Estabelecidos os factos inconstestáveis, chegamos ao segundo tempo da investigação. Este tempo consiste no seguinte: em descobrir qual é a hipótese que mais completamente liga e explica os factos incontestáveis. (...) Em toda a investigação de um facto, cuja natureza se desconhece e se quer saber ou cujo autor se ignora e se quer descobrir, o que importa, acima e antes de tudo, é isolar nele qualquer elemento que, sendo absolutamente indubitável, seja, ao mesmo tempo, inesperado ou estranho. Este roubo contém dois elementos que são inesperados ou estranhos – as circunstâncias do roubo, e o facto de que se conseguiu passar os títulos sem encontrar obstáculos (p.115-116).

É uma prosa de ritmo prolixo, cansativa. Orgulhosa da própria racionalidade. O positivismo e o cientificismo, portanto, fundamentarão o discurso desta e das outras tentativas de narrativas policiais do poeta português. Há uma excessiva preocupação em racionalizar a linguagem do Dr. Quaresma, o que leva o conto a se perder numa prolixidade que deixa sua linguagem cansada. No fim do 4ª. fragmento, revela-se o criminoso: é o próprio narrador, o engenheiro Claro, que roubara o cofre, antes de explodi-lo. A explosão serviu apenas para distrair a polícia e o dono da casa, induzindo-os a errar quanto à hora do furto – bem mais cedo do que a hora da explosão – e à autoria do crime. Uma brecha surge: sabendo que Quaresma solucionava crimes para a polícia, por que o engenheiro Claro foi procurá-lo, correndo o risco, como de fato aconteceu, de acabar sendo incriminado? Não é raro, numa narrativa policial, um criminoso flertar com a sua própria incriminação, ou com o detetive que o investiga. Este perigoso flerte já rendeu bons momentos no gênero; faltou em O Roubo na quinta das vinhas, contudo, devido à própria natureza inacabada deste conto, um maior desenvolvimento das motivações de Claro ao procurar Quaresma. No 5ª. fragmento, o engenheiro Claro reconhece sua derrota e é remoído pela culpa. Como em tantas outras histórias policiais clássicas, o conto termina assim: A meio da Praça o Dr. Quaresma voltou para mim a face, mas não os olhos, e disse: “o que pensa fazer?” Tive uma grande vontade de chorar, de lhe pedir perdão, a ele, a quem nada fizera. Durante um momento não pude falar. Depois encontrei a minha voz dizendo-lhe: “não sei.” E acrescentei, passado um momento: “o doutor dirá o que quiser”. O Dr. Quaresma olhou então em cheio para mim, e disse-me com grande simplicidade: “eu não tenho nada a dizer. Como já compreendeu, decifrei – posso dizer-lhe que decifrei com muita facilidade – o seu caso. O resto é consigo.(p.118)

Inquestionável, a palavra final do detetive: sua inteligência e sua ciência conseguiram reconstituir a verdade. Fernando Pessoa, nos seus contos inacabados, não

chega a problematizar as convenções da literatura policial clássica. Contenta-se em reproduzir seus modelos. Através do estudo destes textos, podemos sentir a reverberação de algumas das leituras formativas de Fernando Pessoa: Poe, claro, mas também Chesterton, R.L. Stevenson, Arthur Conan Doyle. Eles confirmam, também, o seu fascínio por temas como o positivismo, a cognição, a psicologia, a criminologia. Por isso, não nos espanta que Pessoa tenha enveredado pelas narrativas policiais. Entretanto, a sedução que este gênero exerceu no escritor português não surge apenas de suas leituras preferidas, ou da presença de temas que interessavam ao escritor e que ainda ecoavam no debate de idéias do seu tempo. Levantamos a hipótese de mais uma motivação, um tanto silenciosa, além destas. Muitos personagens da literatura policial gostam das máscaras. Nada é o que parece ser: uma voz esconde outra voz, num jogo de dissimulação. Como Pessoa, um poeta multiplicado, poderia ficar imune a estes mistérios? Este é o nosso último enigma e nossa última resposta. 5. Referências Bibliográficas BATAILLE, George. A literatura e o mal. Porto Alegre: L&PM, 1989. BORGES, Jorge Luis. Cinco visões pessoais. 3ª. ed. Brasília: UNB, 1996. CAULIEZ, Armand-Jean. O filme policial. Lisboa: Aster, 1959. ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. PESSOA, Fernando. Ficção e Teatro. Portugal: Europa-América, 1986. REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é romance policial. São Paulo: Brasiliense, 1983. SODRÉ, Muniz. Best-seller: a literatura de mercado. 2ª.ed. São Paulo: Ática, 1988. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 3ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

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