Ferreira Gullar tinha rebeldia como meta

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FOLHA DE S. PAULO – ILUSTRADA

ANÁLISE – Ferreira

Gullar tinha rebeldia como meta

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA ESPECIAL PARA A FOLHA (04/12/2016 – 16h49)

Uma condensação da obra e da vida de Ferreira Gullar talvez se encontre nos versos que abrem "Poema Sujo" (1976): "turvo turvo/ a turva/ mão do sopro/ contra o muro/ escuro/ menos menos/ menos que escuro/ menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo/ escuro/ mais que escuro:/ claro como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma/ e tudo/ (ou quase)".

Pelo avesso, a ressalva, evocadora do poema célebre de Mário de SáCarneiro, afirma o gesto matriz de Ferreira Gullar: um inconformismo extremo, que o levou a rever suas posições e a buscar novos caminhos. Muitas vezes, em franca contradição com passos anteriores.

No fundo, o que conta para Gullar é a exploração contínua e sincrônica do mesmo e de seu contrário – a assimétrica distribuição dos signos gráficos na página; as contradições lógicas deliberadamente forjadas; a redundância de ponta-cabeça, criadora de diferenças em série. Em sua poesia (quase) sempre o "o claro mais que claro claro" resulta em "coisa alguma". Aliás, recorde-se o título-emblema de seu último livro de poesia, "Em Alguma Parte Alguma" (2010).

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O descompromisso (propriamente poético) com suas conclusões (provisórias) é uma lição de Gullar ainda mais valiosa na era das certezas inamovíveis e da intolerância das redes sociais.

Em 1954 a publicação de seu segundo livro, "A Luta Corporal", apresentou os elementos centrais de sua poesia: o caráter agônico da relação entre linguagem e mundo e a primazia do sensível, mesmo do sensorial, em sua percepção das palavras e das coisas. Retomando a tradição de um Petrarca, Gullar diagramou e compôs o livro, a fim de preservar sua concepção espacial da distribuição dos signos na página – por isso, os poemas aqui transcritos infelizmente perdem essa especial visualidade.

A obra de Gullar radicalizou a oscilação entre o projeto de inventar uma linguagem em busca de autonomia, constituindo um domínio autorreferente, e uma linguagem que se adensa e se encorpa precisamente no atrito com o mundo e sua matéria sensível. 2

Em sua poesia, o corpo é o único lastro possível após a desarticulação dos níveis fonético, sintático e semântico operada em "A Luta Corporal", especialmente em poemas como "Roçzeiral" e "Inferno", cujos versos finais apenas podem ser vocalizados, tornando a pura emissão de sons a forma própria de uma poética do corpo.

A linguagem e o corpo são os eixos articuladores das preocupações de Gullar. Pode-se elencar em todos os seus livros um conjunto poderoso, e sem paralelo na poesia (não apenas) brasileira, de metáforas e reflexões acerca do corpo e seus limites e potências. Leia-se "Exercício de relax", publicado em Barulhos (1987). Esse verdadeiro manifesto anti-cartesiano acompanha, casando fenomenologia e escatologia, um cogito que, à espera do sono-sonho, se abandona ao puro corpo: "e que as águas do sono subam pelos músculos da coxa / adductor longus, quadriceps femoris / e pelo fêmur / e pelo ânus / e pelo pênis / e me cinjam a cintura."

Corpo-corpo e corpo-corpus da poesia e da reflexão estética. Antes de sua revisão das vanguardas, que o levou (e, para muitos de nós, surpreendentemente) à condenação sumária da arte contemporânea, o poetacrítico elaborou a instigante "teoria do não-objeto". Tratava-se de deslocar a obra de arte, vista como objeto a ser contemplado, em favor de uma estética do participador, cujo corpo era o polo de atualização da potência contida nos parangolés e penetráveis de Hélio Oiticica e nos bichos e nas estruturas de Lygia Clark.

As controvérsias (políticas ou outras) seguirão em seu diligente vaivém. Não vale a pena competir com os que vivem dentro do dia, da tarde e da noite sempre mais velozes (e algozes, também). A poética do corpo e a política da linguagem de Ferreira Gullar – essas ficarão.

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA é professor de literatura comparada da Uerj.

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